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1. o QUE O PROFESSOR DA EDUCAÇÃO BÁSICA DEVE SABER DE LINGUÍSTICA^ Lúcia Maria Pinheiro Lobato 1 Palestra proferida em 13 de dezembro de 2003, em que a autora integrou a mesa-redonda intitulada 4/./ngu/sf/coeo Professor de fm/noeds/co, realizada na 2" Reunião Regional da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em Fortaleza - CE. . • • . 1 . M . ^5 V - 1 , 1 . l > 1 / ' I i ' I 1' ' 't ( " ' I 1 , I " < - 'l , * 1 í ' ' • Introdução , , o objetivo deste trabalho é refletir sobre a interface da linguística com a Educação Básica. . , É ponto pacífico que um dos legados da linguística de grande utilida- de para o contexto escolar é a visão não-preconceituosa sobre línguas e variedades de línguas. Esse foi um legado da linguística estrutural que se consolidou com os desenvolvimentos subsequentes da linguística, sobre- tudo a sociolinguística variacionista. Essa visão não-preconceituosa derivou naturalmente da perspectiva da língua como estrutura, daí que o caráter não-normativo da linguística se opôs frontalmente à atitude de preconceito linguístico que existia até então. Exemplos de preconceito linguístico são o conceito de língua primitiva (i.e., a ideia de que a povos de cultura dita 'primitiva' correspondem línguas igualmente 'primitivas'), a valoração de certas variedades de língua ou registros de língua em detrimento de outras variedades e registros, e assim por diante. Acho que ninguém hoje contestaria que o estudante que vai ser professor de ensino básico deve receber uma formação que o torne isento de preconceitos ou, pelo menos, o sensibilize contra preconceitos linguísticos e o norteie para saber como reagir diante de situações de variação dialetal dentro de sua sala de aula. Mas não é sobre esse tipo de fato que quero me deter hoje. Quero me concentrar numa outra questão - a questão de ser, ou não, necessário 16 LINGUISTICA E ENSINO DE LiNGUAS que o professor de ensino básico tome conhecimento do conteúdo de certas análises linguísticas mais recentes e de maior consenso, e seja infor- mado sobre questões linguísticas gerais, como, por exempto, diferentes concepções de linguagem. Em palavras mais gerais: O que o professor de ensino básico tem de saber e o que não precisa saber sobre análises linguísticas específicas e sobre questões gerais em debate? Trazer esse tipo de questão para debate se justifica por duas razões. De um lado, porque há uma grande defasagem entre o conhecimento sobre estrutura linguística acumulado nas Universidades, nos centros de pesquisa, e o conhecimento gramatical veiculado nas gramáticas escolares. De outro lado, porque qualquer exigência sobre conteúdo a ser introduzida na formação dos professores tem de ser muito bem medida, a fim de que não se queira transformar em linguista todo professor de língua do ensino básico. Meu objetivo aqui é apresentar o problema, esperando que suscite discussões. Acho que essa questão é real e tem de ser debatida num fórum amplo, a fim de que qualquer mudança seja fruto de um consenso. Isso é necessário porque a mudança no modo como se trata língua e gramática seria total, caso viesse a ser colocada em prática, nos moldes como estou pensando que deveria ser. O que é Gramática? :•...;„ fy:-fiTn=q M^uni ,:n:,„ Inicialmente, por uma questão de clareza, é preciso distinguir dois con- ceitos de gramática. r> 1: r-- Num certo sentido, gramática é algo estático - é um conjunto de descrições a respeito de uma língua. É nesse sentido que a palavra é usada quando dizemos 'a gramática do Celso Cunha', 'a gramática do Rocha^ Lima'. Cada uma dessas gramáticas tem suas propriedades específicas. A de Rocha Lima é tida em geral como a mais normativa das três. A de Celso Cunha já é não-normativa, mas compartilha com a de Rocha Lima o o QUE o PROFESSOR DA EDUCAÇÃO BÁSICA DEVE SABER DE LINGUISTICA | 17 caráter taxionômico, porque arrola fatos e regras de estrutura linguística. Um exemplo disso é o capítulo dessas gramáticas sobre conjunções e tipos de orações. São apresentadas uma lista de conjunções coordenativas e subordinativas e uma lista de orações coordenadas e subordinadas. De qualquer modo, gramática nesse sentido é um compêndio com descrições de uma língua. 'r.'= ..-.•••Í.. c-)iii('< • -/-^.iov •.-:•< o Num outro sentido, gramática tem caráter dinâmico e corresponde a um construto mental, que cada membro da espécie humana desenvolve, desde que exposto a dados da língua em questão, já que se trata aqui de gramática de uma língua. Na minha fala vou restringir esse construto mais ainda — vou tratar mais especificamente de gramática da língua materna. Quando se começa a refletir sobre fatos de língua, fica claro que os seres humanos nascem com uma estrutura mental organizada de tal modo que torna a aquisição de língua algo inevitável, inexorável. Podemos chamar essa estrutura mental inata de diferentes nomes. Muitos usam as expressões gramática universal, faculdade de linguagem ou dispositivo de aquisição de língua.^ É em virtude dessa gramática universal, dessa faculdade de linguagem, desse dispositivo de aquisição de língua, que todo membro da espécie humana é capaz de adquirir uma língua, sem qualquer ensino, bastando para tanto a experiência do contato com a língua nos primeiros anos de vida. Por mais que fiquem em contato com falantes de uma língua natural e sejam treinados para falar, papagaios e chimpanzés nunca chegarão a desenvolver uma gramática de língua natural com sua propriedade mais característica, a criatividade. A criati- vidade vem naturalmente com a aquisição da língua: a criança se torna capaz de produzir e entender enunciados inteiramente novos, que nunca 2 As expressões são empregadas sob a ótica gerativista. Como referência adicional, pode-se citar a obra seminaMspecfs ofthe Theory ofSyntax (CHOMSKY, 1965), e Knowledge ofLanguage:Its nature, origin and use (CHOMKSY, 1986), esta última fundadora do modelo de Princípios e Parâmetros. Para uma sistematização dos fundamentos epistemológicos, indicamos a obra traduzida para o português Wovos Horizontes no Estudo da Linguagem e da Mente (CHOMSKY, trad. 2006). Para uma abordagem didática, indicamos o Novo IVIanual de Sintaxe (MIOTO etalii, 2013). [Nota das editoras] 18 I LINGUÍSTICA E ENSINO DE LlNGUAS tinha produzido ou ouvido antes. Uma dada língua, qualquer que seja ela, é uma manifestação da gramática universal, da faculdade de linguagem. A explicação para o uso criativo que os falantes/ouvintes fazem de sua língua só pode estar em propriedades da estrutura mental inata que chamamos de