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André Bueno Everton Crema Dulceli Tonet Estacheski José Maria Neto EXTREMOS ORI ENTES 2 Referência Bibliográfica BUENO, Andre; CREMA, Everton; ESTACHESKI, Dulceli; NETO, José Maria [orgs.] Extremos Orientes. União da Vitória/Rio de Janeiro: Edição Especial Sobre Ontens – LAPHIS/UNESPAR, 2018. ISBN: 978-85-65996-63-1 Disponível em Revista Sobre Ontens: WWW.revistasobreontens.site 3 E x tr em o s O ri en te s SUMÁRIO DA REALIDADE, NO VIŚUDDHA-VEDĀNTA-AṢṬAKAM Alina Silva Sousa de Miranda, 9 DA MISSÃO JESUÍTICA À SUA EXPULSÃO NO JAPÃO SOB A ÓTICA DO FILME ‗SILÊNCIO‘ (2017) Angélica da Cruz Bernardo e Vânia Maria Siqueira Alves, 19 EXPERIÊNCIA DE ANGÚSTIA EM SARTRE E A SAÍDA DO SÁBIO CHINÊS Arthur D‘Elia, 29 CRENÇAS ORIENTAIS: UMA ANÁLISE SOBRE ‗DEATH NOTE‘ (2006) Bruno Refundini de Oliveira e Vanda Fortuna Serafim, 37 ―NÃO É POUCO O FRUTO QUE SE FAZ ENTRE OS MENINOS‖: OS JESUÍTAS E A DOUTRINA DOS MENINOS (1540-1570) Camila Domingos dos Anjos, 47 AS ‗CONQUISTAS DAS FILIPINAS‘ NA GRAVURA DE NICCOLÒ BILLY (1698) Carlos Guilherme Rocha, 57 REVOLTAS POPULARES E IMPERIALISMO NA CHINA NO SÉC. XIX Daniele Prozczinski, 67 SEGUNDO MAHAN, A CHINA TEM O QUE É NECESSÁRIO PARA SER A POTÊNCIA MARÍTIMA HEGEMÔNICA? Daniel Nunes Ferreira Junior, 79 A IMIGRAÇÃO JAPONESA VISTA PELO CINEMA BRASILEIRO: APONTAMENTOS SOBRE ―GAIJIN, CAMINHOS DA LIBERDADE‖, DE TIZUKA YAMASAKI (1980) Diogo Matheus de Souza, 89 AS EPIDEMIAS E A MODERNIZAÇÃO DA MEDICINA JAPONESA NA ERA MEIJI (1868-1912) Edelson Geraldo Gonçalves, 99 4 OS ORIENTAIS QUEREM DOMINAR NOSSAS JUVENTUDES: UMA ANÁLISE DA MÍDIA Fábio Júnio Mesquita, 109 TOLERÂNCIA E PERSEGUIÇÃO NAS RELAÇÕES ENTRE CRISTÃOS E HINDUS EM GOA: A CONFRARIA DE CONVERSÃO À FÉ Felipe Augusto Fernandes Borges, 119 O K-POP É A VELA QUE ILUMINA O CAMINHO DO HIP-HOP COREANO? Fernando Augusto Bocchi Silveira, 129 O ‗FANTASMA‘ VAI À GUERRA CONTRA OS JAPONESES: DIÁLOGOS ENTRE HISTÓRIAS EM QUADRINHOS, SEGUNDA GUERRA MUNDIAL E ENSINO DE HISTÓRIA Geraldo Magella de Menezes Neto, 139 CULTURA, MEMÓRIA E IDENTIDADE NO JAPÃO PÓS II GUERRA MUNDIAL Janaina Cardoso de Mello, 155 DE TRANSNACIONALISMO TIBETANO À UM LOCAL DE PEREGRINAÇÃO: O CASO DO TEMPLO BUDISTA KHADRO LING DE TRÊS COROAS-RS Jander Fernandes Martins e Vitória Duarte Wingert, 165 KUCHIOSY NO JUTSU: A RELAÇÃO HUMANO-ANIMAL NO ANIMÊ NARUTO Jander Fernandes Martins e Vitória Duarte Wingert, 175 ENSINAR RESISTÊNCIAS E A LUTA CONTRA A CULTURA DO ESTUPRO: O USO DO DOCUMENTÁRIO ―FILHA DA ÍNDIA‖ NA SALA DE AULA Jeane Carla Oliveira de Melo e Francisca Márcia Costa de Souza, 191 PERFIS FEMININOS E A INSERÇÃO SOCIAL DAS GUEIXAS NA ERA EDO (1603-1868) Jessica Caroline de Oliveira, 199 5 E x tr em o s O ri en te s "FAÇA-SE O QUE SE QUISER-OS CHINESES POVOARÃO O BRASIL": A PRIMEIRA MISSÃO BRASILEIRA NA CHINA Kamila Rosa Czepula, 209 HISTÓRIA COLETIVA DAS MULHERES: ATIVISMO FEMINISTA ASIÁTICO Layane de Souza Santos, 217 A ÍNDIA DE KIPLING: O ORIENTALISMO NO LIVRO ―KIM‖ Lucas Pereira Arruda, 229 CONFUCIONISMO EM SALA DE AULA Lucas Rodrigues, 239 ORIENTE EM QUADRINHOS: HQ COMO RECURSO DIDÁTICO NA DESCONSTRUÇÃO DE ESTERIÓTIPOS ORIENTALISTAS Luciana Lamblet Pereira, 249 ONESÍCRITO DE ASTIPALEA E OS ASCETAS INDIANOS DO PERÍODO HELENÍSTICO Luiz Henrique Silva Moreira, 255 CORÉIA DO NORTE X ESTADOS UNIDOS: DIÁLOGOS A PARTIR DO CINEMA E DAS REDES SOCIAIS Maicon Roberto Poli de Aguiar, 265 A PRESENÇA DE CONTEÚDOS SOBRE A ÁSIA NO LIVRO DIDÁTICO DE HISTÓRIA DO ENSINO MÉDIO Márcio Douglas de Carvalho e Silva, 275 UM BREVE PANORAMA SOBRE A ARQUEOLOGIA NA CHINA Marlon Barcelos Ferreira, 285 A PROVÍNCIA CHINESA DOS APÁTRIDAS DE ORIGEM RUSSA: HEILONGJIANG E OS MIGRANTES DA DÉCADA DE 1950 Nathan Henrique da Silva Lermen, 293 BÁRBAROS, PIRATAS E ESPIÕES: OS PORTUGUESES NA ÁSIA Nelson Rocha Neto, 299 6 O DESTINO DO CAPITÃO COOK NO HAVAÍ: RELIGIÃO, SEXO E MORTE NA ANTROPOLOGIA HISTÓRICA DE MARSHALL SAHLINS Rafael Egidio Leal e Silva, 309 NARRATIVAS ORAIS DE MULHERES CHINESAS EM MANAUS 1980-2017 Raphaela Martins Pereira, 319 O CONFUCIONISMO COMO UMA HERANÇA HÍBRIDA DA MISSÃO JESUÍTA NA CHINA Renan Morim Pastor, 327 A EXPANSÃO ULTRAMARINA PORTUGUESA E A POESIA DE ANTÓNIO FERREIRA (1528-1569) Ricardo Hiroyuki Shibata, 337 VOCÊ PRECISAR VER! VOCÊ PRECISA CONHECER! A FRONTEIRA ENTRE NÓS E O ―OUTRO‖ EM ODORICO DE PORDENONE Rodrigo Frasson, 347 OS PROCESSOS MIGRATÓRIOS JAPONESES ENTRE OS SÉCULOS XIX E XX Ronaldo Sobreira de Lima Júnior, 355 OS PROCESSOS HISTÓRICOS DA CORÉIA DO SUL: DA FEBRE DA EDUCAÇÃO AO ENSINO NOCIVO Samara Rodrigues Pino, 367 CARTAS AO IMPERADOR DO JAPÃO: DE PRESIDENTE FILLMORE E COMODORO PERRY Tiago Tormes Souza, 373 VOZ FEMININA NA REVISTA SEITÔ DO FIM DA ERA MEIJI E NA ERA TAISHÔ, 1911-1916 Vanessa Mayumi, 383 ―ESTE É O INIMIGO‖: REPRESENTAÇÕES DOS JAPONESES NOS CARTAZES NORTE-AMERICANOS DURANTE A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL (1939-1945) Victor Lima Corrêa, 393 7 E x tr em o s O ri en te s A MENINA E A MOSCA: UMA ANÁLISE SOBRE A CONSTRUÇÃO DO ESTEREÓTIPO CHINÊS E RELAÇÃO HUMANO-ANIMAL Vitória Duarte Wingert e Jander Fernandes Martins, 405 MANGÁ NARUTO NA AULA DE HISTÓRIA: O MONUMENTO DOS HOKAGE E A MEMÓRIA, A VONTADE DO FOGO E A IDENTIDADE NACIONAL Wendell Presley Machado Cordovil e Eliandra Gleyce dos Passos Rodrigues, 417 8 9 E x tr em o s O ri en te s DA REALIDADE, NO VIŚUDDHA-VEDĀNTA- AṢṬAKAM Alina Silva Sousa de Miranda Os cânticos na tradição védica estão separados mediante a origem e a maneira de cantar. Chama-se ―slokam‖ um verso que, respeitando a pronúncia do sânscrito, não possui forma rígida no canto. A maior parte dos slokams são retirados de ―stotrams‖, composições poéticas maiores, como um poema, cujos temas centrais variam. O viśuddha- vedānta-aṣṭakam é um stotram composto de oito slokans, escrito por Vishvanatha. Este artigo tem o objetivo de explorar o quinto slokam dessa composição, que trata do termo ―sat‖. ―Sat significa ―realidade‖, ―existente‖ e ―verdadeiro‖, tal como é pensado na tradição védica guardada pela cultura hindu. Para explorar seu ensinamento, porém, é preciso, antes, comentar brevemente algumas questões acerca do universo cultural e histórico que envolve a composição, sem as quais o estudo do verso não alcança sua grandeza e importância. O stotram e seu universo cultural O papel da Índia na Ásia pode ser comparável ao da Grécia na Europa. Porém, a mais simples menção a ela ainda traz à mente todo o fascínio que o Oriente distante e misterioso - com suas línguas, religiões e costumes os mais diversos - exerce sobre a imaginação ocidental. Só a persistência desse imaginário estereotipado e fantasioso já deveria exigir o estudo dessa civilização com acuidade. Porém, diante do que o estudo dessa civilização pode nos trazer, é muito pouco manter-se no combate ao ―preconceito clássico‖, já definido por Guenón (2015, p. 19-21) como a incapacidade intelectual do ocidental de transpor o Mediterrâneo e, com isso, fundar a ideia de uma autenticidade civilizacional com os gregos– o chamado ―milagre grego‖ -isso, já sabemos, é a verdadeira mistificação da História. É preciso encarar o desafio de estudar a Índia por suas próprias fontes, procurar entendê-la a partir do seu repertório. O slokam que aqui propomos o estudo exige, pois, a ênfase em dois aspectos da sociedade indiana: a ausência de História, no sentido de historiografia; e a permanência da oralidade. Isso desafia a teoria 10 historiográfica ocidental a refletir sobre a realidade para além de si mesma: para além do tempo e para além da escrita. Em termos de historiografia, o mundo indo-gangético sempre causou desconforto ao ocidente pela ausência do método histórico. A existência de diferentes cronologias sempre foi argumento de que é difícil estudar esse mundo pela falta de fontes adequadas. Porém, a Índia, apensar de não ter historiografia, oferece uma boa reflexão ao ofício. O fato dessa civilização permanecer ainda hoje ligada por mil fibras a seu longínquo passado, presentificando-o a todo momento, provoca a questão basilar dessa área de estudos: se o passado é útil porque explica o presente ou se ele o é apenas por ser uma referência de realidade ao qual o presente lança questões,como a noção mais moderna ou pós-moderna dos estudos históricos reivindica. Afinal, a despeito de toda e qualquer mudança e apesar das influências externas e seculares vindas do Ocidente, a mesma tradição que se perde nos obscuros inícios da história indiana se mantém. A Índia mantém vivo e à salvo no presente seu passado milenar. Se as velhas civilizações do Nilo, do Tigre e do Eufrates encerraram, há milênios, suas glórias, o Indo e o Ganges vivem, ainda hoje, a força de sua tradição. Como? O que é o tempo e a realidade para essa civilização? Como as