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NARRATIVA DOS FATOS E CONSTRUÇÃO DE VERSÕES - (VALE 1,0) O fato é único, mas as versões são muitas!!! Para início de conversa e prudente afirmar que o fato é um só, mas cada narrador ou representante legal da parte mostrará a sua versão sobre ele de acordo com o seu intento defensivo ou acusatório, isto é, cada um deles irá narrar o fato, dando-lhe uma versão, do modo que lhe interessar. A noção de fato no direito implica sempre uma normatização jurídica, de forma tal, que não se poderia falar em fato puro em contraposição a fato jurídico. Neste sentido é que, superando a noção de fato como correspondência com a realidade, esta terá, em direito, um caráter sempre persuasivo, desde já normatizado e valorado pelos interesses de quem o descreve. Considere, então, o fato como uma construção humana numa atividade interpretativa que atenda aos interesses da parte sem perder de vista o raciocínio lógico e a aparência da “verdade”, isto é, a verossimilhança no ato de narrar a situação fática. Analisa-se aqui a noção de fato, segundo a abordagem do pragmatismo filosófico, porque, nessa perspectiva, é visto como uma narração (construção humana), que reflete os interesses das partes (advogado), afastando-se da teoria da concepção da objetividade na interpretação do fato e da teoria da “verdade” como correspondência, e a prova é examinada como descrição, voltada à persuasão. O fato (suporte fático concreto) será trabalhado, portanto, como versões trazidas pelas partes, incompatível com a tese de que existe uma única versão “verdadeira” passível de ser descoberta. Tenta-se explicar, de modo simples e lógico, como ocorre a passagem do fato, do mundo fático para o mundo jurídico. Leitura: Crônica de Luís Fernando Uma donzela estava um dia sentada à beira de um riacho deixando a água do riacho passar por entre os seus dedos muito brancos, quando sentiu o seu anel de diamante ser levado pelas águas. Temendo o castigo do pai, a donzela contou em casa que fora assaltada por um homem no bosque e que ele arrancara o anel de diamante do seu dedo e a deixara desfalecida sobre um canteiro de margarida. O pai e os irmãos da donzela foram atrás do assaltante e encontraram um homem dormindo no bosque, e o mataram, mas não encontraram o anel de diamante. E a donzela disse: – Agora me lembro, não era um homem, eram dois. E o pai e os irmãos da donzela saíram atrás do segundo homem e o encontraram, e o mataram, mas ele também não tinha o anel. E a donzela disse: – Então está com o terceiro! Pois se lembrara que havia um terceiro assaltante. E o pai e os irmãos da donzela saíram no encalço do terceiro assaltante, e o encontraram no bosque. Mas não o mataram, pois estavam fartos de sangue. E trouxeram o homem para a aldeia, e o revistaram e encontraram no seu bolso o anel de diamante da donzela, para espanto dela. – Foi ele que assaltou a donzela, e arrancou o anel de seu dedo e a deixou desfalecida – gritaram os aldeões. Matem-no! – Esperem! – gritou o homem, no momento em que passavam a corda da forca pelo seu pescoço. – Eu não roubei o anel. Foi ela que me deu! E apontou para a donzela, diante do escândalo de todos. O homem contou que estava sentado à beira do riacho, pescando, quando a donzela se aproximou dele e pediu um beijo. Ele deu o beijo. Depois a donzela tirara a roupa e pedira que ele a possuísse, pois queria saber o que era o amor. Mas como era um homem honrado, ele resistira, e dissera que a donzela devia ter paciência, pois conheceria o amor do marido no seu leito de núpcias. Então a donzela lhe oferecera o anel, dizendo “Já que meus encantos não o seduzem, este anel comprará o seu amor”. E ele sucumbira, pois era pobre, e a necessidade é o algoz da honra. Todos se viraram contra a donzela e gritaram: “Rameira! Impura! Diaba!” e exigiram seu sacrifício. E o próprio pai da donzela passou a forca para o seu pescoço. Antes de morrer, a donzela disse para o pescador: – A sua mentira era maior que a minha. Eles mataram pela minha mentira e vão matar pela sua. Onde está, afinal, a verdade? O pescador deu de ombros e disse: – A verdade é que eu achei o anel na barriga de um peixe. Mas quem acreditaria nisso? O pessoal quer violência e sexo, não