faculdade de linguagem. Papagaios e chimpanzés nunca chegarão a desenvolver uma gramática de língua natural, e, em conse- quência, a aprender uma língua natural, porque lhes falta a faculdade de linguagem. Em termos mais concretos, falta-lhes a estrutura mental inata relativa à linguagem. Ao linguista teórico cabe a tarefa de analisar línguas de modo comparativo, a fim de poder fornecer uma explicação das propriedades da gramática universal e do fato de haver variação entre as línguas. Nesse momento, não é isso o que me interessa. O que me interessa é o fato de haver, para todos nós que adquirimos uma língua, uma gramática internalizada, que compartilha propriedades da gramática universal, mas que tem também propriedades específicas. Gramática, nessa nova percepção, é algo dinâmico capaz de explicar a criatividade, típica das línguas naturais, e intemo, pois corresponde ao desenvolvimento biológico de uma faculdade mental, a faculdade de linguagem (às vezes também chamada de gramática universal), vista aqui como um órgão do cérebro. Em resumo, existem pelo menos dois conceitos de gramática - segundo um deles, gramática é algo estático, externoao indivíduo e taxionômico; segundo o outro, gramática é algo dinâmico, interno ao indivíduo e com propriedades que explicam o caráter criativo do uso das línguas naturais. '-o --.r t- •f::-ibi,-:;i-t nm Í^ÍUÂAJ No meu modo de ver as coisas, é fundamental que o professor de língua perceba essa diferença e trabalhe em sala de aula com gramática nessa última acepção - como algo dinâmico, interno ao indivíduo e com propriedades explicativas do caráter criativo do uso das línguas naturais. o QUE o PROFESSOR DA EDUCAÇÃO BASICA DEVE SABER DE LINGUÍSTICA | 19 A escola como agente elícíador da aquisição de novos estágios de conhecimento da língua Se adotamos o conceito de gramática como algo dinâmico, interno ao indivíduo e dotado de propriedades que explicam a característica criativa das línguas naturais, vemos que o aluno, de qualquer série, já chega em sala de aula com uma gramática adquirida, e com propriedades tais que lhe permitem o uso criativo da língua. A escola não vai, portanto, ensinar gramática ao aluno, pois o aluno já chega com uma gramática adquirida. O que, exatamente, vai ser ensinado ao aluno? O que pode o aluno ainda adquirir? Enfim, em sentido mais amplo, como pode essa nova percepção do que seja gramática levara renovação do ensino de língua? O processo de aquisição de uma língua é algo que acontece com a criança, e não algo que a criança faz ou algo que fazem com ela. Como eu disse, nesse processo desenvolve-se no cérebro da criança uma entidade biológica que faz parte do seu legado genético - a gramática universal -, de acordo com propriedades específicas dos dados linguísticos a que ela ficou exposta. O processo de aquisição de língua natural corresponde, então, ao desenvolvimento de uma gramática particular, tendo como pano de fundo a gramática universal, mas a partir da exposição a dados de uma dada língua. Assim, uma criança nascida em São Paulo, mas em contato com dados do japonês, vai adquirir a gramática do japonês, e uma criança nascida na mesma cidade, mas em contato com dados do português do Brasil, vai adquirira gramática do português do Brasil. > . n^wsc O primeiro ponto que quero salientar aqui, a esse respeito, é que a criança adquire a gramática de sua língua sem ensino. Ela própria é dotada de um dispositivo de aquisição de língua, que permite o desenvolvimento da gramática da língua, em seu cérebro, a partir da faculdade de lingua- gem e da exposição aos dados da língua. Por que não fazer o mesmo no ensino de língua? Aceitando essa postura, a escola tem de adotar a mesma metodologia do dispositivo de aquisição de língua: a mente do 20 I LINGUISTICA E ENSINO DE LlNGUAS > aluno simplesmente desenvolve os novos processos, a partir da expo- sição a dados que manifestam esses processos. Vou então concluir que a primeira propriedade do ensino de língua materna segundo as novas diretrizes dos Parâmetros Curriculares Nacionais deve ser a adoção do procedimento de descoberta. Isto é, em vez de ser taxionômico, o ensino deve levará descoberta. b • ^ s ^ : Uma segunda característica desse ensino deve ser a adoção da metodologia de eliciação. Na verdade, em princípio o aluno adquiriria toda a informação que se possa imaginar por ele próprio, sem precisar de eliciação. Isto é, o procedimento de descoberta a partir do contato com dados da língua é muito poderoso e tem grande amplitude. Basta pensar em tudo o que Aristóteles descobriu, partindo somente da sua intuição. O problema de se usar o procedimento de descoberta, sem auxílio de metodologia adicional, é que o processo seria muito lento. É preciso, portanto, que seja usada também uma metodologia de eliciação, ou seja, uma metodologia que direcione o aluno a tirar conclusões e desenvolver seu conhecimento sobre a língua.^ Consideremos a questão da estrutura- ção das orações e dos períodos. No caso das orações chamadas causais e explicativas, para ganhar tempo, é preciso que seja preparado material didático bem direcionado, para que o próprio aluno tire suas conclusões a respeito das distinções que a língua faz, em contraste com as distinções que a gramática taxionômica propõe. Finalmente, uma terceira característica do ensino gramatical é que deve usar uma técnica de resultados. Existe nas línguas uma relação entre forma e conteúdo, de tal modo que variações de forma levam a diferenças no conteúdo. A técnica de resultados consistiria em trabalhar com estru- 3 O seguinte trecho dos Parâmetros Curriculares Nacionais evidencia a preocupação com a falsa ideia de que o aprendiz constrói o conhecimento de forma espontaneísta, e ressalta o importante papel de mediador do professor: Para que essa mediação [entre os elementos da tríade aluno, objeto de conhec\mer\to,eensmo] aconteça, o professor deverá planejar, implementar e dirigir as atividades didáticas, com o objetivo de desencadear, apoiar e orientar o esforço de ação e reflexão do aluno (Brasil, 2000, p. 29). [Nota das editoras] o QUE o PROFESSOR DA EDUCAÇÃO BASICA DEVE SABER DE LINGUISTICA 1 21 turas dando ênfase ao fato de que a cada estrutura (quer morfológica, quer sintática, e levando em conta o fator prosódico) corresponde um certo resultado semântico. Com a técnica de resultados, o aluno verifica por si próprio que o ensino gramatical tem uma razão de ser, pois percebe que sentido obtém com tal ou qual estrutura. Ele então se dá conta de que esse tipo de estudo contribui para o seu domínio de estruturas e, em consequência, para o seu domínio do texto - que estruturas escolher, de acordo com o significado que quer obter. , O grande desafio Os Parâmetros Curriculares Nacionais decretaram o fim do ensino gramatical tal qual é praticado atualmente no Brasil. No entanto, isso não significa uma eliminação do ensino gramatical." A visão de gramática no ensino gramatical atual é errónea, e é preciso, sim, a presença da gramática no ensino, mas sob uma nova percepção. Caso se aceite essa posição, tem de haver uma difusão geral dessa mudança de perspectiva sobre o que se entende por gramática e ensino gramatical. Isto é, cada professor de ensino fundamental e médio tem de assimilar o conceito de gramática como entidade biológica. Tem de haver também, em consequência, uma mudança do conteúdo programático de cada nível escolar, e uma preparação do corpo docente de cada nível escolar para essa mudança. 