fontes nos ajudam a responder essas interrogações e qual o sentido disso na experiência espaço-temporal dos indianos? No limite, como pensar a história fora da História? Uma vez respondidas essas interrogações, mesmo que preliminarmente, deveríamos avançar e perguntar como o entendimento dessa experiência pode ajudar a reoxigenar os conceitos de tempo e realidade do mundo ocidental, em particular, nas ciências humanas e na atividade historiográfica. O segundo aspecto é a permanência da oralidade. Só é possível que essa presença do passado seja tão evidente devido a tradição oral, tradição viva ainda hoje na Índia. E essa observação já nos afasta de uma fantasia purista antropológica que pretende encontrar uma cultura não assediada pelo seu exterior. A tradição mantém-se viva justamente pela sua capacidade de se adaptar sem perder sua ligação com seu princípio, com a fonte de conhecimento que são os Vedas. Entendida para além de uma faculdade humana, uma vez que nos comunicamos nessa modalidade, a oralidade é o local onde repousa o conhecimento. Na Índia, a tradição oral é a própria tradição viva de ensino. Não se trata, pois, de uma metodologia oral para 11 E x tr em o s O ri en te s recuperar um saber que não está escrito. Mas sim: ainda que os versos estejam escritos, eles nada significam sem a tradição oral que os respaldam. Nessa sociedade, é muito claro que o conhecimento está disponível para todos que se comprometem a adquiri-lo, nunca para aqueles que, ainda que expostos, não tomam a iniciativa de ouvir. A escrita e o saber não são sinônimos. O processo tradicional de ensino exige a escuta e, longe de expressar que o conhecimento está na pessoa do ―guru‖, revela que o gesto verdadeiro e autêntico é colocar-se aos pés da oralidade, num ritual realizado há milhares de anos que exige a presença e o consentimento de ambos os envolvidos: o professor e o aluno. A confiança está sempre na tradição, e não na figura do professor, que é só um instrumento para que um relacionamento se estabeleça e a mensagem dos Vedas seja passada. O termo tradicional refere-se a isso. Nas palavras do físico Smith (p. 19),―tradicional é precisamente mais que (uma perspectiva) histórica, transcendendo o estatuto de uma contingência histórica, o que implica dizer que ela incorpora um elemento de Revelação (...) e da eternidade‖. Porém, o sentido dessa qualificação ―eternidade‖, só explica nos termos da própria tradição. E esse é o tema do slokam: sobre a realidade, realidade esta que está para além do tempo. Nesse sentido, para compreender essa sociedade oral e o próprio slokam, é necessário mais que um exercício de erudição. À tradução pura e simples, é preciso estar imerso no exercício de escuta, identificando-se tanto quanto possível à mentalidade daquele que o pensou, remediando as incompreensões. Creditar toda a verdade à escrita, ao texto, é esquecer que o ensinamento oral precedeu em quase todos os lugares o ensinamento escrito. De modo geral, um escrito tradicional não é, na maior parte dos casos, mais que a fixação relativamente recente de um ensinamento que era transmitido primeiro oralmente e ao qual é bem raro que se possa assinalar um autor. É ainda Guénon que afirma (2015, p. 30) ―A pretensão à originalidade intelectual, que contribuiu em grande parte para o nascimento dos sistemas filosóficos é, mesmo entre os Ocidentais, algo totalmente moderno, que a Idade Média ignorava ainda; as ideias puras e as doutrinas tradicionais nunca constituíram a propriedade de tal ou qual indivíduo, e as particularidades biográficas daqueles que as expuseram e interpretaram são da mínima importância‖. 12 Assim, a autoria não é mais relevante que a mensagem. E essa desimportância da individualização das concepções é um forte argumento para explicar a ausência de História. Às afirmações de que a literatura histórica indiana não se elevou acima do nível das crônicas e dos romances pomposos, e que detalhes de lugar e datas nunca foram fixados, mesmo em se tratando da vida dos grandes homens – afirmações antes demeritórias à elevação intelectual da Índia -, ocorre hoje o reconhecimento de que 1) a poesia e a palavra ofertada sempre foram superiores à marcação cronológica sublunar à maneira ocidental/grega; 2) o hindu não tem a mesma noção de cronologia compreendida no sentido rigoroso que o ocidental prefere atribuir-lhe, nem a experiência imediata tem valor de verdade. Como afirma Guha (2002, p. 63), ―experience stands for truth in the European narrative‖. O valor dado ao sentido histórico e sua relação com a experiência humana no mundo, à falta de termo de comparação, é ofuscado quando se esquece que a Índia, por exemplo, até a conquista inglesa, desenvolveu sua civilização fora da História (Ariès, 2013, p. 114). A contingência da vida humana é desprezível quando comparada à ênfase no Absoluto que impele todo o pensamento indiano. Para compreender, então, a tradição indiana em seus próprios termos, o estudo minucioso dos stotrams, ou mesmo slokams, é extremamente relevante. À falta de cronologia rígida, devemos nos ater à farta literatura salvaguardada por esta civilização, que mesmo sendo uma sociedade oral, guarda o significado profundo e metafórico do que é realidade também em textos que, se estudados de forma apropriada, estão abertos ao entendimento. A visão de “sat” no viśuddha-vedānta-aṣṭakam É no quinto verso dessa composição que o autor trata do aspecto ―sat‖, da existência, da realidade. É importante frisar que as palavras em todo o método de ensinamento védico não têm o papel de explicar, mas de apontar para o entendimento do que se pretende dizer. A fala, a palavra, é apenas um meio para compreensão, utilizada para negar enganos, não para apontar qualidades; no caso, tratar do aspecto ―sat‖ é uma maneira de apontar para o entendimento do que é a realidade. Sendo absoluto, ―sat‖ não tem características, não pode ser descrito, não pode ser adjetivado. Adjetivosimprimem limitação ao objeto: se for largo, não é estreito, tudo que é comprido, não é curto, e assim por diante. 13 E x tr em o s O ri en te s Para entender o slokam (sem desconsiderar que este é um estudo introdutório e a própria escrita cria limites maiores que a explicação oral), segue a escrita em sânscrito, a transliteração convencional e a tradução. ―सन्नासतस्सतो वापि नामान्ता पवषया उत । अननवााङ्महहमा यस्या मायापवन ्य ैनमो नमः ॥५॥ sannāsatassato vāpi nāmāntā viṣayā uta | anirvāṅmahimā yasyā māyāvinyai namo namaḥ ||5||‖ – Saudações de novo e de novo para a ilusionista, da qual a glória é indescritível. [E de que forma é indescritível? Assim:] ―o que existe não surge do que existe nem mesmo do que não existe‖. Os objetos são aqueles dos quais o fim é o nome [e não somente o início]‖. Anirvāṅmahimā yasyā māyāvinyai namo namaḥ. Quer dizer, saudações à ilusionista que é capaz de criar a aparência de realidade através da individualização, essa é sua glória indescritível. Vamos a um exemplo: uma árvore. O que é uma árvore? Raiz, caule, folha, flor e fruto, juntos. Se, dessa árvore, tirarmos todas as folhas, o que temos? Sem folhas, mantemos a ideia de árvore em nossa percepção. Mas, ao olhar para as folhas, não podemos afirmar que temos uma árvore. Se tirarmos as flores e os frutos também: ao olharmos para o que foi tirado, flores e fruto, eles não são árvore, mas a mantemos à vista. Se retirarmos o caule, porém, provavelmente a ideia de árvore desaparece. Ao tirar cada uma das partes, não tiramos ―árvore‖ em nenhuma ocasião. Então, que é a árvore? Caule é árvore? Não é. A árvore é um conceito individualizado, uma forma que criamos na mente e interagimos com ela. Damos realidade a ela, mas essa realidade é uma realidade dependente, dependente de cada parte do conjunto, no caso, árvore depende, para existir, das partes, mas as partes não são árvore, por sua vez. Essa capacidade de fazer existir onde não há existência -māyā– é reverenciada no início do verso. Estudar o termo ―sat‖ é parte da indagação acerca da verdade, tattva-viveka. Acompanhando o raciocínio de Glória Arieira, nos comentários do Tattvabodhah, texto de Shankara (2014, p. 44), que trata o tema: a palavra ―sat‖ vem da raiz verbal ―as‖, que significa ―ser‖. A verdade, tattva, para a tradição védica, é que existe um único real, ―satyam‖, e tudo o mais é aparente, ―mithyã‖. Viveka é a discriminação do que é ―tattva‖, a verdade, ou seja, a discriminação 14 entre satyam e mithyã. Sat é sinônimo de Ãtmã e de satyam, e todos fazem referência à verdade que é eterna, imutável e absoluta. Sat é o sempre existente, aquilo que nunca muda e, portanto, não pode ser negado nos três tempos: presente, passado e futuro, trikãla- abãdhitam. Sat é a base do próprio tempo. Esse conhecimento, apesar de abstrato, tem uma implicação muito concreta na