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4 NARRATIVA DOS FATOS E CONSTRUÇÃO DE VERSÕES

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NARRATIVA DOS FATOS E CONSTRUÇÃO DE VERSÕES - (VALE 1,0)
O fato é único, mas as versões são muitas!!!
Para início de conversa e prudente afirmar que o fato é um só, mas cada narrador ou representante legal da parte mostrará a sua versão sobre ele de acordo com o seu intento defensivo ou acusatório, isto é, cada um deles irá narrar o fato, dando-lhe uma versão, do modo que lhe interessar.
A noção de fato no direito implica sempre uma normatização jurídica, de forma tal, que não se poderia falar em fato puro em contraposição a fato jurídico. Neste sentido é que, superando a noção de fato como correspondência com a realidade, esta terá, em direito, um caráter sempre persuasivo, desde já normatizado e valorado pelos interesses de quem o descreve.
Considere, então, o fato como uma construção humana numa atividade interpretativa que atenda aos interesses da parte sem perder de vista o raciocínio lógico e a aparência da “verdade”, isto é, a verossimilhança no ato de narrar a situação fática.
Analisa-se aqui a noção de fato, segundo a abordagem do pragmatismo filosófico, porque, nessa perspectiva, é visto como uma narração (construção humana), que reflete os interesses das partes (advogado), afastando-se da teoria da concepção da objetividade na interpretação do fato e da teoria da “verdade” como correspondência, e a prova é examinada como descrição, voltada à persuasão.
O fato (suporte fático concreto) será trabalhado, portanto, como versões trazidas pelas partes, incompatível com a tese de que existe uma única versão “verdadeira” passível de ser descoberta. Tenta-se explicar, de modo simples e lógico, como ocorre a passagem do fato, do mundo fático para o mundo jurídico.
Leitura: Crônica de Luís Fernando
Uma donzela estava um dia sentada à beira de um riacho deixando a água do riacho passar por entre os seus dedos muito brancos, quando sentiu o seu anel de diamante ser levado pelas águas. Temendo o castigo do pai, a donzela contou em casa que fora assaltada por um homem no bosque e que ele arrancara o anel de diamante do seu dedo e a deixara desfalecida sobre um canteiro de margarida. O pai e os irmãos da donzela foram atrás do assaltante e encontraram um homem dormindo no bosque, e o mataram, mas não encontraram o anel de diamante. E a donzela disse:
– Agora me lembro, não era um homem, eram dois.
E o pai e os irmãos da donzela saíram atrás do segundo homem e o encontraram, e o mataram, mas ele também não tinha o anel. E a donzela disse:
– Então está com o terceiro!
Pois se lembrara que havia um terceiro assaltante. E o pai e os irmãos da donzela saíram no encalço do terceiro assaltante, e o encontraram no bosque. Mas não o mataram, pois estavam fartos de sangue. E trouxeram o homem para a aldeia, e o revistaram e encontraram no seu bolso o anel de diamante da donzela, para espanto dela.
– Foi ele que assaltou a donzela, e arrancou o anel de seu dedo e a deixou desfalecida – gritaram os aldeões.
Matem-no!
– Esperem! – gritou o homem, no momento em que passavam a corda da forca pelo seu pescoço. – Eu não roubei o anel. Foi ela que me deu! E apontou para a donzela, diante do escândalo de todos.
O homem contou que estava sentado à beira do riacho, pescando, quando a donzela se aproximou dele e pediu um beijo. Ele deu o beijo. Depois a donzela tirara a roupa e pedira que ele a possuísse, pois queria saber o que era o amor.
Mas como era um homem honrado, ele resistira, e dissera que a donzela devia ter paciência, pois conheceria o amor do marido no seu leito de núpcias. Então a donzela lhe oferecera o anel, dizendo “Já que meus encantos não o seduzem, este anel comprará o seu amor”. E ele sucumbira, pois era pobre, e a necessidade é o algoz da honra.
Todos se viraram contra a donzela e gritaram: “Rameira! Impura! Diaba!” e exigiram seu sacrifício. E o próprio pai da donzela passou a forca para o seu pescoço.