4 Essa posição, em defesa da reformulação do ensino de gramática, está colocada de forma bastante clara no texto dos PCNs: [A gramática], ensinada de forma descontextualizada, tornou-se emblemática de um conteúdo estritamente escolar, do tipo que só serve para ir bem na prova e passar de ano - uma prática pedagógica que vai da metalíngua para a língua por meio de exemplificação, exercícios de reconhecimento e memorização de nomenclatura. Em função disso, tem-se discutido se há ou não necessidade de ensinar gramática. Mas essa é uma falsa questão: a questão verdadeira é para que e como ensiná-la (Brasil, 2000, p. 39, grifos nossos). Note-se, porém, que os PCNs não avançam em relação a uma justificativa teórica para esse questionamento. Diferentemente, em Lobato, existe um fundamento epistemológico e teórico na formulação do conceito de língua e gramática, o qual deve orientar as decisões relativas à metodologia proposta para o ensino de língua. [Nota das editoras] 22 I LINGUISTICA E ENSINO DE LlNGUAS É evidente que acho que essa difusão do conceito de gramática biológica e essa mudança de conteúdo programático são necessárias. Acho, mais ainda, que cabe à Universidade formar o novo professor de língua, um professor capaz de incorporar nas suas aulas os novos conhecimentos da linguística teórica. Esse é o nosso grande desafio: formar professores capazes de renovar o ensino de língua,à luz da teoria gramatical moder- na. Isso significa que temos de redirecionar, também na Universidade, o modo como damos aula de língua materna. Nessa tarefa, a meu ver, na Universidade terá de haver um trabalho conjunto entre os docentes de linguística e docentes de língua, para não haver duplicidade de conteúdo. Qualquer que seja a partição de tarefas, certos fenómenos têm de ser estudados e difundidos sistematicamente. É preciso, antes de tudo, que os nossos alunos aprendam a fazer demonstrações empíricas de que existe a faculdade de linguagem. Qualquer fenómeno linguístico pode servir de tema para a demonstração. Pode- se escolher uma classe de palavras (substantivos, por exemplo), ou uma forma verbal (imperativo, por exemplo), ou um fenómeno morfossintático (concordância, por exemplo), ou uma construção sintática (interrogativas com uso de pronome interrogativo, por exemplo). Qualquer fenómeno serve, porque para qualquer um existem exceções, e as exceções podem ser usadas na construção de uma argumentação com base na pobreza do estímulo: como a criança chega a dominar o uso do fenómeno em questão, apesar das exceções, se não houve ensino a respeito? Nesse tipo de argumentação, a conclusão inevitável é que existe uma faculdade de linguagem guiando a geração de expressões linguísticas. Isso porque, caso a criança adquirisse a língua por imitação ou analogia, não conseguiria evitar a geração dos casos de construção agramatical que têm relação analógica com os casos gramaticais. Ela não conseguiria evitar, pois faria uma generalização indutiva a partir dos casos gramaticais. Como os casos agramaticais não são gerados, sabemos que há algo a mais, que não o processo de indução, guiando o processo de aquisição de língua. o QUE o PROFESSOR DA EDUCAÇÃO BASICA DEVE SABER DE LINGUISTICA ] 23 Para dar mais concretude à discussão, consideremos o par de frases abaixo: 1 (1) João acha que ele fala russo fluentemente. ' (2) Ele acha que João fala russo fluentemente. Todos os falantes atribuem duas interpretações a 'ele' em (1): ou 'ele' tem como antecedente 'João', ou se refere a uma pessoa não identificada na frase. Isto é, 'ele' pode ter referência dependente da referência de 'João', ou pode ter referência livre. Em (2), no entanto, 'ele' só aceita a interpre- tação de referência livre. Ora, há uma interpretação para o pronome 'ele' em (1) que deixa de existir em (2). Caso as crianças adquirissem a língua por analogia, deveriam, por analogia de (2) com (1) atribuir a 'ele' duas interpretações em (2), exatamente como fazem em (1). Mas não o fazem. E não o fazem sem, no entanto, receber instrução a esse respeito. Além do mais, esse tipo de fato não é específico ao português. Outras línguas fazem precisamente a mesma distinção. Tudo leva a crer, portanto, que estamos diante de um fenómeno que decorre da existência de uma faculdade de linguagem. A necessidade de os alunos aprenderem a fazer esse tipo de argumentação é real, pois só se os nossos alunos se derem conta de que existe, de fato, a faculdade de linguagem, poderão se envolver com convicção num projeto de renovação do ensino. Os fatos de língua a serem examinados sob um novo prisma são inú- meros, e cito três. O primeiro é a questão das relações gramaticais. Noções como sujeito e predicado, complemento e adjunto têm sido muito estuda- das, e seria salutar ter material didático que incorporasse o conhecimento recente sobre esses temas. Não tenho como me alongar sobre cada item aqui. Aponto, brevemente, o fato de os conceitos de sujeito e objeto serem universais, mas resistirem a uma definição que cubra suas características nas diferentes línguas. Por isso, apesar de integrarem a gramática universal, têm de ser caracterizados na gramática particular. Sobre os conceitos de 24 I LINGUISTICA E ENSINO DE LlNGUAS argumento e adjunto, a literatura recente é rica e variada, e tem o que contribuir para uma explicação mais didática desses conceitos. O segundo tema que cito é o das classes de verbos. Vamos continuar falando de verbos transitivos e intransitivos, quando já se sabe que existem aí, na verdade, três, e não duas classes? Isso porque os intransitivos correspondem a duas classes, a dos inergativos e a dos inacusativos. O terceiro fato que enumero é a classificação das