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UAB – UNIVERSIDADE ABERTA DO BRASIL FUESPI – FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE ESTADUAL DO PIAUÍ NEAD – NÚCLEO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA LICENCIATURA PLENA EM LETRAS ESPANHOL LITERATURA E CULTURA AFRO-BRASILEIRA E INDÍGENA Algemira de Macêdo Mendes Elio Ferreira de Souza Maria do Socorro Rios Magalhães Raimunda Celestina Mendes da Silva FUESPI 2013 Ficha elaborada pelo Serviço de Catalogação da Biblioteca Central da UESPI Nayla Kedma de Carvalho Santos (Bibliotecária) CRB 3/1188 Literatura e cultura afro-brasileira e indígena / Algemira de Macêdo Mendes, et al. - Teresina: FUESPI, 2014. 158 p. ISBN 978-85-8320-000-0 Material de apoio pedagógico ao Curso de Licenciatura Plena em Letras Espa- nhol do Núcleo de Educação a Distância da Universidade Estadual do Piauí – NEAD / UESPI. 1. Literatura afrodescendente. 2. Literatura afrobrasileira 3. Cultura Indígena. I. Mendes, Algemira de Macêdo. II. Souza, Elio Ferreira de. III. Magalhães, Maria do Socorro Rios. IV. Silva, Raimunda Celestina Mendes da. CDD 801.95 M3941 Presidente da República Dilma Vana Rousseff Vice-presidente da República Michel Miguel Elias Temer Lulia Ministro da Educação José Henrique Paím Secretário de Educação a Distância Carlos Eduardo Bielschowsky Diretor de Educação a Distância CAPES/MEC Celso José da Costa Governador do Piauí Antonio José de Moraes Souza Filho Secretário Estadual de Educação e Cultura do Piauí Alano Dourado de Meneses Reitor da FUESPI – Fundação Universidade Estadual do Piauí Nouga Cardoso Batista Vice-reitora da FUESPI Bárbara Olímpia Ramos de Melo Pró-reitora de Ensino e Graduação – PREG Ailma do Nascimento Silva Coordenadora da UAB-FUESPI Margareth Torres de Alencar Costa Coordenadora Adjunta da UAB-FUESPI Naira Lopes Moura Pró-reitor de Pesquisa e Pós-graduação – PROP Diógenes Buenos Aires de Carvalho Pró-reitor de Extensão, Assuntos Estudantis e Comunitários – PREX Luís Gonzaga Medeiros Figueredo Júnior Pró-reitor de Administração e Recursos Humanos – PRAD Geraldo Eduardo da Luz Junior Pró-reitor de Planejamento e Finanças – PROPLAN Benedito Ribeiro da Graça Neto Coordenadora do curso de Licenciatura Plena em Letras/ Espanhol – EAD Leiliane de Vasconcelos Silva Edição UAB - FNDE - CAPES FUESPI/NEAD Diretora do NEAD Márcia Percília Moura Parente Diretor Adjunto Raimundo Isídio de Sousa Coordenadora do Curso de Licenciatura Plena em Letras Espanhol Leiliane de Vasconcelos Silva Coordenadora de Tutoria José Cledinaldo dos Santos Coordenadora de Produção de Material Didático Silvana Maria Pantoja dos Santos Autores do Livro Algemira de Macedo Mendes Elio Ferreira de Sousa Maria do Socorro Rios Magalhães Raimunda Celestina Mendes da Silva Revisão Teresinha de Jesus Ferreira Feliciano José Bezerra Filho Diagramação Vilsselle Hallyne Bastos de Oliveira Capa Luiz Paulo de Araújo Freitas MATERIAL PARA FINS EDUCACIONAIS DISTRIBUIÇÃO GRATUITA AOS CURSISTAS UAB/FUESPI UAB/FUESPI/NEAD NEAD/UESPI, Rua João Cabral, 2231, bairro Pirajá, Teresina (PI). CEP: 64002-150, Telefones: (86) 3213-5471 / 3213-1182 Web: ead.uespi.br E-mail:eaduespi@hotmail.com CONSELHO EDITORIAL Alfredo Adolfo Cordiviola (UFPE) Elio Ferreira de Souza (UESPI) Francisca Lúcia de Lima (UESPI) José Augusto de Carvalho Mendes Sobrinho (UFPI) José da Cruz Bispo de Miranda (UESPI) Lucirene da Silva Carvalho (UESPI) Margareth Torres de Alencar Costa (UESPI) Nize da Rocha Santos Paraguassu Martins (UESPI) Roselis Ribeiro Barbosa Machado (UESPI) Silvana Maria Pantoja dos Santos (UESPI/UEMA) SUMÁRIO UNIDADE 1 1 INTRODUÇÃO À CULTURA E À LITERATURA AFRODESCENDENTE ...............8 1.1 Contributos da Cultura Africana.............................................................8 1.2 Introdução à Literatura Afrodescendente ............................................18 1.3 Precursores da Literatura Afro-brasileira ............................................22 1.3.1 Domingos Caldas Barbosa ...............................................................22 1.3.2 Luís Gonzaga Pinto da Gama ..........................................................31 1.3.3 Gonçalves Dias ................................................................................38 1.3.4 Maria Firmina dos Reis.....................................................................44 UNIDADE 2 2 LITERATURA AFRO-BRASILEIRA PÓS-ABOLICIONISTA .................51 2.1 Cruz e Sousa .......................................................................................51 2.2 Lima Barreto ........................................................................................57 UNIDADE 3 3 LITERATURA AFRO-BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA ....................61 3.1 Negritude no Brasil entre as décadas de 1940 a 1960 ......................61 3.1.1 Autores representativos ....................................................................61 3.1.1.1 Solano Trindade ............................................................................61 3.1.1.2 Júlio Romão...................................................................................70 3.1.1.3 Carolina Maria de Jesus ................................................................75 3.2 Principais autores dos Cadernos Negros ............................................80 3.2.1 Conceição Evaristo...........................................................................81 3.2.2 Cuti (Luiz Silva) ................................................................................88 3.2.3 Elio Ferreira ......................................................................................95 3.2.4 Esmeralda Ribeiro ..........................................................................101 3.2.5 Mirian Alves ....................................................................................105 UNIDADE 4 4 CULTURA INDÍGENA E REPRESENTAÇÃO DO ÍNDIO NA LITERATU- RA BRASILEIRA .....................................................................................115 4.1 Os Indígenas Brasileiros e sua Cultura .............................................115 4.2 Representações do índio na literatura brasileira ...............................121 4.2.1 As primeiras imagens dos Índios na Literatura Brasileira..............121 4.2.2 O modernismo – a paródia do nacionalismo e do indianismo ........132 4.2.3 O índio na literatura brasileira contemporânea ............................. 136 REFERÊNCIAS .......................................................................................145 UNIDADE 1 INTRODUÇÃO À CULTURA E À LITERATURA AFRODESCENDENTE OBJETIVOS • Conceituar cultura afro-brasileira. • Identificar os principais precursores da literatura afro-brasileira e a im- portância de suas obras para a literatura nacional. • Analisar criticamente a produção literária dos escritores apresentados nesta unidade. Literatura e Cultura Afro-Brasileira e Indígena 10 1 INTRODUÇÃO À CULTURA E À LITERATURA AFRODESCENDENTE 1.1 Contributos da Cultura Africana Com o insucesso da escravização dos indígenas para atender o projeto de colonização, na colônia brasileira, Portugal tomou novas medidas, autorizando a importação de escravos da África para as plantações de cana-de-açúcar no Brasil. O negro escravo, tratado apenas como mercadoria, teve o seu aprendizado ao lado dos companheiros de senzala, o que lhes permitiu, de certa forma, preservar sua própria cultura, religião e arte. Assim, falar dessa contribuição africana na cultura brasileira é falar da construção da cultura brasileira, pois somos um país multicultural e como tal recebemos várias contribuições culturais de diversos povos. No entanto, os africanos que foram trazidos na condição de escravizados são os que deram afeição própria a nossa cultura ao lado da contribuição portuguesa, que nos legou, sobretudo, a língua e a religiosidade católica. Os índios, por sua vez, deixaram profundas marcas no nosso país, assim como os imigrantes europeus e orientais, que imprimiram seu modo de ser no pais que adotaram. Mas, o modo de ser, a religiosidade peculiar, o português africanizado tem sua base entre os povos africanos. Dessa forma, não se pode falar de contribuição e sim de base africana da cultura brasileira. ARTE AFRICANA A arte centrada em histórias, crenças, lendas e na filosofia africana, baseia-se principalmente em elementos da natureza, explora diversas possibilidades estéticas e materiais, integram ou complementam a arquitetura em obras bi e tridimensionais. FUESPI/NEAD Licenciatura Plena em Letras Espanhol 11 Escultura doada ao Museu Afro Brasil, no dia da Consciência Negra. Autora: artista plástica Márcia Magno Para Silva e Calaça (2006,p.34), trata-se de uma arte que transmite ideias, conceitos e valores grupais, portanto o artista deve sugerir e não representar, isto é, revelar a essência presente nas formas. Afigura acima é uma réplica de 2,2 metros de altura daquela que se encontra na Praça da Sé, em Salvador – Bahia. Ela mostra Zumbi dos Palmares, líder do Quilombo de Palmares, em posição de alerta, segurando um mukwale, arma de defesa, símbolo de poder, usada por importantes guerreiros africanos. O sagrado é marca constante na arte afrodescendente, pois o artista é “admirado, respeitado e temido por todos, porque está em contato com forças reprodutoras e reguladoras do universo”, nas palavras de Silva e Calaça (2006, p.35). Revelam