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André Bueno 
Everton Crema 
Dulceli Tonet Estacheski 
José Maria Neto 
 
 
 
 
EXTREMOS 
ORI 
ENTES 
 
 
 
 
 
 
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Referência Bibliográfica 
 
BUENO, Andre; CREMA, Everton; ESTACHESKI, Dulceli; NETO, José Maria 
[orgs.] Extremos Orientes. União da Vitória/Rio de Janeiro: Edição Especial 
Sobre Ontens – LAPHIS/UNESPAR, 2018. 
ISBN: 978-85-65996-63-1 
Disponível em Revista Sobre Ontens: 
WWW.revistasobreontens.site 
 
 
 
 
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SUMÁRIO 
 
 
DA REALIDADE, NO VIŚUDDHA-VEDĀNTA-AṢṬAKAM 
Alina Silva Sousa de Miranda, 9 
 
DA MISSÃO JESUÍTICA À SUA EXPULSÃO NO JAPÃO SOB A 
ÓTICA DO FILME ‗SILÊNCIO‘ (2017) 
Angélica da Cruz Bernardo e Vânia Maria Siqueira Alves, 19 
 
EXPERIÊNCIA DE ANGÚSTIA EM SARTRE E A SAÍDA DO SÁBIO 
CHINÊS 
Arthur D‘Elia, 29 
 
CRENÇAS ORIENTAIS: UMA ANÁLISE SOBRE ‗DEATH NOTE‘ 
(2006) 
Bruno Refundini de Oliveira e Vanda Fortuna Serafim, 37 
 
―NÃO É POUCO O FRUTO QUE SE FAZ ENTRE OS MENINOS‖: OS 
JESUÍTAS E A DOUTRINA DOS MENINOS (1540-1570) 
Camila Domingos dos Anjos, 47 
 
AS ‗CONQUISTAS DAS FILIPINAS‘ NA GRAVURA DE NICCOLÒ 
BILLY (1698) 
Carlos Guilherme Rocha, 57 
 
REVOLTAS POPULARES E IMPERIALISMO NA CHINA NO SÉC. 
XIX 
Daniele Prozczinski, 67 
 
SEGUNDO MAHAN, A CHINA TEM O QUE É NECESSÁRIO PARA 
SER A POTÊNCIA MARÍTIMA HEGEMÔNICA? 
Daniel Nunes Ferreira Junior, 79 
 
A IMIGRAÇÃO JAPONESA VISTA PELO CINEMA BRASILEIRO: 
APONTAMENTOS SOBRE ―GAIJIN, CAMINHOS DA 
LIBERDADE‖, DE TIZUKA YAMASAKI (1980) 
Diogo Matheus de Souza, 89 
 
AS EPIDEMIAS E A MODERNIZAÇÃO DA MEDICINA JAPONESA 
NA ERA MEIJI (1868-1912) 
Edelson Geraldo Gonçalves, 99 
4 
 
OS ORIENTAIS QUEREM DOMINAR NOSSAS JUVENTUDES: 
UMA ANÁLISE DA MÍDIA 
Fábio Júnio Mesquita, 109 
 
TOLERÂNCIA E PERSEGUIÇÃO NAS RELAÇÕES ENTRE 
CRISTÃOS E HINDUS EM GOA: A CONFRARIA DE CONVERSÃO 
À FÉ 
Felipe Augusto Fernandes Borges, 119 
 
O K-POP É A VELA QUE ILUMINA O CAMINHO DO HIP-HOP 
COREANO? 
Fernando Augusto Bocchi Silveira, 129 
 
O ‗FANTASMA‘ VAI À GUERRA CONTRA OS JAPONESES: 
DIÁLOGOS ENTRE HISTÓRIAS EM QUADRINHOS, SEGUNDA 
GUERRA MUNDIAL E ENSINO DE HISTÓRIA 
Geraldo Magella de Menezes Neto, 139 
 
CULTURA, MEMÓRIA E IDENTIDADE NO JAPÃO PÓS II 
GUERRA MUNDIAL 
Janaina Cardoso de Mello, 155 
 
DE TRANSNACIONALISMO TIBETANO À UM LOCAL DE 
PEREGRINAÇÃO: O CASO DO TEMPLO BUDISTA KHADRO LING 
DE TRÊS COROAS-RS 
Jander Fernandes Martins e Vitória Duarte Wingert, 165 
 
KUCHIOSY NO JUTSU: A RELAÇÃO HUMANO-ANIMAL NO 
ANIMÊ NARUTO 
Jander Fernandes Martins e Vitória Duarte Wingert, 175 
 
ENSINAR RESISTÊNCIAS E A LUTA CONTRA A CULTURA DO 
ESTUPRO: O USO DO DOCUMENTÁRIO ―FILHA DA ÍNDIA‖ NA 
SALA DE AULA 
Jeane Carla Oliveira de Melo e Francisca Márcia Costa de Souza, 191 
 
PERFIS FEMININOS E A INSERÇÃO SOCIAL DAS GUEIXAS NA 
ERA EDO (1603-1868) 
Jessica Caroline de Oliveira, 199 
 
 
 
 
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"FAÇA-SE O QUE SE QUISER-OS CHINESES POVOARÃO O 
BRASIL": A PRIMEIRA MISSÃO BRASILEIRA NA CHINA 
Kamila Rosa Czepula, 209 
 
HISTÓRIA COLETIVA DAS MULHERES: ATIVISMO FEMINISTA 
ASIÁTICO 
Layane de Souza Santos, 217 
 
A ÍNDIA DE KIPLING: O ORIENTALISMO NO LIVRO ―KIM‖ 
Lucas Pereira Arruda, 229 
 
CONFUCIONISMO EM SALA DE AULA 
Lucas Rodrigues, 239 
 
ORIENTE EM QUADRINHOS: HQ COMO RECURSO DIDÁTICO 
NA DESCONSTRUÇÃO DE ESTERIÓTIPOS ORIENTALISTAS 
Luciana Lamblet Pereira, 249 
 
ONESÍCRITO DE ASTIPALEA E OS ASCETAS INDIANOS DO 
PERÍODO HELENÍSTICO 
Luiz Henrique Silva Moreira, 255 
 
CORÉIA DO NORTE X ESTADOS UNIDOS: DIÁLOGOS A PARTIR 
DO CINEMA E DAS REDES SOCIAIS 
Maicon Roberto Poli de Aguiar, 265 
 
A PRESENÇA DE CONTEÚDOS SOBRE A ÁSIA NO LIVRO 
DIDÁTICO DE HISTÓRIA DO ENSINO MÉDIO 
Márcio Douglas de Carvalho e Silva, 275 
 
UM BREVE PANORAMA SOBRE A ARQUEOLOGIA NA CHINA 
Marlon Barcelos Ferreira, 285 
 
A PROVÍNCIA CHINESA DOS APÁTRIDAS DE ORIGEM RUSSA: 
HEILONGJIANG E OS MIGRANTES DA DÉCADA DE 1950 
Nathan Henrique da Silva Lermen, 293 
 
BÁRBAROS, PIRATAS E ESPIÕES: OS PORTUGUESES NA ÁSIA 
Nelson Rocha Neto, 299 
 
6 
 
O DESTINO DO CAPITÃO COOK NO HAVAÍ: RELIGIÃO, SEXO E 
MORTE NA ANTROPOLOGIA HISTÓRICA DE MARSHALL 
SAHLINS 
Rafael Egidio Leal e Silva, 309 
 
NARRATIVAS ORAIS DE MULHERES CHINESAS EM MANAUS 
1980-2017 
Raphaela Martins Pereira, 319 
 
O CONFUCIONISMO COMO UMA HERANÇA HÍBRIDA DA 
MISSÃO JESUÍTA NA CHINA 
Renan Morim Pastor, 327 
 
A EXPANSÃO ULTRAMARINA PORTUGUESA E A POESIA DE 
ANTÓNIO FERREIRA (1528-1569) 
Ricardo Hiroyuki Shibata, 337 
 
VOCÊ PRECISAR VER! VOCÊ PRECISA CONHECER! A 
FRONTEIRA ENTRE NÓS E O ―OUTRO‖ EM ODORICO DE 
PORDENONE 
Rodrigo Frasson, 347 
 
OS PROCESSOS MIGRATÓRIOS JAPONESES ENTRE OS 
SÉCULOS XIX E XX 
Ronaldo Sobreira de Lima Júnior, 355 
 
OS PROCESSOS HISTÓRICOS DA CORÉIA DO SUL: DA FEBRE 
DA EDUCAÇÃO AO ENSINO NOCIVO 
Samara Rodrigues Pino, 367 
 
CARTAS AO IMPERADOR DO JAPÃO: DE PRESIDENTE 
FILLMORE E COMODORO PERRY 
Tiago Tormes Souza, 373 
 
VOZ FEMININA NA REVISTA SEITÔ DO FIM DA ERA MEIJI E NA 
ERA TAISHÔ, 1911-1916 
Vanessa Mayumi, 383 
 
―ESTE É O INIMIGO‖: REPRESENTAÇÕES DOS JAPONESES NOS 
CARTAZES NORTE-AMERICANOS DURANTE A SEGUNDA 
GUERRA MUNDIAL (1939-1945) 
Victor Lima Corrêa, 393 
 
 
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A MENINA E A MOSCA: UMA ANÁLISE SOBRE A CONSTRUÇÃO 
DO ESTEREÓTIPO CHINÊS E RELAÇÃO HUMANO-ANIMAL 
Vitória Duarte Wingert e Jander Fernandes Martins, 405 
 
MANGÁ NARUTO NA AULA DE HISTÓRIA: O MONUMENTO 
DOS HOKAGE E A MEMÓRIA, A VONTADE DO FOGO E A 
IDENTIDADE NACIONAL 
Wendell Presley Machado Cordovil e Eliandra Gleyce dos Passos 
Rodrigues, 417 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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DA REALIDADE, NO VIŚUDDHA-VEDĀNTA-
AṢṬAKAM 
Alina Silva Sousa de Miranda 
 
 
Os cânticos na tradição védica estão separados mediante a origem e 
a maneira de cantar. Chama-se ―slokam‖ um verso que, respeitando 
a pronúncia do sânscrito, não possui forma rígida no canto. A maior 
parte dos slokams são retirados de ―stotrams‖, composições poéticas 
maiores, como um poema, cujos temas centrais variam. O viśuddha-
vedānta-aṣṭakam é um stotram composto de oito slokans, escrito por 
Vishvanatha. Este artigo tem o objetivo de explorar o quinto slokam 
dessa composição, que trata do termo ―sat‖. ―Sat significa 
―realidade‖, ―existente‖ e ―verdadeiro‖, tal como é pensado na 
tradição védica guardada pela cultura hindu. Para explorar seu 
ensinamento, porém, é preciso, antes, comentar brevemente 
algumas questões acerca do universo cultural e histórico que envolve 
a composição, sem as quais o estudo do verso não alcança sua 
grandeza e importância. 
 
