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PESAVENTO, Sandra - Escrever a história com a literatura.Fazer da literatura uma chave de acesso ao passado da história.pdf

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ESCREVER A HISTÓRIA COM A LITERATURA? 
Fazer da literatura uma chave de acesso ao 
passado da história? 
Sandra Pcsave1lto 
Pensar este mote provocador do debate - Inte1faces entre a história e a 
literatura - tema de minha particular atenção e trabalho, faz-me remontar 
99 
a Aristóteles: é só o homem aquele capaz de transformar a experiência /}.;_ U\_,,~ 
sensorial em imagem mental, dela formulando um conceito, o que implica .J 
uma abstração. E, para coroar ~sta fecunda combinação entre sentir e pen- U 
~~~~ sar, o homem é capaz de transmitir estes conceitos elaborados, ou seja, 
estabelecer um processo de aprendizagem, que será retido pela memória e 
também será capaz de visualizar o fenômeno enunciado em sua ausência. 
O complemento desse processo de abstração e codificação do mundo é 
traduzi-lo em um mundo paralelo de sinais, cuja visão, com'binada ou iso-
lada, evoca a realidade da qual se fala. 
Falar, emitir sons com significado, gravá-los em caracteres socializados 
dentro de un1a comunidade, é uma forma de aprendizagem da vida, de 
apreensão do real, de uma modalidade de conhecimento do mtmdo. 
Falar implica oferecer um conteúdo simbólico, para além do sentido no-
minativo das palavras que permitem identificação às coisas. Falar, ou melhor, 
adotar un1a linguagem, implica atribuir valores, qualidades, sentimentos, in-
t~nções, ordens, aceitação ou repúdio às situaçóes, coisas e personagens. Da 
oralidade à escrita, passando pela imagem, este domínio do pensar - seja o 
passado, o presente ou o futuro - constrói wna espécie de ficçf o, que se 
apóia no arquivo de memória, do conhecin1ento individual e social, da_Jei-
tura, de experiência de vida que cada um carrega consigo e h<§a. 
- E tal a força dessa construção imaginária de sentido que ela é capaz de 
substinur-se à realidade, tomando o seu lugar. Por exemplo, cfümre do que 
restou na memória daqueles que estavam "lá" nos acontecimentos de 1968 -
como cu, no c;1-;o - , tenho comcii:nci,1 de que, cntrcv1..,tad.1 cm 1998, meu 
rei.no lcv.wa cm conta ogap de trima anm enrre <> acomec.!_d<~~ o rememorar. 
\v-..\ ~ v .lv., Er,1 a pnmeir.1 vez que fal.iv.1 ou dcpu1~1a, como alguém que v1v~ra 68_c guc, 
100 
l.·omo profc"i '>Orc1, pcn.)ara o c,·cnto. Nc .... scs trinta anos, a vida passou, com 
">t1,1s 111an.:.1s e su.1<; experiências, cu muito li sobre aquilo que vivi, pob me 
tornei protc~'>or,1 tm1lar de história do Brasil. ~u era alguém que incorporou 
mcmótias de outros t,rntos que lá estiveram e fatos~ e_~ mesma nãÕ--sabia~ 
sobretudo, esqueci muita coisa, por certo, tal como retive ~;;;t;~a.<;~-im-
portanres pJJ·a mim, ,u época e a postcrwri no evento. 1\1csmo que cu tenha 
continuado a ver José Paulo de Ptlla Vares, Flavio Koutzzi, Maria Regina 
Pilla, e oua-os tantos, é a imagem dele.) na época que me vem à mente. Como 
esquecer a tomada da Faculdade de Filosofia, onde Maria Luiza Martini e eu 
participamos, indo aos jornais para ''explicar" o feiro? 
<? que aconteceu, de fato? Eu rcconstnií 68 em minha cabeça, uma "epo-
peia" de 68 ficcionalizada que mismrava o que vivi e que me lembro com a 
reflexão que sobre ela fiz ao longo <leste tempo que passou. 68 é verdadeiro 
na minha memória e .waliar a ueles momentos com a racionalidade de hoje 
c;cna a-aí-la, como ponderações do tipo: Mas como éranws ingénuos ... Assim} a 
.... 1JC1Jtc acham que ia de1rubar o regúne e destntir os militares? Nossa! 
A chaYe de interpretação é outra: pensávamos sim senhor, e com legiti-
midade! Éramos todos jovens, lindos magros, revolucionários, por que 
+ não? Históricos, portanto. y )A. v '\..t ~ É preciso fazer de 68 uma avaliação do vivido recente, discutir, ler e 
problematizá-la cm seus efeitos. ~ara tanto, por que não se utilizar da iite- -.../ j C·Í,-J 
l,~·l,.~ rarura como chave de acesso à história? ,J O vl~= 
vu.· J 'r-11\A. ~ 
Cabe_ dizer que a "vira_da',' ~os ~nos s~s~e~ta teve ~eflexos profundos ·s S: ...., 
na maneira de escrever a hIStona: ah teve 1mc10 uma cnse de paradig_mas, .([:; 
racionais, totalizantes, deterministas para a avaliação da realidade. De j 
dentro do marxismo e fora dele, autores começaram, sobretudo desde a ~ ~ ) 
J. c____..J . "l.A.,._L. J ~ Eur~pa,_ um repensar as de~erm!naçõ~s objetivas como orientadoras da ..{ k vt O wv.J 7 cxplICaçao do real. No Brasil, fo1 prcoso que o processo começasse mais -<' ·' 
1 _ \ •• , • ..l,. tarde - afinal, não vivían1os uma ditadura? Como escrever história senão J +v t1.,A.,.t ~ ,....,.._ I") 
dentro do materialismo histórico, se tínhamos os anos de chumbo a des-
~ • NJlarem em nossa frente? 
)..,... ~.:,A v\M ....,._ . 
Para isso, foram fundamentais as progressivas e lentas traduções de 
.._ v~v-1,,- c.h ~ramsc1. e d: Walter Benjamin, a _publicação de Foucault e a infiltração, 
_ \ . . v,.., via pubhcaçoes espanholas, de Thompson. Isso foi só o começo, pois 
~Qt,t vJ--. logo a história se revitalizou com novos conceitos, assuntos, temas, ob-
~ \"- '.,V-.~ 
~~l< 
~ {µ-,~ 
<-··. . . l'lll-111 ,1·i1 .. lll1 )S .\ 111 1 de 111 )\','" q11c..,t < ll.'' e l"< ,ni .1 c 11t1 .1d.1 111.1-...,iv.1 JCl l l:-, !'1 p ' _ . , 
l .. 1-. 111 .l'sl<' e dn 1i-.1l1.lllP l,1111.hurg. l {l.S l • l · · · " _ _ ()us.lri., di i cr que 11111 ''n:ntP de lihcrd.llk .1h.11c11 -,<.' -.ohrc ., lt1 '-t t1 ,,u, 
1 s, ' ()llll't.'OU ,\ \K' ll\,\l' IU Sll,I l'S(f'Ít.1 ? ( :n:Í< 1 que :-.Í lll . l)ll,\1\1. ( l ' (. ~ 1 . _ _ _ . 
