Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
2. América Latina: formação nacional e integração (Laércio Antônio Pilz) Muitos surtos de autoritarismo foram justificados pela necessidade de colocar ordem no caos, de impor um equilíbrio em relação às diferenças. Em lugar de um estado conciliador e negociador, a América Latina experimenta, predominantemente, a imposição de estados autoritários, que arrogavam para si o direito de, coercitivamente, manter a ordem. A ausência de experiências democráticas na maior parte de suas histórias fez que com que a geografia política das nações latino-americana fosse marcada por relações de poder verticais. Não será somente pela ação do estado e muito menos de forma autoritária que se chegará a uma integração verdadeira e responsável na América Latina. A perspectiva de que experiências mais espontâneas e recentes, por parte das pessoas e grupos, se constituam como força cultural alternativa no processo de integração latino-americana, é aqui apresentada. Vivemos a era da comunicação aberta, da troca de cultura, de espaços geográficos cujas fronteiras cada vez são mais flexíveis e esse fato vem sendo experimentado e pode ser potencializado ainda mais na América Latina. A lembrança de Mercedes Sosa, de Dante Ramon Ledesma, entre outros, por exemplo, não faz mais parte da memória desse ou daquele país, mas de toda a memória latino-americana. No campo da arte, da música e da literatura, linhas de integração se constituem espontaneamente. Tais expressões trazem consigo também a memória política, social e econômica, cujas lutas e esperanças são inerentes às expressões culturais. São reconhecidas as diferenças culturais, históricas e sociais, mas se experimenta, sem a necessidade ideológica de instituir um estado único, a integração continental. 1.1 – Formação nacional Na América Latina, a história estaria atravessada pelo precário, provisório, inacabado, mestiço, exótico, deslocado, fora do lugar, folclórico. Nações sem povo, nem cidadãos; apenas indivíduos e população. Por isso, dizem, o Estado é forte, a democracia episódica, a ditadura recorrente. São as elites deliberantes — militares, civis, oligárquicas, empresariais, tecnocráticas — que sabem e podem. Chega-se a afirmar que um poder estatal esclarecido, apoiado na sabedoria da ciência, ou iluminado pela vontade política, poderá educar a sociedade, dinamizar a economia, conferir responsabilidade aos partidos, criar a opinião pública, lançar o país no leito da legalidade, legitimidade, democracia. O autoritarismo congênito e recorrente seria uma contingência da transição do caos à ordem, dos séculos de patrimonialismo escravista à república democrática, do poder oligárquico ao racional, do absolutismo ibérico à liberal-democracia. Assim, a sociedade civil seria retirada da sua debilidade essencial; do vício para a virtude. (Octavio Ianni em http://www.scielo.br/pdf/ea/v2n1/v2n1a03.pdf). 2 O significado de ordem contém em si, muitas vezes, o avesso da participação e da diversidade. Não devemos ignorar aspectos positivos que estão relacionados com o conceito de ordem, porém, em termos políticos, a ideia de ordem esteve, muito vezes, atrelada, na América Latina, a formas de poder que impõem o controle e o ajuizamento das diferenças. Como podemos deduzir da afirmação de Octavio Ianni, a lógica de poder de estado muitas vezes justificou a verticalidade do poder em função da necessidade de colocar ordem no caos, como se fosse impossível pensar o diálogo a partir do diverso. Essa racionalidade, instituída na lógica do estado civilizador, não consegue constituir linhas de aliança com a identidade múltipla da história latino-americana. Com isso, não se aprende a construir relações na dinâmica criativa do tempo. O estado é concebido hermeticamente, como detentor de um corpo jurídico que determina, imperativamente, o papel social de cada indivíduo ou população. Não ignoro a necessidade de ordens legais mínimas que estabelecem o ajuizamento de regras comuns. No entanto, ao se justificarem poderes e se instituírem normas legais, muitas vezes coercitivamente, sem participação ativa dos diversos grupos que compõem a sociedade, a dita ordem legitimará poderes autoritários. Talvez tenhamos que reconhecer que tivemos até o momento, do ponto de vista histórico, poucas experiências efetivas de democracia em que mais grupos participassem de maneira alternativa e consistente da organização do estado. Esse estado foi dominado, predominantemente, por poderes verticais, reduzidos a interesses econômicos ou ideológicos, ou ainda, a interesses populistas de alguma liderança emergente. O discurso de que alguém deve ser instituído de poderes que lhe outorguem o direito de impor normas e