orações. Muito já se sabe sobre os tipos oracionais, além da classificação tradicional, e vale a pena rever essa questão. Finalmente, é preciso mudar a postura diante das análises linguísticas. No caso de questões em aberto, é preciso abrir o jogo mostrando que não se tem ainda uma resposta. Estaremos assim adotando uma postura científica, e isso é muito bom. Estou fazendo essas considerações a respeito do ensino superior, e tomando por verdadeiro que a mudança deve ocorrer a partir da Universi- dade. Para o ensino básico, acho que a mudança total vai ocorrer paulatina- mente, à medida em que entrarem para o corpo docente professores que incorporaram as novas aquisições da linguística. De qualquer modo, acho que a mudança metodológica tem de ser imediata: em vez de se partir de definições, partir de dados empíricos, com adoção do procedimento de descoberta, da metodologia de eliciação e da técnica dos resultados. A questão, para o ensino fundamental e médio, é que a renovação em maior profundidade vai depender de uma atualização do corpo docente. Esse é um fato a ser aceito. No entanto, essa é somente uma tarefa a mais, parte do desafio geral. . {.-:•=*''•, ~À > •'n >t(i. , ' . • t ' i oi , i>t'","i) Por que não abandonar totalmente o material gramatical? - ^ Defendi que o ensino gramatical taxionômico tem de ser abandonado, mas que o ensino gramatical tem de permanecer, só que sob uma nova o QUE o PROFESSOR DA EDUCAÇÃO BASICA DEVE SABER DE LINGUISTICA 1 25 perspectiva do que seja gramática, e, em decorrência, com novos mé- todos didáticos. Vou concluir mostrando algumas razões para não se abandonar total- mente o ensino gramatical na escola. A primeira razão é o fato de ao texto e às atividades discursivas em geral subjazer a mesma gramática abstrata que subjaz às palavras, aos sintagmas, às orações e às frases. Não pode ser diferente, pois, se assim o fosse, a mente humana estaria operando de modo antieconômico, com princípios de tipo diferente para domínios diferentes do mesmo objeto. O natural é considerar que, para o mesmo objeto, são usados os mesmos princípios abstratos. No texto, são usados princípios que extrapolam o limite da sentença, mas, certamente, não são de natureza diferente dos princípios do limite da sentença. A diferença, a meu ver, está nas unidades com que a gramática opera num e noutro domínio, e não na natureza dos princípios. - - Em segundo lugar, considero que não se deve abandonar totalmente o material gramatical porque a explicitação dos mecanismos de que as línguas fazem uso e de seu efeito semântico ajuda o aluno a ganhar tempo no seu processo de domínio das técnicas do texto e das atividades discur- sivas em geral. A escrita, por exemplo, tem características muito peculiares, e aceita estruturas complexas muito mais facilmente do que a fala, por estar livre das limitações de memória que caracterizam o discurso oral. Não vejo como seria possível ter um ensino produtivo sem explicitação de mecanismos estruturais. A terceira razão é que, se usado adequadamente o método proposto - uso do procedimento de descoberta, da metodologia de eliciação e da técnica dos resultados -, o aluno vai chegar por si próprio à conclusão de que existe uma faculdade de linguagem e de que ele próprio tem uma gramática interna, biológica. A visão de língua do aluno certamente mudará. Além disso, o ensino estará contribuindo para que cada aluno conheça um pouco maisda natureza humana. 26 I LINGUISTICA E ENSINO DE LlNGUAS Casos de Divergência entre Análises Tradicionais e Análises Recentes Vou examinar três casos de divergência entre análises da Gramática Tradicional e análises mais recentes da Linguística. Casos de Erro de Análise O primeiro caso que vou apresentar é de erro de análise. Um caso exemplar é a análise do argumento sentenciai que ocorre com o verbo parecer, em frases como (3): (3) a. Parece que João é inteligente, b. Parece que vai chover. r As orações que ocorrem depois de 'parece' em (3) - que João é inteligente, que vai chover - são tratadas como subjetivas pela Gramática Tradicional e como objetivas diretas pelas análises linguísticas recentes. Há evidências de que essas orações são efetivamente objeto direto, e não sujeito. Uma dessas evidências é o fato de que as frases em (3) aparecem com um sujeito pronominal manisfesto em línguas que não têm sujeito pronominal nulo, como se vê em (4): , .-• (4) a. llsemblequeJeanestintelligent. . , It seems that John is intelligent. . ' b. II semble qu'il va pleuvoir. It seems that it is going to rain. Uma outra evidência é o fato de a posição vazia antes de 'parece' (a posição que é ocupada por // em francês e it no inglês) poder ser ocupada O QUE O PROFESSOR DA EDUCAÇÃO BÁSICA DEVE SABER DE LINGUISTICA | 27 pelo sujeito manifesto da oração que segue parecer, como se vê nos pares em (5): (5) a. João parece ser inteligente. b. Essa manteiga parece estar rançosa. c. Esse gato parece estar miando rouco. Uma terceira evidência é o fato de que, nesse tipo de exemplo em (5), o sujeito de 'parece' nos exemplos abaixo é sujeito sintático desse verbo, mas não é um argumento semântico do mesmo verbo - é, antes, um argumento semântico do predicado à direita de 'parece' (argumento de 'ser inteligente' em (6a), de 'estar rançosa' em (6b) e de 'estar miando rouco' em (6c): (6) a. João parece [ ser inteligente]. • : b. Essa manteiga parece [ estar rançosa]. c. Esse gato parece [ estar miando rouco]. Se essa análise está correta (como já concluíram todos os linguistas que sobre ela se debruçaram), a análise tradicional que é passada ano após ano aos alunos está errada. Sobre esse tipo de caso, eu própria não tenho dúvida: tem de haver uma mudança nas nossas gramáticas escolares, para incorporar essa nova análise. Casos de Análises Aprofundadas ' Um caso diferente é o de análises que a linguística aprofundou. Nesse caso, está a divisão da Gramática Tradicional dos verbos principais em dois grandes grupos - transitivos e intransitivos. Segundo a análise linguística, em vez de uma divisão bipartite, temos uma divisão tripartite. Isso porque 28 I LINGUÍSTICA E ENSINO DE LlNGUAS ' •; ' . OS verbos intransitivos são subdivididos em dois grupos - verbos inacu- sativos e verbos inergativos. Em que consiste a diferença entre a visão tradicional e a visão mais recente? Que argumentos temos para dizer que há uma divisão tripartite e não bipartite? Primeiramente, consideremos o critério que a Gramática Tradicional usa para chegar a uma divisão bipartite. O critério é o número de argu- mentos: um verbo transitivo tem dois argumentos (sujeito e complemento) e um intransitivo tem um único argumento (sujeito). O que a pesquisa recente identificou foi que, no caso de verbos intransitivos, o único argu- mento que ocorre, e que sinteticamente é o sujeito, para certos verbos tem correspondência com o sujeito de verbos transitivos e para outros verbos tem correspondência com o objeto de verbos transitivos. Isso fica claro com alguns exemplos. Vamos considerar o uso de orações reduzidas de particípio. Se tentamos construir uma reduzida com verbo transitivo, vemos que só o objeto pode estar presente, como em (7): (7) a. Maria lavou a louça, b. Lavada a louça,... iiiiúrú' c. *Lavada Maria,... eí'-;.