CrciP que é 1.1mhcm ltg.1d11 ., 1ssq que S<.' .1hrcm ;ts 11nnt.1lT, nllrt· ,1 
hisrúri.i e .1 litn.11 ur:l. ( -~'. 1 se .1proxim.1 de ( :.,lío ,e sem com ela ,e L"< ,11ti.111 -
dir. Hist<>ri.1 e lirn.1t11r.1 <.'rnTcspo11dc111 ;11iarr;1ti\~1, cxpliL",1tl\·.1:- 1. o rc.11 lllll' 
~-crnn·;Hll mi tcmpu e 11() cspa1i·o, m.,s que s:io dot.1d.1s de um rra~o de 
~)(.'1'111;\tl(.' llCÍ.l ;lllC<.'Str.11 : ;\ ~)1',~ti1.:.1 ~l.1 n: -~~cnra ·ao ~lo ,ll~llllJo. 
o que nos imcn:'>sa, e d1sruttr o d1.1logo da lw,ron.1 L"nm ., lrttT,1rur,1, 
/ como um ciminho qul' se percorre nas tntlus do imagi11.ir10, r.1111po de 
(~A. c, lN ~ pcsqui.s;l que p;ts.sou .1 .se descnvoln.T signifioti\·,1ment~ ,_10 Hr.1s_il , .1 par~ír 
w.· J Y l do.s ,mos I 990 e que tl'lll hoje sl' revelado um'.1 1..L1s tcm;HJLl!. _m;us prrnrn,-
;;_ \.-- soras cm termos de pesquisas e rr.1ball~os puhlJCad~>s. Par.1 enfrentar .1 ,tpro-
ximação entre essas formas d<: conhcc1mento ou d1sct1r!.os ~obrl.' o mundo, 
é preciso .. 1ssw11ir, cm tmu primcir.1 insdncia, posnir,1s episrcmológic,1s 
que di.luam frontcir.1s e que, cm parte, rdativizcm a dualidade \TrLbde/ 
ticçáo, ou a suposra oposição rca!/não-n.:.11, ciênci .. 1 ou arte' 
~vc, 
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/~~(' 
esta pnmeira ..1bord,1gcm rdkxi\' .. l , é o c1dter das du.1s fornus de 
aprec:·ns:'io do mundo que se coloc..1 cm jogo, face .1 facl', l'm rdaçúcs dl' 
aproximação e distanci,1mcnto. 
Assim, literatura e história são 1urr;1tivas que tem o real como rctL'-
rcnte, eara confirmá-lo ou ncgá-jo, l.'.Onstruindo sobre ele roda uma outr .. 1 
,mão, ou ainda para ultrapass .. l-lo. Como narrativas, são represenuçôes 
que se reterem à vid.1 e que a cxplic.1111 . Dito isto, qu<: p.1recc aproxinur 
o~cursos, o nde esta a difetcrn;:r? Quem trab,1llu com histúri.1 culru1-..1l 
sabe que uma <las heresias .1tribuídas a est.1 abordagem é afirnur que .. 1 
literatura é igual à história. Essa postur.1, tal como que opôe inconcili.1-
velmente a história e .1 literatura, só podem ser obtidas a p.1rtir d.1 rc:·cu.s.1 
à estética. A literatura conserva-se como sendo o ''sorriso" d.1 socicd.1l.k e 
a história é a razão pura, sem acesso ;1os sentimentos e às 1...·moçô<.'S. 
Mas a literan1ra é, no caso, um discurso privikgi.ldo de:· .. lCesso ;\O 
imagin,frio das diferentes épocas. No cnunci,1do c~ldm: de Aristótcks, 
em sua ''P~.1", ela é o discurso sobre o que podcri.1 ter acontel:ido, 
ficando a história como a narr.itÍ\\l dosfatos w:rídü.:o.s . Entrcr.mto, o qrn: 
vemos hoje, nesta nossa contempora.ne1dadc, s;10 histori.1don:s que tr.1-
balham com o iinagin.frio e que disnttcm tüo só o uso d.1 litl.'l\\ttJrJ ú>Ino 
acesso privilegiado ao passado - logo, romand() o não-a.contrá lio p.lr.l 
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:\1.irü :\lJ,·h.hlll dr .\s:-- i~. 11 que 11.1.n 1..· f'l\1\1,·,1 ..\11,.1. . Sun. l"'r l..°l'rt\\ t.,n~r 
d1..· nt.'gJ.r .1 gê11ulid.1Jr dl)~ .rntrnt·~. R'Ss,1lun 11.)s ,t n isrl~n,·i.t im1'1\·s,·11 11h,·d 
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r.1dur - o h1,r11ri.1,k)r - que tem r.rnüx·m t.m·ú:- 1u1-r.H1,·.1s .,~·_t_lUlf'l'l r: ck 
r1..·u!ll· o, J Jdos;, :-.ckc1011.1, 1..·,r.1bd1..-...·r 1..·Pnc,t"x·s l ' l..°rll l ,\ll ll'lltl ,, t'l H n.' rks, 
d.1hor.1 um.t cr.1111.1, .1p11:~l..'IHJ snlu\Ú<.'S f',tr.1 dc,·ifr.1r .1111tri~.\ llh'l\r-.t.L1 e s1.· 
, .1k d.1, ntr.H('g,1 .1, dt rt.'túno p.tr.t L·om\'l\l,,'S:r u kit11r, l..' t )ll~~t.~, -~1_, 1t~·1t·( ct' 
um.1 nT,ao .1prm.1m.1d.1 u m.11, prn,:-.1,·d d,) n.-.11 .1(1 )ll(l.'.1,;idll. 
l-fo,tnn:1Jon.·, t,Hll[)l..'11111wdi.Hi1 .1111 mu11d, h, ü1nr 1..1 .H1d1) r:--1..° nt.l r k1mr.1. 