Antes de morrer, a donzela disse para o pescador:
– A sua mentira era maior que a minha. Eles mataram pela minha mentira e vão matar pela sua. Onde está, afinal, a verdade?
O pescador deu de ombros e disse: – A verdade é que eu achei o anel na barriga de um peixe. Mas quem acreditaria nisso? O pessoal quer violência e sexo, não histórias de pescador.
(VERÍSSIMO, 1966, p. 144-145)
Narrativa dos fatos e Construção de versões
Como se pode notar pela crônica lida, no processo jurisdicional não é diferente. As partes, nesse contexto, apresentam-se ao órgão de justiça, oferecendo cada qual a sua versão para os fatos, geralmente antagônicas, uma em relação à outra.
Nota-se, então, que “fato” não é algo independente da elaboração de quem o narra. Os advogados, por exemplo, constroem os fatos com os meios que lhes são disponíveis e, principalmente, constroem-nos por meio da linguagem. Todo fato ao ser elaborado é narrado. E, como se sabe, fatos podem ser narrados de diferentes maneiras, conforme texto apresentado.
“A verdade dividida”, de Carlos Drummond de Andrade.
A porta da verdade estava aberta
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.
Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só conseguia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.
E os meios perfis não coincidiam.
Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram ao lugar luminoso
onde a verdade esplendia os seus fogos.
Era dividida em duas metades
diferentes uma da outra.
Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era perfeitamente bela.
E era preciso optar. Cada um optou
conforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia.
 Narrativa dos fatos e Construção de versões
Entende-se, assim, que os fatos ingressam na órbita jurídica não em estado bruto, mas sob a forma de uma narrativa jurídica e que um mesmo encadeamento narrativo pode ser narrado e interpretado de várias maneiras. 
Portanto, não há como não reconhecer o caráter interpretativo da apreensão dos fatos na narrativa jurídica, que devem ser narrados e descritos em uma linha temporal rigorosamente linear, com um raciocínio lógico, coeso e coerência narrativa.
Descrição a Serviço da Narrativa: Circunstância do Fato
Não há como narrar, sem um mínimo de descrição. Esse é também o entendimento de Genette (1971, p.265): “A descrição poderia ser concebida independentemente da narração, mas de fato nunca é encontrada em estado livre; a narração, por sua vez, não pode existir sem descrição”. Em outras palavras, há sempre uma relação complementar entre as duas formas de expressão; sendo que, principalmente, do lado da narração, a complementação se faz necessária.
Todavia, se a narração não pode existir sem a descrição, essa “dependência” não lhe retira a prerrogativa de lhe ser superior. Não é pelo fato de não se poder narrar sem se referir ou contar com determinados objetos e personagens (partes processuais) que a descrição se eleva à condição de superioridade. Pelo contrário, pois por maior que seja sua importância, sempre lhe é atribuído o papel de um simples auxiliar da narrativa.
Diferentemente da dinâmica do fio condutor da narração, na descrição o tempo não corre. Aliás, ele pode até mesmo inexistir. A respeito do tempo na descrição e na narrativa Genette afirma:
A narração liga-se a ações ou acontecimentos considerados como processos puros, e por isso mesmo põe acento sobre o aspecto temporal e dramático da narrativa; a descrição, ao contrário, uma vez que se demora sobre objetos e seres considerados em sua simultaneidade, e encara os processos eles mesmos como espetáculos, parece suspender o curso do tempo e contribui para espalhar a narrativa no espaço[...] Duas atitudes antitéticas diante do mundo e da existência, uma mais ativa, a outra mais contemplativa7. (GENETTE, 1971, p. 267)
Na realidade, a análise dos textos jurídicos permite que se entenda que o discurso jurídico reveste-se de uma tipologia própria, que é a do poder e da persuasão. É essencialmente persuasivo, pois instaura sempre como destinatário direto ou indireto um alguémque, supostamente, tenha infringido o ordenamento. 
Sabe-se que o discurso não é o do advogado, pois nos momentos em que se manifesta dentro do Processo, é sempre a voz e o desejo de seu cliente que
está representando, embora, na narrativa jurídica, por exemplo, apague a voz
do autor para que se tenha a ilusão do discurso da “verdade” única, em busca da persuasão dos fatos narrados.

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