O stotram e seu universo cultural 
O papel da Índia na Ásia pode ser comparável ao da Grécia na 
Europa. Porém, a mais simples menção a ela ainda traz à mente todo 
o fascínio que o Oriente distante e misterioso - com suas línguas, 
religiões e costumes os mais diversos - exerce sobre a imaginação 
ocidental. Só a persistência desse imaginário estereotipado e 
fantasioso já deveria exigir o estudo dessa civilização com acuidade. 
 
Porém, diante do que o estudo dessa civilização pode nos trazer, é 
muito pouco manter-se no combate ao ―preconceito clássico‖, já 
definido por Guenón (2015, p. 19-21) como a incapacidade 
intelectual do ocidental de transpor o Mediterrâneo e, com isso, 
fundar a ideia de uma autenticidade civilizacional com os gregos– o 
chamado ―milagre grego‖ -isso, já sabemos, é a verdadeira 
mistificação da História. É preciso encarar o desafio de estudar a 
Índia por suas próprias fontes, procurar entendê-la a partir do seu 
repertório. 
 
O slokam que aqui propomos o estudo exige, pois, a ênfase em dois 
aspectos da sociedade indiana: a ausência de História, no sentido de 
historiografia; e a permanência da oralidade. Isso desafia a teoria 
10 
 
historiográfica ocidental a refletir sobre a realidade para além de si 
mesma: para além do tempo e para além da escrita. 
 
Em termos de historiografia, o mundo indo-gangético sempre 
causou desconforto ao ocidente pela ausência do método histórico. A 
existência de diferentes cronologias sempre foi argumento de que é 
difícil estudar esse mundo pela falta de fontes adequadas. Porém, a 
Índia, apensar de não ter historiografia, oferece uma boa reflexão ao 
ofício. O fato dessa civilização permanecer ainda hoje ligada por mil 
fibras a seu longínquo passado, presentificando-o a todo momento, 
provoca a questão basilar dessa área de estudos: se o passado é útil 
porque explica o presente ou se ele o é apenas por ser uma referência 
de realidade ao qual o presente lança questões,como a noção mais 
moderna ou pós-moderna dos estudos históricos reivindica. Afinal, a 
despeito de toda e qualquer mudança e apesar das influências 
externas e seculares vindas do Ocidente, a mesma tradição que se 
perde nos obscuros inícios da história indiana se mantém. A Índia 
mantém vivo e à salvo no presente seu passado milenar. Se as velhas 
civilizações do Nilo, do Tigre e do Eufrates encerraram, há milênios, 
suas glórias, o Indo e o Ganges vivem, ainda hoje, a força de sua 
tradição. Como? O que é o tempo e a realidade para essa civilização? 
Como as fontes nos ajudam a responder essas interrogações e qual o 
sentido disso na experiência espaço-temporal dos indianos? No 
limite, como pensar a história fora da História? Uma vez 
respondidas essas interrogações, mesmo que preliminarmente, 
deveríamos avançar e perguntar como o entendimento dessa 
experiência pode ajudar a reoxigenar os conceitos de tempo e 
realidade do mundo ocidental, em particular, nas ciências humanas 
e na atividade historiográfica. 
 
O segundo aspecto é a permanência da oralidade. Só é possível que 
essa presença do passado seja tão evidente devido a tradição oral, 
tradição viva ainda hoje na Índia. E essa observação já nos afasta de 
uma fantasia purista antropológica que pretende encontrar uma 
cultura não assediada pelo seu exterior. A tradição mantém-se viva 
justamente pela sua capacidade de se adaptar sem perder sua ligação 
com seu princípio, com a fonte de conhecimento que são os Vedas. 
 
Entendida para além de uma faculdade humana, uma vez que nos 
comunicamos nessa modalidade, a oralidade é o local onde repousa 
o conhecimento. Na Índia, a tradição oral é a própria tradição viva 
de ensino. Não se trata, pois, de uma metodologia oral para 
 
 
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recuperar um saber que não está escrito. Mas sim: ainda que os 
versos estejam escritos, eles nada significam sem a tradição oral que 
os respaldam. Nessa sociedade, é muito claro que o conhecimento 
está disponível para todos que se comprometem a adquiri-lo, nunca 
para aqueles que, ainda que expostos, não tomam a iniciativa de 
ouvir. A escrita e o saber não são sinônimos. O processo tradicional 
de ensino exige a escuta e, longe de expressar que o conhecimento 
está na pessoa do ―guru‖, revela que o gesto verdadeiro e autêntico é 
colocar-se aos pés da oralidade, num ritual realizado há milhares de 
anos que exige a presença e o consentimento de ambos os 
envolvidos: o professor e o aluno. A confiança está sempre na 
tradição, e não na figura do professor, que é só um instrumento para 
que um relacionamento se estabeleça e a mensagem dos Vedas seja 
passada. O termo tradicional refere-se a isso. Nas palavras do físico 
Smith (p. 19),―tradicional é precisamente mais que (uma 
perspectiva) histórica, transcendendo o estatuto de uma 
contingência histórica, o que implica dizer que ela incorpora um 
elemento de Revelação (...) e da eternidade‖. Porém, o sentido dessa 
qualificação ―eternidade‖, só explica nos termos da própria tradição. 
E esse é o tema do slokam: sobre a realidade, realidade esta que está 
para além do tempo. 
 
Nesse sentido, para compreender essa sociedade oral e o próprio 
slokam, é necessário mais que um exercício de erudição. À tradução 
pura e simples, é preciso estar imerso no exercício de escuta, 
identificando-se tanto quanto possível à mentalidade daquele que o 
pensou, remediando as incompreensões. Creditar toda a verdade à 
escrita, ao texto, é esquecer que o ensinamento oral precedeu em 
quase todos os lugares o ensinamento escrito. De modo geral, um 
escrito tradicional não é, na maior parte dos casos, mais que a 
fixação relativamente recente de um ensinamento que era 
transmitido primeiro oralmente e ao qual é bem raro que se possa 
assinalar um autor. É ainda Guénon que afirma (2015, p. 30) 
 
―A pretensão à originalidade intelectual, que contribuiu em 
grande parte para o nascimento dos sistemas filosóficos é, 
mesmo entre os Ocidentais, algo totalmente moderno, que 
a Idade Média ignorava ainda; as ideias puras e as 
doutrinas tradicionais nunca constituíram a propriedade de 
tal ou qual indivíduo, e as particularidades biográficas 
daqueles que as expuseram e interpretaram são da mínima 
importância‖. 
12 
 
Assim, a autoria não é mais relevante que a mensagem. E essa 
desimportância da individualização das concepções é um forte 
argumento para explicar a ausência de História. Às afirmações de 
que a literatura histórica indiana não se elevou acima do nível das 
crônicas e dos romances pomposos, e que detalhes de lugar e datas 
nunca foram fixados, mesmo em se tratando da vida dos grandes 
homens – afirmações antes demeritórias à elevação intelectual da 
Índia -, ocorre hoje o reconhecimento de que 1) a poesia e a palavra 
ofertada sempre foram superiores à marcação cronológica sublunar 
à maneira ocidental/grega; 2) o hindu não tem a mesma noção de 
cronologia compreendida no sentido rigoroso que o ocidental 
prefere atribuir-lhe, nem a experiência imediata tem valor de 
verdade. Como afirma Guha (2002, p. 63), ―experience stands for 
truth in the European narrative‖. O valor dado ao sentido histórico e 
sua relação com a experiência humana no mundo, à falta de termo 
de comparação, é ofuscado quando se esquece que a Índia, por 
exemplo, até a conquista inglesa, desenvolveu sua civilização fora da 
História (Ariès, 2013, p. 114). A contingência da vida humana é 
desprezível quando comparada à ênfase no Absoluto que impele 
todo o pensamento indiano. 
 
Para compreender, então, a tradição indiana em seus próprios 
termos, o estudo minucioso dos stotrams, ou mesmo slokams, é 
extremamente relevante. À falta de cronologia rígida, devemos nos 
ater à farta literatura salvaguardada por esta civilização, que mesmo 
sendo uma sociedade oral, guarda o significado profundo e 
metafórico do que é realidade também em textos que, se estudados 
de forma apropriada, estão abertos ao entendimento. 
 
A visão de “sat” no viśuddha-vedānta-aṣṭakam 
É no quinto verso dessa composição que o autor trata do aspecto 
―sat‖, da existência, da realidade. É importante frisar que as palavras 
em todo o método de ensinamento védico não têm o papel de 
explicar, mas de apontar para o entendimento do que se pretende 
dizer. A fala, a palavra, é apenas um meio para compreensão, 
utilizada para negar enganos, não para apontar qualidades; no caso, 
tratar do aspecto ―sat‖ é uma maneira de apontar para o 
entendimento do que é a realidade. Sendo absoluto, ―sat‖ não tem 
características, não pode ser descrito, não pode ser adjetivado. 
Adjetivosimprimem limitação ao objeto: se for largo, não é estreito, 
tudo que é comprido, não é curto, e assim por diante. 
 
 
 
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Para entender o slokam (sem desconsiderar que este é um estudo 
introdutório e a própria escrita cria limites maiores que a explicação 
oral), segue a escrita em sânscrito, a transliteração convencional e a 
tradução. 
 
―सन्नासतस्सतो वापि नामान्ता पवषया उत । अननवााङ्महहमा यस्या 
मायापवन ्य ैनमो नमः ॥५॥ 
sannāsatassato vāpi nāmāntā viṣayā uta | anirvāṅmahimā 
yasyā māyāvinyai namo namaḥ 
||5||‖ – Saudações de novo e de novo para a ilusionista, da 
qual a glória é indescritível. [E de que forma é 
indescritível? Assim:] ―o que existe não surge do que existe 
nem mesmo do que não existe‖. Os objetos são aqueles dos 
quais o fim é o nome [e não somente o início]‖. 
 
Anirvāṅmahimā yasyā māyāvinyai namo namaḥ. Quer dizer, 
saudações à ilusionista que é capaz de criar a aparência de realidade 
através da individualização, essa é sua glória indescritível. Vamos a 
um exemplo: uma árvore. O que é uma árvore? Raiz, caule, folha, 
flor e fruto, juntos. Se, dessa árvore, tirarmos todas as folhas, o que 
temos? Sem folhas, mantemos a ideia de árvore em nossa percepção. 
Mas, ao olhar para as folhas, não podemos afirmar que temos uma 
árvore. Se tirarmos as flores e os frutos também: ao olharmos para o 
que foi tirado, flores e fruto, eles não são árvore, mas a mantemos à 
vista. Se retirarmos o caule, porém, provavelmente a ideia de árvore 
desaparece. Ao tirar cada uma das partes, não tiramos ―árvore‖ em 
nenhuma ocasião. Então, que é a árvore? Caule é árvore? Não é. A 
árvore é um conceito individualizado, uma forma que criamos na 
mente e interagimos com ela. Damos realidade a ela, mas essa 
realidade é uma realidade dependente, dependente de cada parte do 
conjunto, no caso, árvore depende, para existir, das partes, mas as 
partes não são árvore, por sua vez. Essa capacidade de fazer existir 
onde não há existência -māyā– é reverenciada no início do verso. 
 