• v-':.tí;-n':' ->í:.-''> :>-t • Em (7c), só conseguimos interpretar Mar/a como o objeto e a oração é agramatical exatamente porque nesse exemplo o sintagma Maria está sendo interpretado como sujeito. Passando para o exame de verbos intran- sitivos, vemos que o argumento desses verbos se comporta efetivamente ora como o objeto de verbos transitivos, como os verbos de (8)-(10), e ora como o sujeito de verbos transitivos, como os verbos de (11)-(13): 3 (8) a. O bebé nasceu. , , . b. Nascido o bebé,... o QUE O PROFESSOR DA EDUCAÇÃO BÃSICA DEVE SABER DE LINGUÍSTICA 29 i- í •! (9) a. Marisa morreu. ' ' b. Morta Marisa,... ' ' ^ MÍ (10) a. A semente germinou. b. Germinada a semente,... (11) a. O bebé soluçou. : b.*Soluçadoo bebé,... :^'vC \ (12) a. O trem apitou. ; y : « • j't?^t ; :i ;í 'i'-';;;) b. ^Apitado o trem,... rA..i-'k.rq:, '-JOÍ V->• (13) a. Luiza sorriu. • <..:.:,. - loM'-•: b. *Sorrida Luiza,... -^OV.Í^ÍI/O f ,i ; n •..:;r p tj Para distinguir esses dois comportamentos, os verbos de (8)-(10) recebem uma denominação diferente da dos verbos em (n)-(13): os verbos de (8)-(10) são denominados inacusativos e os de (11)-(13), inergativos. . Sobre esse tipo de caso, já não é tão óbvio que as nossas gramáti- cas escolares tenham de incorporá-lo. Aqui a coisa fica um pouco mais complicada porque os fatos já são mais complexos. Mas há problemas na não-incorporação. Primeiro, está cada vez mais em uso essa distinção, de modo que quem não a conhecer vai ter dificuldade no entendimento de estudos linguísticos (e não estou falando de estudos escritos em ou- tras línguas ou estudos sobre línguas exóticas, ou, ainda, estudos muito especializados). Segundo, vai haver um momento em que a educação escolar sobre língua vai ter de introduzir esses conceitos. No momento, são introduzidos nas Universidades, pelo menos nos centros onde se faz pesquisa, de modo que muitos alunos atuais, futuros professores de ensino básico, já têm esse conhecimento. Até que ponto está correta essa omissão de informação? A questão pode ser resumida do seguinte modo: 30 I LINGUISTICA E ENSINO DÊ LlNGUAS De um certo ponto de vista, omitir essa informação é sonegar informação. De outro ponto de vista, dar essa informação pode ser considerado fazer análise linguística, além dos propósitos do ensino escolar. Casos de Análises Confusas O último caso que vou considerar é o de análises tradicionais que têm dado muita margem a discussão exatamente por falta de exatidão e clareza. Situa-se aí a distinção entre orações causais e explicativas. Poderíamos levar todo um dia discutindo essa distinção, sem chegarmos a uma conclusão. Para esse tipo de caso, como vai ser necessária uma revisão da análise tradicional, mas acho que ainda vai levar algum tempo antes de termos chegado a uma publicação que deixe clara a distinção, o melhor que o professor pode fazer é deixar uma certa distância entre ele próprio e a Gramática Tradicional. Isto é, o professor não deve se comprometer com a análise tradicional: deve apontar a análise tradicional e deixar clara a confusão que a ela subjaz. .yuí^is • ''^^ .••:''\':*'Í: -y-i • H ; 1 / I 1 3. LINGUÍSTICA E ENSINO DE LÍNGUAS^ Lúcia Maria Pinheiro Lobato ; ^ » , . 1 Palestra proferida no II Encontro Nacional de Estudos de Linguistica e Literatura, em 1976, quando a autora era professora do Departamento de Linguística e Filologia da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Afirma-se frequentemente que a linguística pode contribuir para a reno- vação do ensino de línguas. Neste artigo, trataremos dessa questão, com relação exclusivamente ao ensino de língua materna, através de uma breve análise dos seguintes pontos: (i) De que modo e até onde pode a linguística contribuir para a tarefa ' •:•:'•!') do aluno e do professor na pedagogiadas línguas? v; -;., o; (il) Entre os modelos linguísticos existentes atualmente, haveria algum cuja aplicação ajudaria a resolver os problemas do ensino '^^: / e da aprendizagem de línguas? (iii) Considerações sociolinguísticas na renovação do ensino de línguas. (iv) Possibilidades reais de renovação gramatical no Brasil à luz dos ^•'Y::}':>-v desenvolvimentos recentes da linguística. Contribuição da linguística para o ensino de línguas Entre os campos de aplicação linguística, encontra-se o ensino de línguas. Pressupõe-se, daí, que a linguística contribui (ou pelo menos pode con- 44 I LINGUISTICA E ENSINO DE LlNGUAS tribuir) de algum modo para a realização dos objetivos do ensino de uma língua viva. Mas em que consiste essa contribuição e quais os seus limites? Consiste, primariamente, na elaboração de uma análise rigorosa da língua em questão, a qual servirá de base para o ensino, sem, no entanto, tomar o lugar de um manual preparado com fins pedagógicos. Em outras palavras, trata-se de uma contribuição indireta, que não pode servir de texto para uso em aula de língua, podendo, entretanto, servir de fundamento para a elaboração de tal manual. Essa é a contribuição da linguística teórica ao ensino de línguas e, ao mesmo tempo, a aplicação primária da teoria linguística, nesse campo. A que corresponde a contribuição da linguística aplicada propriamente dita? Antes de se dar uma resposta a essa pergunta, faz-se mister precisar que o linguista aplicado (aquele que aplica a linguística a um campo determinado, no caso, o ensino de línguas) tem um estatuto intermedi- ário e dependente no processo geral do ensino de línguas. Isto é, nessa operação total intervêm várias autoridades, do governo até o professor, passando pelas autoridades educacionais regionais e locais, pelos diretores de faculdades e de escolas e pelos linguistas aplicados. Logo, as tarefas relativas ao ensino acham-se divididas entre essas várias autoridades. Ao linguista aplicado não cabe, então, por exemplo, decidir sobre que línguas serão ensinadas nem sobre quem ensinará, onde serão ensinadas, que verbas serão dedicadas ao treinamento de professores