e destacam nas máscaras e nos objetos, simbolismos que estabeleciam um elo com os ancestrais de onde provém toda energia sagrada, o Axé. Fonte:www.brasil.gov.br Literatura e Cultura Afro-Brasileira e Indígena 12 Da relação com os orixás, resultou a confecção de muitos objetos: bandejas, cálices, cetros, máscaras, altares, figuras masculinas e femininas: LINGUAGEM Os africanos provinham de diferentes povos, foram praticamente obrigados a criar uma linguagem em comum para que pudessem se entender, influenciando o português do Brasil, principalmente no vocabulário relacionado à culinária e à religião, em palavras como caçula, cafuné, moleque, maxixe e samba, entre centenas de outros vocábulos. A RELIGIÃO As religiões chamadas afro-brasileiras surgiram durante o processo de colonização do Brasil, com a chegada dos escravos africanos. Os cultos afro-brasileiros surgiram da prática religiosa das tribos africanas. Por isso, cada uma tem a sua forma peculiar de chamar o nome de Deus, promover seus cultos, estruturar sua organização, celebrar seus rituais, contar sua história e expressar as suas concepções através dos símbolos. Fonte:www.brasil.gov.br FUESPI/NEAD Licenciatura Plena em Letras Espanhol 13 Os europeus, com o objetivo de catequizar o negro, promoveram uma grande mistura que resultou nas, hoje, chamadas religiões afro- brasileiras, como a Umbanda e o Candomblé, fruto da interrelação de culturas. Alguns povos bantos eram adeptos do candomblé e foram seus introdutores no país. Existem, hoje, poucas casas de candomblé puro no Brasil, concentradas principalmente na Bahia. Por outro lado, o candomblé de caboclo e a cabula, outra variante do candomblé, tornaram-se as raízes remotas da umbanda, o mais difundido culto afro-brasileiro, no Rio de Janeiro. Fonte:www.brasil.gov.br O sincretismo foi uma forma de defesa do negro que procurou, através de formas simbólicas, camuflar seus deuses para preservá-los da imposição da igreja católica, já que não puderam incorporar a religião negra à religião predominante. Muitas são as festas realizadas ao longo do ano pelos afro-descendentes, concomitantes aos festejos dos santos católicos. Literatura e Cultura Afro-Brasileira e Indígena 14 A Festa do Senhor do Bonfim, realizada em Salvador, na Bahia, no segundo domingo depois do Dia de Reis é muito popular na sociedade, misturam as heranças culturais dos escravos trazidos para o Brasil e as tradições religiosas dos colonizadores portugueses. As religiões afro-brasileiras foram se formando nas mais diversas regiões e estados brasileiros, por isso, elas adotam diferentes formas e rituais, diferentes versões de cultos. A fé nos orixás se misturou à fé nos santos católicos e o resultado disso tudo é o jeito brasileiro de praticar a religião. A MÚSICA E A DANÇA A música brasileira tem o ritmo e nomes, como chorinho ou samba, originados da cultura africana, por isso, se diz que a música popular brasileira nasceu na África. A raiz negra está em tudo: no samba, no pagode, no afoxé, nas festas folclóricas como a do maracatu. Além dos ritmos, os africanos trouxeram também instrumentos, como o berimbau, a cuíca e o atabaque. Afoxé Berimbau Agogô O samba era chamado pelos angolanos de semba. Esse gênero musical foi se transformando, ganhou novos instrumentos, chegou ao Rio de Janeiro e atualmente é característico de todas as regiões brasileiras. FUESPI/NEAD Licenciatura Plena em Letras Espanhol 15 CAPOEIRA A capoeira, mistura de dança, luta e música, surgiu com os negros, que a utilizavam como arma de defesa. Durante a escravidão, reuniam-se em roda, após o trabalho, para cantar, dançar, jogar capoeira ou reverenciar com música os seus orixás. Batiam palmas, batucavam, reviviam suas tradições. Misturavam instrumentos musicais, dança e luta, “enganando” os Senhores de Engenho, que pensavam estarem eles apenas “dançando”. Fonte:www.beccufrj.wordpress.com Durante muito tempo, a capoeira sofreu repressão por parte das autoridades policiais e dos donos de engenho que perseguiam os escravos praticantes de capoeira, porque a atividade dava ao capoeirista um sentido de nacionalidade, individualidade e autoconfiança, formando grupos coesos e jogadores ágeis e perigosos e também porque, às vezes, no jogo, os escravos se machucavam, o que era economicamente indesejável. Um pouco depois do período escravocrata, alguns músicos negros, despontaram na música popular brasileira como pioneiros da chamada música popular brasileira: José Antônio da Silva Callado e Pixiguinha. Os artistas afro-brasileiros ganharam o seu espaço, muito tempo Literatura e Cultura Afro-Brasileira e Indígena 16 depois, na década de 1930, sobretudo com a popularização do rádio, que fez com que as pessoas ouvissem mais os artistas negros. Artistas como Carmem Miranda divulgavam a música dos cantores negros, tirando-os do anonimato. Apesar de todas essas influências, foram poucos os artistas negros que conseguiram ter contratos assinados com gravadoras, até o final da década de 1950. Nos anos 1930, muitas composições sobre personagens negros eram racistas, como se observa na marchinha carnavalesca, de autoria de Lamartine Babo e dos irmãos Valença: “O teu cabelo não nega, mulata,/Porque és mulata na cor, Mas como a cor não pega, mulata, Mulata eu quero o teu amor.” Essa marchinha, que animou o carnaval de 1932, mostra-se, aparentemente, ingênua, mas apesar dessa ingenuidade, o preconceito aparece ao tratar negritude como doença: “como a cor não pega, mulata quero teu amor”. Cantores como Gilberto Gil, Milton Nascimento e Paulinho da Viola têm, atravésde suas composições, colaborado para que a força política do negro seja mais reconhecida. CULINÁRIA É impossível falar da influência dos africanos sem lembrar a herança que eles deixaram para a nossa alimentação. Acarajé, mungunzá, quibebe, farofa, vatapá são pratos originalmente usados como comidas de santo, ou seja, comidas que eram oferecidas às divindades religiosas cultuadas pelos negros. Hoje, porém, são dignos representantes da culinária brasileira. Contribuição na culinária FUESPI/NEAD Licenciatura Plena em Letras Espanhol 17 As negras africanas começaram a trabalhar nas cozinhas dos Senhores de Engenho e introduziram novas técnicas de preparo e tempero dos alimentos. Também adaptaram seus hábitos culinários aos ingredientes do Brasil. Assim, foram incorporados aos hábitos alimentares dos brasileiros o angu, o cuscuz, a pamonha e a feijoada, nascida nas senzalas e feita a partir das sobras de carnes das refeições que alimentavam os senhores; o uso do azeite de dendê, leite de coco, temperos e pimentas; e de panelas de barro e de colheres de pau. Os pratos vindos do continente africano foram reelaborados, recriados, no Brasil, com os elementos locais. O dendê trazido pelos portugueses para queimar em lamparinas e iluminar as noites escuras do novo continente logo foi parar na panela das mucamas. A presença dos negros nas senzalas fez com que eles preservassem sua própria cultura, pois, segundo Pinto (1993,p.14), no intercâmbio entre a casa-grande e as senzalas “geraram filhos mestiços, amamentaram os filhos dos brancos, incutindo-lhes uma indelével personalidade de negritude”. Esses fatos marcam a preocupação dos estudiosos em compreender como a questão cultural se estrutura no interior de uma sociedade, na medida em que novas formas de desenvolvimento surgem, novos tipos de organização são implantados. Nesse sentido, no Modernismo brasileiro, muitos elementos da cultura popular foram incorporados à poesia numa relação que sugere a valorização do caráter nacional, com o intuito de aproximar a população brasileira da maneira de se expressar nacionalmente, com o uso do material folclórico e ideológico dessa corrente estética que trazia no âmago, uma outra concepção de arte: Os temas populares e folclóricos que, pelo crescente impulso nacionalista, povoaram os textos de poetas modernistas, viriam a se retratar na literatura pelo aproveitamento do material verbal (provérbios, refrões, sentenças, onomatopeias) e dos básicos da tradição popular, a literatura oral dos cantos e danças e resíduos Literatura e Cultura Afro-Brasileira e Indígena 18 dos cantos populares. (AVERBUCK, 1985,p.182-183) Para Averbuck, o uso da língua pelo seu tom coloquial e oral do cotidiano é transportado para o poema, atendendo ao projeto modernista reavivar a língua nacional, com a preocupação de entender as particularidades do Brasil, através da representação da memória cultural, não importando que seja de origem negra. O trecho do poema Caratateua, de Raul Bopp, evidencia a presença do negro, não só pelo conteúdo, mas pelo vocabulário expressivo, pela identificação da cerimônia de origem africana, o atabaque, como componente da cultura negra. Caratateua [...] Na praça. De tarde. Há batuque. Tambores. Domingo de Festa de São Benedito. O sol se mistura com um sorriso na alegria de Caratateua toda engravatada de bandeirola. (BOPP, Raul. In: AVERBUCK, op.cit.) O poema retrata a festa de São Benedito, santo católico negro, cultuado em várias cidades brasileiras, nesse caso, em uma praça pública, ou seja, com a participação da comunidade. A presença do batuque e tambores, instrumentos de percussão, símbolos da compleição dos negros, leva a crer que a festa não é do padroeiro católico e reforça o ritmo africano pelas frases curtas, do primeiro verso, marcando o ritmo da batida, reforçado pela aliteração das consoantes /t/, /d/ e /b/ e assonância da vogal /a/, sugerindo uma expressiva sonoridade dos tambores. O tambor e o batuques, no poema, reforçam não só o sentimento de festa e de alegria, mas representam a revolta e a resistência cultural do negro escravizado. Destacam-se no poema as imagens produzidas nos versos três e quatro com as figuras de linguagem prosopopeia e metonímia, FUESPI/NEAD Licenciatura Plena em Letras Espanhol 19 respectivamente, reforçando o clima de festa do sol com o sorriso dos brincantes e as bandeirolas que consolidam o cenário. 