vida mesma, como também para a ideia de História. O conhecimento sobre o Ãtmã, ou a reflexão sobre o que é sat, a verdade, é feita por aquele que deseja mokṣa, ou seja, a liberação. Liberação de que? Liberação do sentimento de limitação e de insatisfação que atormenta a vida e causa sofrimento. ―Mokso me bhuyãditcchã‖, significa exatamente isso: o desejo ―que haja liberação em mim‖. Este é um desejo urgente daqueles que querem aprender a lidar com o fluxo de mudanças inexorável da vida: mudanças no corpo, nos pensamentos, nas decisões, nas conclusões, etc. Mudanças, no fim, cujo significado está na base da palavra ―história‖. Só podemos historiar algo se nos apercebemos das mudanças do objeto e, nessa medida, ―fazer história‖ é sempre partir do ponto de vista do indivíduo que percebe e articula tempo/mudança e narração. A liberação que se fala na tradição védica é sempre da mudança, do samsãra, no limite, da história. Daí a Índia não ter historiografia, uma escrita da história, e ao mesmo tempo ela dedicar atenção ao significado de sat, aquilo que não muda, que é imutável. Samsãra não é a vida em si, mas a interpretação errada de si mesmo e do mundo. A liberação que a tradição védica fala é desse julgamento equivocado da nossa identidade, que nos aprisiona a um círculo de sofrimento. Uma vez que o entendimento do que é o ser humano está alinhado ao que é a realidade, sat, a história, tal como entendemos seu objeto no ocidente - a vida humana no tempo – tem uma realidade mithyã, aparente. Mithyã não é o falso, mas o que é passível de experimentação mediante sua realidade dependente. Tendo discriminação, mais importante, então, é dar ênfase ao que é a própria realidade em si. Ademais, o desejo de liberação advém da argumentação lógica de que para toda mudança ocorrer é preciso algo que suporte esse movimento, algo que seja fixo, que seja a base. Advém, também da 15 E x tr em o s O ri en te s percepção empírica individual: apesar do fluxo de mudanças que ocorrem na vida de cada um, na história de cada um, há sempre o reconhecimento de que o indivíduo sabe quem ele é, todo mundo acorda diariamente reconhecendo-se o mesmo. Na visão dos Vedas, essa permanência é chamada de Ãtmã, ou sat, e está para além da memória e do tempo. Sat ou ãtmã, como afirma Glória Arieira, ―é como o Sol e está sempre presente. Mesmo quando as nuvens o cobrem, ele continua lá; o encobrir é em relação a nossa visão do Sol, não a ele mesmo. Da mesma forma, mesmo quando a plenitude parece ter sumido, devido à presença de vários pensamentos de preocupação e insatisfação, ela permanece lá como o Ser‖. (Shankara, 2014, p. 77) Ãtmã não é aquilo com o que nós nos identificamos: nosso corpo, nossos pensamentos, nossas ações e, por ser diferente disso, seu conhecimento oportuniza a pessoa a encontrar um centro em sua vida, centro do qual vem toda sua força e liberdade. A liberdade é, então, ver-se livre de um modo de pensar e estar no mundo que aprisiona –que faz crer que é possível ―adquirir‖ liberdade. Esse verbo, ―adquirir‖, não pode ser usado com liberdade porque, uma vez que se precise adquirir, significa que não se tem; e uma vez que se pretenda adquirir, sanciona-se a ideia de que alguém ou algo pode ―dar‖ liberdade às pessoas. O conhecimento do Ãtmã esclarece que a liberdade só é possível se ela já estiver presente na pessoa que a busca, sendo, portanto, um problema da ordem do conhecimento, da mudança de cognição, da eliminação da ignorância que a impede de perceber essa presença. A liberação não é uma conquista, não é um produto da história. É uma liberação da história. A segunda parte do slokam aprofunda ainda mais o entendimento. Faz isso fazendo referência à Madukya Upanishad: ―o que existe não surge do que existe nem mesmo do que não existe‖, o verso afirma, os objetos são aqueles dos quais o fim é o nome [e não somente o início]. Sannāsatassato vāpi nāmāntā viṣayā uta, refere-se à ideia de que, sem causa, se algo existe, não pode se modificar. Afirmar que o que existe não vem daquilo que não existe nega o engano de acreditarmos que algo pode surgir do nada. O verso 16 relembra que essa afirmação não está de acordo com a nossa experiência. Tudo que ocorre, ainda que não vejamos, tem uma causa. É ilógico um efeito sem causa, não há evidências empíricas de algo que, subitamente, tenha surgido do nada. Agora, mais profundamente, o verso afirma que o que existe não pode vir do que existe. Nesse ponto o verso quer explorar, para além da relação de causa e efeito - a partir da ideia de transformação que aparentemente ocorre na criação das coisas, por exemplo, se eu tenho barro, posso transformá-lo em pote – a questão da imutabilidade do que existe, do que é real. No clássico exemplo do barro que se transforma em pote, o versonos convida a pensar que o que está ocorrendo não é a transformação do barro em pote, transformação da causa em efeito. O barro continua sendo barro mesmo depois do pote pronto. A causa continua senso causa no efeito. De onde, então, vem o pote? O entendimento do conceito de mithya já é pré-requisito aqui. A questão não é afirmar que o efeito é aparente. Pode-se analisar isso empiricamente: o barro não se transformou ―realmente‖ em pote. O ensinamento é que a realidade é una, não se altera, nem se divide. Esse movimento de causa e efeito não é possível para o que é ―sat‖. Se algo vem de algo e se transforma, se o que é real vem de algo que também é real, isso equivale a dizer que a realidade não é absoluta. Não pode haver espaço entre duas coisas que existe e, por isso, sat, é, por princípio, imóvel. Assim, o verso afirma que os objetos são aqueles cujo fim é o nome. Aqui o autor faz referência à ideia bem explorada no universo de Vedanta de que o objeto passa a existir depois que se dá um nome a ele. Uma forma, se nos é dito que é algo, criamos um conceito e ela passa a existir, tal como a árvore e o pote. Já reconhecendo a realidade relativa do objeto, o slokam afirma que o objeto passa a existir a partir do momento que eu dou realidade a ele, e deixa de existir, é o ―fim‖ dele, quando eu reconheço que ele só existe quando dou um nome a ele. Afirmar que a coisa existe porque lhe foi dado um nome, apela, então, à percepção da não realidade dos objetos e à imutabilidade do Ser, sat. Assim, sat, é aquilo cuja grandeza é indestrutível, indescritível, mas ainda assim, passível de ser cognitivamente apontada para liberar o homem do fardo da história, dando-lhe liberdade para viver sua história. 17 E x tr em o s O ri en te s Referências Alina Silva Sousa de Miranda é professora adjunta da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Campus São Bernardo. Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo – USP (2013). Coordenadora do grupo de pesquisa ―Hístor: cultura e epistemologia‖ dedicado, entre outros temas, ao estudo da cultura hindu/védica. Estuda Vedanta, sânscrito e mantra tradicionalmente no Instituto Vishva Vidya desde 2016. Para a confecção do artigo, agradecimentos ao Prof. Victor Mattos, professor de sânscrito do Instituto, na tradução do slokam e no seu entendimento. Agradecimentos ao Prof. Jonas Masetti, também conhecido como Vishvatatha, que gentilmente cedeu sua composição poética em forma de stotrampara servir de fonte em nosso estudo a respeito do conceito de realidade, sat, da tradição védica. E-Mail: alinaslz@gmail.com ARIÉS, Philippe. O tempo da história. São Paulo: Editora Unesp, 2013. GUÉNON, R. Introdução geral ao estudo das doutrinas hindus. São Paulo: Instituto René Guénon de Estudos Tradicionais, IRGET, Editora e Distribuidora, 2015. GUHA, Ranajit. History at the limit of world-history. New York: Columbia University Press, 2002. SHANKARA. Tattvabodhah: o conhecimento da verdade. Tradução e comentários da Profa. Glória Arieira. 2º edição revista e ampliada. Rio de Janeiro, Editora Vidya Mandir, 2016. SMITH, Wolfgang. A sabedoria da antiga cosmologia. Trad. Adriel Teixeira, Bruno Geraidine e Cristiano Gomes. Campinas, SP: Vide Editorial, 2017. 