Estudar o termo ―sat‖ é parte da indagação acerca da verdade, 
tattva-viveka. Acompanhando o raciocínio de Glória Arieira, nos 
comentários do Tattvabodhah, texto de Shankara (2014, p. 44), que 
trata o tema: a palavra ―sat‖ vem da raiz verbal ―as‖, que significa 
―ser‖. A verdade, tattva, para a tradição védica, é que existe um único 
real, ―satyam‖, e tudo o mais é aparente, ―mithyã‖. Viveka é a 
discriminação do que é ―tattva‖, a verdade, ou seja, a discriminação 
14 
 
entre satyam e mithyã. Sat é sinônimo de Ãtmã e de satyam, e todos 
fazem referência à verdade que é eterna, imutável e absoluta. Sat é o 
sempre existente, aquilo que nunca muda e, portanto, não pode ser 
negado nos três tempos: presente, passado e futuro, trikãla-
abãdhitam. Sat é a base do próprio tempo. 
 
Esse conhecimento, apesar de abstrato, tem uma implicação muito 
concreta na vida mesma, como também para a ideia de História. O 
conhecimento sobre o Ãtmã, ou a reflexão sobre o que é sat, a 
verdade, é feita por aquele que deseja mokṣa, ou seja, a liberação. 
Liberação de que? Liberação do sentimento de limitação e de 
insatisfação que atormenta a vida e causa sofrimento. ―Mokso me 
bhuyãditcchã‖, significa exatamente isso: o desejo ―que haja 
liberação em mim‖. Este é um desejo urgente daqueles que querem 
aprender a lidar com o fluxo de mudanças inexorável da vida: 
mudanças no corpo, nos pensamentos, nas decisões, nas conclusões, 
etc. Mudanças, no fim, cujo significado está na base da palavra 
―história‖. 
 
Só podemos historiar algo se nos apercebemos das mudanças do 
objeto e, nessa medida, ―fazer história‖ é sempre partir do ponto de 
vista do indivíduo que percebe e articula tempo/mudança e 
narração. A liberação que se fala na tradição védica é sempre da 
mudança, do samsãra, no limite, da história. Daí a Índia não ter 
historiografia, uma escrita da história, e ao mesmo tempo ela 
dedicar atenção ao significado de sat, aquilo que não muda, que é 
imutável. 
 
Samsãra não é a vida em si, mas a interpretação errada de si mesmo 
e do mundo. A liberação que a tradição védica fala é desse 
julgamento equivocado da nossa identidade, que nos aprisiona a um 
círculo de sofrimento. Uma vez que o entendimento do que é o ser 
humano está alinhado ao que é a realidade, sat, a história, tal como 
entendemos seu objeto no ocidente - a vida humana no tempo – tem 
uma realidade mithyã, aparente. Mithyã não é o falso, mas o que é 
passível de experimentação mediante sua realidade dependente. 
Tendo discriminação, mais importante, então, é dar ênfase ao que é 
a própria realidade em si. 
 
Ademais, o desejo de liberação advém da argumentação lógica de 
que para toda mudança ocorrer é preciso algo que suporte esse 
movimento, algo que seja fixo, que seja a base. Advém, também da 
 
 
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percepção empírica individual: apesar do fluxo de mudanças que 
ocorrem na vida de cada um, na história de cada um, há sempre o 
reconhecimento de que o indivíduo sabe quem ele é, todo mundo 
acorda diariamente reconhecendo-se o mesmo. Na visão dos Vedas, 
essa permanência é chamada de Ãtmã, ou sat, e está para além da 
memória e do tempo. 
 
Sat ou ãtmã, como afirma Glória Arieira, 
 
―é como o Sol e está sempre presente. Mesmo quando as 
nuvens o cobrem, ele continua lá; o encobrir é em relação a 
nossa visão do Sol, não a ele mesmo. Da mesma forma, 
mesmo quando a plenitude parece ter sumido, devido à 
presença de vários pensamentos de preocupação e 
insatisfação, ela permanece lá como o Ser‖. (Shankara, 
2014, p. 77) 
 
Ãtmã não é aquilo com o que nós nos identificamos: nosso corpo, 
nossos pensamentos, nossas ações e, por ser diferente disso, seu 
conhecimento oportuniza a pessoa a encontrar um centro em sua 
vida, centro do qual vem toda sua força e liberdade. A liberdade é, 
então, ver-se livre de um modo de pensar e estar no mundo que 
aprisiona –que faz crer que é possível ―adquirir‖ liberdade. Esse 
verbo, ―adquirir‖, não pode ser usado com liberdade porque, uma 
vez que se precise adquirir, significa que não se tem; e uma vez que 
se pretenda adquirir, sanciona-se a ideia de que alguém ou algo pode 
―dar‖ liberdade às pessoas. O conhecimento do Ãtmã esclarece que a 
liberdade só é possível se ela já estiver presente na pessoa que a 
busca, sendo, portanto, um problema da ordem do conhecimento, da 
mudança de cognição, da eliminação da ignorância que a impede de 
perceber essa presença. A liberação não é uma conquista, não é um 
produto da história. É uma liberação da história. 
 
A segunda parte do slokam aprofunda ainda mais o entendimento. 
Faz isso fazendo referência à Madukya Upanishad: ―o que existe não 
surge do que existe nem mesmo do que não existe‖, o verso afirma, 
os objetos são aqueles dos quais o fim é o nome [e não somente o 
início]. Sannāsatassato vāpi nāmāntā viṣayā uta, refere-se à ideia de 
que, sem causa, se algo existe, não pode se modificar. 
 
Afirmar que o que existe não vem daquilo que não existe nega o 
engano de acreditarmos que algo pode surgir do nada. O verso 
16 
 
relembra que essa afirmação não está de acordo com a nossa 
experiência. Tudo que ocorre, ainda que não vejamos, tem uma 
causa. É ilógico um efeito sem causa, não há evidências empíricas de 
algo que, subitamente, tenha surgido do nada. 
 
Agora, mais profundamente, o verso afirma que o que existe não 
pode vir do que existe. Nesse ponto o verso quer explorar, para além 
da relação de causa e efeito - a partir da ideia de transformação que 
aparentemente ocorre na criação das coisas, por exemplo, se eu 
tenho barro, posso transformá-lo em pote – a questão da 
imutabilidade do que existe, do que é real. No clássico exemplo do 
barro que se transforma em pote, o versonos convida a pensar que o 
que está ocorrendo não é a transformação do barro em pote, 
transformação da causa em efeito. O barro continua sendo barro 
mesmo depois do pote pronto. A causa continua senso causa no 
efeito. De onde, então, vem o pote? 
 
O entendimento do conceito de mithya já é pré-requisito aqui. A 
questão não é afirmar que o efeito é aparente. Pode-se analisar isso 
empiricamente: o barro não se transformou ―realmente‖ em pote. O 
ensinamento é que a realidade é una, não se altera, nem se divide. 
Esse movimento de causa e efeito não é possível para o que é ―sat‖. 
Se algo vem de algo e se transforma, se o que é real vem de algo que 
também é real, isso equivale a dizer que a realidade não é absoluta. 
Não pode haver espaço entre duas coisas que existe e, por isso, sat, é, 
por princípio, imóvel. 
 
Assim, o verso afirma que os objetos são aqueles cujo fim é o nome. 
Aqui o autor faz referência à ideia bem explorada no universo de 
Vedanta de que o objeto passa a existir depois que se dá um nome a 
ele. Uma forma, se nos é dito que é algo, criamos um conceito e ela 
passa a existir, tal como a árvore e o pote. Já reconhecendo a 
realidade relativa do objeto, o slokam afirma que o objeto passa a 
existir a partir do momento que eu dou realidade a ele, e deixa de 
existir, é o ―fim‖ dele, quando eu reconheço que ele só existe quando 
dou um nome a ele. Afirmar que a coisa existe porque lhe foi dado 
um nome, apela, então, à percepção da não realidade dos objetos e à 
imutabilidade do Ser, sat. Assim, sat, é aquilo cuja grandeza é 
indestrutível, indescritível, mas ainda assim, passível de ser 
cognitivamente apontada para liberar o homem do fardo da história, 
dando-lhe liberdade para viver sua história. 
 
 
 
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Referências 
Alina Silva Sousa de Miranda é professora adjunta da Universidade 
Federal do Maranhão (UFMA), Campus São Bernardo. Doutora em 
História Social pela Universidade de São Paulo – USP (2013). 
Coordenadora do grupo de pesquisa ―Hístor: cultura e 
epistemologia‖ dedicado, entre outros temas, ao estudo da cultura 
hindu/védica. Estuda Vedanta, sânscrito e mantra tradicionalmente 
no Instituto Vishva Vidya desde 2016. Para a confecção do artigo, 
agradecimentos ao Prof. Victor Mattos, professor de sânscrito do 
Instituto, na tradução do slokam e no seu entendimento. 
Agradecimentos ao Prof. Jonas Masetti, também conhecido como 
Vishvatatha, que gentilmente cedeu sua composição poética em 
forma de stotrampara servir de fonte em nosso estudo a respeito do 
conceito de realidade, sat, da tradição védica. 
E-Mail: alinaslz@gmail.com 
 
ARIÉS, Philippe. O tempo da história. São Paulo: Editora Unesp, 
2013. 
GUÉNON, R. Introdução geral ao estudo das doutrinas 
hindus. São Paulo: Instituto René Guénon de Estudos Tradicionais, 
IRGET, Editora e Distribuidora, 2015. 
GUHA, Ranajit. History at the limit of world-history. New 
York: Columbia University Press, 2002. 
SHANKARA. Tattvabodhah: o conhecimento da verdade. 
Tradução e comentários da Profa. Glória Arieira. 2º edição revista e 
ampliada. Rio de Janeiro, Editora Vidya Mandir, 2016. 
SMITH, Wolfgang. A sabedoria da antiga cosmologia. Trad. 
Adriel Teixeira, Bruno Geraidine e Cristiano Gomes. Campinas, SP: 
Vide Editorial, 2017. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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DA MISSÃO JESUÍTICA À SUA EXPULSÃO NO 
JAPÃO SOB A ÓTICA DO FILME SILÊNCIO (2017) 
Angélica da Cruz Bernardo 
Vânia Maria Siqueira Alves 
 
 
Este artigo analisa a resistência interposta pelos japoneses à missão 
jesuítica através da narrativa do filme Silêncio (2017). É alvo de 
investigação também como o filme constrói a narrativa permitindo 
uma significação do passado, bem como a crítica transmitida sobre o 
expansionismo europeu. 
 