1.2 Introdução à Literatura Afrodescendente Na historiografia literária brasileira vários foram os temas abordados pelos escritores, que buscaram muitas vezes evidenciar, em suas obras, o contexto do qual fizeram parte, focalizando neles os aspectos da sociedade, como ressalta Matos e Furtado no artigo “O Negro na Literatura Brasileira: Contextos e Pretextos.” A literatura é o espelho e a interpretação da sociedade em um momento determinado da sua evolução histórica; este estado baseia-se sempre em uma tensão entre o ideal e a realidade. A literatura só consegue ser arte reproduzindo este estado da sociedade mais ou menos pleno de contradições internas. Dependendo das condições sócio-econômicas de cada época, ela pode nos oferecer subsídios para interpretar e reconstruir as representações do passado e do presente (MATOS e FURTADO, 2004, p. 55). Como foi dito acima, a Literatura pode nos oferecer subsídios para interpretar e reconstruir as representações do passado e do presente, incluindo,dessa forma, a questão da cultura e as representações do povo africano, uma vez com compõem elementos constitutivos da cultura brasileira. (PEREIRA, 2004, P. 141). O afrodescendente foi visto por muito tempo como um objeto, escravizado e subjugado a todos os tipos de discriminação, sem lhe ter sido dado um espaço na sociedade. David Brookshaw em Raça e cor na literatura brasileira diz que : No Brasil, como em outros países do Novo Mundo, o preconceito contra o negro tem sido e ainda é um dos mais arraigados em nossa experiência histórica em virtude de séculos de escravidão. O Negro , mesmo de ser escravizado , tinha um defeito que para muitos serviu de justificativa para a escravatura, e esse defeito era sua cor. (BROOKSHAW,1983,p.12): Literatura e Cultura Afro-Brasileira e Indígena 20 Como se vê, a escravidão no Brasil foi uma experiência perversa que deixou marcas profundas, tanto no interior como no exterior do povo negro, refletindo muitas vezes em tudo que é extensivo ao afro-brasileiro. Para Algemira Mendes, em sua tese, Maria Firmina dos Reis e Amélia Beviláqua na história da literatura brasileira: representação, imagens e memórias nos séculos XIX e XX (2006), a literatura do século XIX, produzida ainda sob a vigência do período escravocrata, silencia sobre o negro que, quando não é omitido, aparece somente destacado por características estereotipadas: sensualidade, luxúria, comportamento bestial ou servil, ou então é representado com sentimento de piedade e comiseração diante da situação do cativo. A esse respeito, o estudioso Gregory Rabassa, em estudo basilar sobre a questão do negro no Brasil, diz: Na literatura produzida no Brasil até 1888, o negro apareceu em papéis diversos e sob ângulos diferentes. Os primeiros inscritos geralmente incluíam polêmicas contra ou a favor da escravidão, corrente que iria contribuir com outras obras até a abolição e, mesmo depois disso, em retrospectos. Como pessoa, o negro foi descrito como quase tudo cabível na escala humana de interpretação: uma figura semelhante a feras que servia apenas para o trabalho pesado, um selvagem em que não se pode confiar e que se revoltará na primeiraoportunidade, um herói lutando contra uma opressão injusta, um servo fiel imbuído de grande amor por seu senhor, uma figura exótica que desperta desejo, um pobre ser humano rebaixado de anseios justos devido a uma instituição iníqua. Em poucas palavras, o nego apareceu sob quase todos os ângulos concebíveis pelos autores que dele se ocuparam. (RABASSA,1965,p.99). Úrsula, de Maria Firmina dos Reis, foge do usual ponto de vista tratado por outros escritores brasileiros. Ela adota uma postura antiescravagista, diferente de Joaquim Manuel de Macedo, em As vítimas algozes, de Bernardo Guimarães, em A escrava Isaura, Pinheiro Guimarães em O comendador, Francisco Gil Castelo Branco, em Ataliba, o vaqueiro. E mesmo das obras de Teixeira e Sousa, Maria ou a Menina roubada e de FUESPI/NEAD Licenciatura Plena em Letras Espanhol 21 José do Patrocínio, em Mota Coqueiro. (MENDES, 2006). Pode-se dizer que, na literatura brasileira, a representação do afro descendente tem sido demonstrada, muitas vezes, pela relação senhor x escravo. O negro, quando aparece nas narrativas ou poemas, é visto sem qualidades psicológicas e sem ser elevado à condição de herói. Conforme aponta ainda Matos e Furtado (2004, p. 56), “o negro quando entra como personagem é quase sempre boçal, engraçado, o que dá a ideia de que ele é inferior para a exaltação do herói”. Sobre isto, Célia Regina dos Santos e Vera Helena Gomes Wielewicki destacam em seu artigo, ”Literatura de autoria de minorias étnicas e sexuais”: O afro-descendente foi quase que esquecido pelos escritores, a representação do negro na literatura desde o seu início foi apagada; é como se os negros, forçados a cruzar os mares como escravos, tivessem deixado na costa africana todos os seus sistemas, formas, elementos e práticas culturais e religiosas. [...] O ‘motivo histórico e moral’ do desaparecimento ‘silêncio involuntário’ de nossos escritores sobre o ‘estado de escravidão’ bem como a influência do negro na cultura nacional do começo da história brasileira, até meados do século XIX, deveu-se pelo receio do estigma da contaminação. Falar sobre o negro traria sobre o escritor questionamentos sobre suas ligações com os mesmos, e até mesmo sobre sua linhagem ‘pura’.(SANTOS e WIELEWICKI, 2005, p. 291) O negro continua a ser uma figura apagada até meados do século XIX. (SAYERS, 1956). O negro aparecerá novamente na literatura da segunda metade do século XIX, em especial de 1850 a 1880, ano em que ocorreu a abolição da escravatura, “porém ainda mantendo sua posição marginal na literatura. E nesse período começa a surgir negros e mulatos letrados e escritores”. O conceito de Literatura Afro-brasileira ou Afrodescendente tem passado por várias revisões. Zilá Bernd define a Literatura Negra como a representação de um sujeito enunciador no texto que se quer de autoria afro-brasileira e que é enunciado em primeira pessoa, independente da cor Literatura e Cultura Afro-Brasileira e Indígena 22 da pele. (LOBO, 2007). Para Luiza Lobo, num outro extremo se situa David Broookshaw “no qual distingue uma literatura sobre o negro , enquanto o tema e uma literatura negra, escrita por negros”. Já Eduardo de Assis Duarte, em seu artigo “Por um Conceito de Literatura Afro-Brasileira”, postula que, para além das discussões conceituais, alguns elementos identificadores podem ser destacados, como: Uma voz autoral afrodescendente, explicita ou não no discurso; temas afro-brasileiro; construções lingüísticas marcadas por uma afro-brasilidade de tom de ritmo, sintaxe ou sentido; um projeto de transitividade discursiva, explicito ou não; com vistas ao universo recepcional, mas sobretudo, um ponto de vista ou lugar de enunciação política e culturalmente identificado à afrodescendência, como o fim e o começo (DUARTE, 2011,p.385). Para Cuti (2010), o termo “negro” lembra a produção literária que expressa claramente o pertencimento étnico. Brookshaw (1983) e outros são enfáticos quanto à nomeação que deve ser dada a esta literatura. Nessa perspectiva, merecem destaque escritores que traduzem este conceito, como é o caso de Luis Gama, Caldas Barbosa, Gonçalves Dias, Maria Firmina, tidos como percussores da literatura afro-brasileira SAIBA MAIS Literatura negra ou afro-brasileira Mesmo entre os uns deles muito sensíveis à exclusão dos descendentes de escritores que se assumem como negros, algescravos na sociedade brasileira, existe resistência quanto ao uso de expressões como “es- critor negro”, “literatura negra” ou “literatura afro-brasileira”. Para eles, essas expressões particularizadoras acabam por rotular e aprisionar a sua produção literária. Outros, ao contrário, consideram que essas ex- pressões. FUESPI/NEAD Licenciatura Plena em Letras Espanhol 23 1.3 PRECURSORES DA LITERATURA AFRO-BRASILEIRA 1.3.1 CALDAS BARBOSA Domingos Caldas Barbosa (1740 – 1800) nasce no Rio de Janeiro e falece em Lisboa. Filho de escrava angolana e branco português, talvez constitua o primeiro caso, nas nossas letras, de um escritor afrodescendente a afirmar-se negro nos seus próprios versos, assumindo a sua origem racial através da linguagem poética. Na avaliação de Sílvio Romero, o poeta Caldas Barbosa foi “o célebre improvisador de modinhas” do seu tempo (ROMERO, 1980, p.476, v. 2), cuja coletânea de versos foi publicada com o título de Viola de Lereno. Em termos de literatura brasileira, o maior legado de Barbosa foi ter antecipado os temas e estéticas da poesia negra. Este poeta, cantor de lundus e modinhas, imprimiu em suas canções elementos da tradição oral e popular, estabelecendo pontos de contatos e diálogos precursores que desfazem as fronteiras entre a escrita