18 19 E x tr em o s O ri en te s DA MISSÃO JESUÍTICA À SUA EXPULSÃO NO JAPÃO SOB A ÓTICA DO FILME SILÊNCIO (2017) Angélica da Cruz Bernardo Vânia Maria Siqueira Alves Este artigo analisa a resistência interposta pelos japoneses à missão jesuítica através da narrativa do filme Silêncio (2017). É alvo de investigação também como o filme constrói a narrativa permitindo uma significação do passado, bem como a crítica transmitida sobre o expansionismo europeu. Apresentando o filme O filme Silêncio, título original Silence, foi lançado nos Estados Unidos da América em 23 dezembro de 2016 e no Brasil em março de 2017. O longa-metragem foi dirigido por Martin Scorsese e é uma adaptação do romance homônimo (1966) do japonês católico Shusaku Endo. Filmado em Taiwan, a maior parte do elenco é composta por atores orientais, mais precisamente japoneses, como: Issey Ogata, Yosuke Kubosuka, Shinya Tsukamoto, Tadanobu Asano etc. Já os personagens ocidentais são vividos pelos atores Andrew Garfield, Adam Driver, Liam Neeson e Ciarán Hinds de origem anglo americana, estadunidense, inglesa e irlandesa, respectivamente. O filme apresenta em seu enredo um antagonismo protagonizado por ocidentais e orientais. O longa-metragem é ambientado no século XVII no Japão, e narra a história de dois padres jesuítas que viajam a esse país para encontrar informações sobre o paradeiro do padre Ferreira, que havia sido professor e confessor de ambos. O padre teria abjurado após uma sessão de tortura realizada por oficiais do governo japonês. No entanto, a ação dos oficiais extrapola a questão religiosa, atendendo a interesses políticos. Nessa época, houve perseguições, suplícios e martírios para aqueles que fossem cristãos, pois não havia mais tolerância para o cristianismo no Japão. Expansão do cristianismo ao fracasso da missão O filme inicia com cenas de tortura de quatro frades e um membro da Companhia de Jesus nas águas termais em Unzen, chamadas pelos japoneses de ―infernos‖, no ano de 1633. Nesse momento inicial aparece o padre Ferreira, ele e os missionários foram levados 20 pelo governador de Nagasaki para Unzen, as torturas objetivavam a renegação ao evangelho. Os padres não apostataram, mas pediram para serem mais torturados, demonstrando as proporções de sua fé. Esses martírios eram percebidos como exemplo tanto para fiéis quanto para outros missionários, davam coragem aos que permanecessem vivos para que suportassem todo tipo de sofrimento. Significava defender até a morte a crença no Deus cristão. Logo após essa sequência, dá-se início a entrada dos padres Garupe e Rodrigues ao Japão em busca do padre Ferreira. Para compreender esse contexto de perseguição aos cristãos no Japão é preciso considerar a introdução do cristianismo nesse país e seus embates entre os séculos XVI e XVII. A chegada dos portugueses na Terra do Sol Nascente ocorreu em 1543, em Tanegashima. O xogum que estava no poder nesta época era Oda Nobunaga, que abraçou o cristianismo, assim a nova religião obteve um florescimento durante esse xogunato. O budismo nessa época fora hostilizado pelo chefe militar por estar envolvido com revoltas populares, e o xintoísmo estava passando por um momento de crise. O imperador era considerado apenas uma figura simbólica e principal representante do xintoísmo. O primeiro jesuíta a ter contato com o Japão foi Francisco Xavier (1506-1552), sendo responsável pela implantação da religião cristã nesse país. Os japoneses convertidos e batizados recebiam nomes ligados a figuras do cristianismo: Maria, Gracia, Madalena, Pedro etc. Um exemplo que podemos citar é do japonês Yajiro, um ex- monge budista, que ao conhecer Xavier converteu-se ao catolicismo recebendo o nome de Paulo da Santa Fé. Foi o primeiro japonês cristão, e, serviu de intérprete e guia de viagem para os portugueses [YAMASHIRO, 1989, p. 52]. Os europeus visavam inicialmente o intercâmbio comercial – como a espingarda, vidro, vinho, ouro, prata, cobre etc. – mas posteriormente o cristianismo foi introduzido sistematicamente no país. Dessa forma, os portugueses exerciam considerável influência religiosa, econômica, cultural e política dentro do território japonês até 1587. Toyotomi Hideyoshi (1536-1598), que ajudou na reunificaçãodo país, teve simpatia pela religião num primeiro momento. 21 E x tr em o s O ri en te s As resistências e hostilidades ao cristianismo iniciaram-se no governo de Hideyoshi, segundo xogum, quando este assumiu o comando da unificação do país, em 1582. Paralelamente, os jesuítas começam a perder o monopólio da missão com a chegada dos Franciscanos, e também sua influência sobre a atividade comercial. Apesar de, por algum tempo, haver prosperidade na atividade proselitista, logo o choque da nova religião com as tradições e religiões ancestrais se mostrou evidente. Embora o filme atenha-se à intolerância religiosa dos japoneses em relação ao cristianismo, os europeus também não reconheceram os costumes e crenças religiosas presentes no país do sol nascente durante o processo de implantação e expansão do cristianismo. O desejo de cristianização desses povos não levou em conta o princípio da alteridade. A intolerância religiosa e cultural dos jesuítas causou choques culturais entre os próprios japoneses. Algumas divergências que podemos citar é a crença dos cristãos em um único ser supremo onipotente e onipresente, já o xintoísmo, religião nativa do Japão, apresenta vários deuses que compõem seu panteão sagrado: ―os ocidentais de fato provocaram injúria ao destruir inúmeras imagens religiosas japonesas acusadas de pagãs‖ [SAKURAI, 2017, p. 108]. De acordo com a mitologia japonesa, os primeiros imperadores japoneses são descendentes diretos da estirpe imperial de Amaterasu, que é a deusa do Sol, a mais importante do panteão xintoísta. Assim, o imperador é o representante máximo do xintoísmo na terra. Como o xintoísmo prega a crença em diversos deuses, e tem uma relação estrita com a natureza, essa característica será vista como cultura pagã pelos ocidentais. Assim, os ocidentais ―tinham ideias estranhas acerca de um poder divino que transcendia quer os imperadores, quer os xoguns‖ [HENSHALL, 2017, p. 84]. A postura, muitas vezes intolerante, dos jesuítas com as crenças japonesas, as alianças de Hideyoshi com poderosos daimyos, a fim de suprimir sua oposição e promover a unificação do Japão, foram fatores que contribuíram para questionar a presença da Companhia de Jesus. Hichmeh [2013, p. 5] aponta a importância dada pelos jesuítas, especialmente o proeminente padre japonês Fabian Fukan ao cumprimento do primeiro mandamento cristão, ―amar a Deus sob todas as coisas‖, como fator instigador do ceticismo das autoridades japonesas em finais do século XVI e, principalmente, após a unificação do Japão em 1600. A lealdade exclusiva a Deus ameaçava 22 o poder do Imperador, então era necessário extirpar esse mal do solo nipônico. Em 1587, o líder militar Hideyoshi promulgou o Édito de Hakata que tratou da expulsão dos missionários do território japonês, permitindo ainda a continuidade do comércio com os portugueses. Esse édito demonstra que outros segmentos, exceto os padres, poderiam entrar no Japão, desde que não propagassem a fé cristã. Fica claro o interesse na manutenção do comércio com os europeus. Posteriormente, foi descoberto por oficiais nipônicos que os portugueses estavam praticando o comércio de escravos japoneses. Isso era inadmissível aos olhos dos oficiais estatais. Com o passar do tempo, a atividade missionária atrelou-se a um possível desejo de colonização que ficou evidenciado no incidente de San Felipe. ―O incidente de San Felipe (1596) – em que o homônimo galeão espanhol franciscano, o qual fez a lucrativa viagem transpacífica entre Manila e Acapulco naufragou na costa japonesa -, a situação para os europeus e seus conversos deteriorou-se. Dentre outros itens, o navio carregava armas, aprofundando as suspeitas de Hideyoshi de que os frades representavam uma primeira onda de colonialismo ibérico‖ [WALKER, 2017, p. 125]. A partir de 1600, os cristãos vivenciaram uma violenta repressão com a expulsão de padres jesuítas, a exigência da renúncia à fé cristã por parte dos seus praticantes e, por fim, a morte daqueles que negassem a apostasia [Hichmeh, 2013, p. 9]. É nesse contexto que o filme se inicia, mostrando a tortura e os martírios cristãos em Unzen. Narrada por flashback, a próxima sequência traz o Padre Alexandre Valignano lendo a carta de Ferreira aos padres Garupe e Rodrigues. A partir daí, ocorre a entrada de Garupe e Rodrigues, protagonistas da história, dando mais dinamismo à mesma, conforme apontam os autores Imme e Bona: ―o que deixa as histórias mais complexas é a influência dos personagens. São os personagens que dão credibilidade à história, conferindo-lhe um novo dimensionamento e conduzindo-a para novas direções‖ [Seger, 2007, p. 177 apud Imme, Bona; 2014, p. 19]. 