Deles t.1mlx·m ,e 1..•:-,1x-r.1 pcrli >t m.mü• nrm~,Ltr, ~crn.tl. uh o . Fies t.unlx·m 
~ ro rón, :1dmit:Hl1l", n·nc?.1, .1b,1 ,lur.b 1..k t IH1/11f '" , 1\,\ ui n:mpc. 1r.1!id.1dry 
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,.. _ .... l 11nr,u,,r.f\..l'• l k 11111 trn1p,, fl<lll 1J,l•·,,.<1,1 fl("tn ,m.._,., .. t· L , r,. r . 
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J1.a ()h• for1 .. d(>Í .1flf1J!C ,.,,.,1 , 1 ~rn ,·~,unilh mi,,L ll.11J ;t \ \: r.,~ uL1dr ( )r t. <, r~ ....... 1 
\ Crt't'. ím1l n~" ta \Crd ,tk m.1 ... ,lg<i qtJl" \ f Jíl1 d.11,t• ;lr~n-nt.-L ( ). \Crfl"'\irt\1 1 .~ 
;-0 pr,,-d-.cl "qw·podcru tr•r •.,J<, L q11r < tr,nudo (,,m,, t.11 PJ,-...ívcl dt' J,~ : , .. ..,.Q_ 
.lCn t 1\l' ,. J)( ,n .1rw, 
Rqzl'-.tr:im,,, , ,,m 1,v1 ;i mud,11H, 1 t.klil>t·r,Hl,1 c\q rrmpo 1.uh;:tl~n 0 
drna "t~ Jl dn l.Om ,, que .1 n;t rrat 1\,1 lw,t, ,rn ,1 rrprcc-..cn t.1-ç,m do p;h ~~ .. -
\•d,J \C .:1prn,-inurta pn1go\.;1memc, da ,lc fim,.io ,Hl\l ntcl11..a d,1 [ l(K,t.l. ~ 
~rtcn,, nrc l '' l ~mpo da fi <.'tá~, A.~1i1m, .1\VCr\ÚC\ Jo acon1cl ~(1 r. 1n, de ~ .,.t_.,-
fr,mu 1rxnru,,rnJ\-d l~m poderia ler subi t\ rcprc\Cnta<r--'" dn pl'-'>JÓn fcit.1 
pdo ht\tonador .,,ena m,1ru da por C\<t.1 prcoçupaçã,> nu mct.l .l d.1 ron 
uuú tÚ chegar la e {fio _pa (Crtcza de ,,fcrc:ccr a rc<t p<>'i t,1 cena e uni1.,\ p.u .1 
,, cmgm.a d,, pa,,,a'J,'; , ~ev,Jt ~ 
A•,\tm, ,1 n,,çã,, pr<,pc-1,ta r>r Paul R1cocur Jc ·· rcp rc'><.'.ntJn(1~1"' \Cm -'-- <-
lf> cncontrr> J c,ta prr>prwdJt.k do trabalho Uo h1c,111n.1dor m.w, '-h' que ✓,, 
c<m\tru1 r uma rcpre'>cntação, que c-..c u,l,K t n<, lug.ir d,, pJ1,,Jdc1, c:k <: .v-i~'-'-(.., 
"'!.1.ru do pela vonta.íic de armgir C\tc pa1,,adu Tr.tt.l-\C Jc tima rnihd.11( 1.1 
n<> i,,cnttdo <lc atingir <1 mating{vc l, ou \Cía , o que: um d1J ,ç p ,t.,,<HI, no 
tcmn<, fíc,1cn i·á C\Coadu , . 
F ~ 1'- 1o, V ' ) '-J 
O \Cgrui<, '-1Cmám 1e,, de aproximação do"'I J1~·t1rv1\ \<' c:n1..xrr,1 rlC\tc.- -- ~ 
tempo verbal · "'tcn a acomco<l,,~. O h1c,ton.1Jor \C ,1prt ,xmu Jo n:.il p..t,,a- . \... ~ \;v..J 
dn1 n.:cupcranJ,, com<, ¼'.U tcxro que recolhe, ( ruz.1 t: compc·ic, ev1JênüJ.\ ,L 
• - ----- ---- \.o....ô 
C rrcr,-'a\ n.t hLL\CJ da vcrJadc dn--qtt ilo (]li ( /01 um dui . ':iuJ tarcb t ,cmprc J -1 "-- e,. 
dt rtP.[t~:ntaç.í<i daquela rcmporaJ1dJJ~~,.a<l.1 . l-Jc tamoém comtrói un1.1 ( ;,. L .-
- - ""-...., .... P!J',c.1b1hdaJc de aomrcurrn.:nto, num tempo cm que nao c,te-ve pre,cntt: e 
que de reconfigura ~ la na rrJ rt\ a ~ <..~ta rnedH.b, a narranva histúm.:i mo-
mhz.a '"' rccu r¼n da ima.gma\áo, da.nJo a ver e ler uma realtdJt.k pa.,;,.111.J 
' jUC v, xk chegar are o le1tor pt:lo c'>forço do penc,amento. 
P.J<i.uí.m,,, t.iímh<.:rn ac rec,,n~nrar ~1uc o att 1 11-,t1 1rJ(<, e, cm ,1 , ta.mbcm 
t rt4½.i< > pelo h1 \ toriadc,r, ma., na ba.\C deaocumcnt<J\ "rcai,..., quc: faLun 
daqu,I, , que tcna acontcC1Jo. Cúmo Jiz JaU\\, n,w t: fXJ\',l\cl m..uucr JUKU k 1.., , 
um.a <l••.t1n<.;ão tn~énua e radH..-.11 t:nm: r-es faaa-t t" reJ fictat • (omo ,e: fo~ .. , <" 
_..,......--
P',.::,hcl c..hcgdr, por meio J.e Jo< .. umc111<P, re.u,, a unu ,i:n_Lil1t' in1.·rnue', 
t.i\d t J"'>f '>l Hr<1 lado, p~Jr rnc:ío Jc artifício\, fH.:Jr no mundo 1.~1 f.intJ,1.1 
, ,ÕpÍm m1.cn~7,- -
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, .1. . voltemos agor,1 para unu ~egunda instinci.1 de a.ni lis , v i s nos ~ . , . . e, gue é 
a do uso da literatura pda h1stona, S,:'n_1-3uc com isso estabeleçamos hic-
. . d ~ ,·alor sobre os modos de dizer o real. Quando nos rc~ 
rarqmas t: · . , . _ · rU11o, 
G, _ Í" litcramr:.1 pela h1stona, nos reportamos ao lucrar de ond 
:10 uso l ,1 , • o e ~e 
enuncia O problema e a -,er m1ta ue no caso, é o cam o d~ 
Sob esta segunda ótica, ai sim, podemos dizer que o diálogo se estabelece 
a partir de unia hierarquização entre o~ cm1pos, a partir do lugar onde são 
colocadas as gucstôcs ou problemas. E, nesse caso, a partir desse particular e 
cspedfico ponto de vista, podemos dizer que, quando a his_~ória coloca de-
temiinadas perguntas, ela se debn1ça sobre a literanira como fonte. ·· -
· Nessa medida, um diálogo se estabelece no jogo transdisciplinar e in-
tcrdiscursivo das formas de conhecimento sobre o mundo, onde a história ,. __ _ 
~rgunta, e a literatura responde. E preciso ter em conta, conn1do, que os 
di~ursos literário e histórico são formas diferentes de dizer o real, embora 
as narrativas histórica e literária guardem, com a realidade, distintos níveis 
-\t--1 io-1-
h~~½ 
l de aproximação . 