e a oralidade. Assim como Silva Alvarenga, também negro e músico, atingiu nos versos de medida curta o tom melódico da poesia que se desfaz na música (CÂNDIDO, 1981, p. 49, v.1). A produção poética do “modinheiro” abriga as marcas identitárias do escritor afro-brasileiro, ainda precursoras, apelando para o africanismo vocabular, estetizando a linguagem popular, exprimindo a sensação de prisão interior ou “emparedamento” e recorrendo ao ritmo musical e acentuado. Esse dizer-se negro inscreve na literatura em verso a voz do sujeito-negro, a voz da diferença falando por si mesmo, para si enquanto negro e para o outro, o branco. Isso em tom de autorreconhecimento e aceitação do passado histórico, a exemplo desta quadra de Caldas Barbosa: Tu és Caldas, eu sou Caldas; Tu és rico, e eu sou pobre; Literatura e Cultura Afro-Brasileira e Indígena 24 Tu és o Caldas de prata; Eu sou o Caldas de cobre (BARBOSA, 1980, p. 478) A historiografia literária afrodescendente tem citado os versos acima, ou mais precisamente a linha “Eu sou o Caldas de cobre”, como o primeiro registro no qual um escritor brasileiro assumiu a condição de negro na sua escritura. Assim, a cor “de cobre” versus a cor “de prata” faz a diferença entre o ser negro e o ser branco, além de evidenciar a posição social ocupada por essas duas raças na sociedade colonial e escravista. Quanto ao registro de dizer-se negro na escrita, merece também chamar a atenção para “Carta” da escrava Esperança Garcia, escrita por ela mesma, datada de 1770, e destinada ao Presidente da Província do Piauí, cujo teor denuncia os maus-tratos e açoites do Administrador das antigas fazendas de gado da Coroa de Portugal contra ela, os filhos e parceiros de escravidão (FERREIRA, 2008). As cantigas de Caldas Barbosa correram na boca do povo que as modificou e as moldou ao seu gosto, segundo testemunho de Sílvio Romero: “Quando em algumas províncias do Norte coligi grande cópia de cançõespopulares, repetidas vezes, colhi cantigas de Caldas Barbosa, como anônimas, repetidas por analfabetos” (ROMERO, 1980, p. 478, v. 2). O escritor setecentista recupera a cultura e a língua dos antepassados negros, reencontrando um fio que o conduz de volta à sua ancestralidade, à tradição oral africana que se hibridiza com a tradição luso-brasileira. Os versos sonoros, os metros curtos em redondilha maior, a utilização de anáforas ou repetições de palavras no início dos versos e a seleção vocabular apresentam caracteres próprios da poesia feita para se transformar em letra de música. São esses versos reveladores do eu-lírico e negro que se identificam com os sentimentos e o imaginário das camadas populares do nosso país. Foi, sobretudo, com a maneira simples de comunicar os FUESPI/NEAD Licenciatura Plena em Letras Espanhol 25 sentimentos que Caldas Barbosa se consagrou e os seus versos ganharam notoriedade entre o povo. As quadras amorosas têm a candura, a doçura, o “dengue e um requebro tipicamente crioulos” (id, p.487). Eu sei, cruel, que tu gostas, Sim gostas de me matar; Morro, e por dar-te mais gosto, Vou morrendo devagar... Tenho ensinado a meus olhos, Dos segredos a lição; Sabem dizer em segredo A dor do meu coração... (BARBOSA,1980, p. 478) Nas páginas dedicadas a Caldas Barbosa, Sílvio Romero afirma que Varnhagen, crítico literário da escola romântica brasileira, cometeu a “maior injustiça e o mais grave erro” (id., p.476), quando atribuiu à cor da pele escura do poeta ou à sua mestiçagem, um “suposto caráter submisso” (id., ib.). No entanto, as influências do determinismo biológico conduziriam Sílvio Romero a incorrer na reprodução de certos estereótipos pseudocientíficos, quando faz a seguinte declaração: “Se alguma cousa existe no mestiço, que se possa considerar a nota predominante de seu caráter, é a rudeza, a independência, o orgulho, a tendência ao desrespeito, a falta do senso da veneração” (p.476). O nosso primeiro crítico literário de renome prossegue com suas digressões equivocadas acerca do caráter do “mestiço”: particularmente para música, como se tal “pendor” estivesse relacionado a fatores biológicos em vez de cultural: Daí a sua juvenilidade constante, o seu pendor para as artes, especialmente para a música. Raro é o mestiço bem caracterizado no Brasil que não seja músico ou pintor, especialmente a primeira das duas cousas (ROMERO, 1980, p.477). Literatura e Cultura Afro-Brasileira e Indígena 26 A musicalização dos versos garantiu, certamente, a grande popularidade deste escritor junto ao público brasileiro e à sociedade lisboeta dos saraus noturnos da segunda metade do século VIII. Dir-se- ia que Caldas Barbosa escreveu poesia para a massa pouco letrada ou para a burguesia de pouca erudição que, em geral, se identifica com os derramamentos emotivos das canções apaixonadas (1980, p.478). Além disso, o poeta afro-brasileiro transcende os aspectos puramente sociais. Rompe com a hegemonia dos modelos classistas da literatura europeia de então, quando atribui às cantigas uma dimensão étnico-racial que reterritorializa a tradição afrodescendente na escrita literária. Caldas Barbosa utiliza-se de africanismos através dos vocábulos bantos: “cuia” e “quingombó” -, de americanismo: “Xarapim” -, bem como de elementos sonoros ligados à tradição da cultura musical e das cantigas africanas, que circunscrevem o universo cultural do negro nos versos abaixo. Xarapim eu bem estava Alegre nesta aleluia Mas para fazer-se triste Veio Amor dar-me na cuia ........................................... Se visse o meu coração Por força havia ter dó Porque o Amor o tempo posto Mais mole que quingombó. (DAMASCENO, 1988, p.39) A sentimentalidade transforma-se em melancolia inusitada na alma do poeta Caldas Barbosa e suas cantigas parecem prenunciar uma indesejável sensação do “emparedamento”, posteriormente problematizado FUESPI/NEAD Licenciatura Plena em Letras Espanhol 27 na prosa poética do simbolista negro Cruz e Sousa (SILVA, 1999, p.125). Este sentimento de exílio, de prisão interior e tristeza ocultada, sintomático na obra do árcade, manifestam-se enquanto forma de premonição de elementos peculiares à tradição da poesia afrodescendente, como em “Lereno melancólico”: Sou forçado a alegre canto; Faço esforço de alegria, E oculto no fundo d’alma A mortal melancolia (CÂNDIDO, 1981, p.150, v. 1) A poesia faceira e terna de Caldas Barbosa se distancia do versejar de tom épico e sisudo, como os decassílabos e alexandrinos comuns à poética dos árcades lusos e brasileiros de então. A opção pelos cantares do povo mistura melancolia, afeto, “dengue” e abrasamento, “definindo de modo explícito os traços afetivos corretamente associados ao brasileiro na psicologia popular” (id., 1981, p. 149). O trânsito nos espaços acadêmicos e saraus nos salões da corte lisboeta não fizeram Caldas Barbosa esquecer ou negar as suas origens de homem negro, simples e tocador de viola que demarca um dos percursos iniciais na construção de identidades afrodescendentes na literatura escrita do nosso país. A africanidade do filho de angolana se manifesta de maneira consciente nos vocábulos africanizados e na preferência pela estrutura musical do “lundum”, ou lundu, cantar oriundo da África que deu origem ao samba brasileiro. O poeta Caldas Barbosa mesclou esse ritmo às suas modinhas brasileiras. Referindo-se a Barbosa, Antonio Cândido assinala que “Saborosa é a utilização do vocabulário mestiço da Colônia, com que obtinha certamente efeitos de surpresa e graça nos salões lisboetas, cantava com a sua viola” Literatura e Cultura Afro-Brasileira e Indígena 28 (id., p.150). A seleção vocabular aponta para o africanismo abrasileirado já explicitado no próprio título dos versos de “Lundum de ouro”: Nhanhá faz um pé de banco Com seus quindins, seus popôs, Tinha lançado os seus laços, Aperta assim mais os nós.(1980, p. 150) E em “Lundum de cantigas vagas”: Meu Xarapim, já não posso Aturar mais tanta arenga, O meu gênio deu à casca Metido nesta moenga. (id., ibid.) Os versos do cotidiano recuperam, para o texto poético, as palavras do banto: “arenga”, “moenga”; do quimbundo: “Nhanhá” (de “nhá”); do umbundu: “popôs”; do americanismo: “Xarapim” (LOPES, s.d., p.34- 74). Nas duas quadras acima, o vocábulo “Lundum” indica o africanismo literário dos versos de Caldas Barbosa. A matéria textual se interrelaciona duplamente com a África: a) do ponto de vista linguístico – “lundum” é uma palavra de origem africana; b) no sentido cultural – uma modalidade do cantar ou da dança africana. Para Antonio Cândido, o poeta possui o mérito de ter influenciado na evolução rítmica do verso português. Porém o crítico ressalva: Embora haja contribuído, pois, para o adensamento daquela atmosfera encantadora e frívola de melodias fugitivas que embalaram o Rococó lisboeta, o fato é que, visto de hoje, o “trovista Caldas”, tão simpático e boa pessoa, tão maltratado por Bocage, desaparece praticamente ao lado dos patrícios mais bem dotados (CÂNDIDO, 1981, p.150, vol.1). FUESPI/NEAD Licenciatura Plena em Letras Espanhol 29 A crítica canônica tem dado atenção a Caldas Barbosa como compositor e cantor de modinhas do que propriamente como autor de obra literária, uma vez que sua poesia se assemelha às canções populares da tradição afrodescendente em oposição ao modelo europeu. Numa perspectiva diferente do cânon e isenta de preconceitos, David Brookshaw esclarece: O poeta e compositor de canções populares do século XVIII, [...] aplicou a sensualidade alegre das modinhas e lundus afro-brasileirosaos versos anacreônticos que o influenciaram durante o período em que residiu em Lisboa. [...]