23 E x tr em o s O ri en te s A última carta do padre Ferreira teria chegado por meio de um comerciante holandês e junto à carta, a notícia de que ele teria renegado a fé cristã e estaria vivendo como um japonês. A partir dessa introdução, se desenrola a narrativa do filme com a ida dos dois padres para o Japão. Apesar de ter pouca importância e destaque no filme, o padre Alessandro Valignano foi um dos principais responsáveis pela missão no Japão. Ao deixar o arquipélago em 1582, a situação da Companhia de Jesus era bastante promissora: Nagasaki estava sob administração da Companhia, o número de fiéis era significativo e inúmeras igrejas espalhadas por Kyushu e parte de Kanto. ―Os jesuítas, à época, detinham respeito dentre diversas autoridades e entre as camadas mais baixas da sociedade japonesa‖ [HICHMEH, 2013, p. 4]. ―Em julho de 1590, no entanto, ao retornar ao Japão, Valignano encontrou um contexto bastante diferente daquele que havia visto há quase dez anos: o daimyo Oda Nobunaga, que havia permitido a entrada e ação jesuítica, estava morto; Nagasaki não era mais uma colônia jesuíta‖ [ELISONAS, 2006: 132 apud Hichmeh, 2013, p. 5]. Como o filme constrói sua narrativa sobre a história do revertério da missão jesuítica O longa-metragem apresenta um antagonismo de duas culturas, Japão e Portugal, baseando-se em acontecimentos verídicos – como as torturas, o cristianismo ilegal, perseguições etc. – para retratar o martírio dos jesuítas nesse período conturbado. Esses elementos – ficção e realidade – ajudam a tecer sua narrativa e a retratar o passado de uma forma genérica. ―Certamente não é a história no sentido em que geralmente usamos essa palavra, não é a história que tenta reproduzir com precisão um momento específico e documentável do passado. No entanto, podemos vê-la como um momento histórico genérico, um momento que afirma a sua verdade representando muitos momentos daquele tipo‖ [ROSENSTONE, 2010, p. 166]. Dessa forma, o filme conjuga situações e personagens reais ou fictícios, mas se localiza no contexto de perseguição aos jesuítas. 24 Alguns indivíduos que compõem a trama realmente existiram, como Alexandre Valignano, Inoue Sama, Cristóvão Ferreira. Outros são fictícios, mas ambientados no contexto, bem como algumas datas também não correspondem aos momentos de atuação das personagens. Um episódio que ilustra melhor esse momento histórico genérico é quando o Padre Alexandre Valignano aparece no filme lendo a carta de Ferreira datada em 1633. Dessa forma, a data como o personagem são dados usados de forma genérica, para ilustrar e dar vida ao contexto geral daquela época, já que Valignano na verdade viveu entre 1539 a 1606. Outra construção genérica que podemos ver é quando Rodrigues chega ao povoado de Goto e pergunta a um aldeão se ele conhece padre Ferreira. O aldeão afirma que sim, e que este construiu um lugar para as crianças e os doentes. Embora não haja escritos que comprovema realização dessas edificações pelo padre Ferreira, como consequência da atividade missionária houve a construção de igrejas, santas casas de Misericórdia, colégios e missionários. Seguindo as classificações de Rosenstone, o filme Silêncio pode ser considerado um drama histórico comercial devido aos diversos aspectos desse gênero que o longa-metragem apresenta em suas estruturas internas. A invenção é um elemento crucial nessas obras, além de ajudar a reforçar a carga emocional do filme, constitui um aspecto fundamental para o filme dramático segundo Rosenstone [2010]. Podemos destacar algumas invenções no filme como a cena inicial, em que está presente Padre Ferreira e um grupo de missionários que foram submetidos ao suplício de águas, sendo que na historiografia sobre as perseguições aos jesuítas no Japão eles foram submetidos ao suplício do poço; outra invenção é o personagem Garupe, apesar de ser um personagem coadjuvante, a cena em que morre tentando salvar japoneses convertidos é totalmente comovente; também podemos mencionar a experiência do personagem Rodrigues como personificação de Cristo – a pregação do evangelho, o ato de perdoar diversas vezes Kichijiro, a traição de Kichijiro vendendo o padre por 300 moedas de prata, o itinerário ao redor da cidade de Nagasaki com vários japoneses rindo de sua cara e lhe jogando objetos – e seu testemunho diante do sofrimento de vários cristãos convertidos. Ainda conforme Rosenstone essas alterações no registro histórico resultam das exigências de um filme dramático [ROSENSTONE, 2010, p. 70]. 25 E x tr em o s O ri en te s O que há de invenção e distorção no filme logo é ―compensando por uma espécie de verdade dramática que consegue condensar dúvidas‖ [ROSENSTONE, 2010, p. 71], por exemplo, a vida de Padre Ferreira que foi à Terra do Sol Nascente com intuito de ―enfrentar a morte‖ [YAMASHIRO, 1989, p. 84], com essa atitude desafiava as autoridades japonesas e também transgredia as leis que estavam em vigor naquele momento. No filme, Ferreira é submetido à tortura do poço, após sua captura em 1633, e desde que este apostatou, iniciou uma vida segundo costumes japoneses, adotando o budismo como religião principal, viveu maritalmente com uma japonesa e escreveu um livro que expunha os erros de sua antiga religião. De um modo geral isso é o que acontecia com a maioria dos missionários que apostatavam, além de se inserirem socialmente como membros de um mundo reverso às ordens do cristianismo, ajudavam a perseguir cristãos e no processo de abjuração dos mesmos. Portanto, as alterações que o filme sofreu não atrapalham o significado e o sentido histórico do filme, a reconstituição histórica dos fatos e carga dramática que o filme exige são elementos indissociáveis e que ajudam a enriquecer seu enredo. ―Para o diretor de um filme dramático que precisa criar – é necessário enfatizar essa questão – um passado que satisfaça as demandas, práticas e tradições tanto das mídias visuais quanto da forma dramática, isso significaria ir além da ―constituição‖ dos fatos a partir de vestígios de evidências encontrados em livros ou arquivos e começar a inventar alguns desses fatos‖ [ROSENSTONE, 2010, p. 64]. Outro elemento que compõe uma narrativa dramática é o ―conflito de vontades‖ que se caracteriza no ato do personagem em resolver alguma situação ou mesmo completar uma missão e há um antagonista que assume a tarefa de impedir que o outro concretize seu desejo. Podemos visualizar como protagonista principal Sebastião Rodrigues, que tem como primeira meta encontrar padre Ferreira, uma missão secundária é apresentada no desenrolar do filme, que consiste em continuar a pregação missionária no Japão. ―Ele é mais bem definido como sendo personagem que tem algo para fazer ou alguma meta para alcançar, e o desenvolvimento da história foca a trajetória deste até 26 alguma resolução, seja o sucesso ou fracasso‖ [IMME, BONA; 2014, p. 19]. E o personagem antagonista do filme, representado por Inoue Sama, não deve ser enxergado como um vilão, mas aquele que dificulta e impossibilita Rodrigues a concluir sua missão. Esse conflito se torna mais tenso quando Rodrigues insiste na ideia do cristianismo florescer no Japão outra vez, enquanto Inoue tenta erradicar essa religião indesejada no país. Tal estudo pode ajudar a não ter uma visão maniqueísta de Rodrigues como representação do lado bom e Inoue como o lado mal da história. ―Serger [2007, p. 193] afirma que o ‗conflito é a base para o drama, pois o drama é essencialmente feito de conflito‘. A partir da afirmação de Seger, deve ser atento o fato de que não é possível criar um drama no qual nada está errado. Algo deve estar errado, alguém deve ter vontade para resolver tal situação e algo ou alguém também deve criar obstáculos para isso‖ [IMME; BONA, 2014, p. 22]. Para a construção dessa narrativa, houve um cuidado ao mostrar a cultura opressora, mas também ao exibir uma crítica quanto às intervenções dos países da Europa. O diretor, além de ter afinidades com temas religiosos, nos ajuda a entender como alguns cristãos conseguiram manter sua religiosidade no cristianismo, um credo que é diferente da cultura nativa; e, também, atenta também para a importância de uma cultura e sua preservação. Considerações Finais O primeiro contato de povos da Europa com o Japão ocorreu no século XVI, pouco tempo depois se iniciou o processo de unificação do país. A unificação era de suma importância, pois com o território fragmentado, poderia haver uma chance maior de se submeter a um processo de dominação por outros povos. Com a inserção do cristianismo, os preceitos da nova religião se chocaram com a cultura japonesa. O cristianismo representou uma ameaça à figura divina do imperador e à própria cultura japonesa. Sua erradicação do território japonês pode ser entendida como um ato político, e uma forma de preservação a essa cultura diversificada. O filme não narra a trajetória dos jesuítas desde seu começo, nem como foi o estopim da deflagração de conflitos, mas começa a 27 E x tr em o s O ri en te s narrativa a partir de 1633, momento no qual já havia iniciado a perseguição e erradicação do cristianismo. Silêncio coloca o público em contato com uma cultura repressiva e opressiva e faz com que espectador desfrute das angústias que os missionários e convertidos passaram naquela terra. Mas também lança uma reflexão sobre a maneira como o ocidente tenta se sobrepujar ao oriente. O longa-metragem não deve ser apenas visto como um