. :") V,- ....,__ A recorrência do "uso" de um campo pelo outro é, pois, possível, a ~~ ~,t\.~ lJ fü-partir de uma p_ostura epistemológica que confronta as tais narrativas~ 
>'\1"" aproximando-as num mesmo aramar mas ue leva em conta e reitera a 
r ex1stencia de um diferencial. Historiadores trabalham com as tais marcas 
~'-'-~ I de historicidade e desejam chegar lá . Logo, freqüentam arquivos e arre-
-v,.;.s., vv cadam fontes, se valem de um método de análise e pesquisa, na busca de 
~ rt'~ proximidade com o real acontecido. Escritores de literatura não têm este 
compromisso com o resgate das marcas de veracidade que funcionam. 
como provas de que algo deva ter existido. Mas, em princípio, o texto 
literário precisa, ele também, ser convincente e articulado, estabelecendo 
uma coerência e dando impressão de verdade. Escritores de ficção também 
contextualizam seus personagens, ambientes e acontecimentos para que 
recebam aval do público leitor. 
Mas se a füeratura pode ser fonte para a história, uma terceira instância 
de análise se introduz, que é a da especificidade e riqueza do texto ficcional. 
Sem dúvida, sabemos do potencial mágico da palavra e da sua força em 
atribuir sentido ao mundo. O discurso cria a realidade e faz ver o social a 
~-rir da linguagem que o d~ignã e o qualifica. Já o texto de ficção litedri~1 
é enriquecido ela ropriedade de ser o campo por excelência da metãfora. 
Es~a fi~ra de linguagem, pe a q , a e c01sas que apontam para ou9.--as 
coisas, e wna forma da interpretação do mundo que se revela cifrada .. Mas 
talvez aí esteja a forma mais desafiadora de expressão das sensibilidades dian-
1 e I lo n'.I 1, !'Ili q1 ll' l ' l ll l' ll .1 .1q11d1. ... ( 1 li',.,.., " n .1< 1-1.11 l!!,Í\'l'Ís " q11c p ,l\\,ll1 l pd.1 
írotll,I, !'rio l11111111r, pelo dl'\lklll , pclu dt·.,cjn L' sonho-;, peb mopi.,, pdrn, 
,nrdn, e .111µ,ús 11.,.,, pd.1, nnrn1.1-. e 1"1..·gr.1s, por 111n bdo, e pd.1s \ll,ls infr.u/x:s, 
por lllll tn . Pd.1•, sn ,..,1hd1d.,dl·s, r11ti111 ! ~'il l' sei li ido, o texto litcdno ,1tmp;l' 
.i dillll'll'-,1n d., "wrd.,lk d() ... i111h1',lico'', q11r ~l· npress,, de l<>rma cifrad., l' 
nwt.ili ·,;ri'-·•1, t"«>lllO u111.1 t( ,nn.1 nut r;1 ~~~ di'l&;l J nK·snp e, 1~.1. 
A litn.1t 11r.1 l\ pois, unw I< >llll' p;1r;1 o historiador, nl.ls privi legiada, 
pnrquc lhe d.1r.1 ;1~csso cspl·1.:ial ;10 in1:1gi1drio, pnmit indo-llw enxag.11" 
1 r.i\ns l' pistas que 0111 r;1s li >IHL'S 11.10 1hr dari.m1. Fome c-;pel"ialíssima, por-
que lhe lLÍ ;1 vrr, de I< ,rn1;1 p< ,r Vl''/,es l"ifr.H.b, .,s imagens sl·mívei-; d<, nHm-
do. A litn.m1r.1 é 1u1T.\I iv.1 qur, de modo .111rcstL1I, pelo mito, pcb poesia 
ou pcl.1 prns.1 rnm.111csc;1 t:11.1 do 1111111du de lt1rn1a indiret.1, mctafi.'1ric.1 e 
;ilq!,úric;1. Por Vl'Zl'S, ;1 l"<>lTl~ll(Í;l de scmido quc o tcxto litcdrio aprl·sema é 
0 suporte m·n·ss;irio p;1r.1 que o olh.1r do histo1üdor se oriente p.ira outLls 
1.1111 ;1-; 11.,mes l' nelas cnnsiga enxergar ;1quilo que aind.1 1üo viu. 
/\ litcr.11ur;1 cumpre, ,1ssim, um efeito multiplicador de possibilidades 
de kit 11r;1: 110 c1sn, o historiador, l°Offi o seu c1pital específico dL' (onheci-
mento - divis;1r sob rn1v;1 ht'I. o seu objeto de ,m,ilisc, numa tcmporalid.1dc 
p.1ss.11.b. Nl'st.1 dimens~o, o texto litedrio inaugrn\1 um plw como possibi-
lidadl' Jr conhccimrmu do mundo. 
O 1111111do lLI lil"ç:io litcd1i1 - este n11111do PtT1iadâro das coisas de mm-
tim~ - cH an'.sso para 11ús, historiadores, às sensibilidades L' às formas~ 
ver .1 l"l';did;ttk de 11111 outro tempo, fornecendo pi~t.1s l' traços lhquilo 
que pmkri;1 tlT sido ou acomt:cido no passado e que os historiadcycs 
h~1L Isto implic1ri,1 1üu nuis buscar o faro cm si, o documt:nto en-
tendido 11;1 stu diml·ns:io tr.1dici011.1l, 11,1 sua nmrretudc de "real aconte-
cido", 111.1s de resg.1tar possibilidades verossímeis que expressam como ,ls 
pc~o,1s .1gi;1m, pl'ns;wam, o que temiMn, o qul' descjav,un. 