. Embora as modinhas de Barbosa fossem muito cantadas no Brasil, seu trabalho só foi apreciado como literatura depois de 1920 quando os poetas começaram a recorrer à cultura dos negros e mestiços para obter material. Manuel Bandeira referiu-se a ele [Caldas Barbosa] como “o primeiro brasileiro onde encontramos uma poesia de sabor inteiramente nosso“ (BROOKSHAW, 1983, p.161). Por volta de 1763, Caldas Barbosa chega a Portugal, “para continuar seus estudos” (MARQUES, 2011, p. 50). Anos depois, alcança notoriedade e prestígio junto aos escritores da Metrópole e salões da corte real – tanto que se tornou o primeiro presidente da Nova Arcádia – foi abalado por uma série de insultos e preconceitos partidos dos poetas portugueses Bocage e Filinto Elísio, alguns de conotações racistas (MARGARIDO, 1980, p. 202) descrevem o brasileiro como “o neto da rainha Ginga” ou “nojenta prole da rainha Ginga” (cit. MARGARIDO, ibid, p.200). A rainha Ginga tornou- se símbolo da resistência aos portugueses em Angola. Alfredo Margarido observa que a rainha estrategista, guerreira, não hesitou em aliar-se aos holandeses em luta contra o domínio de Portugal (FERREIRA, 2005). Os versos de Bocage, assim como a sátira de Gregório de Matos dirigida a um vigário brasileiro negro, procuram se instrumentalizar de signos linguísticos para zoomorfizar Caldas Barbosa: “E o orangotango a corda à banza abana” (id. ibid.), despojando-o do valor literário. Por certo, essa prática, era habitual nas relações interracionais em Portugal e nos países Literatura e Cultura Afro-Brasileira e Indígena 30 colonialistas europeus. A brutalização do negro, como aponta Alfredo Margarido, já acontecia na literatura de Portugal desde o século XV, em escritor como Gil Vicente (1980, p. 192). Na verdade, a exclusão do negro na escrita literária do ocidente tem mudado de máscaras desde os seis últimos séculos e, em oposição a esse tipo de discurso, é que nasceram os movimentos da negritude, a literatura negra ou afrodescendente de todo o mundo. Domingos Caldas Barbosa tornou-se exemplo de muitos outros escritores negros e compositores de canções populares, como o afro-baiano Xisto Bahia, natural de Salvador, que também alcançou sucesso notável com suas modinhas junto à “classe média urbana no final do século XIX, ou Eduardo das Neves, um comediante negro e compositor” de modinhas do início do século XX (BROOKSHAW, p. 163). Na esteira dessa tradição de compositores brasileiros notabilizados pelas suas canções populares de sucesso, merecem destaque alguns nomes recentes como Noel Rosa, Cartola, João do Vale, Martinho da Vila, Caetano Veloso, Chico Buarque, Nei Lopes, Chico César, dentre outros (FERREIRA, 2005). OBRAS DE CALDAS BARBOSA Coleção de poesias feitas na feliz inauguração da estátua equestre de El-rei Nosso Senhor Dom José I em 6 de junho de 1775. (Sem local, sem impressor, sem data. Somente alguns dos poemas são de autoria de Caldas Barbosa.); Narração dos aplausos com que o Juiz do Povo e a Casa dos Vinte-Quatro festeja a felicíssima inauguração da estátua equestre. Lisboa: Régia Oficina Tipográfica, 1775; Recopilação dos principais sucessos da História Sagrada em verso. Lisboa: Régia Oficina Tipográfica, 1777; Epitalâmio nas felicíssimas núpcias do ilustrís- simo, e excelentíssimo senhor Antônio de Vasconcelos e Sousa. Lisboa: Régio Oficina Tipográfica, 1777; Os viajantes ditosos. Lis- boa: Oficina de José de Aquino Bulhões, 1790; A saloia namora- da, ou o remédio é casar. Lisboa: Oficina de Tadeu Simão Ferreira, 1793; A vingança da cigana. Lis- boa: Oficina de Simão Tadeu Fer- reira, 1794; A escola dos ciosos. Lisboa: Oficina de Simão Tadeu Ferreira, 1795; Viola de Lereno: coleção das suas cantigas, ofe- recida aos seus amigos. Lisboa: Oficina Nunesiana, 1798. v. I; De- scrição da grandiosa quinta dos senhores de Belas, e notícias do seu melhoramento. Lisboa: Tipo- grafia Régia Silviana, 1799; Viola de Lereno: dentre outras FUESPI/NEAD Licenciatura Plena em Letras Espanhol 31 EXCERTOS LUNDUM DE CANTIGAS VAGAS Domingos Caldas Barbosa Xarapim, eu bem estava Alegre nest’aleluia Mas para fazer-me triste Veio amor dar-me na cuia. Não sabe meu Xarapim O que amor me faz passar, Anda por dentro de mim De noite, e dia a ralar. Meu Xarapim já não posso Aturar tanta arenga, O meu gênio deu à casca Metido nesta moenga. Amor comigo é tirano Mostra-me um modo bem cru Tem-me mexido as entranhas Qu’estou todo feito angu. Se visse o meu coração Por força havia ter dó. Porque Amor o tem posto Mais mole que quingombó. Literatura e Cultura Afro-Brasileira e Indígena 32 Tem nhanhá certo nhonhó Não temo que me desbanque, Porque eu sou calda de açúcar E ele apenas mel no tanque. Nhanhá cheia de chulices Que tantos quindins afeta, Queima tanto a quem a adora Como queima a malagueta. Xarapim tome o exemplo Dos casos que vê em mim, Que se amar há-de lembrar-se Do que diz seu Xarapim 1.3.2.Luiz Gonzaga Pinto da Gama Luiz Gonzaga Pinto da Gama (1830 – 1882) é natural de Salvador, Bahia. Filho da africana livre e muçulmana Luísa Mahin, uma líder da Rebelião dos Malês, revolta deflagrada por africanos livres e escravos muçulmanos na cidade de Salvador, em 1835. Dois anos mais tarde, a mãe de Luiz Gama foge para o Rio de Janeiro, empurrada pelas perseguições policiais por ter se envolvido como líder do maior levante urbano já ocorrido no Brasil, organizado por cativos e africanos livres (REIS, 1987, p.6). Ele não veria mais Luísa Mahin, que mais tarde fora deportada para a África. O pai de Luiz Gama era branco, um fidalgo português arruinado pelo jogo e a bebida. Aos dez anos de idade, o pequeno Luiz foi vendido pelo pai, em 1840, para traficantes do Rio de Janeiro. Ali seria comprado para ser “mané gostoso” (menino escravo para alimentar o sadismo dos senhorzinhos), se Fonte:educacao.uol.com.br/ biografias/luis-gama.jhtm Luiz Gama FUESPI/NEAD Licenciatura Plena em Letras Espanhol 33 não fosse a sua procedência baiana e dos negros malês. Assim, o menino foi recambiado para São Paulo, chegando ali como escravo no mesmo ano. Em 1848, Luiz Gama estava alforriado. Depois de cabo graduado da Guarda Municipal paulista, exerceu a profissão de copista e amanuense, tornou-se advogado prático e jornalista famoso. Não só trabalhou como advogado dos escravos, mas também foi uma espécie de protetor de escravos rebeldes que, na fuga, buscavam sua proteção, para depois serem alforriados no Tribunal do Júri. Como rábula, consta que conseguiu a libertação de quinhentos cativos. Na carta de princípios A Vendôme da Abolição, o advogado dos escravos pronunciou em júri: “Todo escravo que matar o senhor, seja em que circunstância, mata em legítima defesa” (cit. FERREIRA, 2005, p.117-8). A obra poética de Luiz Gama é uma das realizações mais bem sucedidas da poesia afro-brasileira e da satírica nacional. O livro de poemas Primeiras Trovas Burlescas de Getulino foi publicado em 1859, da segunda edição, aumentada(1861), merece maior destaque o poema antológico e satírico “Quem sou eu?”, popularmente conhecido como “A bodarrada” ou “Bodarrada”. O “Precursor do abolicionismo no Brasil” (MENNUCCI, 1938) foi o primeiro brasileiro a assumir a cor negra, com convicção, na sua escrita. Esse discurso fundador da literatura negra no Brasil ridiculariza o mulato enriquecido, que nega a própria origem afrodescendente, o branco preconceituoso, o escravista,o status quo. No dizer de Lígia Fonseca Ferreira: “A bodarrada [138 versos] cristalizou a imagem de um Luiz Gama em cruzada contra o branco” (FERREIRA, 2000,p. XIV). Na poesia de Luiz Gama, a paródia e a duplicidade semântica do discurso nomeiam uma nova voz, a voz do negro, a voz da diferença étnico-racial, que passa a coexistir no mesmo plano de igualdade da fala dominante, dando lugar ao mundo polifônico, de sentido bilateral e “carnavalizado” (BAKHTIN, 1993) por um discurso que debocha do branco e também de si mesmo (FERREIRA, 2005). Literatura e Cultura Afro-Brasileira e Indígena 34 QUEM SOU EU? Se negro sou, ou sou bode, Pouco importa. O que isso pode? Bodes há de toda casta, Pois a espécie é muito vasta... Há cinzentos, há rajados, Baios, pampas e malhados, Bodes negros, bodes brancos, Uns plebeus, e outros nobres, Bodes ricos, bodes pobres, Bodes sábios, importantes E também alguns tratantes... Aqui, n’esta boa terra, Marram todos, tudo berra; Nobres Condes e Duquesas Ricas Damas e Marquesas, Deputados, senadores, Gentis-homens, vereadores; Belas Damas emproadas De nobreza empantufadas; Repimpados principotes, Orgulhosos fidalgotes, Frades, Bispos, Cardeais, Fanfarrões imperiais, Gentes nobres, nobres gentes Em todos há meus parentes Entre a brava militança Fulge e brilha alta bodança; Guardas, Cabos, Coronéis FUESPI/NEAD Licenciatura Plena em Letras Espanhol 35 Destemidos Marechais, Rutilantes Generais, Capitães de mar e guerra, - Tudo marra, tudo berra (GAMA, 2001, p. 116-7) No poema “Bodarrada”, o jogo parodístico nomeia uma nova ordem que, por meio do riso, desmascara a farsa dos que escondem sua etnia, o passado histórico de seus ancestrais e reforçam a ideologia do embranquecimento. A sátira gamiana tem um sentido destronador, que desloca a hierarquia do poder constituído. Tal