instrumento de entretenimento, mas aquele que traz uma narrativa peculiar sobre o passado. Ao utilizar ficção e realidade, podemos concluir que o filme constrói o passado de acordo com seus próprios recursos. É a sua linguagem diversificada e específica que ajuda a reconstruir e representar o passado de uma forma diferente, contribuindo para a propagação do conhecimento histórico. Silêncio é uma obra histórica que, ao mesmo tempo, representa o passado de perseguição aos jesuítas, desvenda os mecanismos utilizados para a preservação da cultura japonesa e propõe uma narrativa crítica sobre o expansionismo europeu. Referências Angélica da Cruz Bernardo é graduada em História pela Universidade Estadual de Minas Gerais. Email: angel.angelicacruz@hotmail.com Vânia Maria Alves Siqueira doutora em Museologia e Patrimônio do Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio - PPG- MUS (UNIRIO/MAST), possui mestrado em História Social pela Universidade Severino Sombra e historiadora. Email: vaniamaria_siq@yahoo.com.br Agradecimento ao professor doutor Wallace Andrioli Guedes que muito contribuiu para o desenvolvimentoda pesquisa e resultado final da mesma. IMME, Tiago André; BONA, Rafael Jose. Narrativa de cinema: uma análise dos conflitos que sustentam a história do filme Taxi Driver. Temática, Paraíba, v.10, n. 8, Agosto2014, p.16-31. Disponível em:<http://www.periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/tematica/article /view/20287/11220>Acesso: 12 jun. 2018. HENSHALL, Kenneth G. História do Japão. 2ª Ed. Tradução de Victor Silva. Lisboa: Portugal; EDIÇÕES 70, 2017. HICHMEH, Y. S. S. O cristianismo no Japão: Do proselitismo jesuíta à expulsão da Igreja. In: XXVII SIMPÓSIO NACIONAL DE 28 HISTÓRIA: Conhecimento histórico e diálogo social. ANPUH. Natal: RN, Jul. 2013. ROSENSTONE, Robert A. A história nos filmes, os filmes na história. Tradução de Marcello Lino. São Paulo: Paz e Terra, 2010. SAKURAI, Célia. Os japoneses. 2ª Ed. São Paulo: Contexto, 2018. SILÊNCIO. Direção: Martin Scorsese. Produção: Martin Scorsese, Gaston Pavlovich, Vittorio Cecchi Gori, Barbara De Fina, Randall Emmett, Emma Tillinger Koskoff, Irwin Winkler. CATCH PLAY; IM GLOBAL, 2016. 1 DVD (160 min), son., color., leg. WALKER, Brett L. História concisa do Japão. Tradução: Daniel Moreira Miranda. São Paulo: EDIPRO, 2017. YAMASHIRO, José. Choque luso no Japão dos séculos XVI e XVII. São Paulo: IBRASA, 1989. 29 E x tr em o s O ri en te s EXPERIÊNCIA DE ANGÚSTIA EM SARTRE E A SAÍDA DO SÁBIO CHINÊS Arthur D‟Elia Introdução Este trabalho visa criar um diálogo intercultural e atemporal entre dois autores, um ocidental e um oriental chinês. São eles Sartre [1905-1980] e Laozi [séc. 6 AEC, também grafado como ‗Lao-Tsé‘]. Em Sartre serão trabalhados os conceitos de angústia, e sua relação com a liberdade; com Laozi, haverá uma preocupação com o ―nada‖ e a provação de sua ontologia, o ‗agir não agindo‘ [Wuwei] e, acima de tudo, enxergar por meio da ótica do sábio, tal como pensara Laozi, a questão da angústia. Nesse sentido, nosso trabalho se orienta pela perspectiva teórica de François Jullien [2010], que propõe a possibilidade de utilizarmos o pensamento chinês como uma forma de contraponto as elaborações da tradição Ocidental. Como ele mesmo afirmou, ―O benefício deste desvio pela China é duplo. Primeiramente, o de descobrir outros modos possíveis de coerência, que denominarei outras inteligibilidades; e, assim, sondar até onde pode ir o desenraizamento do pensamento. Mas este desvio implica também um retorno: a partir desse ponto de vista de exterioridade, trata-se de retornar aos pressupostos a partir dos quais a razão europeia se desenvolveu − pressupostos ocultos, não explicitados, que o pensamento europeu veicula como uma evidência, a tal ponto os assimilou, e sobre os quais prosperou. O objetivo é, portanto, retornar ao impensado do pensamento, tomando a razão europeia pelo avesso a partir desse ponto de vista de exterioridade. Ao mesmo tempo sair da contingência de seu espírito (passando pela prova de um outro quadro de pensamento); e explicitar o ―nós‖ (não somente da ideologia, mas também das categorias de língua e de pensamento) que opera sempre implicitamente nesse ―eu‖ que diz tão soberbamente: ―eu penso‖…‖ [Jullien, 2010, p.2] 30 O sábio chinês de Laozi significa para nós, portanto, uma dessas opções de desvio, de resposta alternativa ao problema elencado por Sartre. De fato, a temporalidade indicaria um anacronismo nessa comparação [Laozi teria existido antes], mas nos propomos a ler o problema segundo nossa constatação – feita por Sartre – e em seguida, dar a outra visão possível de um sistema de pensamento altero a tradição Franco-Ocidental. A angústia em Sartre Antes de mais nada, precisar-se-á reconhecer que a angústia só é possível com a consciência de liberdade (que é sua estrutura essencial), tal fato ocorre quando o ser tem de escolher entre possibilidades das quais uma delas, após a nadificação das outras, corresponderá ao seu existir; no momento em que escolhe, ele tem consciência de que é livre para escolher dentre as alternativas possíveis, pois existe um nada entre os motivos e o ato, o motivo em si é ineficaz por ser algo que aparece para consciência e cabe ao ser da consciência determinar seu ato com tal aparição ou não (Sartre, 2013). A liberdade assume papel fundamental, pois sem ela a realidade teria um caráter determinista. Considerando que existência precede a essência, o ser não fica subjugado a uma possível "natureza humana" ou destino ou pré-determinado por uma divindade; ele agora pode escolher livremente entre as várias possibilidades que contemplam o seu existir de acordo com o que aparece a ele (Sartre, 2013). Por conseguinte, pode-se definir angústia como consciência de ser seu próprio fluir do existir à maneira de não sê-lo, ou seja, quando o sujeito reconhece o que aparece a ele como meras possibilidades; dentre as quais o mesmo terá de escolher, o que leva-o a perceber que é livre e tal liberdade angustia-o, pois tais possíveis que podem ser escolhidos são insuficientes. No entanto, a angústia pode ocorrer com relação a um fato futuro ou um fato passado (Sartre, 2013): Angústia ante o fato passado. Podemos explicá-la disponibilizando um simples exemplo: Carlos decidiu parar de jogar basquete. Mas todas as vezes que se depara com uma quadra, percebe que nada o impede de jogar, a decisão tomada anteriormente é ineficaz, pois a chance de jogar novamente é uma possibilidade possível; a resolução 31 E x tr em o s O ri en te s escolhida no passado é ultrapassada, pois existe a possibilidade de Carlos ser tal resolução à maneira de não sê- la. A decisão tomada no passado está presente na consciência de Carlos, portanto, ele tem consciência de sê-la, mas ao ver a quadra, ele tem a possibilidade de ser à maneira de não ser esta escolha passada. Angústia ante o futuro. Pode-se explicá-la também com um simples exemplo: Um estudante no instante em que realiza uma prova de matemática, depara-se com uma questão extremamente difícil; ao lado dele, está a aluna com a melhor nota de matemática da turma. O garoto tem a possibilidade de copiar a resposta e provavelmente acertar a questão ou não colar e tentar resolver a questão ou deixar em branco. O mesmo possui motivos para efetuar cada uma das três possibilidades. O que ele "é" no instante presente, necessita do que ele ainda não é para efetuar sua ação, ou seja, o que "não é", corresponde a cada "eu" dele próprio que aparece em cada um dos motivos e, por conseguinte, cada "eu" que ele não é lhe demonstra seu ato seguido do efeito; tal indecisão ocorre por conta da contra angústia com que ele se deparou, a contra angústia cessa a angústia ao encerrar a indecisão e fazê-lo tomar uma decisão definitiva. A contra angústia fará com que ele seja na medida de sê-lo, ou seja, escolhendo uma das possibilidades, o mesmo vê-se sendo o que vai ser. Neste exemplo, a angústia localiza-se antes da indecisão, de tal modo que ele "foi" as três possibilidades, se por um momento ele foi cada uma delas e cada uma é o que a outra não é, logo ele acabou sendo na medida de não sê-lo (Sartre, 2013). Laozi e uma possível resposta à questão da angústia Fazemos agora nossa ida e retorno até a China. A escolha em utilizar Laozi para tratar desta problemática parte do pressuposto de que situação na qual se desenvolve a angústia se encontra contemplada nos seus escritos. Laozi pensou a angústia – e uma resposta para tal – a partir da percepção de um estado de existir que, nos escritos cineses, é entendido como ‗vazio‘. Após uma breve exposição dos conceitos Sartreanos, é preciso compreendero caráter ontológico deste ‗nada‘ ou ‗vazio‘, de acordo com a filosofia taoísta desenvolvida pelo grande mestre