A v~dadc tfa t-il-ç:m litcdri;1 njo csd, pois, cm rcvebr a cxist01Kia re,11 
de pcrson.l!!,ens c faros 11,1rr.lllos, mas cm possibilitar a leitura lbs (}lll'S-
túrs cm jogo mima rcmpor.1lidade da~a. Assim, hnuvl'. uma troe, subs-
tant1v,1, pois, par;, o historiador que se volta par;1 .1 litn,1rur,1, o qul' conta 
na lrit ur;1 do texi-o 11:io ~ o seu valor de documento, rcstcmunho l.k vn-
dade < ,11 a11tc11ticidade do faro, nus o seu valor de problema. () to:to 
litrdrio n:veb e insi nu.1 ,1s vndadcs da rcpresenr.1ç:\o ou do simbólico 
.11 r.,vés de fot1 >s nüdos pela ficção. 
M;1is do l.\lll' i~so, o rcxro lircdrio t· exprcss:I() ou sinwnu de fr~1us 
de pensar e ag,ir. ' l:1is fatos narrados 1üo Sl' .1prcsem,lm l'omo d.1dos .Konte-
{ ~ L._? ( ;LIA 
)- e. 
,t ~,f~ 
l i - L \+<- -H.1 f (,,-t 
\ \ AJ.À. ~~ µ_ 
~ / 
~ \V/~ 
1 l \( , 
l ,du•,. 11 ,.1._, , >11H , )( ,1.,,d)!lid.1dc'I. cnmo )~ntrJ1., i, _ 
- , . . l C \. t)fl) 't)r 
.:J..:'. 1til ,1<k , dot.1<.Ll \ dr r rcd1hiltdJJe e ,1gnificàn(i~ ·' 
N r (,I ;1 últ 1m.1 dimcn.r., ;ú> de an~Ji,c t7uc ncns-- 1 ,. ·rw, . • . 1 
· · • ' "-·' 1 .. ,~(1 h · i 
1 . , . '- li. ,ldc i 1 1t1r.1 l , ,rrH , fu 11t c. c1 ,e retnm:i r ,1 J.1 mcn 1..]011,h fa rt'.(on ~· ~ ·1 itt-r.i. 
. ~ -lo tem,", {) l rn 1cc111, de1.,cm·oh·1d() por R 1cocu r de m,rneir;1 C\cmnlj ~ ·111!\ )t,11 
, . cmp .lr n . . 
,1 1,1nt c d,1 !>'.>"' '->thiltdadc de pcnc;ar .1 litcr,1 rur.1 11,1 rei , .-1 . ' 
0
~ 1.'.l)lcx:,1 
, rt.\, () 1..0 111 ,\ 1 . . ' 
u~--~ 111 111<:g,wcl t rccorr_cntc tc-; rcmunho de ~cu tempo. 11"to1·1.1 
Admití m, ,.., que ,1 litcran1r.1 e fonrc de ., i mc,,mJ cn~ . 
. ,lllto C'-ütt 1 
11rnc1 ..,c 11 ..,1hilídJdc, c11<. uanto rc 'l.\tro, no tem >, da.s r.tzócs . . , ·t · '1 q• 
. , . - • t.: scn~, 11 lid,,d(, 
di ,.., 1,, ,rncn1., cm 11m certo momento d,1 h1ston.1. Dos .seus sonl 
, ' . . . . 10S, 1111..\lt )\ 
111 1!.1 ,.., , 1;1, 1·)ccado) e virtudt 'i , da rcgrJ e d.1 conrr,l\'cndo d 1 l · • __ , , . h _ . !' , , oru.·m t: J 
c, 1111 r.11n:11J da v1d.1. A litcrarura registra .1 \ ·1d.1. Litcran1r.1 e . l -~· ·
1 
, . . . ·----- , ~011crudo 
11111 )Jl'.., ..,a,, de v1clJ . 14 ,, com 1\to, chegamos ,1 um.1 d.1s mcr.1s m.lis l) . _ . l • 
• ------~~ . . lls'-,\u,\s 
IH,-; d11mínio1.., da Hí1.,róna C ultural : c.1pturar .11mprcss.ío de ,·id-1 1 , . 
' · • l.'.lll'l°RI,\ 
vital ;\ [1/(11'f1bcía )fC!,<.'.lltC no )a'isadc\ na raiz d.1 C\ )lic.1 ·.lo de SCli~ ,r~ 
' ,) . os t' 
lLI ,u,1 fc ,rm:1 de qualificar o mundo. Esses traço'i poJcm sn rcsg;it.kios n.
1 
1~rrativ,1 literária, muito mai.\ do que cm outro npo de dcxumcnro. Com() 
;Jfirma Ginzburg~ a poc~ia-ou lircrarura -c011.rtitui uma rmltiill4ir ']li( rmia-
drirn pnm todos os cftitos, mas 1117() 110 se11tid.() literal. ,, 
Este belo proccs,1,0 - o da aproximação com J litcramr.1 - l~ um do~ qur 
c.tractcriza as mudanças na história, sem que isso se faç,1 de imedi.1to 110 
Brasil.Eh: nos permite ue no voltemos para ~ - ~scritor Érico 
"· ·',. · 110 e a forma como, cm seu i\· I11cid.c11tt cm A11tnrc.i public.1do 
c:m 1971, faz wna l~tura do país na sua ep tcr.1n1r.1. hoje 
usad~m10 referência para registro das sensibilidades na históri.1 de um 
outro tempo. Mesmo que aborde o passado do Rio Gr.rndc do .Sul. seu 
escopo de análise é o da realidade nacional como um todo. Por outro bJo, 
sua obra mostra como a literatura pós-64, 68 e 70 foi c,1paz de ler ~-c.11 
para um viés originalissimo. 
Nessa conjuntura dos anos do milngre, a obra de Erico Veríssitlhl L"or-
respondcu a um ~sra político-literário, atr,n·és de uma 1urr~1tiY,1 fam.ls-
t~a que sin10u a trama em uma cidade imaginária, 1u fronteir,1 do Br.1sil 
com a Argentina, Antares. 