relação carnavalesca instaura novos paradigmas que se orientam a partir da visão do negro. A sátira de Luiz Gama é delatora e brinca até mesmo com os signos sagrados e litúrgicos da Igreja Católica: “Entre o coro dos Anjinhos / Também há muitos bodinhos”. O tom desmistificador põe em cena o sagrado e o profano, mas de maneira risonha e sem nada de grave, pontuando a duplicidade ambivalente do discurso. Assim, a profanação do sagrado se dá de forma carnavalesca e alegre, que “regenera e renova” (BAKHTIN, 1993, p.409), como se o poeta participasse de uma brincadeira, de um jogo lúdico (FERREIRA, 2005). Na suprema eternidade, Onde habita a Divindade, Bodes há santificados, Fonte:pt.wikisource.org/wiki/Primei- ras_Trovas_Burlescas_de_Getulino Literatura e Cultura Afro-Brasileira e Indígena 36 Que por nós são adotados. Entre o coro dos anjinhos Também há muitos bodinhos. (...) Haja paz, haja alegria, Folgue e brinque a bodaria; Cesse pois a matinada, Porque tudo é bodarrada! O significado da palavra “bode” é revertido, eleva-se ao lugar divino. Tal palavra perde o sentido demoníaco ou pernicioso que, geralmente, lhe é atribuído, esvaziando-se da sua carga negativa ao ocupar o espaço da “Divindade”. A cadência do ritmo, a riqueza sonora, musical e imagética, a maneira como são articuladas as palavras, o teor picante, irônico e demolidor da sua linguagem poética fazem com que “A bodarrada” mantenha um significativo diálogo com o literário de hoje, transmitindo seu legado à sátira parodística da nova geração de autores afro-brasileiros. A paródia e simulacros grotescos como “bode”, “asno”, “jumento”, “crocodilo”, etc. evidenciam a zoomorfização dos representantes do velho poder do Brasil escravagista. A sátira demolidora de Gama articula um riso de zombaria que rechaça as etiquetas da sociedade do Segundo Reinado e o status quo. Tal riso cria outro mundo, “provisório” e diferente do real, o mundo às avessas, carnavalesco. (FERREIA, 2005). Para Mikhail Bakhtin “Ao contrário da festa oficial, o carnaval era o triunfo de uma espécie de liberação temporária da verdade dominante e do regime vigente, de abolição provisória de todas as relações hierárquicas, privilégios, regras e tabus” (BAKHTIN, 1993, p.186). Outro ponto importante da obra de Luiz Gama é a presença da África, revisitada e recuperada no africanismo das palavras, na simbologia do “tambor” – metáfora universal da resistência negra e noutros estratos culturais. No âmbito da história, por exemplo, faz alusão ao nome da FUESPI/NEAD Licenciatura Plena em Letras Espanhol 37 lendária rainha Ginga, da dinastia dos Ngolas, mulher inteligente, astuciosa nas estratégias de guerra e hábil nas negociações diplomáticas. O poeta transmite uma significação positiva à memória da rainha angolana. Foi pela reconhecida bravura e resistência armada à colonização portuguesa (MARGARIDO,1980, p.200), que o nome da heroína africana é evocada pelo poeta Luís Gama: [...] Ao rufo do tambor, e dos zabumbas, Ao som de mil aplausos retumbantes, Entre os netos da Ginga, os meus parentes, Pulando de prazer e de contentes – Nas danças entrarei d’altas caiumbas. Se em Portugal a expressão “neto de Ginga” adquiriu sentido pejorativo para menosprezar, estigmatizar ou diminuir através do preconceito racial os afro-descendentes; no Brasil, ocorreu o contrário, como atestam os versos acima. Essa oposição de sentidos evidencia o posicionamento ideológico de cada grupo: o branco europeu que via nessa descendência da rainha Ginga um sentido negativo, e o africano/afrodescendente que a valorizava a ponto de sentir-se orgulhoso do seu passado ancestral. A visão preconceituosa do branco europeu ficou patente num episódio ocorrido por volta de 1775, quando Caldas Barbosa estava em Portugal, pois com seu alto prestígio junto aos escritores da Metrópole, ele se tornou o primeiro presidente da Nova Arcádia Lusitana. Fato esse que gerou uma série de ataques e insultos por parte do poeta Bocage, alguns de conotações racistas (MARGARIDO, 1980, p. 202), que hostilizam e desqualificam o poeta negro e seus antepassados, em versos como: “o neto da rainha Ginga” ou “nojenta prole da rainha Ginga” (apud MARGARIDO, ibid, p.200). A rainha Ginga tornou-se símbolo da resistência africana contra os portugueses em Literatura e Cultura Afro-Brasileira e Indígena 38 Angola. Alfredo Margarido observa que essa mulher guerreira não hesitou em aliar-se aos holandeses contra os portugueses (FERREIRA, 2005). A rainha Ginga defendeu as fronteiras do seu reino com valentia e coragem, opondo-se permanentemente à escravidão dos seus vassalos. Surpreendeu os portugueses com suas manobras de guerra e dissimulações. Embora tendo recebido o batismo cristão por iniciativa própria, nunca inspirou confiança ou fidelidade ao colonizador europeu. Quando se viu encurralada pelo exército lusitano, negociou a aquisição de armas de fogo, para seus guerreiros, com os holandeses e, aliado aos batavos, combateram e derrotaram os portugueses. Referindo-se ao poder de Ginga, Alberto da Costa e Silva assinala: “Ao seu reino chamava Dongo e Matamba. E nele se tornara uma adversária ainda mais temível para os portugueses” (DA COSTA E SILVA 2002, p. 443). A sátira de Luiz Gama não só tem transmitido seu legado à paródia e subvertedora da nova geração de poetas afro-brasileiros, como também é possível se apontar a intertextualidade, o legado influenciador do poema antológico “Quem sou eu?” ou “A bodarrada” sobre o famoso poema modernista “Os sapos” de Manuel Bandeira. Assim, no poema de Gama, temos as palavras “enfunando”, “berra”, “terra”,“guerra”, “bodaria” que também são repetidos e transmitem a mesma ideia ou reproduzem sons onomatopaicos similares no poema de Bandeira: “Enfunando”, “aterra”, “Berra”, “guerra”, “saparia”. Esse diálogo intertextual também se dá no plano do cômico carnavalizado e através da zoomorfização dos representantes do poder constituído. O próprio Manuel Bandeira considerava o poema do poeta negro como uma das mais belas realizações da sátira nacional. Enfim, os versos satíricos de Luiz Gama dialogam ainda com a sátira latina de Horácio, reatualizando e negralizando esse legado poético nos contextos histórico e sociocultural do Brasil da segunda metade do século XIX. Os temas glosados pelo autor não se limitam à paródia, em poema lírico, como “Meus amores”, o menestrel dirige galanteios à sua amada FUESPI/NEAD Licenciatura Plena em Letras Espanhol 39 num canto de louvação à beleza da mulher negra, construindo um discurso da autoestima através do respeito à diferença e da valoração dos padrões da beleza negra, como uma premonição do que seria decantado setenta anos depois pelos poetas do Renascimento Negro nos Estados Unidos dos anos 1920, como Langston Hughes, e ativistas do movimento negro norte-americano de décadas posteriores, sob o slogan do Black is beautiful (FERREIRA, 2005). 1.3.3 GONÇALVES DIAS Antônio Gonçalves Dias (1823 – 1864) nasce em Caxias, Maranhão, e falece vítima de naufrágio ao regressar da Europa, no navio Ville de Boulogne, nas costas do Maranhão. Filho de um português branco e de uma mestiça de negra com índio. Reconhecido pela crítica como o maior poeta do indianismo brasileiro, é também um dos nomes mais importantes da poesia nacional de todos os tempos. Embora tenha preferido escrever poesias de temas indianistas e amorosos, na sua obra estão incluídos textos que problematizam a escravidão do africano, como o poema “A escrava”, a prosa poética Meditação e a tradução do romance Bug-jargal, Victor Hugo. Logo após o nascimento do menino Antônio, o pai, Manuel Gonçalves Dias, embarca para Portugal, deixando a criança com a mãe, Vicência Mendes Ferreira. O pai retorna em 1825 e reinicia seus negócios em Caxias. De 1825 a 1829, a família volta a viver junta. Aqueles quatro anos teriam sido os mais felizes da vida do pequeno “Tonico”, apelido carinhoso do poeta. Ainda em 1829, Manuel deixa a amásia Vicência e se casa com uma mulher branca. Este homem ríspido tira o filho da mãe negra, não mais permitindo que o menino voltasse a vê-la. A partir de então, o futuro poeta indianista passa a viver no meio de brancos, com o pai e a madrasta. Em 1837, morre o pai, mas, mesmo assim, a madrasta realiza o desejo do marido e manda o jovem Gonçalves Dias para Portugal, onde Literatura e Cultura Afro-Brasileira e Indígena 40 cursará Direito na Universidade de Coimbra (FERREIRA, 2005). Ali passa por constrangimentos financeiros, mas, com a ajuda dos amigos acaba por superá-los. Em Portugal, estuda francês, latim, italiano, alemão e filosofia. Em 1845, estava de regresso ao Brasil (BANDEIRA, 1998, p. 13-56). Cabe especular o que teria levado o escritor afrodescendente a preterir o negro em benefício do índio? Porque teria escrito tão pouco acerca dos antepassados africanos, interrompendo a sua trajetória negra no meio do caminho? Estas indagações suscitam alguns acontecimentos da vida do poeta que dizem respeito à sua origem racial, a fatores sociais e históricos e às influências do Romantismo francês. Ponto de confluência de autores do Romantismo brasileiro, foi na França de 1836, que se fundou a revista Niterói. Este movimento colocaria em primeiro plano os temas nacionalistas e, particularmente, o indianismo. Neste sentido, Heloísa Toller Gomes observa que: O romantismo oitocentista embarcou deleitado no mito do bom selvagem e encontrou no índio