decisões, sem consulta e diálogo, compõe boa parte da história política da América Latina e fragiliza o espírito democrático. O desafio que se impõe é pensar e propor um estado que se fortalece pela ampliação da participação dos cidadãos nas decisões e na própria reestruturação do estado através de associações que atuam cooperativamente na elaboração e execução de projetos públicos. Reconheço que não teremos um estado ideal em que a diversidade seja plenamente contemplada, mas a proposta é que avancemos na conjunção de forças, e que os interesses particulares sejam distendidos em favor de acordos que privilegiem o bem comum. O espírito de nação está em movimento, e o verdadeiro estado estará cada vez mais vinculado a um projeto de permanente reconstrução. Como destaca Octavio Ianni: O nacionalismo, portanto, não é um só; cria-se e recria-se, no âmbito das conjunturas históricas, segundo o jogo das forças sociais internas e externas. Continuaremos presenciando a luta por interesses privados e corporativos, o que faz parte do jogo político, porém, essas forças não podem sufocar o estado social e democrático. Nossa história, a dos latino-americanos, no que se refere à construção dos estados nacionais, passou à margem do reconhecimento da multiplicidade e poucas experiências e projetos diferenciados, do ponto de vista coletivo e cooperativo, 3 foram desenvolvidos. Podemos analisar projetos econômicos e projetos educacionais, entre outros, e veremos como a lógica de modelos únicos caracterizaram essas iniciativas, geralmente burocratizadas (desenvolvidas por técnicos de plantão) e com pouco envolvimento das populações locais. O discurso sobre a diversidade não avançou em relação ao estado e à sua forma de organização. A multiplicidade não aparece na organização do Estado nacional, a não ser como ideologia, colorido, folclore. Ao contrário, a multiplicidade não só esconde desigualdades como pode ser manipulada em favor dos que detêm o poder econômico, político, militar. Por isso a história das formas da Nação esconde-se na história das formas do Estado. São diversas e surpreendentes as formas da Nação na América Latina. Podem ser oligárquica, liberal, populista, autoritária, democrática. O que cabe ressaltar é que a forma da Nação muda ou consolida-se, nesta ou naquela ocasião, conforme o jogo das forças sociais internas e externas. A constituição, hino, bandeira, idioma, mercado, heróis e santos são apenas alguns elementos de uma realidade histórico-social complexa, contraditória, em movimento. (Octavio Ianni em http://www.scielo.br/pdf/ea/v2n1/v2n1a03.pdf). Reconhecer que a afirmação acima reflete a realidade, não deve nos enfraquecer diante do fato. Se o estado, historicamente, caracterizou-se por essa limpeza, pela lógica em que não se reconhece a diversidade, como se hinos e outros símbolos não conseguissem revelar a diversidade como elemento constitutivo básico das nações latino-americanas, devemos enfrentar o tema e avaliar o que perdemos, além de pensar o que podemosganhar com uma reflexão e uma proposta que acolhe a multiplicidade, pensando a nação e a formação do estado a partir de uma lógica da participação efetiva dos diferentes grupos e suas diferentes experiências. Devemos revisar as formas como narramos a história para os nossos estudantes, em que certos personagens e culturas são privilegiados, enquanto outros grupos e culturas acabam marginados. De forma semelhante, devemos revisitar a forma como fazemos política e construímos a lógica do poder. Assim como podemos e devemos revisitar a história, buscando estudar compreender o que aconteceu no passado a partir de outras histórias, percebendo e reconhecendo o mundo a partir de mais ângulos e perspectivas, resistindo ao preconceito que é fruto da visão unilateral da própria história, também podemos e devemos revisar a lógica de poder que marcou o passado latino-americano. Pensar o estado democrático é radicalizar em relação à maneira como cada um de nós desenvolve sua relação e suas atividades de forma aberta ao outro e à diversidade, radicalizando em relação ao processo dialógico. O estado do bem comum não é aquele que, de maneira assistencialista, atende as populações mais carentes, mas aquele que promove a participação e permite que projetos alternativos se aliem a um estado promovedor da cidadania. Temos muito a experimentar e a aprender em relação às maneiras como pensamos 4 nossas identidades comuns, as formas como podemos compor alianças criativas. Esse exercício é o desafio permanente para profissionais de nosso tempo. 