Ora, a literatura fantástica n·abalha não no plano do mJr.1\·ilhoso, enten-
dido aqui como o irreal, o fantasioso, o impossín~l, 111.1s just~unemc __ lll) 
limiar da realidade com o absolutamente inusitado. O f.mtistico esti ,uKo-
r:ao no cotÍdiano, no mundo dos ;Kontccimentos reais de c.1d,1-~o!llk 
ocorre ou irrompe um tcnômeno exr~·,1ordinário .,._ Assim, hi um 1.tdo do 
e rá'>rico que: <;<: liga :l<J rc.1li<im< ) > tud, J '>e.: pavia d(·11tm d , . ~ . . . · . - t: tJJ n rrn111d,, 
_ hcud<J e fam iliar, que p{:rmm.: tant<,, J'> pni,r,na,,cm u ,n 1 . Lon 6 ' <)(, t ltur reu ,-
h ·t·crcm comu i,cnJo <J mund,> n:J.rural c.: rn <JUC vivtm l)c,~,4 • • • n <.: • ., 7'.. t'>ü >1 :-imi.:11 -
rl<J real <J fantá'>tÍcfJ nr;1 ;i '> tia frm;a, f)<J I'> de: c.:x11l<Jra JU '>l 'HYic·,1r . _ ro · , _ · _ · , - e a cruP:<i.at> 
do inmit,1dn dcnrro J<, umtcxr-<1 de nr;rm;i l1J:1dc. ( ,1,m,, ª'> '>lllala 'b.w r~rn 
'f<,dorO\~ cm um mundo qw: é bem o nosm, aquele qut nrJ; C1J1thecemo'. , rem 
dia}'}()S, si(fides 011 vm1tptros) se produz um ctcontccúnento que nw1 se jJ(Jde explícar 
pelas /cís deste numdo familiar. % 
A partir do apmtccimenr<> inu'>ita<fo, ,, fant:á<; tÍ c.: CJ pa.'>'>a a apre¼:ntar 
outro traço peculiar: de tr~balha e< m, a incerteza~ in<.t;1lanJ, > urna JúvíJa 
nm perc,onagcm Ja trama, p<>i ', algo da ordem J<> V>hrc.:naniral '>e imtala 
no mundo natural. Vtrdadciro r>u fal'><J ? Rtalidadc <>u ilusãrJ? Para (J pcrs<,-
nagcm. a dúvida se aprtsenta cm uma dupla p<N,ibilidade: ou rud<J na,> 
passa de uma ilusã<J dm '>tntid<>'>, dc um Jdíri<> da imagína~â<J; e.: as leis de, 
mundo pcrmantcem sendo o que stmpre foram, ou rJ aumtecímc.:nt,> tcvc 
realmente lugar, sendo~ portanto ~real", mas e'>ta realidade sc apn:scnra 
regida por leis de<,conhccida.'>.'1 
~ê. segunda possibíJjdadc, a ocorréncia d<; fantástico se torna ameaça-
dora; ~produzir o medo, pois implica, para <, pcrvmagem da narrativa, 
uma ~rda do seu uní\'(:rso de rcfrréncia'>. A'>'>Ím, a narrati va fantástica 
pode me'>m<J se apresentar C(JmO um r< >mane<.: de terror, produzido p< >r 
esta alteração ou transgressão da ordem natural. O real, que até então '>e 
movimentava dentro da normalidade de '>Ua.s lei \ regra.e:;, se.: apresenta com< J 
inexplicável, inadmissível e atermrizant<.:, a provocar uma ímema emoção, 
desde o per'>onagem até <J próprio leitor. 
Além disso, o género literário do fantástico tende a '>C revestir de_ye-
r~similhança. A deformação da realidade parece verdadeira, ou seja, 
mostra-se convincente. ~essa medida, o fantástico, que t:timologicamcn-
te deriva d<J latim fantastícum que, por sua vez, vem dü grego phantasein , 
as'>ume integralmente o seu caráter de "fazer ver em aparéncía": aquilo 
que se mmtra, que se exibe e aconttcc, mc'>mo guc extra<Jrdinário, é 
tomada U>m<> <,endo rcal. 1(J 
O romance de Erico Veríssimo trabalha com essas caracterL'>tica.'> apon-
tadas como identificadoras do fantástico enquanto género. A ancoragem 
(10 real, por exemplo, é marcanr5. 
A rig<Jr, o livro '>C divide cm dua.s parte~: uma que recupera a históriª-da 
cidade entrelaçada com a hi'>t<Jria do Rio Grande do Sul desde a ~ua forma-
çã<J. ~C'>'>e procc<.so evolutivo; oi, acontecimcnr<J'> do pa...,sado - índícr'> de 
ili~ 
rno nhl'(lrllllHI , l'Pt' i',ll1r dP lc1111r Jl· 11m.1 1111,ron.l ll' H <l 
i i. l , " rt1 ,l \~'> ln ,cnt,1dn, ,11r,\ \ 'C\ t ,1 B_n.1w111<T11(( t <.: 1x-r,on.1gcm ti1.·r,110., L t. 1 t rt· - - r \ ,t: (Jíl't 
nilo rt!"kto dr , ult, ,1; (l111hcl"1do, d., tw,r1)17J J, 1 R l<J ( '· k :-' >t 1J11 
' rrJ rh t'd, 1 
•-~._"_ d,1 um rontrudu de n:.ili,mo ,l tr.un.1 n-11-r.KIJ o kitr,~1" 
l''-"•' ·\m,rn:, ,üo cx1'-l r. m.1, cl.1 j1<•<.kn,1 <:nç, 1mr.1r eco e ,111,110 1.pi,,-
~~:...._--.---- --b'lJ cn, nw, 
t ,1, nutr.ii, 1. 1d.1tk, do H.1n t,r.rndr f~u.1 l111r 11tc . . 1 rr.-1m1 rnn,----.:.. ' 
- - .... • ,lll<:.<..1. ,\ \C d -
pe lo cmn.·l.,~ .1mc11n> de dn11, d.1<.. m ·.11<; ,1 ,r d1,put.1rcm O comr 1 
1 
. . . -
0 r p<1lit1(1 , 
d.1 ud.11.\c 1 , .._ \ ,1r.m.1110, e o, ( .1m1"0Lu ~o 
( ·, 1m1 1 c,tr.1tcg1.1 11J1-r.1t1\ .1 Jc 11rn rom.mú · ht<.tc >nco \ cn·<;<;Jrn h ~ ' < l j.l ,l · 
,·1,1 utdi7,ld" c,tr n.·,:tir,o n.1 rnlog1.1 " () tempo e o H·rno" rom10 . . h 
' • 1... t: "t(J. 
ncn ,1uc n.1rr.n·.1 .1 -.,w .. 1 Jo,_ Tcrr,1 -C..amh:ir.1 n.11,u,1 di,rm,1 cc)m <)'.. ·\ ~ , mar.u, 
pdo controle dJ t.1mlx:111 fict íciJ c1d.1Jc Jr S.111t.1 h : :\,<..im. dr,de a, 
ungcn, rcmor.1, do hurgo, "S dcsenro l.1 urn.1 hi <, rc·,n.1 ti((1on.11 que ,e e,. 