Apresentando o filme 
O filme Silêncio, título original Silence, foi lançado nos Estados 
Unidos da América em 23 dezembro de 2016 e no Brasil em março 
de 2017. O longa-metragem foi dirigido por Martin Scorsese e é uma 
adaptação do romance homônimo (1966) do japonês católico 
Shusaku Endo. Filmado em Taiwan, a maior parte do elenco é 
composta por atores orientais, mais precisamente japoneses, como: 
Issey Ogata, Yosuke Kubosuka, Shinya Tsukamoto, Tadanobu Asano 
etc. Já os personagens ocidentais são vividos pelos atores Andrew 
Garfield, Adam Driver, Liam Neeson e Ciarán Hinds de origem anglo 
americana, estadunidense, inglesa e irlandesa, respectivamente. 
 
O filme apresenta em seu enredo um antagonismo protagonizado 
por ocidentais e orientais. O longa-metragem é ambientado no 
século XVII no Japão, e narra a história de dois padres jesuítas que 
viajam a esse país para encontrar informações sobre o paradeiro do 
padre Ferreira, que havia sido professor e confessor de ambos. O 
padre teria abjurado após uma sessão de tortura realizada por 
oficiais do governo japonês. No entanto, a ação dos oficiais extrapola 
a questão religiosa, atendendo a interesses políticos. Nessa época, 
houve perseguições, suplícios e martírios para aqueles que fossem 
cristãos, pois não havia mais tolerância para o cristianismo no 
Japão. 
 
Expansão do cristianismo ao fracasso da missão 
O filme inicia com cenas de tortura de quatro frades e um membro 
da Companhia de Jesus nas águas termais em Unzen, chamadas 
pelos japoneses de ―infernos‖, no ano de 1633. Nesse momento 
inicial aparece o padre Ferreira, ele e os missionários foram levados 
20 
 
pelo governador de Nagasaki para Unzen, as torturas objetivavam a 
renegação ao evangelho. Os padres não apostataram, mas pediram 
para serem mais torturados, demonstrando as proporções de sua fé. 
Esses martírios eram percebidos como exemplo tanto para fiéis 
quanto para outros missionários, davam coragem aos que 
permanecessem vivos para que suportassem todo tipo de 
sofrimento. Significava defender até a morte a crença no Deus 
cristão. Logo após essa sequência, dá-se início a entrada dos padres 
Garupe e Rodrigues ao Japão em busca do padre Ferreira. 
 
Para compreender esse contexto de perseguição aos cristãos no 
Japão é preciso considerar a introdução do cristianismo nesse país e 
seus embates entre os séculos XVI e XVII. A chegada dos 
portugueses na Terra do Sol Nascente ocorreu em 1543, em 
Tanegashima. O xogum que estava no poder nesta época era Oda 
Nobunaga, que abraçou o cristianismo, assim a nova religião obteve 
um florescimento durante esse xogunato. O budismo nessa época 
fora hostilizado pelo chefe militar por estar envolvido com revoltas 
populares, e o xintoísmo estava passando por um momento de crise. 
O imperador era considerado apenas uma figura simbólica e 
principal representante do xintoísmo. 
 
O primeiro jesuíta a ter contato com o Japão foi Francisco Xavier 
(1506-1552), sendo responsável pela implantação da religião cristã 
nesse país. Os japoneses convertidos e batizados recebiam nomes 
ligados a figuras do cristianismo: Maria, Gracia, Madalena, Pedro 
etc. Um exemplo que podemos citar é do japonês Yajiro, um ex-
monge budista, que ao conhecer Xavier converteu-se ao catolicismo 
recebendo o nome de Paulo da Santa Fé. Foi o primeiro japonês 
cristão, e, serviu de intérprete e guia de viagem para os portugueses 
[YAMASHIRO, 1989, p. 52]. 
 
Os europeus visavam inicialmente o intercâmbio comercial – como a 
espingarda, vidro, vinho, ouro, prata, cobre etc. – mas 
posteriormente o cristianismo foi introduzido sistematicamente no 
país. Dessa forma, os portugueses exerciam considerável influência 
religiosa, econômica, cultural e política dentro do território japonês 
até 1587. Toyotomi Hideyoshi (1536-1598), que ajudou na 
reunificaçãodo país, teve simpatia pela religião num primeiro 
momento. 
 
 
 
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As resistências e hostilidades ao cristianismo iniciaram-se no 
governo de Hideyoshi, segundo xogum, quando este assumiu o 
comando da unificação do país, em 1582. Paralelamente, os jesuítas 
começam a perder o monopólio da missão com a chegada dos 
Franciscanos, e também sua influência sobre a atividade comercial. 
Apesar de, por algum tempo, haver prosperidade na atividade 
proselitista, logo o choque da nova religião com as tradições e 
religiões ancestrais se mostrou evidente. 
 
Embora o filme atenha-se à intolerância religiosa dos japoneses em 
relação ao cristianismo, os europeus também não reconheceram os 
costumes e crenças religiosas presentes no país do sol nascente 
durante o processo de implantação e expansão do cristianismo. O 
desejo de cristianização desses povos não levou em conta o princípio 
da alteridade. A intolerância religiosa e cultural dos jesuítas causou 
choques culturais entre os próprios japoneses. Algumas divergências 
que podemos citar é a crença dos cristãos em um único ser supremo 
onipotente e onipresente, já o xintoísmo, religião nativa do Japão, 
apresenta vários deuses que compõem seu panteão sagrado: ―os 
ocidentais de fato provocaram injúria ao destruir inúmeras imagens 
religiosas japonesas acusadas de pagãs‖ [SAKURAI, 2017, p. 108]. 
 
De acordo com a mitologia japonesa, os primeiros imperadores 
japoneses são descendentes diretos da estirpe imperial de 
Amaterasu, que é a deusa do Sol, a mais importante do panteão 
xintoísta. Assim, o imperador é o representante máximo do 
xintoísmo na terra. Como o xintoísmo prega a crença em diversos 
deuses, e tem uma relação estrita com a natureza, essa característica 
será vista como cultura pagã pelos ocidentais. Assim, os ocidentais 
―tinham ideias estranhas acerca de um poder divino que transcendia 
quer os imperadores, quer os xoguns‖ [HENSHALL, 2017, p. 84]. 
 
A postura, muitas vezes intolerante, dos jesuítas com as crenças 
japonesas, as alianças de Hideyoshi com poderosos daimyos, a fim 
de suprimir sua oposição e promover a unificação do Japão, foram 
fatores que contribuíram para questionar a presença da Companhia 
de Jesus. Hichmeh [2013, p. 5] aponta a importância dada pelos 
jesuítas, especialmente o proeminente padre japonês Fabian Fukan 
ao cumprimento do primeiro mandamento cristão, ―amar a Deus sob 
todas as coisas‖, como fator instigador do ceticismo das autoridades 
japonesas em finais do século XVI e, principalmente, após a 
unificação do Japão em 1600. A lealdade exclusiva a Deus ameaçava 
22 
 
o poder do Imperador, então era necessário extirpar esse mal do solo 
nipônico. Em 1587, o líder militar Hideyoshi promulgou o Édito de 
Hakata que tratou da expulsão dos missionários do território 
japonês, permitindo ainda a continuidade do comércio com os 
portugueses. 
 
Esse édito demonstra que outros segmentos, exceto os padres, 
poderiam entrar no Japão, desde que não propagassem a fé cristã. 
Fica claro o interesse na manutenção do comércio com os europeus. 
Posteriormente, foi descoberto por oficiais nipônicos que os 
portugueses estavam praticando o comércio de escravos japoneses. 
Isso era inadmissível aos olhos dos oficiais estatais. Com o passar do 
tempo, a atividade missionária atrelou-se a um possível desejo de 
colonização que ficou evidenciado no incidente de San Felipe. 
 
―O incidente de San Felipe (1596) – em que o homônimo 
galeão espanhol franciscano, o qual fez a lucrativa viagem 
transpacífica entre Manila e Acapulco naufragou na costa 
japonesa -, a situação para os europeus e seus conversos 
deteriorou-se. Dentre outros itens, o navio carregava 
armas, aprofundando as suspeitas de Hideyoshi de que os 
frades representavam uma primeira onda de colonialismo 
ibérico‖ [WALKER, 2017, p. 125]. 
 
A partir de 1600, os cristãos vivenciaram uma violenta repressão 
com a expulsão de padres jesuítas, a exigência da renúncia à fé cristã 
por parte dos seus praticantes e, por fim, a morte daqueles que 
negassem a apostasia [Hichmeh, 2013, p. 9]. É nesse contexto que o 
filme se inicia, mostrando a tortura e os martírios cristãos em 
Unzen. Narrada por flashback, a próxima sequência traz o Padre 
Alexandre Valignano lendo a carta de Ferreira aos padres Garupe e 
Rodrigues. A partir daí, ocorre a entrada de Garupe e Rodrigues, 
protagonistas da história, dando mais dinamismo à mesma, 
conforme apontam os autores Imme e Bona: 
 
―o que deixa as histórias mais complexas é a influência dos 
personagens. São os personagens que dão credibilidade à 
história, conferindo-lhe um novo dimensionamento e 
conduzindo-a para novas direções‖ [Seger, 2007, p. 177 
apud Imme, Bona; 2014, p. 19]. 
 
 
 
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A última carta do padre Ferreira teria chegado por meio de um 
comerciante holandês e junto à carta, a notícia de que ele teria 
renegado a fé cristã e estaria vivendo como um japonês. A partir 
dessa introdução, se desenrola a narrativa do filme com a ida dos 
dois padres para o Japão. 
 
Apesar de ter pouca importância e destaque no filme, o padre 
Alessandro Valignano foi um dos principais responsáveis pela 
missão no Japão. Ao deixar o arquipélago em 1582, a situação da 
Companhia de Jesus era bastante promissora: Nagasaki estava sob 
administração da Companhia, o número de fiéis era significativo e 
inúmeras igrejas espalhadas por Kyushu e parte de Kanto. ―Os 
jesuítas, à época, detinham respeito dentre diversas autoridades e 
entre as camadas mais baixas da sociedade japonesa‖ [HICHMEH, 
2013, p. 4]. 
 
―Em julho de 1590, no entanto, ao retornar ao Japão, 
Valignano encontrou um contexto bastante diferente 
daquele que havia visto há quase dez anos: o daimyo Oda 
Nobunaga, que havia permitido a entrada e ação jesuítica, 
estava morto; Nagasaki não era mais uma colônia jesuíta‖ 
[ELISONAS, 2006: 132 apud Hichmeh, 2013, p. 5]. 
 
Como o filme constrói sua narrativa sobre a história do 
revertério da missão jesuítica 
O longa-metragem apresenta um antagonismo de duas culturas, 
Japão e Portugal, baseando-se em acontecimentos verídicos – como 
as torturas, o cristianismo ilegal, perseguições etc. – para retratar o 
martírio dos jesuítas nesse período conturbado. Esses elementos – 
ficção e realidade – ajudam a tecer sua narrativa e a retratar o 
passado de uma forma genérica. 
 