chinês, para 32 depois tratar desta questão. Segundo Laozi, no Daodejing [Livro da Virtude e do Caminho]: O Tao produziu o um, o um produziu o dois, o dois, o três e o três, todas as coisas. Todas as coisas deixam atrás de si a obscuridade de onde procedem e avançam para abraçar o brilho em que imergem, enquanto são harmonizadas pelo sopro do vazio. Um sopro imaterial forma a harmonia. O que os homens detestam é a solidão, a inatividade e o abandono. [Verso 1] Trinta raios formam o cubo; Da renúncia à sua personalidade é feito o valor da roda. Modela no barro um vaso e da forma impessoal de sua cavidade e da impersonalidade dos espaços vazios Elimina as portas e janelas da parede e da impersonalidade dos espaços vazios é que surge o mérito da casa. É através da existência das coisas, portanto, que nós tiramos proveito. E pela sua insignificância que ficamos servidos. [Verso 11] Nestas passagens, fica evidente que havia um Qi (matéria) disperso, e o vazio ―deu forma‖. Do equilíbrio nasce a forma. Esse vazio juntamente com a matéria formam o universo, é o uno e o verso; para correr, andar, até mesmo a menor partícula a qual conhecemos como átomo, precisa preencher algo, a matéria precisou preencher um espaço e esse espaço é o vazio ou o nada. Percebe-se, portanto, a presença desse nada no real, nada que é ausência de tudo, a questão é que esse nada não existe, ou seja, não tem ser, mas ele faz parte do real, tem status ontológico, ele sempre 'está'. Por conseguinte, vale ressaltar que na escrita chinesa, principalmente a da época, havia a palavra ser, mas utilizada como um verbo auxiliar, não um conceito (como nos gregos) e, no entanto, o ―estar‖ desempenhava uma função muito mais importante, até a nível conceitual. 33 E x tr em o s O ri en te s Desse estado de ‗estar‘ é que percebe-se a dimensão do ‗vazio‘ como um norteador da existência. O ‗vazio‘ não esvazia, mas sim, dá forma a existência. Dando forma, dá-lhe igualmente sentido, que é percebido, de modo análogo, pela função ou pelas propriedades. Assim, o ‗existir‘ passa a ser um estado harmônico entre a propensão [vazio] e o estado presente das coisas [a existência manifesta na forma e no agir]. Situações em que ocorre angústia Porém, torna-se necessário analisar as situações de angústia, começando pela que ocorre diante um fato passado Laozi propunha para isso uma atitude de desprendimento, de evitar tentar controlar o sentido das ações, que ele denominou de Wuwei [não ação, ou ação isenta]. A partir desse ‗agir não agindo‘, numa recusa do desejo, poder-se-á inferir que tal sábio não sofreria com a experiência de angústia: O discípulo da sabedoria estuda dia - a - dia; o discípulo de Tao perde-se dia a dia. Pela contínua renúncia consegue-se que as coisas acabem correndo por si. Nada fazendo tudo acaba sendo feito. Aquele que conquista o mundo muitas vezes o conseguiu pela não-ação, Quando alguém é compelido a fazer alguma coisa, é porque o mundo está pronto muito além de sua conquista. [Verso 48] Com relação a esse acontecimento passado, o sábio sequer teria a preocupação em como o mesmo poderia estar praticando aquilo que havia decidido terminar, pois isto o faria ter desejo, mas aceitaria o fato como parte do fluir das coisas e não se manteria diante da situação com arrependimento; ou seja,as medidas tomadas com a utilização da liberdade não seriam postas em cheque simplesmente pela ausência de desejo, rancor. O sábio seguiria com sua jornada tranquilamente, mesmo após passar por um lugar que o fizesse recordar de algo ou o lembrasse de uma decisão tomada. No exemplo dado anteriormente, se o rapaz que jogava basquete seguisse os conselhos de Laozi, o mesmo ao passar pelo local onde teria uma lembrança do esporte que praticava, não sofreria com aflições de nenhuma natureza, mas encararia a questão como parte 34 do fluir da vida e como parte da escolha que fez; estaria desejando se por um momento arrependesse-se ou percebesse que talvez poderia ter feito outra escolha, pois já pensaria na possibilidade de estar jogando novamente. O sábio não deseja! (Nunes, 2003) Ao fato futuro, há de se empregar a mesma lógica. No exemplo em questão, o sábio está diante de uma ponte a qual corre risco de cair: o mesmo pode escolher o suicídio, atravessá-la ou sentar na mesma e ficar até criar alguma coragem; porém, o sábio, como não receia a morte [que um dia ocorrerá, inevitavelmente], rejeita o niilismo e também precisa seguir seu fluxo, sem desejos, medos ou ressentimentos, atravessando a ponte tranquilamente. Um não sábio entraria em angústia pelo fato dessas três possibilidades serem totalmente insuficientes, a sua percepção de que tem liberdade e a necessidade de escolher uma dentre as três possibilidades o deixaria num estado angustiante. O sábio não pensaria em suicídio porque estaria desejando morrer e o único desejo que ele pode ter é o de não desejar, não ficaria sentado até criar coragem porque ele não sente medo, então só restaria seguir adiante seu caminho, sem preocupações (Watts, 1995). No entanto, é preciso ficar atento aos ensinamentos de Laozi e não confundir com niilismo ou um pessimismo com relação a vida. O taoísmo filosófico também tem como pressuposto a harmonia com a natureza e também consigo mesmo; um estado de pessimismo com relação a vida, que pode acarretar em um niilismo ou desejo de findar a vida, não resulta em harmonia, principalmente no que tange a natureza. Retirá-la seria romper com a naturalidade das coisas e até mesmo uma negação da existência que poderia possibilitar, antes de mais nada, uma continuação da ligação desse sábio com a natureza. Apesar do sábio não ter medo da morte, não ter desejos ou preocupações, o mesmo não pode errar ao desejar a morte ou desejar não ter vivido, pois contraria o fluir do universo, a ordem do Tao, além de demonstrar uma extrema impaciência e ansiedade, alguns atributos que Laozi não postulou naquele a que chamou de sábio (Watts, 1995). Conclusão Logo, após a resolução, tornar-se-á importante lembrar que o sábio chinês de Laozi não sofreria com a angústia da qual falara Sartre, principalmente por ter como fator determinante o não desejo. 35 E x tr em o s O ri en te s Torna-se importante ressaltar a importância da ontologia do nada, pois esse ‗nada‘ é o que empenha o sábio em seu agir não agindo, além de demonstrar como tudo o que existe precisou do vazio para ser, pois precisou preencher tal vácuo para poder existir, enquanto o vazio sempre "está", mesmo não existindo, é a ação do invisível no visível. Por conseguinte e não menos importante, a caracterização do sábio taoísta jamais deve ser igualado a de um que escolhe pelo niilismo, pois como já for a demonstrado, o sábio rejeita o desejo, impaciência, tristeza...e quaisquer outras determinações que contrariem a ordem do Tao e venham a desarmonizar o ambiente ou a si próprio. O sábio não se angustia! Referências Arthur D‘Elia é graduando em Filosofia pela UERJ. Agradecimentos ao professor André Bueno pelas orientações nesse texto. JULLIEN, François. Pensar a partir de um fora [China]. Revista Periferia, v. 2, n. 1, jan./jun. 2010 NUNES, Murillo. O livro do caminho perfeito: Tao Té Ching. São Paulo: Pensamento, 2008. SARTRE, Paul. O ser e o nada: Ensaio de ontologia fenomenológica. Petrópolis: Vozes, 2013. WATTS, Alan. TAO: O curso do rio. O significado e a sabedoria do taoísmo, de acordo com os ensinamentos de Lao-Tzu, de Chuang-Tzu e de Kuan-Tzu. São Paulo: Pensamento,1995. 36 37 E x tr em o s O ri en te s CRENÇAS ORIENTAIS: UMA ANÁLISE SOBRE DEATH NOTE (2006) Bruno Refundini de Oliveira Vanda Fortuna Serafim A pesquisa analisa o animê Death Note (2006-2007) produzido por Tetsuro Araki, com o intuito de discutir as crenças orientais presentes na obra enquanto objeto da história, destacando a a presença de outros elementos místicos. Os aportes teóricos que guiam essa pesquisa consistem em Jacques Derrida (2000) e Mircea Eliade (1992). E do ponto de vista metodológico, Marcos Napolitano (2011) e Carlos Ginzburg (1991). Introdução Antes de começar as menções sobre o desenvolvimento da pesquisa é necessário compreender uma breve genealogia de Death Note. A obra é originalmente narrada em mangá, escrita por Tsugmi Ohba (pseudônimo) e ilustrada por Takeshi Obata. A dupla é reconhecida por desenvolver as obras Death Note (2003-2006), ―Bakumam‖ (2008-2012) e ―Platinum End‖ (2015) em parceria. Serializado semanalmente pela ―Weekly Shõnen Jump‖, entre dezembro de 2003 a maio de 2006, dividido em 108 capítulos, compilados em 12 volumes ―Takõbon‖. A obra recebeu adaptações em animê, filme ―live action‖, ―light novel‖, musical, série televisionada e jogos eletrônicos. O animê ―Death Note‖ (2006-2007), fonte dessa pesquisa, foi produzido pelo estúdio nipônico ―Madhouse‖, serializado