tende Jté a, n :~ixrJi, do golrc mtlitJr Jc l 964. h11.,t c>riJ h.11t7JJ.1 pdi"' 
,icontl'cimcmo, políncoc; e '-OC1Jis que pcrrmrcm .to leitor rc:1'11..ir um.i 
n:trn,pccti\·J do pJ~<iJdo remoto e rccc:nrc. .1 culmm.1r et'm ,\ .1 pro\~m.1-
-ÇJO do, doi'> lídcrc, doe; cJj,_ o ,·e lho li'Jcr T11-x'nn \ ·.1(.lflJ110 t' .1 m.nn.ir'-,1 
Quiréri ,1 Campolarg<> <io .1m1go, 
A ~CL'Ul1dJ parte Jo lino - e J 111.11 -. 111ten·,,.111tc d .1 ubr.1 -- tem !ut!.tr cm 
dczl'mhro de 1963, quJ.ndo '-l' d.1 um .l(t 1nrc'-·11nc11t1, t:1nr.1.rnro, .1p;m.•mr-
1rn:nte irwcro~~ímil e cxtraordin.mu, l]LIL' \ L'lll ,1ltn.ir de rn.111e1r.1 (om1111-
Jente .1 nda (otid1.rn.1 J.1 (1J.1dc e de -,cu, h.1h1unrc, . nr11rn, J .11 111d.1 dr 
n2:_mifr,r.1~·1>c, c;cx:üii, qur .1,,nl.1 o p.11 .. e n R1,, l;rJrhk·. 1uqucl.1 ,·0111unrur.1 
que ,l')\lll..ll.1 .1 Jern.>CltLl d.1 Jcm<h.T.1,.:1.1 popu li,1.1. <>'-°< >í!T u111.1 ~n:, c crr.d 
cm .-\m.m.·,. C:um .1 p.1r.1Ji..,.1~:io roul. n~ rddcllll'' e .1 lt11 cktri(.1 ,.io wn.1-
Jm, (.Hl~.rnJo .1prccn.s.10 .19uck~ que , t'l'l11 rw, .. .1 ntp111r.1 d.1 norm.d1d.1Jr 
d.1 ndJ um fator Jc -"Llhn·~.10 . .1rcnr.1rorn 1 .t ordem poltr1(.1 e \tK1.1I (~ 
culp.1drn, -,,io m comw11~t.1..,_ i:omenr.u11 e,, prcx:nt.·.., d.1 (1d.1tk l--.m 11 Jc 
da..<.'mbro, rn ,.:m c1ru.., d.1 l.-id.1de .1dcn.:m J !!,IL' t· _ e cruz.1111 º" br,tçm. ~ .ío 
m.11, c111crnh nem -,cpulrur.1..,_ p<>1:- o, l.·m·cm ,..,, uni11Jo- \<.: .1m tkm.1i, trJ · 
b.llludon:, p.1r.1li,.1Jo,. rcl'u~.u11-,e J nncn .<,u..1, hmç{x:, . 
:\ p.1mr de: tnrlo, u~ ,1gnth Jo tinL.l')tico e do hurr"r "l' ..,urcJt·m. ;\ 
~tru.1ç.io rünu-~e .i.l.um.mtt' qumJo J oi, J1~ JcpuÍ:,, a I 3 de de1,cmbn , -
um.1 -.C\t.1-fr1r.1 13 .• 1 .lliÍn.i.l.u· um 111.1u .ig.ouro - morrrm sete fX"'> '><.>.1' -.-m 
.\nr.11t~. m.1r(;111d0 durru ,1rx.-lo num~nco uh.1.!J~ricu. n~me 1..L ~n:n: ~ ~r:.tl, 
~(Jd.i\-crt~ tl(J.111 m~pulm:,, 1!ffil \'t'Z yue o~ ( Orpo\ ...C rnçl.un ll•hro 1,~r-
(I >111 ;1 ~u.1 :.iniaçlo l'.1us.11ü pda mtr.1d.1 J us cuvcml!) 11.1 µn: , e ,.: p.1,,-1!!! .1 
ronur .1nn1~tc~: cm g.rnpo. sob .1 '-·hdi.1 de um dek~, m.1rt"h.1m em JH-c~-:io J 
f 
, · st·tl·m1 no coreto da praça principal, asscgur;m<lo qm: dali fica-
··dadc e SL 111. , • . 
d , sua exiaência fosse atenchda. Querem ser enterrados! 
riatn ;1tc que . , z:, A • 
Horror geral.Os habitantes se depar~m, cm pamco, com t~ma m_ª1-cha 
S-vivos pela cidade, de manha cedo. Fugas, desmaios, ataques dos morto 
- dfacos, crises de ner\'OS. 
car . • 1 1· A narrativa do autor atinge aqm mais um e emento recorrente na 1tera-
f. ta'sn·ca com os sete cadáveres ressuscitados, assombrações que não rura an _ , 
..,.d ser· ditas como vindas de além-túmulo, pois não chegaram a ser Eº em ' . - . 
. ·adas São sem dúvida, almas do outt·o mundo, p01s todos na cidade enten _ . , 
~abem que estão mortos. Serão, pois, fantasmas, essas aparições ou espec-
p-os que assombram os vivos, dando a ver a figura dos mortos? Um dado 
terrível, contudo, se instala à passagem dos mortos-vivos: eles s~1-ri-
velmente reais, pois à medida que o tempo passa, sob o sol escald~u1te do 
\;erâo de dezembro, eles entt·am em decomposição, a exalar cheiros e a 
exibir a decomposição dos corpos, ameaçando a cidade com a sua podri-
dão. Estão mortos, e constatam que não respiram, não tem pulso, seus 
corações não batem. Em compensação, começam a apodrecer. 
Assim, eles são perceptíveis aos sentidos dos outros: tato, olfato, visão, 
audição, revelam um quadro de horror a todos os cidadãos de Antares. Eles 
falam, andam, manifestam sua determinação, tal como os vivos. Mas guar-
dam seu caráter de assombrilção, p~is não produzem sombra, nãõse refle-
tem em imagem nos espelhos e, tomados como alvo de uma fotografia, 
uma vez instalados no coreto da praça, a foto exibiu llln coreto vazio! 
Dessa forma, a narrativa do fantástico se escora nos dados da realidade 
cotidiana, fl!ªS de modo a mostrar que as leis naturais foram alteradas, 
causando pânico entre os próceres da cidade, indecisos sobre como agir e 
incapazes de demover os grevistas de seu intento de paralisarem a cidade. 
Erico Veríssimo conduz sua trama de modo a mesclar a morte e o hor-
ror com o humor, em combinação de Thanatos com Eros, própria tarnbém 
d.Q gênero fantástico, oomo apontam Labbé e Millet11 , O trágico e O cômico 
se instalam diante da simação inusitada e inexplicável. 