―Certamente não é a história no sentido em que geralmente 
usamos essa palavra, não é a história que tenta reproduzir 
com precisão um momento específico e documentável do 
passado. No entanto, podemos vê-la como um momento 
histórico genérico, um momento que afirma a sua verdade 
representando muitos momentos daquele tipo‖ 
[ROSENSTONE, 2010, p. 166]. 
 
Dessa forma, o filme conjuga situações e personagens reais ou 
fictícios, mas se localiza no contexto de perseguição aos jesuítas. 
24 
 
Alguns indivíduos que compõem a trama realmente existiram, como 
Alexandre Valignano, Inoue Sama, Cristóvão Ferreira. Outros são 
fictícios, mas ambientados no contexto, bem como algumas datas 
também não correspondem aos momentos de atuação das 
personagens. Um episódio que ilustra melhor esse momento 
histórico genérico é quando o Padre Alexandre Valignano aparece no 
filme lendo a carta de Ferreira datada em 1633. Dessa forma, a data 
como o personagem são dados usados de forma genérica, para 
ilustrar e dar vida ao contexto geral daquela época, já que Valignano 
na verdade viveu entre 1539 a 1606. Outra construção genérica que 
podemos ver é quando Rodrigues chega ao povoado de Goto e 
pergunta a um aldeão se ele conhece padre Ferreira. O aldeão afirma 
que sim, e que este construiu um lugar para as crianças e os doentes. 
Embora não haja escritos que comprovema realização dessas 
edificações pelo padre Ferreira, como consequência da atividade 
missionária houve a construção de igrejas, santas casas de 
Misericórdia, colégios e missionários. 
 
Seguindo as classificações de Rosenstone, o filme Silêncio pode ser 
considerado um drama histórico comercial devido aos diversos 
aspectos desse gênero que o longa-metragem apresenta em suas 
estruturas internas. A invenção é um elemento crucial nessas obras, 
além de ajudar a reforçar a carga emocional do filme, constitui um 
aspecto fundamental para o filme dramático segundo Rosenstone 
[2010]. Podemos destacar algumas invenções no filme como a cena 
inicial, em que está presente Padre Ferreira e um grupo de 
missionários que foram submetidos ao suplício de águas, sendo que 
na historiografia sobre as perseguições aos jesuítas no Japão eles 
foram submetidos ao suplício do poço; outra invenção é o 
personagem Garupe, apesar de ser um personagem coadjuvante, a 
cena em que morre tentando salvar japoneses convertidos é 
totalmente comovente; também podemos mencionar a experiência 
do personagem Rodrigues como personificação de Cristo – a 
pregação do evangelho, o ato de perdoar diversas vezes Kichijiro, a 
traição de Kichijiro vendendo o padre por 300 moedas de prata, o 
itinerário ao redor da cidade de Nagasaki com vários japoneses 
rindo de sua cara e lhe jogando objetos – e seu testemunho diante do 
sofrimento de vários cristãos convertidos. Ainda conforme 
Rosenstone essas alterações no registro histórico resultam das 
exigências de um filme dramático [ROSENSTONE, 2010, p. 70]. 
 
 
 
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O que há de invenção e distorção no filme logo é ―compensando por 
uma espécie de verdade dramática que consegue condensar dúvidas‖ 
[ROSENSTONE, 2010, p. 71], por exemplo, a vida de Padre Ferreira 
que foi à Terra do Sol Nascente com intuito de ―enfrentar a morte‖ 
[YAMASHIRO, 1989, p. 84], com essa atitude desafiava as 
autoridades japonesas e também transgredia as leis que estavam em 
vigor naquele momento. No filme, Ferreira é submetido à tortura do 
poço, após sua captura em 1633, e desde que este apostatou, iniciou 
uma vida segundo costumes japoneses, adotando o budismo como 
religião principal, viveu maritalmente com uma japonesa e escreveu 
um livro que expunha os erros de sua antiga religião. De um modo 
geral isso é o que acontecia com a maioria dos missionários que 
apostatavam, além de se inserirem socialmente como membros de 
um mundo reverso às ordens do cristianismo, ajudavam a perseguir 
cristãos e no processo de abjuração dos mesmos. 
 
Portanto, as alterações que o filme sofreu não atrapalham o 
significado e o sentido histórico do filme, a reconstituição histórica 
dos fatos e carga dramática que o filme exige são elementos 
indissociáveis e que ajudam a enriquecer seu enredo. 
 
―Para o diretor de um filme dramático que precisa criar – é 
necessário enfatizar essa questão – um passado que 
satisfaça as demandas, práticas e tradições tanto das mídias 
visuais quanto da forma dramática, isso significaria ir além 
da ―constituição‖ dos fatos a partir de vestígios de 
evidências encontrados em livros ou arquivos e começar a 
inventar alguns desses fatos‖ [ROSENSTONE, 2010, p. 64]. 
 
Outro elemento que compõe uma narrativa dramática é o ―conflito 
de vontades‖ que se caracteriza no ato do personagem em resolver 
alguma situação ou mesmo completar uma missão e há um 
antagonista que assume a tarefa de impedir que o outro concretize 
seu desejo. Podemos visualizar como protagonista principal 
Sebastião Rodrigues, que tem como primeira meta encontrar padre 
Ferreira, uma missão secundária é apresentada no desenrolar do 
filme, que consiste em continuar a pregação missionária no Japão. 
 
―Ele é mais bem definido como sendo personagem que tem 
algo para fazer ou alguma meta para alcançar, e o 
desenvolvimento da história foca a trajetória deste até 
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alguma resolução, seja o sucesso ou fracasso‖ [IMME, 
BONA; 2014, p. 19]. 
 
E o personagem antagonista do filme, representado por Inoue Sama, 
não deve ser enxergado como um vilão, mas aquele que dificulta e 
impossibilita Rodrigues a concluir sua missão. Esse conflito se torna 
mais tenso quando Rodrigues insiste na ideia do cristianismo 
florescer no Japão outra vez, enquanto Inoue tenta erradicar essa 
religião indesejada no país. Tal estudo pode ajudar a não ter uma 
visão maniqueísta de Rodrigues como representação do lado bom e 
Inoue como o lado mal da história. 
 
―Serger [2007, p. 193] afirma que o ‗conflito é a base para o 
drama, pois o drama é essencialmente feito de conflito‘. A 
partir da afirmação de Seger, deve ser atento o fato de que 
não é possível criar um drama no qual nada está errado. 
Algo deve estar errado, alguém deve ter vontade para 
resolver tal situação e algo ou alguém também deve criar 
obstáculos para isso‖ [IMME; BONA, 2014, p. 22]. 
 
Para a construção dessa narrativa, houve um cuidado ao mostrar a 
cultura opressora, mas também ao exibir uma crítica quanto às 
intervenções dos países da Europa. O diretor, além de ter afinidades 
com temas religiosos, nos ajuda a entender como alguns cristãos 
conseguiram manter sua religiosidade no cristianismo, um credo 
que é diferente da cultura nativa; e, também, atenta também para a 
importância de uma cultura e sua preservação. 
 
Considerações Finais 
O primeiro contato de povos da Europa com o Japão ocorreu no 
século XVI, pouco tempo depois se iniciou o processo de unificação 
do país. A unificação era de suma importância, pois com o território 
fragmentado, poderia haver uma chance maior de se submeter a um 
processo de dominação por outros povos. Com a inserção do 
cristianismo, os preceitos da nova religião se chocaram com a 
cultura japonesa. O cristianismo representou uma ameaça à figura 
divina do imperador e à própria cultura japonesa. Sua erradicação 
do território japonês pode ser entendida como um ato político, e 
uma forma de preservação a essa cultura diversificada. 
 
O filme não narra a trajetória dos jesuítas desde seu começo, nem 
como foi o estopim da deflagração de conflitos, mas começa a 
 
 
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narrativa a partir de 1633, momento no qual já havia iniciado a 
perseguição e erradicação do cristianismo. Silêncio coloca o público 
em contato com uma cultura repressiva e opressiva e faz com que 
espectador desfrute das angústias que os missionários e convertidos 
passaram naquela terra. Mas também lança uma reflexão sobre a 
maneira como o ocidente tenta se sobrepujar ao oriente. 
 
O longa-metragem não deve ser apenas visto como um instrumento 
de entretenimento, mas aquele que traz uma narrativa peculiar 
sobre o passado. Ao utilizar ficção e realidade, podemos concluir que 
o filme constrói o passado de acordo com seus próprios recursos. É a 
sua linguagem diversificada e específica que ajuda a reconstruir e 
representar o passado de uma forma diferente, contribuindo para a 
propagação do conhecimento histórico. Silêncio é uma obra histórica 
que, ao mesmo tempo, representa o passado de perseguição aos 
jesuítas, desvenda os mecanismos utilizados para a preservação da 
cultura japonesa e propõe uma narrativa crítica sobre o 
expansionismo europeu. 
 
Referências 
Angélica da Cruz Bernardo é graduada em História pela 
Universidade Estadual de Minas Gerais. 
Email: angel.angelicacruz@hotmail.com 
Vânia Maria Alves Siqueira doutora em Museologia e Patrimônio do 
Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio - PPG-
MUS (UNIRIO/MAST), possui mestrado em História Social pela 
Universidade Severino Sombra e historiadora. 
Email: vaniamaria_siq@yahoo.com.br 
Agradecimento ao professor doutor Wallace Andrioli Guedes que 
muito contribuiu para o desenvolvimentoda pesquisa e resultado 
final da mesma. 
 
IMME, Tiago André; BONA, Rafael Jose. Narrativa de cinema: uma 
análise dos conflitos que sustentam a história do filme Taxi Driver. 
Temática, Paraíba, v.10, n. 8, Agosto2014, p.16-31. Disponível 
em:<http://www.periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/tematica/article
/view/20287/11220>Acesso: 12 jun. 2018. 
HENSHALL, Kenneth G. História do Japão. 2ª Ed. Tradução de 
Victor Silva. Lisboa: Portugal; EDIÇÕES 70, 2017. 
HICHMEH, Y. S. S. O cristianismo no Japão: Do proselitismo jesuíta 
à expulsão da Igreja. In: XXVII SIMPÓSIO NACIONAL DE 
28 
 
HISTÓRIA: Conhecimento histórico e diálogo social. ANPUH. 
Natal: RN, Jul. 2013. 
ROSENSTONE, Robert A. A história nos filmes, os filmes na 
história. Tradução de Marcello Lino. São Paulo: Paz e Terra, 2010. 
SAKURAI, Célia. Os japoneses. 2ª Ed. São Paulo: Contexto, 2018. 
SILÊNCIO. Direção: Martin Scorsese. Produção: Martin Scorsese, 
Gaston Pavlovich, Vittorio Cecchi Gori, Barbara De Fina, Randall 
Emmett, Emma Tillinger Koskoff, Irwin Winkler. CATCH PLAY; IM 
GLOBAL, 2016. 1 DVD (160 min), son., color., leg. 
WALKER, Brett L. História concisa do Japão. Tradução: Daniel 
Moreira Miranda. São Paulo: EDIPRO, 2017. 
YAMASHIRO, José. Choque luso no Japão dos séculos XVI e 
XVII. São Paulo: IBRASA, 1989. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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EXPERIÊNCIA DE ANGÚSTIA EM SARTRE E A 
SAÍDA DO SÁBIO CHINÊS 
Arthur D‟Elia 
 
 
Introdução 
Este trabalho visa criar um diálogo intercultural e atemporal entre 
dois autores, um ocidental e um oriental chinês. São eles Sartre 
[1905-1980] e Laozi [séc. 6 AEC, também grafado como ‗Lao-Tsé‘]. 
Em Sartre serão trabalhados os conceitos de angústia, e sua relação 
com a liberdade; com Laozi, haverá uma preocupação com o ―nada‖ 
e a provação de sua ontologia, o ‗agir não agindo‘ [Wuwei] e, acima 
de tudo, enxergar por meio da ótica do sábio, tal como pensara 
Laozi, a questão da angústia. 
 