ou à obtenção e elaboração de material escolar, nem ainda por que serão elas ensinadas. Mas cabe a ele encontrar as melhores soluções possíveis para os problemas de sua alçada, como, por exemplo, o que ensinar e como organizar esse ensino. A esse respeito, será sua tarefa organizar a análise da língua para uso em sala, de preferência com a ajuda de professores e pedagogos. Essa tarefa de análise com fins pedagógicos processar-se-á em várias etapas, compreendendo a restrição da língua a um dado dialeto e a um ou mais registros, a seleção dos fatos linguísticos a serem ensinados, a gradação desse material selecionado para fins de ensino. LINGUISTICA E ENSINO DE LlNGUAS 1 45 Uma outra aplicação da linguística ao ensino reside na organização em material escolar do que foi selecionado. Aqui, estamos num nível diferente de aplicação, pois, embora a linguística forneça princípios para a descrição e a seleção do que vai ser ensinado, ela não oferece princípios para sua organização em material didático. É a esse respeito que surge a questão de como apresentar os fatos da língua ao estudante. Aqui, a tarefa do linguista aplicado é a de um auxiliar do professor, daqueles que treinam professores, e do autor de livros didáticos. Isso porque, em princípio, dizer como a língua deve ser ensinada é tarefa precípua dos professores e daqueles que treinam professores, e escrever livros didáticos sobre línguas é uma atividade especializada que só pode concernir em parte ao linguista. Modelos linguísticos e ensino de línguas A pesquisa sobre o aproveitamento do material selecionado em forma de material escolar, isto é, sobre a criação de gramáticas pedagógicas, tem sido feita sob a forma de discussão sobre a relação entre os modelos linguísticos e as descrições pedagógicas, de um lado, e sob a forma de estudos experimentais dos métodos de ensino, por outro. Vamos aqui dizer algumas palavras sobre a aplicabilidade dos modelos linguísticos ao ensino de língua materna. A existência de um modelo linguístico que seja aplicável ao ensino de línguas está na dependência direta do fato de esse modelo satisfazer o primeiro objetivo do ensino de uma língua viva. Admitido o fato de que esse objetivo seja capacitar os falantes a usarem a língua de modo eficaz e adequado, esse modelo teria, então, ao mesmo tempo, de possuir, entre outras, as seguintes características: , (i) Levar em conta o contexto linguístico e a situação extralinguística, o que quer dizer que, de um lado, esse modelo não poderia se 46 I LINGUISTICA E ENSINO DE LlNGUAS limitar ao nível da frase, tendo de ir até ao nível do texto ou do u diálogo, e, de outro, teria de dar conta do uso apropriado dos enunciados, numa dada situação de comunicação, de acordo com os objetivos visados, com o tema da conversa, com o canal de transmissão utilizado etc; (il) Tomar em consideração não só a função referencial da linguagem como também as funções emotiva, conativa, fática, metalinguística e poética;^ , (iii) Ser um modelo que dê conta das variações da língua, sejam essas dialetais, sejam de registro. Essa condição imposta ao modelo decorre dos seguintes fatos: (i) Possuir uma língua não significa exclusivamente ser capaz de construir e compreender frases gramaticais: significa saber utilizar essas frases num dado contexto linguístico e numa dada situação ' linguística apropriada; (ii) Comunicar-se com outrem não é exclusivamente transmitir ou pedir informações sobre objetos ou acontecimentos dados (função referencial): comunicar é também transmitir emoções, senti- mentos, julgamentos (função emotiva), é usar a língua para agir - ' sobre o destinatário (função conativa), para atrair a atenção do interlocutor, para verificar se o canal de comunicação funciona (função fática), para verificar se o interlocutor está usando o mesmo código (função metalinguística), para procurar dar melhor configuração à mensagem (função poética); 2 A abordagem das funções da linguagem segue o modelo elaborado pelo linguista russo Roman Jakobson (1896-1982) (cf. JAKOBSON, 1995). [Nota das editoras] LINGUISTICA E ENSINO DE LlNGUAS ] 47 (iii) Não existe língua una e homogénea no território em que é fa- lada: toda língua comporta variações de vários tipos - dialetais (sociais, etárias, regionais etc.) e de registro (em função do grau í V " de conhecimento entre falante-ouvinte, da modalidade falada- ': -escrita e da formalidade da situação). Acontece que, no entanto, não existe até o momento um modelo que reúna essas três características, pois os modelos existentes não são modelos do emprego da língua, são modelos do sistema da língua, res- tringindo-se à função referencial, considerando a frase como a unidade superior da descrição gramatical e negligenciando as unidades superiores à frase, tais como o texto e o diálogo. Assim, vejamos: > 'r>;, ' ' .' ,u • • ' (i) A gramática tradicional é uma gramática da frase, que negligencia i I, ; totalmente a situação de comunicação e apresenta a língua como sendo pura e homogénea; ....ÍÍ.V .','H<"'H ••J^>V,:,«Í.- (ii) O modelo estrutural representa um passo adiante na descrição gramatical em relação ao modelo tradicional: a língua deixa de •gw • ser considerada como pura e homogénea, para ser compreendida ; !como um complexo de variantes. No entanto, esse modelo, apesar de distinguir entre a langue e a parole,^ exclui da descrição lin- 3 Os conceitos de langue e parole foram formulados originalmente por Ferdinand de Saussure, referindo-se, respectivamente, ao sistema linguístico (definido como homogéneo,coletivo e estático) e à fala (definida como heterogénea, individual e dinâmica). Conforme observado pela autora, nessa dicotomia, Saussure busca demonstrar que a langue é o objeto da linguística (cf. Curso de Linguis- tica Geral, 1916). Estudos subsequentes, notadamente no âmbito da Sociolinguística, questionam essa abordagem, postulando o conceito de heterogeneidade sistemática, em relação ao fenómeno da variação linguística, tomando por base os dados da língua em uso. A abordagem gerativa, por sua vez, dispensa a dicotomia langue/parole, definindo língua como uma propriedade da espécie humana, situada no cérebro/mente de cada indivíduo, o que permite reter a noção de sistema estável, postulada por Saussure, sem excluir o papel da língua em uso para dar conta do fenómeno da variação e mudança linguística (cf. CHOMSKY, 1986). [Nota das editoras] 48 I LINGUISTICA E ENSINO DE LlNGUAS guística os fatores ligados ao emprego individual da língua como instrumento de comunicação numa dada comunidade. Desse modo, com a exclusão da fala do âmbito