Um estranho "jogo da verdade" se instaura na comw1idade de mortos, 
CU,!e nada mais temem ou tem a perder. Todos, a rigor, podem expressar o 
que pensam, pois já estão mortos. A rigor, a estratégia literária de colocar 
''..:_rdades e lucidez nas palavras dos morto~ aproxima-se da figura do !ouço, 
também usada na literarura para mostrar as verdadeiras motivaçücs dos 
ato~ humanos e, inversamente à sua condição, a racionalidade do processo 
social em curso. 
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t~ B1hlic:11nc111c. pr.1g.1, LOlll l'Ç,lm .1 <.<.: aharr r ... obn.: .1 cidade. tnJ \(Jnd, , 
um.1 c\pt\:ic de fim d,,., tempo<. 
A 111crín:I Ji<ipura '-l' cnccrr,1 quJ11<.lo o, morto<. , Jcccpuo11.1do., cc,m 0 
compon.1111emo do, ,·n·m, voltam am ,cm c,12~,-~·-".:... r\ grcq: acabara, 0 ., 
qJ.!.crro<i foram feitm e a ndac.k fc,tquu. <i:1indo j _., n L1'- com (>li \mo, das 
ign:j.11., a bimbJ]har, o fim do pc,ac.k:lo. Chegou mc1.,mo ,1 1.,oprar um ,·cnt< 1 
forte para os ladm da Argentina, k,·anJo comigo o m:111 chc1m ciuc aind.1 
pcr\isti,1. E, quando dc.<icmbJrc.1rJm cm Antan:s < '' jornali1.,ra, da o pirai e 
do centro do país, p,ira constJtarcm o que ha,·1.1 Je vcrJac.k no aconrcc1do, 
a cidade diYidiu-sc entre os que afirmar.mi ser rudo pilhéria, 'iene.lo tn<.:'>mo 
uma iniciati,·a do pn:fcito par.1 ciumar J arençjo sobre Amare\ e aquck'>. 
g~nte do pon>, guc 1ura,-.1m que o prod1gio\o acontccim_enro rcaJmcnrc ,e 
dera, mas 11.10 ueria ren~lar sua idcmid.1dc ara n.ío sofrer rc n.:liá . 
Assim, ficando o dito pdo rüo J,ro, .1 rram.1 romanesca do incidcmi.: 
fantá11rico rcm seu fim . Rt:cur,o littr,irio do autor par:-1 expn.:'>sar \UJ crítica 
social, o fant,btico cede lugar ao n:tomo do coridi,u10. Aos incic.lcntc\ t x-
traordinários do finaJ do ano Je 1963, se;;uiu-st: o curso ordinário dJ ú dJ 
no ano seguinte, q~e 111cluiu cm março, o golpe militar que 1mtaumu a 
ditadura no país. Em suprcn1J ironia, o retorno ao real~ com suas normas e 
leis a reger a vida e o funcionamtnto d~111 imtiniiçõcs, perptruou o status 
quo denunciado pelos morrm em 1;,eu brtvc retorno ao mundo dos ,i~os . 
... J\!inguém mais lembra. como se o tpisódio não tivesse acontecido. Mas. 
ao mesmo tempo, todos esta,·am lá, todos participaram, todos haúa.m ,·isto. 
Entendemos guc há um certo ceticismo de E_rico Veríssimo com rd.1-
ção ao processo político brasileiro em curso. Afinal, no contrapomo da 
memória .10 e<;quccimento, ~tempo pode apagar os incidentes quç tçnckrn 
a mostrar o a,·esso da ordem. Assim como Antares esqueceu esta emergên-
cia do sobrcnaniral no seu cotidiano, o Brasil dos anos 1970 busca. pdo 
programa. do Milagre Económico, minimizar seu passado recente. 
Este, talvez, seja o maior momento da obra "Incidente cm Antares'', na 
quaJ ela atinge sua análise política mais profunda: sc o lembrar, J memória, 
tem como seu reverso o esquecimento, este é, no caso, unu opção. Por 
vezes, as pessoas guercm necessitam, precisam esqucçcr. Uma t·spécie de 
Jcto se instaura: ninguém viu ou participou, não foi bem assim. F~1a.s 
de defesa contra o presente, manipulam o vivido no passado até chegar L10 
não tives~e lugar. 
A rigor, crci< > que neste livro <lc Veríssimo sua crítica ~e faz de forma 
dar,, t,lllto ao passado quanto ao presente do país. O que cabe destacar é 
0 
recurso do autor ao gênero literário <lo fantástico para, de forma alegó-
rica, dizer O real de outra forma, para melhor dizer, tal como uma obra de 
litt:r,ltura se vale da incoerência do louro, da inocência da criança ou de 
~u,imais que falam . Nessa mcdid.1, a literatura cumpre aqui o seu papel de 
falar de um real transfigurado de uma f<Jrn1a mais contundente do que 
outro,-; textos, de nanircza não ficcional. Tal literatura é, sem dúvida, fonte 
par,1 J história . 
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l l I 
112 Notas 
1Ver, por exemplo, o n° 47 da revista Traverses. "Ni vrai ni faux"Traverses Révue d 
Centre Georges Pompidou, Paris, n.47, 1989. ' u 
2 Só como exemplo, podemos citar a polêmica em torno da obra de Hayden White 
Metahistória São Paulo: Edit. da Universidade de São Paulo, 1992. ' 
3 Ricoeur, Paul. Temps et récit. Paris: Seuil, 3v., 1983/5. 
4 Jauss, Hans Robert. L'usage de la fiction en histoire. Le Débat, Paris, Gallimard, n.54, 
mars/avril, p. 81, 1989. 
5 Expressão por mim utilizada para um artigo que discutir imagens pictóricas e literárias 
e o seu uso pela história: Pesavento, Sandra Jatahy. Este mundo verdadeiro das coisas 
de mentira: entre a arte e a história. Estudos históricos. Arte e história. Rio de Janeiro, 
FGV, n° 30, p. 56-75. 
6 Ginzburg, Cario. Olhos de madeira. Op.cit, p. 55. 
7 Labbé, Denis e Millet, Gílbert. Le fantastique.Paris: Ellipses, p. 14, 2000. 
8 Todorov, Tzvetan. Introduction à la littérature fantastique. Paris: Seuíl, p. 29, 1970. 
9 Ibidem. 
10 Labbé, Denis e Millet, Gilbert. Op. cit. p. 3. 
11 Labbé, Denis e Millet, Gilbert. Op. cit. p. 13.

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