Nesse sentido, nosso trabalho se orienta pela perspectiva teórica de 
François Jullien [2010], que propõe a possibilidade de utilizarmos o 
pensamento chinês como uma forma de contraponto as elaborações 
da tradição Ocidental. Como ele mesmo afirmou, 
 
―O benefício deste desvio pela China é duplo. 
Primeiramente, o de descobrir outros modos possíveis de 
coerência, que denominarei outras inteligibilidades; e, 
assim, sondar até onde pode ir o desenraizamento do 
pensamento. Mas este desvio implica também um retorno: 
a partir desse ponto de vista de exterioridade, trata-se de 
retornar aos pressupostos a partir dos quais a razão 
europeia se desenvolveu − pressupostos ocultos, não 
explicitados, que o pensamento europeu veicula como uma 
evidência, a tal ponto os assimilou, e sobre os quais 
prosperou. O objetivo é, portanto, retornar ao impensado 
do pensamento, tomando a razão europeia pelo avesso a 
partir desse ponto de vista de exterioridade. Ao mesmo 
tempo sair da contingência de seu espírito (passando pela 
prova de um outro quadro de pensamento); e explicitar o 
―nós‖ (não somente da ideologia, mas também das 
categorias de língua e de pensamento) que opera sempre 
implicitamente nesse ―eu‖ que diz tão soberbamente: ―eu 
penso‖…‖ [Jullien, 2010, p.2] 
 
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O sábio chinês de Laozi significa para nós, portanto, uma dessas 
opções de desvio, de resposta alternativa ao problema elencado por 
Sartre. De fato, a temporalidade indicaria um anacronismo nessa 
comparação [Laozi teria existido antes], mas nos propomos a ler o 
problema segundo nossa constatação – feita por Sartre – e em 
seguida, dar a outra visão possível de um sistema de pensamento 
altero a tradição Franco-Ocidental. 
 
A angústia em Sartre 
Antes de mais nada, precisar-se-á reconhecer que a angústia só é 
possível com a consciência de liberdade (que é sua estrutura 
essencial), tal fato ocorre quando o ser tem de escolher entre 
possibilidades das quais uma delas, após a nadificação das outras, 
corresponderá ao seu existir; no momento em que escolhe, ele tem 
consciência de que é livre para escolher dentre as alternativas 
possíveis, pois existe um nada entre os motivos e o ato, o motivo em 
si é ineficaz por ser algo que aparece para consciência e cabe ao ser 
da consciência determinar seu ato com tal aparição ou não (Sartre, 
2013). 
 
A liberdade assume papel fundamental, pois sem ela a realidade 
teria um caráter determinista. Considerando que existência precede 
a essência, o ser não fica subjugado a uma possível "natureza 
humana" ou destino ou pré-determinado por uma divindade; ele 
agora pode escolher livremente entre as várias possibilidades que 
contemplam o seu existir de acordo com o que aparece a ele (Sartre, 
2013). 
 
Por conseguinte, pode-se definir angústia como consciência de ser 
seu próprio fluir do existir à maneira de não sê-lo, ou seja, quando o 
sujeito reconhece o que aparece a ele como meras possibilidades; 
dentre as quais o mesmo terá de escolher, o que leva-o a perceber 
que é livre e tal liberdade angustia-o, pois tais possíveis que podem 
ser escolhidos são insuficientes. No entanto, a angústia pode ocorrer 
com relação a um fato futuro ou um fato passado (Sartre, 2013): 
 
 Angústia ante o fato passado. Podemos explicá-la 
disponibilizando um simples exemplo: Carlos decidiu parar 
de jogar basquete. Mas todas as vezes que se depara com uma 
quadra, percebe que nada o impede de jogar, a decisão 
tomada anteriormente é ineficaz, pois a chance de jogar 
novamente é uma possibilidade possível; a resolução 
 
 
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escolhida no passado é ultrapassada, pois existe a 
possibilidade de Carlos ser tal resolução à maneira de não sê-
la. A decisão tomada no passado está presente na consciência 
de Carlos, portanto, ele tem consciência de sê-la, mas ao ver a 
quadra, ele tem a possibilidade de ser à maneira de não ser 
esta escolha passada. 
 Angústia ante o futuro. Pode-se explicá-la também com um 
simples exemplo: Um estudante no instante em que realiza 
uma prova de matemática, depara-se com uma questão 
extremamente difícil; ao lado dele, está a aluna com a melhor 
nota de matemática da turma. O garoto tem a possibilidade 
de copiar a resposta e provavelmente acertar a questão ou não 
colar e tentar resolver a questão ou deixar em branco. O 
mesmo possui motivos para efetuar cada uma das três 
possibilidades. O que ele "é" no instante presente, necessita 
do que ele ainda não é para efetuar sua ação, ou seja, o que 
"não é", corresponde a cada "eu" dele próprio que aparece em 
cada um dos motivos e, por conseguinte, cada "eu" que ele 
não é lhe demonstra seu ato seguido do efeito; tal indecisão 
ocorre por conta da contra angústia com que ele se deparou, a 
contra angústia cessa a angústia ao encerrar a indecisão e 
fazê-lo tomar uma decisão definitiva. 
 
A contra angústia fará com que ele seja na medida de sê-lo, ou seja, 
escolhendo uma das possibilidades, o mesmo vê-se sendo o que vai 
ser. Neste exemplo, a angústia localiza-se antes da indecisão, de tal 
modo que ele "foi" as três possibilidades, se por um momento ele foi 
cada uma delas e cada uma é o que a outra não é, logo ele acabou 
sendo na medida de não sê-lo (Sartre, 2013). 
 
Laozi e uma possível resposta à questão da angústia 
Fazemos agora nossa ida e retorno até a China. A escolha em utilizar 
Laozi para tratar desta problemática parte do pressuposto de que 
situação na qual se desenvolve a angústia se encontra contemplada 
nos seus escritos. Laozi pensou a angústia – e uma resposta para tal 
– a partir da percepção de um estado de existir que, nos escritos 
cineses, é entendido como ‗vazio‘. 
 
Após uma breve exposição dos conceitos Sartreanos, é preciso 
compreendero caráter ontológico deste ‗nada‘ ou ‗vazio‘, de acordo 
com a filosofia taoísta desenvolvida pelo grande mestre chinês, para 
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depois tratar desta questão. Segundo Laozi, no Daodejing [Livro da 
Virtude e do Caminho]: 
 
O Tao produziu o um, 
o um produziu o dois, 
o dois, o três e o três, todas as coisas. 
Todas as coisas deixam atrás de si a obscuridade de onde 
procedem e avançam para abraçar o brilho em que 
imergem, 
enquanto são harmonizadas pelo sopro do vazio. 
Um sopro imaterial forma a harmonia. 
O que os homens detestam é a solidão, a inatividade e o 
abandono. [Verso 1] 
 
Trinta raios formam o cubo; 
Da renúncia à sua personalidade 
é feito o valor da roda. 
Modela no barro um vaso 
e da forma impessoal de sua cavidade 
e da impersonalidade dos espaços vazios 
Elimina as portas e janelas da parede 
e da impersonalidade dos espaços vazios 
é que surge o mérito da casa. 
É através da existência das coisas, portanto, que nós 
tiramos proveito. 
E pela sua insignificância que ficamos servidos. [Verso 11] 
 
Nestas passagens, fica evidente que havia um Qi (matéria) disperso, 
e o vazio ―deu forma‖. Do equilíbrio nasce a forma. Esse vazio 
juntamente com a matéria formam o universo, é o uno e o verso; 
para correr, andar, até mesmo a menor partícula a qual conhecemos 
como átomo, precisa preencher algo, a matéria precisou preencher 
um espaço e esse espaço é o vazio ou o nada. Percebe-se, portanto, a 
presença desse nada no real, nada que é ausência de tudo, a questão 
é que esse nada não existe, ou seja, não tem ser, mas ele faz parte do 
real, tem status ontológico, ele sempre 'está'. 
 
Por conseguinte, vale ressaltar que na escrita chinesa, 
principalmente a da época, havia a palavra ser, mas utilizada como 
um verbo auxiliar, não um conceito (como nos gregos) e, no entanto, 
o ―estar‖ desempenhava uma função muito mais importante, até a 
nível conceitual. 
 
 
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Desse estado de ‗estar‘ é que percebe-se a dimensão do ‗vazio‘ como 
um norteador da existência. O ‗vazio‘ não esvazia, mas sim, dá forma 
a existência. Dando forma, dá-lhe igualmente sentido, que é 
percebido, de modo análogo, pela função ou pelas propriedades. 
Assim, o ‗existir‘ passa a ser um estado harmônico entre a propensão 
[vazio] e o estado presente das coisas [a existência manifesta na 
forma e no agir]. 
 
Situações em que ocorre angústia 
Porém, torna-se necessário analisar as situações de angústia, 
começando pela que ocorre diante um fato passado Laozi propunha 
para isso uma atitude de desprendimento, de evitar tentar controlar 
o sentido das ações, que ele denominou de Wuwei [não ação, ou ação 
isenta]. A partir desse ‗agir não agindo‘, numa recusa do desejo, 
poder-se-á inferir que tal sábio não sofreria com a experiência de 
angústia: 
 
O discípulo da sabedoria estuda dia - a - dia; 
o discípulo de Tao perde-se dia a dia. 
Pela contínua renúncia 
consegue-se que as coisas acabem correndo por si. 
Nada fazendo tudo acaba sendo feito. 
Aquele que conquista o mundo muitas vezes o conseguiu 
pela não-ação, 
Quando alguém é compelido a fazer alguma coisa, 
é porque o mundo está pronto muito além de sua 
conquista. [Verso 48] 
 
Com relação a esse acontecimento passado, o sábio sequer teria a 
preocupação em como o mesmo poderia estar praticando aquilo que 
havia decidido terminar, pois isto o faria ter desejo, mas aceitaria o 
fato como parte do fluir das coisas e não se manteria diante da 
situação com arrependimento; ou seja,as medidas tomadas com a 
utilização da liberdade não seriam postas em cheque simplesmente 
pela ausência de desejo, rancor. O sábio seguiria com sua jornada 
tranquilamente, mesmo após passar por um lugar que o fizesse 
recordar de algo ou o lembrasse de uma decisão tomada. 
 