da análise, não se leva ' em consideração o emprego das diversas variantes linguísticas segundo as situações e descreve-se uma variante de língua con- siderada neutra, homogénea, representativa, comum a todos os membros da comunidade. Continua-se a negligenciar, de modo geral, as unidades superiores à frase, com algumas exceções. (iii) O modelo gerativo também tem a característica de ser um modelo da frase, não levando em conta nem o emprego dessas mesmas frases em situações de comunicação apropriadas nem o fato de a língua não ser una e de comportar variações de diversos tipos. É claro que a exclusão, do modelo, de níveis superiores ao da frase é perfeitamente explicável: como descrever o que está além do nível da frase se o próprio nível da frase ainda está por ser totalmente analisado? Como vimos, a aplicabilidade de algum dos modelos existentes ao ensino de línguas só existiria se houvesse concordância de objetivos entre ensino de línguas e modelo gramatical. Ora, se os modelos existentes visam a dar conta dos fatos da língua no nível da frase, negligenciando o emprego da língua e o fato de ela comportar variações de diversos tipos, e se, por sua vez, o ensino de línguas visa capacitar o indivíduo a se expressar apropriadamente, na língua ensinada, nas diversas situações de sua vida quotidiana e profissional, não há concordância de objetivos. <• >« • O ensino de línguas exige um modelo que analise as relações entre frases e, que, portanto, ultrapasse o nível da frase; um modelo que leve em conta os fatos sociolinguísticos em jogo no uso da língua. Enfim, uma gramática pedagógica tem necessariamente de ser uma gramática da pragmática do emprego de uma língua. LINGUISTICA E ENSINO DE LlNGUAS 1 49 Sociolinguística e ensino de línguas IOÍ - * Sendo a língua um veículo de comunicação entre os membros de uma dada comunidade, é natural que se procure estudá-la em seu contexto social. A sociolinguística procura exatamente estudar a língua em seu uso por uma dada comunidade linguística. Como o ensino também visa o emprego da língua, há necessariamente de se relacionar com a sociolinguística e seus princípios ao ensino de línguas, e em consequência, tem-se de levar em conta, no ensino de uma língua, a variação linguística no âmbito de uma mesma comunidade linguística. O comportamento linguístico varia em função de fatores sociais: (a) tipo de relação entre locutor-ouvinte; (b) tipo de situação em que se encontram: em família, na escola, no trabalho, na igreja etc; (c) o assunto tratado. Em função desses fatores sociais, podem ser tratadas as variações no uso da língua, ensinando-se o aluno a distinguir os diferentes usos da língua segundo essas determinantes e, sobretudo, dando-se meios aos falantes de usar registros que não possuam ainda. Por outro lado, a separação do que é constante do que é variável na fala da comunidade, e a diferenciação do que é variação social e do que é variação individual ou estilística, darão meios ao professor e ao linguista de trabalhar conjuntamente na análise dos erros dos alunos, através de uma interpretação de tais erros em função da língua padrão da qual eles se desviam. Finalmente, é necessário também levar em conta o fato de haver, em certas áreas geográficas, contato entre línguas, como acontece no sul do Brasil. Deve-se considerar, a esse respeito, no caso de contato entre o português e outra língua, o efeito dessa outra língua sobre o comportamento linguístico e sociolinguístico dessas comunidades. Como há uma convergência entre os interesses dos professores de língua, dos linguistas e dos sociolinguistas, é possível que em breve veja- mos o campo da linguística se alargar para abranger a análise da língua como instrumento da comunicação. Numa tarefa conjunta, aos linguistas e aos sociolinguistas cabe propor hipóteses e soluções que permitam aos 50 I LINGUÍSTICA E ENSINO DE LÍNGUAS professores resolver da melhor maneira possível os problemas ligados ao ensino e à aprendizagem do emprego apropriado da língua, o que permitiria uma renovação do ensino, através de uma nova orientação e de uma elaboração empírica dos novos cursos. Desse modo, a aplicação da linguística ao ensino de língua não se faria de modo dogmático, mas de modo empírico e dialético. Renovação gramatical no Brasil Mostramos as lacunas das teorias gramaticais com relação a uma aplicação ao ensino de línguas e a necessidade de serem introduzidos nessas teorias a pragmática do emprego da língua e fatores sociolinguísticos durante muito tempo negligenciados no ensino. Observamos que, para o ensino, faz-se mister uma gramática do texto e do discurso, que apresente as relações entre frases num texto e trate do uso real de frases em diferentes situações de comunicação, ao passo que as teorias atuais são teorias da frase e do sistema linguístico. A necessidade de se alargar o escopo das atuais teorias e das análises utilizadas na elaboração de material peda- gógico, para se incluir aí os dados que acabamos de mencionar, tem sido frequentemente apontada, por linguistas de diversas correntes. Como já dissemos, o fato de teorias terem de se limitar à competência, negligen- ciando o desempenho, deve-se a uma necessidade natural e lógica de se estudar primeiro aquela e depois esse. ;Í I#**Í;^ -V *Í 3 íwr^' < i; i ?. - íí Com relação a outras línguas, tentativas têm sido feitas no sentido de se renovar o ensino com base em ideias linguísticas recentes. No Brasil, não temos conhecimento de nenhuma tentativa no género. Uma renovação que se baseasse numa análise completa de dados do português contemporâneo, sob uma dada abordagem, seria uma ilusão. Uma tal análise ainda não existe, só existindo poucas análises e assim mesmo de dados parciais da língua. LINGUÍSTICA E ENSINO DE LÍNGUAS 1 51 O que se poderia e se deveria então fazer no Brasil, com vistas a uma renovação do ensino? Primeiramente, deveria haver uma maior colaboração entre professores e linguistas, a fim de que, de um lado, os problemas da aprendizagem do emprego da língua fossem melhor equacionados e, de outro, se elaborasse em novas bases o ensino e se renovassem empiricamente os novos cursos. Em segundo lugar, dessa colaboração deveriam surgir novos materiais escolares, levando em conta o uso da língua em diversas situações de comunicação e contendo exercícios que também evidencias- sem as relações entre frases e o uso dessas frases em diferentes situações. Por outro lado, urge também que não se ignore o fato de haver comunidades bilíngues no Brasil, onde o português entra como língua aprendida na escola. Caso se tente alfabetizar