o herói de um passado lendário que buscávamos. Em fase de afirmação patriótica e nacionalista, ávidos de um passado que nos afirmasse como povo e como nação, [...] os românticos brasileiros redescobriram o índio em seu próprio país e o idealizaram da forma que conhecemos (1988, p. 28). A visão de Gonçalves Dias não seria tão diferente da abordagem dos seus colegas românticos em relação à representação do indígena. Entretanto, em poemas como “O canto do Piaga”, “O Morro do Alecrim”, o índio transcende a imagem do autóctone idealizado pelo europeu e a abordagem se realiza na perspectiva indigenista, quando a empresa colonial representa a ruína do indígena; e ainda “onde a mescla de lirismo amoroso e alteridade étnica” do poema antológico “Marabá” (LAJOLO, p. 99) é priorizada em lugar do espírito nacionalista dos românticos. Em 1843, ainda em Portugal, a saudade da pátria e da mãe negra provavelmente inspira Dias a escrever a “Canção do exílio” e “A FUESPI/NEAD Licenciatura Plena em Letras Espanhol 41 escrava”. Apesar de admitirmos o legado do Romantismo europeu sobre a obra do autor negro, não poderíamos deixar de associar a personagem de “A escrava” à imagem da mãe do poeta, de quem ele sempre sentiu a falta. Nas vezes em que esteve na sua terra natal, nunca deixou de visitá-la e lhe instituiu uma mesada fixa a partir de 1848. Em menção ao segundo texto, Raymond Sayer assinala que é também uma canção do exílio. Trata-se de um sonho de escrava com a sua doce terra do Congo, com seu sol e areias escaldantes, sua lua e seu amado esperando-a sob bananeiras à margem de uma corrente líquida, sonho que a áspera voz do seu senhor faz cessar. Esse poema, que aparece no Arquivo em 1846, combina os temas da melancolia, do escravo e da África exótica, com o do senhor cruel (1958, p. 165). No poema “A escrava”, incluído em sua obra original Primeiros cantos (1847), Gonçalves Dias fala das memórias de uma africana exilada da terra natal. O texto remete à história dessa africana escravizada, ao seu passado livre e à sua história de amor. O eu-lírico refere-se à África, imprimindo um tom melancólico à narrativa da cativa, que conta a sua história, reconstruindo as paisagens natural e humana da terra distante e querida - o “Congo”. A ESCRAVA Oh! Doce país de Congo, Doces terras d’além mar! Oh! Dias de sol formoso! Oh! Noites d’almo luar! (...) Onde a leda caravana Rasga o caminho passando, Onde bem longe se escuta Literatura e Cultura Afro-Brasileira e Indígena 42 As vozes que vão cantando! Onde longe inda avista O turbante muçulmano, O Iatagá recurvado, Preso à cinta do Africano! Onde o sol na areia ardente Se espelha, como no mar; Oh! doces terras do Congo, Doces terras d’além mar! Quando a noite sobre a Desenrolava o seu véu, Quando sequer uma estrela Não se pintava no céu; Quando só se ouvia o sopro Da mansa brisa fagueira, Eu o aguardava – sentada Debaixo da bananeira. [...] E às vezes me dizia: - “Minha Alsgá, não tenhas medo; Vem comigo, vem sentar-te Sobre o cimo do rochedo”. E eu respondia animosa: - “Irei contigo, onde fores!”– E tremendo e palpitando Me cingia aos meus amores. FUESPI/NEAD Licenciatura Plena em Letras Espanhol 43 Ele depois me tornava Sobre o rochedo – sorrindo: - “As águas desta corrente Não vês como vão fugindo? [...] Outro beijo acaso temes, Expressão de amor ardente? Quem o ouviu? – o som perdeu-me No fragor desta corrente. (DIAS, op.cit. 171-172) [...] Os indicadores de negritude e africanismo são evidenciados na restauração das origens dos antepassados negros. Esta busca se dá no plano simbólico: na recorrência à cultura, à memória histórica e aos vocábulos de origem africana. A África que temos descrita seriaa que sofreu o processo de islamização. Aqui, a personagem central do poema narrativo é negra e tem nome afro-muçulmano: “Alsgá”. A paisagem exótica serve de cenário para a africana recordar os seus sonhos de liberdade. Tudo conspira para a felicidade dos amantes. A natureza se mostra em todo o seu esplendor, acolhendo os jovens amantes no seu seio (FERREIRA, 2005).. A narrativa poética recupera o negro para sua humanidade, devolve ao cativo o lugar de pessoa dotada de sentimentos e capaz de amar, antes negado pelo discurso escravagista. O poeta reconhece sua negritude, sua origem racial ao respeitar a diferença étnico-racial da africana, desconstruindo o estigma da inferioridade racial ou os estereótipos negativos contra o negro, representado na literatura e narrativas coloniais e do século XIX. O recorre em quase todo o texto à estética dos cantos populares, como os versos de metros curtos, musicais e sonoros, fáceis Literatura e Cultura Afro-Brasileira e Indígena 44 de serem cantados, entoados ou recitados, com paralelismos, anáforas ou repetições de palavras no início e no interior dos versos (FERREIRA, 2005). A fala do amante africano é incluída no discurso poético. O diálogo desenvolve o tema universal do amor entre dois jovens. Até então, a escrita literária brasileira ainda não havia se ocupado do tema do amor entre africanos ou cativos negros. Neste sentido, a lírica afrodescendente de Gonçalves Dias também atinge uma posição de ruptura à literatura oficial ou ao cânon literário brasileiro, quando Dias restitui ao negro a sua espiritualidade e os seus sentimentos nobres. Nas três últimas estrofes do poema, o poder escravista entra em cena e intervém nos acontecimentos. A africana vivia feliz na sua terra natal, mas essa liberdade lhe é arrancada pelo sequestro, depois a travessia do Atlântico nos porões do navio negreiro, o exílio seguido de escravidão em terra estranha. Aqui também se inaugura a figura do “senhor cruel”, o que se tornaria comum no Romantismo brasileiro a partir do final da década de 1850, consolidando o texto de denúncia contra o sofrimento do cativo africano. Isso acabaria redundando em paternalismo e comiseração, em estereótipos que marcariam intensamente a poética do condoreirismo brasileiro e romancistas românticos. Do ríspido Senhor a voz irada Rápida soa, Sem o pranto enxugar a triste escrava Pávida voa Mas era em mora por cismar na terra Onde nascera, Onde vivera tão ditosa, e onde Morrer devera! Sofreu tormentos, porque tinha um peito, FUESPI/NEAD Licenciatura Plena em Letras Espanhol 45 Qu’inda sentia; Mísera escrava! No sofrer cruento, “Congo!” dizia. (DIAS, 1980, p. 173) Mas, há de convirmos que ainda faltavam, aos versos de “A escrava”, a rebeldia dos tambores negros, a batida forte dos “tam-tam”, que viriam com a prosa poética Meditação, que analisaremos a seguir e na obra de autores como Luís Gama, Maria Firmina do Reis, catorze anos mais tarde. 1.3.4 MARIA FIRMINA DOS REIS A escritora Maria Firmina dos Reis, romancista maranhense do século nascida no século XIX ficou esquecida durante muito tempo no cânone da literatura brasileira. Sendo considerada por alguns críticos, a saber: Luiza Lobo (1993), Nascimento Moraes Filho (1975), Charles Martin (1988), Eduardo de Assis (2005) Algemira de Macedo Mendes (2006) e outros, como a primeira escritora afro-descendente da literatura brasileira. Busto de Maria Firmina dos Reis A escritora nasceu em 11 de outubro de 1825, no bairro de São Fonte: Jornalpequeno.com.br/. Literatura e Cultura Afro-Brasileira e Indígena 46 Pantaleão, na Ilha de São Luís, capital da então província do Maranhão, registrada por João Esteves e Leonor Felipa dos Reis. Era prima do escritor maranhense Francisco Sotero dos Reis por parte de mãe. Viveu com a avó, a mãe e as suas primas Balduína e Amália Augusta dos Reis em Guimarães, para onde se mudaram quando ela tinha cinco anos. Autodidata, sua instrução fez-se através de muitas leituras – lia e escrevia francês fluentemente. Exerceu a profissão de professora primária, tendo sido aprovada em primeiro lugar para a vaga do concurso público estadual em 1847 para mestra régia. Aposentou-se em 1881. Um ano antes da aposentadoria, fundou a primeira escola mista no Maranhão, tendo esta funcionado até 1890. Faleceu em 11 de novembro de 1917 aos 92 anos, cega e pobre. SAIBA MAIS Maria Firmina dos Reis iniciou sua carreira literária com a publicação do romance Úrsula, em 1859 (Typographia do Progresso – MA), tendo posteriormente as seguintes edições: 2ª edição, 1975, fac-similar (Grá- fica Olímpia – RJ); 3ª edição, 1988 (Editora Presença/INL-Brasília); 4ª edição, 2005 (Editora Mulheres – SC). Colaborou com o jornal A Impren- sa, publicando, em 1860, poesias, assinando com as iniciais M.F.R. Em 1861, começa a publicar Gupeva no jornal Jardim das Maranhenses. Em 1863 e 1865, republica Gupeva, respectivamente, nos jornais Porto Livre e Eco da Juventude (Ver Anexo C). Em 1871, Cantos à beira mar pela Tipografia do Paiz; em 1976, em fac-símile, a 2ª edição. Participou da antologia poética Parnaso Maranhense (1861), e colaborou ainda com os seguintes jornais: Publicador Maranhense (1861), A Verdadeira Marmota, Semanário Maranhense (1867), O Domingo (1872), O País (1885), Revista Maranhense (1887), Diário do Maranhão (1889), Paco- tilha (1900), Federalista (1903). Escreveu no Almanaque de Lembran- FUESPI/NEAD Licenciatura Plena em Letras Espanhol 47 Úrsula, obra escrita por Maria Firmina dos Reis foi editado pela primeira vez no ano de 1859, em São Luís do Maranhão, assinado sob o pseudônimo “uma maranhense”, recurso bastante usado no século XIX, principalmente pelas mulheres que se aventuraram a escrever. O universo