No exemplo dado anteriormente, se o rapaz que jogava basquete 
seguisse os conselhos de Laozi, o mesmo ao passar pelo local onde 
teria uma lembrança do esporte que praticava, não sofreria com 
aflições de nenhuma natureza, mas encararia a questão como parte 
34 
 
do fluir da vida e como parte da escolha que fez; estaria desejando se 
por um momento arrependesse-se ou percebesse que talvez poderia 
ter feito outra escolha, pois já pensaria na possibilidade de estar 
jogando novamente. O sábio não deseja! (Nunes, 2003) 
 
Ao fato futuro, há de se empregar a mesma lógica. No exemplo em 
questão, o sábio está diante de uma ponte a qual corre risco de cair: 
o mesmo pode escolher o suicídio, atravessá-la ou sentar na mesma 
e ficar até criar alguma coragem; porém, o sábio, como não receia a 
morte [que um dia ocorrerá, inevitavelmente], rejeita o niilismo e 
também precisa seguir seu fluxo, sem desejos, medos ou 
ressentimentos, atravessando a ponte tranquilamente. 
 
Um não sábio entraria em angústia pelo fato dessas três 
possibilidades serem totalmente insuficientes, a sua percepção de 
que tem liberdade e a necessidade de escolher uma dentre as três 
possibilidades o deixaria num estado angustiante. O sábio não 
pensaria em suicídio porque estaria desejando morrer e o único 
desejo que ele pode ter é o de não desejar, não ficaria sentado até 
criar coragem porque ele não sente medo, então só restaria seguir 
adiante seu caminho, sem preocupações (Watts, 1995). 
 
No entanto, é preciso ficar atento aos ensinamentos de Laozi e não 
confundir com niilismo ou um pessimismo com relação a vida. O 
taoísmo filosófico também tem como pressuposto a harmonia com a 
natureza e também consigo mesmo; um estado de pessimismo com 
relação a vida, que pode acarretar em um niilismo ou desejo de 
findar a vida, não resulta em harmonia, principalmente no que tange 
a natureza. Retirá-la seria romper com a naturalidade das coisas e 
até mesmo uma negação da existência que poderia possibilitar, antes 
de mais nada, uma continuação da ligação desse sábio com a 
natureza. Apesar do sábio não ter medo da morte, não ter desejos ou 
preocupações, o mesmo não pode errar ao desejar a morte ou 
desejar não ter vivido, pois contraria o fluir do universo, a ordem do 
Tao, além de demonstrar uma extrema impaciência e ansiedade, 
alguns atributos que Laozi não postulou naquele a que chamou de 
sábio (Watts, 1995). 
 
Conclusão 
Logo, após a resolução, tornar-se-á importante lembrar que o sábio 
chinês de Laozi não sofreria com a angústia da qual falara Sartre, 
principalmente por ter como fator determinante o não desejo. 
 
 
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Torna-se importante ressaltar a importância da ontologia do nada, 
pois esse ‗nada‘ é o que empenha o sábio em seu agir não agindo, 
além de demonstrar como tudo o que existe precisou do vazio para 
ser, pois precisou preencher tal vácuo para poder existir, enquanto o 
vazio sempre "está", mesmo não existindo, é a ação do invisível no 
visível. 
 
Por conseguinte e não menos importante, a caracterização do sábio 
taoísta jamais deve ser igualado a de um que escolhe pelo niilismo, 
pois como já for a demonstrado, o sábio rejeita o desejo, 
impaciência, tristeza...e quaisquer outras determinações que 
contrariem a ordem do Tao e venham a desarmonizar o ambiente ou 
a si próprio. O sábio não se angustia! 
 
Referências 
Arthur D‘Elia é graduando em Filosofia pela UERJ. 
Agradecimentos ao professor André Bueno pelas orientações nesse 
texto. 
 
JULLIEN, François. Pensar a partir de um fora [China]. Revista 
Periferia, v. 2, n. 1, jan./jun. 2010 
NUNES, Murillo. O livro do caminho perfeito: Tao Té Ching. 
São Paulo: Pensamento, 2008. 
SARTRE, Paul. O ser e o nada: Ensaio de ontologia 
fenomenológica. Petrópolis: Vozes, 2013. 
WATTS, Alan. TAO: O curso do rio. O significado e a 
sabedoria do taoísmo, de acordo com os ensinamentos de 
Lao-Tzu, de Chuang-Tzu e de Kuan-Tzu. São Paulo: 
Pensamento,1995. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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CRENÇAS ORIENTAIS: 
UMA ANÁLISE SOBRE DEATH NOTE (2006) 
Bruno Refundini de Oliveira 
Vanda Fortuna Serafim 
 
 
A pesquisa analisa o animê Death Note (2006-2007) produzido por 
Tetsuro Araki, com o intuito de discutir as crenças orientais 
presentes na obra enquanto objeto da história, destacando a a 
presença de outros elementos místicos. Os aportes teóricos que 
guiam essa pesquisa consistem em Jacques Derrida (2000) e Mircea 
Eliade (1992). E do ponto de vista metodológico, Marcos Napolitano 
(2011) e Carlos Ginzburg (1991). 
 
Introdução 
Antes de começar as menções sobre o desenvolvimento da pesquisa 
é necessário compreender uma breve genealogia de Death Note. A 
obra é originalmente narrada em mangá, escrita por Tsugmi Ohba 
(pseudônimo) e ilustrada por Takeshi Obata. A dupla é reconhecida 
por desenvolver as obras Death Note (2003-2006), ―Bakumam‖ 
(2008-2012) e ―Platinum End‖ (2015) em parceria. Serializado 
semanalmente pela ―Weekly Shõnen Jump‖, entre dezembro de 
2003 a maio de 2006, dividido em 108 capítulos, compilados em 12 
volumes ―Takõbon‖. A obra recebeu adaptações em animê, filme 
―live action‖, ―light novel‖, musical, série televisionada e jogos 
eletrônicos. 
 
O animê ―Death Note‖ (2006-2007), fonte dessa pesquisa, foi 
produzido pelo estúdio nipônico ―Madhouse‖, serializado 
semanalmente, dirigida pelo diretor geral Tetsurõ Araki e escrito por 
Toshiki Inoue. Baseado no manuscrito original, buscou ser fiel a 
essencial original da história, realizando adaptações no enredo, que 
concilie o enredo e as peculiaridades de uma obra audiovisual. 
 
A obra tem como personagens principais; Light Yagami, humano 
que teve o ‗primeiro‘ contato com o sobrenatural que resultara em 
uma mudança de mentalidade e no nascimento de Kira (Uma versão 
nipônica do léxico inglês ―killer‖); Ryuk o ―shinigami‖ (Não se há 
uma tradução que abranja o conceito de ―shinigami‖, sendo que o 
mais próximo seria ―Deus da morte‖) dono e responsável pela queda 
do ―Death Note‖ no mundo humano; L (Codinome do detetive 
38 
 
Lawliet (Ryuuzaki) maior detetive do mundo, que se torna 
responsável pelo caso Kira, após determinados eventos Amane Misa 
corrobora com o desenvolvimento da história se tornando o segundo 
Kira. 
 
Dialogo metodológico 
Objetiva-se realizar uma discussão teórica e metodológica acerca dos 
cuidados que se pressupõe ao trabalhar os animês, no caso de 
―Death Note‖ é especial, pois trata-se de produção serializada 
semanalmente. Sendo que, é importante destacar que ―Death Note‖, 
ao ser lançado como anime, já tinha toda a sua produção montada, 
não havendo um diálogo entre o público e a série, que influenciaria 
nos episódios posteriores. 
 
Partimos da abordagem metodológica do historiador Marcos 
Napolitano (2011) para analisar as fontes audiovisuais. Os animês 
não devem ser considerados uma demonstração quase direta dos 
objetivos da história, tampouco divididos duas naturezas, a 
documental, buscando um registro mais real dos eventos e 
personagens históricos, e artística, percebidas pelo estigma de 
subjetividade absoluta. O mais importante é perceber a fonte 
audiovisual em sua estrutura de linguagem, seu mecanismo de 
representação da realidade e seu código interno (NAPOLITANO, 
2011). 
 
Pensando a relação História Cinema-Animê, ―A força das imagens, 
mesmo que puramente ficcionais, tem a capacidade de criar uma 
―realidade‘ em si mesma, ainda que limitada ao mundo da ficção, da 
fabula encenada e filmada‖ (NAPOLITANO, 2011, p.237). Assim, 
tanto a representação fílmica, quanto a animação, possuem o mesmo 
valor de ―realidade‖ sobre o telespectador, já que todo produto 
audiovisual é uma representação do real. 
 
O método indiciário de Ginzburg (1991), permite por meio da 
semiótica (estudo dos signos, sendo todo e qualquer código verbal e 
não-verbal, que possa ter sentido e significação) e do recorte de 
determinadas falas, a análise histórica de um animê. ― O conhecedor 
de arte é comparável ao detetive que descobre o autor do crime (do 
quadro) baseado em indícios imperceptíveis para a maioria‖ 
(GINZBURG, 1991, p.145). Não é apenas perceber o autor (criador) 
de uma obra, mas sim ser capaz de reconstruir a cadeia de eventos 
que levou o produtor a produzir tal produto. 
 
 
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―[…] a proposta de um método interpretativo centrado 
sobre os resíduos, sobre os dados marginais, considerados 
reveladores. Desse modo, pormenores normalmente 
considerados sem importância, ou até triviais, ―baixos‖, 
forneciam a chave para aceder aos produtos mais elevados 
do espírito humano. ‖ (GINZBURG, 1991, p.149-150) 
 
Em suma, o trabalho do historiador se assemelha, a arte venatória e 
ao do médico, sendo capaz de remontar a memória histórica 
(processo da caça, ou de diagnosticar doenças), por meio de indícios, 
pistas, de conjecturas, não experimentável diretamente: ―[…] o 
conhecimento histórico é indireto, indiciário, conjectural‖ 
(GINZBURG, 1991, p.157). 
 
Destacando a própria presença da metodologia indiciária de 
Ginzburg (1991) no enredo do animê. Ao analisar as ações ousadas 
do detetive L, pode se perceber o funcionamento do método, como L, 
fora capaz de selecionar um pequeno detalhe, que aos olhos do 
mundo era insignificante, e remontar toda a cadeia de eventos que 
levaria ao aparecimento de Kira, e posteriormente encontrado novos 
indícios que o levariam a conclusão de que Kira fosse Light Yagami. 
 