histórias de pescador. (VERÍSSIMO, 1966, p. 144-145) Narrativa dos fatos e Construção de versões Como se pode notar pela crônica lida, no processo jurisdicional não é diferente. As partes, nesse contexto, apresentam-se ao órgão de justiça, oferecendo cada qual a sua versão para os fatos, geralmente antagônicas, uma em relação à outra. Nota-se, então, que “fato” não é algo independente da elaboração de quem o narra. Os advogados, por exemplo, constroem os fatos com os meios que lhes são disponíveis e, principalmente, constroem-nos por meio da linguagem. Todo fato ao ser elaborado é narrado. E, como se sabe, fatos podem ser narrados de diferentes maneiras, conforme texto apresentado. “A verdade dividida”, de Carlos Drummond de Andrade. A porta da verdade estava aberta mas só deixava passar meia pessoa de cada vez. Assim não era possível atingir toda a verdade, porque a meia pessoa que entrava só conseguia o perfil de meia verdade. E sua segunda metade voltava igualmente com meio perfil. E os meios perfis não coincidiam. Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta. Chegaram ao lugar luminoso onde a verdade esplendia os seus fogos. Era dividida em duas metades diferentes uma da outra. Chegou-se a discutir qual a metade mais bela. Nenhuma das duas era perfeitamente bela. E era preciso optar. Cada um optou conforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia. Narrativa dos fatos e Construção de versões Entende-se, assim, que os fatos ingressam na órbita jurídica não em estado bruto, mas sob a forma de uma narrativa jurídica e que um mesmo encadeamento narrativo pode ser narrado e interpretado de várias maneiras. Portanto, não há como não reconhecer o caráter interpretativo da apreensão dos fatos na narrativa jurídica, que devem ser narrados e descritos em uma linha temporal rigorosamente linear, com um raciocínio lógico, coeso e coerência narrativa. Descrição a Serviço da Narrativa: Circunstância do Fato Não há como narrar, sem um mínimo de descrição. Esse é também o entendimento de Genette (1971, p.265): “A descrição poderia ser concebida independentemente da narração, mas de fato nunca é encontrada em estado livre; a narração, por sua vez, não pode existir sem descrição”. Em outras palavras, há sempre uma relação complementar entre as duas formas de expressão; sendo que, principalmente, do lado da narração, a complementação se faz necessária. Todavia, se a narração não pode existir sem a descrição, essa “dependência” não lhe retira a prerrogativa de lhe ser superior. Não é pelo fato de não se poder narrar sem se referir ou contar com determinados objetos e personagens (partes processuais) que a descrição se eleva à condição de superioridade. Pelo contrário, pois por maior que seja sua importância, sempre lhe é atribuído o papel de um simples auxiliar da narrativa. Diferentemente da dinâmica do fio condutor da narração, na descrição o tempo não corre. Aliás, ele pode até mesmo inexistir. A respeito do tempo na descrição e na narrativa Genette afirma: A narração liga-se a ações ou acontecimentos considerados como processos puros, e por isso mesmo põe acento sobre o aspecto temporal e dramático da narrativa; a descrição, ao contrário, uma vez que se demora sobre objetos e seres considerados em sua simultaneidade, e encara os processos eles mesmos como espetáculos, parece suspender o curso do tempo e contribui para espalhar a narrativa no espaço[...] Duas atitudes antitéticas diante do mundo e da existência, uma mais ativa, a outra mais contemplativa7. (GENETTE, 1971, p. 267) Na realidade, a análise dos textos jurídicos permite que se entenda que o discurso jurídico reveste-se de uma tipologia própria, que é a do poder e da persuasão. É essencialmente persuasivo, pois instaura sempre como destinatário direto ou indireto um alguémque, supostamente, tenha infringido o ordenamento. Sabe-se que o discurso não é o do advogado, pois nos momentos em que se manifesta dentro do Processo, é sempre a voz e o desejo de seu cliente que está representando, embora, na narrativa jurídica, por exemplo, apague a voz do autor para que se tenha a ilusão do discurso da “verdade” única, em busca da persuasão dos fatos narrados.
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