2.2 – Integração cultural Não são unicamente as maiores instituições, nem os acordos governamentais, que favorecerão esta integração com tão grandes limites para a consecução de êxitos efetivos. Estudos recentes mostram que devem ser consideradas formas mais espontâneas e, no entanto, de maior profundidade, nas quais a origem social popular apareça como favorável à adoção de medidas verdadeiramente integradoras. (Gustavo Beyhaut em http://www.scielo.br/pdf/ea/v8n20/v8n20a19.pdf). A lógica patriarcal está presente em nossa memória. Acreditamos, por muito tempo, que algum poder iria nos salvar. Temos isso presente em nosso imaginário e acreditamos que a integração viria a partir de algum princípio comum que seria estabelecido. Acreditávamos que um estado comum, que uma religião comum, que algum Deus comum, poderia ser a linha de integração entre os diferentes povos. Essa lógica mental fez com que por muito tempo vivêssemos sob o manto de uma identidade homogênea, de um princípio comum, de uma idéia de cultura e de nação em que todos fôssemos conduzidos, coletivamente, por uma mesma ideologia. A história vem demonstrando que as grandes nações e a verdadeira riqueza da humanidade são fruto do diverso e da capacidade de conviver com a diferença, com a abertura para a multiplicidade. Sociedades fechadas e ideologias ortodoxas tendem ao enfraquecimento. Logo, devemos pensar a integração a partir da capacidade que vamos desenvolvendo em nos fazermos mestiços. Miscigenação essa que se dá não na perda de sua tradição e de sua história, mas na habilidade de conhecer a si mesmo e se desafiar a compor alianças com as outras culturas e as dinâmicas do tempo. Considerando que a integração cultural se apresenta como um processo muito variado, fundamentalmente espontâneo, pouco afetado até agora pela adoção de medidas de governos, devemos levar em conta que a civilização industrial e a expansão dos modelos difundidos por economia e tecnologia ocidentais não implicam criar um mundo sempre igual, sem variações locais e com participação mínima das sociedades dependentes. Se o grande dilema que devemos resolver é a busca de uma nova ordem internacional, necessária para a paz e a harmônica integração de todos os povos, ele não será solucionado através da imposição de uma forma cultural qualquer. Estamos em uma etapa de agitações e conflitos, de reivindicações das diversidades, de busca de fórmulas renovadoras, de saudável relação entre as especificidades interiores das raízes de cada povo. (Gustavo Beyhaut em http://www.scielo.br/pdf/ea/v8n20/v8n20a19.pdf). 5 2.3 – Desafios atuais A integração da América Latina enfrenta dificuldades e obstáculos devido à diversidade de culturas, às características específicas do Poder Estatal de cada país e às diferenças de seus modelos de desenvolvimento. A integração avança a partir de fenômenos culturais que fundamentalmente são espontâneos. O êxito desse processo exige o respeito às diversidades de cada região e a busca de fórmulas renovadoras. (Gustavo Beyhaut em http://www.scielo.br/pdf/ea/v8n20/v8n20a19.pdf). As três características destacadas no recorte acima deixam evidente que tentar encontrar um modelo comum a ser seguido pelos países da América Latina é inviável. A diversidade cultural é um fato. Em cada país ocorreu um movimento singular e específico de evolução histórica, em que diferentes grupos humanos foram se desenvolvendo diante das circunstâncias e dos contextos. Algumas nações com forte tradição e influência índia, cujos idiomas ainda são marcantes na linguagem, como o guarani no Paraguai e o aimará e quíchua na Bolívia e no Peru. Outros países já apresentam outras particularidades, como o Brasil, em que há grande participação negra na história, além de imigrantes europeus (italianos e alemães) e asiáticos (japoneses) no século XIX e início do século XX. De forma semelhante, cada nação se envolve singularmente com sua evolução política. Existem semelhanças, mas podemos, por exemplo, destacar que o Brasil, diferente da maioria dos países latino-americanas, não experimenta uma luta de independência e muito menos vê grupos locais levantarem armas para compor a resistência no processo de libertação de Portugal. Um príncipe português assume a transição do período colonial para o período independente, o que fez com que o Brasil fosse a única Monarquia da América durante quase todo o século XIX. Além disso, o estado brasileiro manteve a escravidão, enquanto a maioria dos países independentes da América Latina proclamaram, junto com a independência e a República, a libertação dos escravos. A própria economia local de cada nação vai percorrer, apesar de semelhanças, velocidades e características diferenciadas de desenvolvimento. Sabemos como, atualmente, o Brasil, por exemplo, vem se tornando referência de poder econômico na América Latina e com poder de influência em decisões continentais. No entanto, mesmo