em português um aluno que não fale essa língua, o que acontecerámuito provavelmente (e é o que tem acontecido na realidade) é que esse aluno não terá bom rendimento em sua aprendizagem e se sentirá inferiorizado e com complexos que repercutirão em sua vida futura. O que se deveria fazer é alfabetizar em português o aluno, mas através do uso da língua que ele conhece e aprendeu em casa. Desse modo, não se estará desestimulando a aprendizagem nem se estará formando pessoas com vistas ao fracasso. Para tal, no entanto, seria necessário que se elaborassem descrições dessas línguas não oficiais, tal como são faladas na comunidade, e do português que esses falantes utilizam, pois, com certeza, não é esse o português literário que se tenta ensinar nas escolas. Uma tal análise é essencial para a análise dos erros dos alunos de ascendência estrangeira. fMn«>=. riv..» =Í-; H\; Ásra • *a Acabamos de observar que se tenta ensinar nas escolas o português literário. Cabem aqui algumas palavras a esse respeito, n Í;!- Tem-se notado que o ensino da gramática do português nas escolas brasileiras centra-se sobretudo no ensino que toma como exemplos orações retiradas de textos literários, o que parece conferir a esse ensino o objetivo principal de dar aos estudantes melhores condições para compreenderem e apreciarem a literatura nacional e também a portuguesa. No entanto. 52 1 LINGUISTICA E ENSINO DE LlNGUAS tomar esse objetivo como o fim em si do ensino da língua materna é bastante questionável. Não que o ensino não possa ter esse objetivo. Ele deve ter esse objetivo, mas entre outros. Esses outros objetivos do ensino da língua seriam, de um lado, o de proporcionar aos falantes meios de usarem sua língua de modo eficaz e apropriado ou adequado (e esse foi 0 objetivo que consideramos como o objetivo primeiro do ensino de lín- guas), e, de outro, o de fornecer a esses mesmos falantes conhecimentos sobre o funcionamento de sua língua. Na prática, no Brasil, parece que esses dois últimos objetivos têm sido negligenciados. Enfatiza-se o uso literário da língua, em detrimento de outros usos, aliás, usos de que os falantes terão realmente necessidade em sua vida quotidiana. Não que sejamos contrários ao ensino de literatura nas escolas e faculdades. Somos contrários ao seu ensino exclusivo. - v „ . 1 Esse estado de coisas é conhecido por todos e a constatação de suas consequências faz parte do dia a dia dos professores de qualquer matéria nas Universidades brasileiras. Muitos alunos de nossas facul- dades não conseguem expressar de modo claro as suas ideias, o que impede seu melhor desenvolvimento em outras matérias, por exemplo, a própria linguística, no caso de alunos dessa disciplina. Será que nossas escolas não conseguem ensinar o uso apropriado da língua? Um pedido de transferência, por exemplo, é feito por universitários em mais de um tratamento. Ora, requerimentos exigem o uso de um registro que não é o literário, mas tampouco é o coloquial. E, seja dita essa verdade, muitos de nossos alunos não dominam outro registro a não ser o coloquial. Na tentativa de ensino do registro mais elevado, nosso ensino perde-se em seus propósitos, não conseguindo totalmente nem mesmo realizar seu objetivo implícito. ,.. ,, . ,. • ''«^ • No entanto, é claro que nossas faculdades de Letras não são respon- sáveis por esse estado de coisas, nem tampouco, e muito menos, seus professores de português. O aluno já entra na faculdade com deficiência em seus conhecimentos da língua materna em outros registros que não LINGUISTICA E ENSINO DE LlNGUAS 53 O coloquial. A falha, portanto, está na base. Mas, para remediá-la, seriam necessárias providências de ordem não-técnica, como melhor remune- ração aos professores, a fim de que, com classes menores, pudessem dar ênfase ao ensino do uso da língua. Esse objetivo - ensino do uso da língua em diferentes registros - implica exercícios, e, para tanto, o professor tem de dispor de tempo para a correção. Ora, nossos professores têm de 'correr' de uma escola para outra, muitos dando até mais de 40 horas de aula por semana. Dispõem eles, com essa carga de aula, de tempo para levar trabalhos de alunos para casa? Humanamente, essa tarefa é impossível. Portanto, uma renovação do ensino da língua materna implica, antes de tudo, melhor remuneração para os profissionais desse mesmo ensino. É lógico que, então, essa melhor remuneração implicaria maiores deveres por parte dos professores. Mas também é verdade que esses mesmos professores deixariam de ser professores frustrados, como o são agora, para serem professores que veem o resultado de sua labuta. Todos admitem atualmente que o ensino não pode mais ser pres- critivo, isto é, não pode mais continuar considerando errado o uso que o falante faz de sua língua, tentando substituí-lo por outro uso, mais "bem visto" pela sociedade. Admitidas as variações existentes no uso da língua, o ensino tem de deixar de ser prescritivo para ser descritivo e produtivo. No ensino descritivo, mostrar-se-á como a língua funciona e dar-se-á ao aluno consciência do uso que ele próprio faz de sua língua; no produtivo, ensinar-se-ão ao aluno variantes de sua língua apropriadas a diversas situações, de modo que ele possa efetivamente usá-las de acordo com suas necessidades. Com esses dois tipos de ensino, procura-se atingir os objetivos do ensino de línguas a que já nos referimos: o objetivo educacional de mostrar como funciona a língua e o objetivo pragmático de dar meios aos falantes de usar apropriadamente a sua língua. O outro objetivo, o de capacitar o falante a apreciar a literatura, não é mais do que uma decorrência desses outros objetivos, pois, conhecendo bem sua língua materna, o falante tem melhores condições para compreender o 54 I LINGUISTICA E ENSINO DE LlNGUAS USO literário da língua. Aí está, pois, mais uma razão para se enfatizar o ensino pragmático da língua. ' Queremos agora terminar estas palavras dizendo que a linguística não tem receitas a oferecer. Aplicações pedagógicas, já prontas, da linguística ao ensino de línguas não existem e qualquer aplicação possível ao ensino de línguas é o resultado de longa reflexão e de um trabalho conjunto entre linguistas e professores. Extrair de uma teoria linguística algumas de suas noções básicas e usá-las isoladamente, fora do conjunto da teoria, não é renovar o ensino de línguas: isso seria pura mistificação. 55 Referências bibliográficas BENVENISTE, Emile. Problemas de Linguística Geral. São Paulo: Pontes, volumes le II, 1989/1991. BRASIL. 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