narrativo de Úrsula é marcado por desencontros, ilusões e decepções. O desfecho fatídico e infeliz é um dos diferenciais. Para a época, era mister que as narrativas possuíssem um final feliz para agradar ao público feminino que ocupava o tempo e a cabeça lendo histórias de amor. A loucura e morte de Úrsula acabam com qualquer perspectiva do esperado final feliz. Segue fragmentos de Úrsula: [...] Senhor Deus! quando calará no peito do homem a tua sublime máxima – ama a teu próximo como a ti mesmo – e deixará de oprimir com tão repreensível injustiça ao seu semelhante!... a aquele que também era livre no seu país... aquele que é seu irmão?! E o mísero sofria; porque era escravo, e a escravidão não lhe embrutecera a alma; porque os sentimentos generosos, que Deus lhe implantou no coração, permaneciam intactos, e puros como sua alma. Era infeliz; mas era virtuoso; e por isso seu coração enterneceu-se em presença da dolorosa cena, que se lhe ofereceu à vista. – Homem generoso! único que soubeste compreender a amargura do escravo!... Tu que não esmagaste com desprezo a quem traz na fronte estampado o ferrete da infâmia! Porque ao africano seu semelhante disse: – és meu! – ele curvou a fronte, e humilde, e rastejando qual erva, que se calcou aos pés, o vai seguindo? Por que o que é senhor, o que é livre, tem segura em suas mãos ambas a cadeia, que lhe oprime os pulsos.Cadeia infame e rigorosa, a que chamam: – escravidão?!... E, entretanto este também era livre, livre como um pássaro, como o ar; porque ças Brasileiras (1863,1868) um artigo de título “Minhas impressões de viagem” (1872), um diário intitulado Álbum (1865), várias charadas e enigmas. Compôs músicas clássicase populares (Autos de bumba meu boi), música dos Versos da garrafa, atribuído a Gonçalves Dias. Literatura e Cultura Afro-Brasileira e Indígena 48 em seu país não se é escravo. Ele escuta a nênia plangente de seu pai, escuta a canção sentida que cai dos lábios de sua mãe, e sente como eles, que é livre; porque a razão lho diz, e a alma o compreende. Oh! a mente! Isso sim ninguém pode escravizar! Nas asas do pensamento o homem remonta-se aos sertões da África, vê os areais sem fim da pátria e procura abrigar-se debaixo daquelas árvores sombrias do oásis, quando o sol requeima e o vento sopra quente e abrasador: vê a tamareira benéfica junto à fonte, que lhe amacia a garganta ressequida: vê a cabana onde nascera e aonde vivera! [... ] (grifos nossos) Túlio, meu filho, ninguém a gozou mais ampla, não houve mulher alguma mais ditosa que eu. Tranqüila no seio da felicidade, via despontar o sol rutilante e ardente de meu país e louca de prazer a essa hora matinal, em que tudo aí respira amor, eu corria às descarnadas e arenosas praias e aí com minhas jovens companheiras, brincando alegres, com o sorriso nos lábios, a paz no coração, divagávamos em busca das mil conchinhas, que bordam as brancas areias daquelas vastas praias. Ah! Meu filho! mais tarde deram-me em matrimônio a um homem, que amei como a luz dos meus olhos, e como penhor dessa união veio uma filha querida, em quem me revia, em quem tinha depositado todo o amor de minha alma: – uma filha que era minha vida, minhas ambições, a minha suprema ventura, veio selar tão santa união [...] [...] Meteram-me a mim e a mais trezentos companheiros de infortúnio e de cativeiro no estreito e infecto porão de um navio. Trinta dias de cruéis tormentos, e de falta absoluta de tudo quanto é mais necessário à vida; passamos nessa sepultura até que abordamos as praias brasileiras. Para caber a mercadoria humana no porão fomos amarrados em pé e para que não houvesse receio de revolta, acorrentados como animais ferozes das nossas matas, que se levam para recreio dos potentados da Europa. Dava- nos a água imunda, podre e dada com mesquinhez, a comida má e ainda mais porca; vimos morrer ao nosso lado muitos companheiros à falta de ar, de alimento e de água. ATIVIDADES 1 Escreva com suas palavras um texto sobre a importância da Cultura africana em nossa sociedade. 2 Cite o conceito de Literatura Afro-brasileira ou Afrodescendente. FUESPI/NEAD Licenciatura Plena em Letras Espanhol 49 3 Verifique nos fragmentos de Úrsula, de Maria Firmina dos Reis, passagens que falem sobre a escravidão. 4 Pesquise sobre um dos escritores precursores da literatura afro-brasileira e produza um texto de uma lauda apresentando uma breve biografia, principais obras e trechos de textos que você achou interessante. UNIDADE 2 LITERATURA AFROBRASILEIRA PÓS-ABOLICIONISTA OBJETIVOS • Estudar as produções mais significativas da literatura afro-brasileira pós- abolicionistas. • Analisar criticamente a produção literária dos escritores apresentados nesta unidade. Literatura e Cultura Afro-Brasileira e Indígena 52 2 LITERATURA AFROBRASILEIRA PÓS-ABOLICIONISTA 2.1 CRUZ E SOUSA João da Cruz e Sousa(1861-1898), o poeta mais importante do simbolismo brasileiro, nasce no dia 14 de novembro, na cidade de Nossa Senhora do Desterro, atualmente Florianópolis, capital de Santa Catarina, e falece a 19 de março, em Sítio, Minas Gerais. Filho de Guilherme, mestre pedreiro, escravo e de Carolina Eva da Conceição, lavadeira, escrava liberta quando contraíra casamento, ambos pretos retintos. O menino João da Cruz foi educado pelos senhores do pai, o então coronel e futuro marechal Guilherme Xavier de Sousa e a esposa Clarinda Fagundes de Sousa. Admirado por ser uma criança precoce, aos oito anos de idade, começa a recitar seus poemas nos salões e concerto. Aos dez anos matriculou- se no Ateneu Provincial Catarinense, que cursou durante cinco e ali estou francês, latim, inglês, grego, ciências naturais e matemática, notabilizando- se pela sua inteligência e dedicação que o destacava perante os seus condiscípulos (MURICI, 1995, p. 51-2). Distinguiu-se como intelectual polêmico, combateu os preceitos do Realismo e do Parnasianismo. Foi jornalista e defensor incondicional da abolição da escravatura, esta preconizada em seus artigos, palestras e na poesia antiescravista, esta representada pelos textos transcritos ao final deste breve estudo. O crítico inglês David Brookshaw assinala que o desespero do “emparedamento” é como: “um lamento pungente de sua situação, preso por todos os lados pelo preconceito” (1983, p. 16). Na prosa poética o “Emparedado”, Cruz e Sousa utiliza a metáfora do emparedamento para exorcizar a dor do Ser negro e a condição de “homem invisível”, vitimado por um sistema perverso que,durante e depois da escravatura do africano, tem atribuído vários estereótipos e preconceitos étnico-raciais responsáveis pelo isolamento ou a exclusão social do africano e seus descendentes em diáspora, como foram experiências e traumas vivenciados por Cruz e FUESPI/NEAD Licenciatura Plena em Letras Espanhol 53 Sousa. Este brasileiro, letrado e de rara erudição, em consequência da cor da sua pele negra, tivera muito pouco ou quase nenhuma oportunidade para ascender na escala social, como acontecera, certamente, a muitos homens e mulheres negras da sua época, excluídos ou emparedados socialmente. Já na sua juventude, o poeta era “muito odiado então em sua terra, pelo fato de ser negro”, observa o poeta Moreira Vasconcelos (citado por MURICI, 1995, p.24). Cruz e Sousa denuncia as hostilidades da sociedade escravista e a parede de “Egoísmos e Preconceitos” que ocultam o negro na periferia da sociedade brasileira. Nesse “entre-lugar”, o eu lírico do poeta projeta-se na dor das clausuras psíquica e social, forjadas pelo preconceito e estigmas criados pelo branco europeu, este imbuído na crença da falsa supremacia racial branca, e as elites econômicas, com vista à perpetuação dos seus privilégios, confinando os descendentes de africanos escravizados no ostracismo histórico e cultural, à margem dos bens sociais e econômicos. Daí o “lamento”, a melancolia, uma espécie de Banzo, o sentir-se estrangeiro no seu próprio país, uma vez deslocado para o limbo social, a prisão horrenda de muralhas intransponíveis e, por isso, lugar da ausência, da dor e da prisão involuntária do negro num território desumanizado e hostil: “parede de Imbecilidade e Ignorância”. Essas imagens são metaforizadas nas linhas e entrelinhas da poesia ‘apocalíptica’ de tons intimista e confessional de “Emparedado”. Referindo-se à prosa poética “Emparedado”, Cuti esclarece que As paredes que sobem, para emparedar o “eu” poético, quase personagem narradora, sedimentam-se pela reprodução diária de ideias e concepções racistas e pela prática (a discriminação física, histórica e cultural). Os dilaceramentos a que o “eu” poético se submete no transcurso do texto, eivados de pessimismo, alertam para a dimensão profunda do linchamento psicológico diário que sofre o indivíduo negro na sua aventura de ascender culturalmente por conviver com o branco. Ainda que seja um testemunho poético do século XIX, por meio dele pode-se pensar no que mudou na realidade do século XX e do século XXI (CUTI, 2010, p.70). Literatura e Cultura Afro-Brasileira e Indígena 54 Cruz e Sousa sentiu de perto as agruras do racismo da sociedade brasileira, durante a escravatura e depois da Abolição, esta não emancipou o negro do estigma de trabalhador ex-escravizado, tampouco da exclusão étnico-social ou da pobreza. Filho de pai cativo e mãe alforriada, o Cisne Negro, como alguns preferiam chamá-lo, foi abolicionista e
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