reconhecendo as singularidades históricas com que cada nação vem experimentando sua evolução, há lutas e perfis de envolvimento com os desafios globais que aproximam as culturas latino-americanas. Falar em resistência a um certo poder hegemônico global, pensar alternativas em relação às políticas afirmativas em favor dos povos indígenas e dos afro-descendentes, compor alianças 6 em especial dentro de blocos econômicos como o Mercosul, são experiências que nos aproximam. Discursos em favor da autonomia, em defesa de uma cultura nacional valorizada, resistência contra um estado que não se revela a partir de dentro, ou seja, da participação popular, mantendo uma lógica de poder centralizada, populista e assistencialista, aproxima as lutas dos povos do continente. Quando pensamos que muitas leis são feitas e refeitas e várias constituições atravessam a história política dos países da América Latina, sabemos que algo nos aproxima. Na América Latina, a Nação parece encontrar-se sempre em formação. Não está no começo, avançou muito, mas continua a articular-se e rearticular-se, buscando o seu lugar. Quase todos os países contam com várias,ou muitas, constituições em sua história. Tiveram que começar de novo, recomeçar muita coisa, ou tudo. Os golpes, os surtos de autoritarismo, as ditaduras perpétuas povoam a história. A democracia floresce e fenece. O povo continua a formar- se, se compreendemos que povo é uma coletividade de cidadãos. (Octavio Ianni em http://www.scielo.br/pdf/ea/v2n1/v2n1a03.pdf). Essa lógica nos aproxima, essa história mal acabada que deve ter o seu enredo retrabalhado em favor de um estado e de ações públicas que atendam o bem-estar social, que possam ampliar a participação dos cidadãos no empreendimento de fazer com que as nações evoluam positivamente. Nessa perspectiva, a prioridade à educação de qualidade, em que se reconheça que o incentivo à inserção de mais jovens no exercício do domínio das tecnologias digitais, aliada à crítica aos modelos massivos de alienação ao consumo barato e sem critério de nossas populações jovens, devem fazer com que tenhamos um laço de integração. Insistindo sobre os sistemas educativos, mostra-se evidente estarem submetidos a enorme pressão, que faz dos diplomas um meio fundamental para incorporar os jovens ao mercado de trabalho, tão conturbado pela adoção de tecnologias que afetam a mão-de-obra tradicional. Da mesma forma, deve-se dar prioridade à instrumentação de controle e defesas contra a imposição de normas de consumo e modelos de vida difundidos pelos novos meios de comunicação de massa. Nesta situação de mudanças e de sombrias perspectivas, as reservas culturais da América Latina proporcionarão os elementos para resistir à simples imitação e ao automatismo passivo. (Gustavo Beyhaut em http://www.scielo.br/pdf/ea/v8n20/v8n20a19.pdf). 7 Referências ALVAREZ, Maria Luísa Ortiz. (DES)Construção da Identidade Latino-Americana: heranças do passado e desafios futuros. http://unb.revistaintercambio.net.br/24h/pessoa/temp/anexo/1/231/427.pdf. Acesso em 09/01/2012. AQUINO, Rubim Santos de, LEMOS, Nivaldo Jesus Freitas de, LOPES, Oscar Guilherme Pahl Campos. História das sociedades americanas. Rio de Janeiro: Record, 2008. BARROS, José D’Assunção. A construção social da cor. Rio de Janeiro: Vozes, 2009. BEYHAUT, Gustavo. Dimensão cultural da integração na América Latina. http://www.scielo.br/pdf/ea/v8n20/v8n20a19.pdf . Acesso em 09/01/21012. IANNI, Octavio. A questão nacional na América Latina. http://www.scielo.br/pdf/ea/v2n1/v2n1a03.pdf . Acesso em 09/01/2012. Índios no Brasil 3. Cadernos da TV Escola http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/me001987.pdf . Acesso em 09/01/2012. KLIKSBERG, Bernardo. Dez falácias sobre os problemas sociais na América Latina. http://www.ipardes.gov.br/pdf/revista_PR/98/bernardo.pdf . Acesso em 09/12/2012. LÉVI-STRAUSS, Claude. Raça e história. Lisboa: Editorial Presença, 2010. MARTÍNEZ, Esperanza. http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=3448& secao=340. Acesso em 09/01/2012. MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. NOVAES, Adauto (organizador). Oito visões da América Latina. São Paulo: Editora Senac, 2006. PACINI, Aloir. Entrevista IHU http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id =13888 . Acesso em 09/01/2012. SANTOS, Milton. Ser negro no Brasil hoje: um olhar enviesado. http://200.144.190.194/neinb/files/Ser%20negro%20no%20Brasil%20hoje.pdf . Acesso em 09/01/2012. SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves e. Aprender, ensinar e relações étnico-raciais no Brasil. http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/faced/article/viewFile/2745/2092 . Acesso em 09/01/2012.
Compartilhar