Crença em Kira 
A ―realidade‖construída no animê ―Death Note‖ busca representar 
de forma simultânea, o tempo e espaço vivido. Na construção da 
mentalidade nipônica algumas religiões são mais visíveis, como 
Xintoísmo, o Budismo e o Confucionismo (de matriz oriental), e o 
Cristianismo (de matriz ocidental). 
 
―Aqui, seremos assediados por todas as questões do nome e do que 
―se faz em nome de‖. (DERRIDA, 2000, p.16). Há crença em ―Kira‖ 
leva seus devotos a realizarem feitos em seu nome, assim o título 
―Kira‖ representa o mecanismo que permite os usuários do Caderno 
realizarem os homicídios, ou segundo os seus próprios 
mandamentos, a execução dos criminosos e daqueles que o 
perseguem em prol da construção de um mundo mais justo. 
 
O primeiro a usar o nome Kira foi Light Yagami. Na narrativa ele 
não é o responsável direto por criar este ―título‖, mas suas ações 
induziram as pessoas a criá-lo. O segundo Kira, Amane Misa, usa o 
nome de Kira, para que assim pudesse conhecer o ―original‖, além de 
tentar propagar a palavra de Kira e realizar o julgamento sobre os 
40 
 
criminosos. O terceiro Kira, Kyousoke Higuichi, um empresário da 
companhia Yotsuba, usou o ―nome‖ com o objetivo de ascensão 
financeira e realizou o ―julgamento divino‖ a mando do ―shinigami‖, 
dono do Caderno. O quarto Kira, Teru Mikami, é um promotor de 
justiça obcecado por Kira. Ele é escolhido por Yagami para que 
continue a executar o ―julgamento divino‖, quando este se encontrar 
incapacitado. 
 
Em seu discurso, o segundo Kira instaura uma falsa democracia.A 
polícia é sua aliada, contanto que não o persiga.E as pessoas até 
podem discordar do seu ideal de ―justiça‖,porém não podem 
contrariá-lo publicamente.Ele pede para que as pessoas esperem, 
que lhe dêem tempo, para que ele possa mostrar a sociedade, que ao 
eliminar os criminosos ele torna o mundo um lugar melhor. E ao 
realizar está façanha, todas as pessoas de bem o aceitarão, tornando-
o ―messias‖. 
 
No fim de seu pronunciamento, Kira oferece à polícia a chance de 
trabalhar com ele, porém a mesma não aceita.Com a recusa, Kira 
continua a serum criminoso, entretanto, se a sua proposta tivesse 
sido aceita ele teria a possibilidade de institucionalizar a fé de seus 
seguidores em uma ―religião‖. Além do mais, ―[…] a fé nem sempre 
foi e nem sempre será identificável com a religião, tão pouco com a 
teologia.‖ (DERRIDA, 2000, p.19) 
 
Dada a morte de L no episódio vinte e cinco e a ascensão de Light 
Yagami no episódio vinte e seis ao cargo de ―L‖, um dos maiores 
obstáculos, há criação do novo mundo messiânico de Yagami, foi 
derrubado. Seis anos se passaram desde que Yagami assumiu o 
título de ―L‖, agora Kira possui total liberdade para executar seu 
ideal de justiça, diminuindo os índices de criminalidade. Enquanto 
isso conquista cada vez mais seguidores, eo mundo passa a temê-lo. 
Além do mais, o conceito de ―crença‖ em ―Death Note‖ pode ser 
pensado pela seguinte definição: ―1) por um lado, a experiência da 
crença (o crer ou crédito, o fiduciário ou o fiável no ato de fé, a 
fidelidade, o apelo à confiança cega, o testemunhal sempre para 
além da prova, da razão demonstrava da intuição)‖ (DERRIDA, 
2000, p.48) 
 
A partir do episódio quinze, com a prisão de Misa Amane, a 
―shinigami‖ Remu exige que Light Yagami salve a garota, para tanto 
 
 
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Yagami apresenta um plano a Remu, no qual requer que ela confie 
nele. 
 
A crença de um pai, assim que Light Yagami se rende a custódia de 
L, Soichiro Yagami se recusa acreditar em L ou no filho. Ele acredita 
cegamente que seu filho não pode ser o Kira, mesmo que de forma 
inconsciente. Soichiro Yagami pede ao próprio L para que o prenda, 
ele apenas aceitaria ser liberto, quando L desista da ideia ou 
conseguisse uma prova irrefutável.Nesse caso não se sabe qual seria 
sua reação. O plano de Yagami funciona, entretanto ao manipular a 
crença que Remu depositou sobre ele, força com que ela assassine L 
resultando em sua vitória e na salvação de Amane. 
 
No segundo episódio os chefes mundiais depositam suas fés no 
detetive L, no qual promete capturar Kira, mesmo que ele ainda não 
possuísse nenhuma prova sobre a existência dele. Porém, no mesmo 
episódio L consegue a prova. Durante o episódio onze, com a nova 
abordagem do segundo Kira os governantes passam a desacreditar 
em L, aceitando revelar sua identidade na televisão. Entretanto, o 
plano de Ryuzaki convence o segundo Kira a desistir de que L 
apareça em público, restabelecendo a fé dos governantes nele.No 
episódio dezoito Kira, realiza uma ameaça direta a polícia, a qual 
para de perseguir Kira delegando toda sua fé em L, o qual passa a 
agir de forma independente. 
 
O ideal de Kira pode ser pensado através de ―Violência do sacrifício 
em nome da não-violência‖ (DERRIDA, 2000, p.72). Correndo o 
risco de desvirtuar o contexto da frase, Kira está imbuído desse 
pensamento, realizando genocídios em nome da ―paz‖, acreditando 
que uma ―violência maior‖ irá cessar a violência. No primeiro 
episódio, o ―shinigami‖ Ryuk aponta como Light Yagami se tornaria 
o único vilão caso seguisse esse caminho. Uma escolha duvidosa, já 
que violência gera mais violência. Mesmo com Kira podendo atuar 
livremente em momento algum, a criminalidade cessa. 
 
Além disto, o confinamento de Misa Amane e Light Yagami, é 
baseado no conceito de ―experiência do testemunho‖. Definido como 
sendo: ―No testemunho, a verdade é prometida para além de 
qualquer prova, de qualquer percepção, de qualquer demonstração 
intuitiva‖ (DERRIDA, 2000, p.86). Yagami necessita que L acredite 
nele, que ele não seja Kira que ele estava sendo manipulado, ao 
contrário de Misa, no qual possuía provas concretas. Indo aos 
42 
 
limites aceitando ficar preso em cativeiro deixando que L torne-se 
sua testemunha, afinal de contas não haveria maneira para que 
Yagami continuasse matando criminosos estando sobre custódia do 
maior detetive do mundo. Caso L se convencesse de que os dois 
fossem inocentes não haveria testemunho melhor para livrar a cara 
de Yagami. 
 
Ao longo do episódio trinta, o ―shinigami‖ Shidoh revela que as 
evidências que provavam a inocência de Light Yagami e Misa Amane 
eram falsas. Quando Near transmite essa informação ao novo ―time 
L‖, possibilita que o investigador Shuichi Aizawa, questione-se sobre 
a integridade de Yagami. 
 
―O ato de fé exigido pela atestação leva, por estrutura, para 
além de qualquer intuição e de qualquer prova, de qualquer 
saber (―Juro que digo a verdade, não necessariamente a 
―verdade objetiva‖, mas a verdade do que acredito ser a 
verdade, digo-te essa verdade, acredita em mim, acreditar 
no que acredito, tanto mais que nunca poderás ver nem 
conhecer o lugar insubstituível e, no entanto, 
universalizável, exemplar, a partir do qual eu te falo, meu 
testemunho, talvez, seja falso, mas eu sou sincero e tenho 
boa-fé, não se trata de um falso testemunho‖)‖. (DERRIDA, 
2000, p.86) 
 
Messias 
―Isso seria a abertura ao futuro ou à vida do outro como 
advento da justiça, mas sem horizonte de expectativa nem 
prefiguração profética. A vinda do outro só poderá surgir 
como um acontecimento singular exatamente onde não é 
possível qualquer antecipação, exatamente onde o outro e a 
morte – e o mal radial – podem surpreender a qualquer 
instante. ‖ (DERRIDA, 2000, p.29) 
 
O primeiro momento da ―vinda‖ do messias é no episódio um. De 
forma inesperada Light Yagami adquire o Caderno e ao usá-lo entra 
em um conflito existencial. Yagami define que a única utilidade do 
Caderno seria para eliminar os malfeitores, assim salvando o 
mundo. Por ser um gênio acredita ser o único digno de usar o 
Caderno em prol da construção de um mundo melhor. 
 
 
 
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Ademais, no segundo episódio o surgimento dos sites de adoração à 
Kira mostra sua popularidade em especial um deles, que possui a 
seguinte mensagem ―A lenda de Kira o salvador‖ (DEATH NOTE, 
2006). A internet possibilita que pessoas manifestem seus reais 
desejos, por ser no anonimato, sem a preocupação de serem 
reprimidas por valores sociais. Esses sites reforçam a ânsia pelo 
messias, o mundo para estas pessoas está podre e apenas Kira pode 
purificá-lo.Em contrapartida, os criminosos passam a temer a ―mão 
divina de Kira‖.Entretanto em nenhum momento da obra Kira 
recebe o total apoio da sociedade como ―o messias‖. 
 
Yagami explica isso a Ryuk, mas olhando apenas um lado, o seu. Ele 
acredita fielmente que as pessoas aceitam a morte de criminosos e o 
apoio dos websites ―legitima‖ suas ideias. Ora na sociedade 
japonesa, a qual aceita a pena de morte (YAMAMOTO, 2015), não é 
surpresa a rápida aceitação dos ideais de Kira. 
 
No episódio onze, o segundo Kira, ao fazer o pronunciamento em 
rede nacional, afirma publicamente o seu desejo de salvar o mundo, 
algo que Kira em momento nenhum o fez. Ao afirmar seu 
posicionamento, instaura um maior ―efeito de realidade‖ sobre a 
população. Além do mais, esse ato impulsiona tanto seus 
adoradores, quanto seus opositores a dizerem publicamente sua 
opinião sobre o conflito entre a nova ordem de Kira e a velha ordem 
do Governo. Para tanto, é necessário de seus adoradores uma fé 
inabalável. 
 
Além do mais no décimo terceiro episódio, o segundo Kira ao 
receber uma falsa mensagem do primeiro, aceita obedecer suas 
ordens, mostrando-se mais um prenunciador da salvação e não 
passando de um simples adorador do messias.Por fim, no décimo 
quarto episódio, o segundo Kira, abandona o título, mas reafirma 
que continuará buscando a aprovação do primeiro Kira,executando 
criminosos. 
 
―Um invencível desejo de justiça liga-se a essa expectativa 
[…]. Essa messianicidade abstrata pertence, para começar, 
à experiência da fé, do crer ou de um crédito irredutível ao 
saber e de uma fiabilidade que ―fundamenta‖ qualquer 
relação com o outro

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