semanalmente, dirigida pelo diretor geral Tetsurõ Araki e escrito por Toshiki Inoue. Baseado no manuscrito original, buscou ser fiel a essencial original da história, realizando adaptações no enredo, que concilie o enredo e as peculiaridades de uma obra audiovisual. A obra tem como personagens principais; Light Yagami, humano que teve o ‗primeiro‘ contato com o sobrenatural que resultara em uma mudança de mentalidade e no nascimento de Kira (Uma versão nipônica do léxico inglês ―killer‖); Ryuk o ―shinigami‖ (Não se há uma tradução que abranja o conceito de ―shinigami‖, sendo que o mais próximo seria ―Deus da morte‖) dono e responsável pela queda do ―Death Note‖ no mundo humano; L (Codinome do detetive 38 Lawliet (Ryuuzaki) maior detetive do mundo, que se torna responsável pelo caso Kira, após determinados eventos Amane Misa corrobora com o desenvolvimento da história se tornando o segundo Kira. Dialogo metodológico Objetiva-se realizar uma discussão teórica e metodológica acerca dos cuidados que se pressupõe ao trabalhar os animês, no caso de ―Death Note‖ é especial, pois trata-se de produção serializada semanalmente. Sendo que, é importante destacar que ―Death Note‖, ao ser lançado como anime, já tinha toda a sua produção montada, não havendo um diálogo entre o público e a série, que influenciaria nos episódios posteriores. Partimos da abordagem metodológica do historiador Marcos Napolitano (2011) para analisar as fontes audiovisuais. Os animês não devem ser considerados uma demonstração quase direta dos objetivos da história, tampouco divididos duas naturezas, a documental, buscando um registro mais real dos eventos e personagens históricos, e artística, percebidas pelo estigma de subjetividade absoluta. O mais importante é perceber a fonte audiovisual em sua estrutura de linguagem, seu mecanismo de representação da realidade e seu código interno (NAPOLITANO, 2011). Pensando a relação História Cinema-Animê, ―A força das imagens, mesmo que puramente ficcionais, tem a capacidade de criar uma ―realidade‘ em si mesma, ainda que limitada ao mundo da ficção, da fabula encenada e filmada‖ (NAPOLITANO, 2011, p.237). Assim, tanto a representação fílmica, quanto a animação, possuem o mesmo valor de ―realidade‖ sobre o telespectador, já que todo produto audiovisual é uma representação do real. O método indiciário de Ginzburg (1991), permite por meio da semiótica (estudo dos signos, sendo todo e qualquer código verbal e não-verbal, que possa ter sentido e significação) e do recorte de determinadas falas, a análise histórica de um animê. ― O conhecedor de arte é comparável ao detetive que descobre o autor do crime (do quadro) baseado em indícios imperceptíveis para a maioria‖ (GINZBURG, 1991, p.145). Não é apenas perceber o autor (criador) de uma obra, mas sim ser capaz de reconstruir a cadeia de eventos que levou o produtor a produzir tal produto. 39 E x tr em o s O ri en te s ―[…] a proposta de um método interpretativo centrado sobre os resíduos, sobre os dados marginais, considerados reveladores. Desse modo, pormenores normalmente considerados sem importância, ou até triviais, ―baixos‖, forneciam a chave para aceder aos produtos mais elevados do espírito humano. ‖ (GINZBURG, 1991, p.149-150) Em suma, o trabalho do historiador se assemelha, a arte venatória e ao do médico, sendo capaz de remontar a memória histórica (processo da caça, ou de diagnosticar doenças), por meio de indícios, pistas, de conjecturas, não experimentável diretamente: ―[…] o conhecimento histórico é indireto, indiciário, conjectural‖ (GINZBURG, 1991, p.157). Destacando a própria presença da metodologia indiciária de Ginzburg (1991) no enredo do animê. Ao analisar as ações ousadas do detetive L, pode se perceber o funcionamento do método, como L, fora capaz de selecionar um pequeno detalhe, que aos olhos do mundo era insignificante, e remontar toda a cadeia de eventos que levaria ao aparecimento de Kira, e posteriormente encontrado novos indícios que o levariam a conclusão de que Kira fosse Light Yagami. Crença em Kira A ―realidade‖construída no animê ―Death Note‖ busca representar de forma simultânea, o tempo e espaço vivido. Na construção da mentalidade nipônica algumas religiões são mais visíveis, como Xintoísmo, o Budismo e o Confucionismo (de matriz oriental), e o Cristianismo (de matriz ocidental). ―Aqui, seremos assediados por todas as questões do nome e do que ―se faz em nome de‖. (DERRIDA, 2000, p.16). Há crença em ―Kira‖ leva seus devotos a realizarem feitos em seu nome, assim o título ―Kira‖ representa o mecanismo que permite os usuários do Caderno realizarem os homicídios, ou segundo os seus próprios mandamentos, a execução dos criminosos e daqueles que o perseguem em prol da construção de um mundo mais justo. O primeiro a usar o nome Kira foi Light Yagami. Na narrativa ele não é o responsável direto por criar este ―título‖, mas suas ações induziram as pessoas a criá-lo. O segundo Kira, Amane Misa, usa o nome de Kira, para que assim pudesse conhecer o ―original‖, além de tentar propagar a palavra de Kira e realizar o julgamento sobre os 40 criminosos. O terceiro Kira, Kyousoke Higuichi, um empresário da companhia Yotsuba, usou o ―nome‖ com o objetivo de ascensão financeira e realizou o ―julgamento divino‖ a mando do ―shinigami‖, dono do Caderno. O quarto Kira, Teru Mikami, é um promotor de justiça obcecado por Kira. Ele é escolhido por Yagami para que continue a executar o ―julgamento divino‖, quando este se encontrar incapacitado. Em seu discurso, o segundo Kira instaura uma falsa democracia.A polícia é sua aliada, contanto que não o persiga.E as pessoas até podem discordar do seu ideal de ―justiça‖,porém não podem contrariá-lo publicamente.Ele pede para que as pessoas esperem, que lhe dêem tempo, para que ele possa mostrar a sociedade, que ao eliminar os criminosos ele torna o mundo um lugar melhor. E ao realizar está façanha, todas as pessoas de bem o aceitarão, tornando- o ―messias‖. No fim de seu pronunciamento, Kira oferece à polícia a chance de trabalhar com ele, porém a mesma não aceita.Com a recusa, Kira continua a serum criminoso, entretanto, se a sua proposta tivesse sido aceita ele teria a possibilidade de institucionalizar a fé de seus seguidores em uma ―religião‖. Além do mais, ―[…] a fé nem sempre foi e nem sempre será identificável com a religião, tão pouco com a teologia.‖ (DERRIDA, 2000, p.19) Dada a morte de L no episódio vinte e cinco e a ascensão de Light Yagami no episódio vinte e seis ao cargo de ―L‖, um dos maiores obstáculos, há criação do novo mundo messiânico de Yagami, foi derrubado. Seis anos se passaram desde que Yagami assumiu o título de ―L‖, agora Kira possui total liberdade para executar seu ideal de justiça, diminuindo os índices de criminalidade. Enquanto isso conquista cada vez mais seguidores, eo mundo passa a temê-lo. Além do mais, o conceito de ―crença‖ em ―Death Note‖ pode ser pensado pela seguinte definição: ―1) por um lado, a experiência da crença (o crer ou crédito, o fiduciário ou o fiável no ato de fé, a fidelidade, o apelo à confiança cega, o testemunhal sempre para além da prova, da razão demonstrava da intuição)‖ (DERRIDA, 2000, p.48) A partir do episódio quinze, com a prisão de Misa Amane, a ―shinigami‖ Remu exige que Light Yagami salve a garota, para tanto 41 E x tr em o s O ri en te s Yagami apresenta um plano a Remu, no qual requer que ela confie nele. A crença de um pai, assim que Light Yagami se rende a custódia de L, Soichiro Yagami se recusa acreditar em L ou no filho. Ele acredita cegamente que seu filho não pode ser o Kira, mesmo que de forma inconsciente. Soichiro Yagami pede ao próprio L para que o prenda, ele apenas aceitaria ser liberto, quando L desista da ideia ou conseguisse uma prova irrefutável.Nesse caso não se sabe qual seria sua reação. O plano de Yagami funciona, entretanto ao manipular a crença que Remu depositou sobre ele, força com que ela assassine L resultando em sua vitória e na salvação de Amane. No segundo episódio os chefes mundiais depositam suas fés no detetive L, no qual promete capturar Kira, mesmo que ele ainda não possuísse nenhuma prova sobre a existência dele. Porém, no mesmo episódio L consegue a prova. Durante o episódio onze, com a nova abordagem do segundo Kira os governantes passam a desacreditar em L, aceitando revelar sua identidade na televisão. Entretanto, o plano de Ryuzaki convence o segundo Kira a desistir de que L apareça em público, restabelecendo a fé dos governantes nele.No episódio dezoito Kira, realiza uma ameaça direta a polícia, a qual para de perseguir Kira delegando toda sua fé em L, o qual passa a agir de forma independente. O ideal de Kira pode ser pensado através de ―Violência do sacrifício em nome da não-violência‖ (DERRIDA, 2000, p.72). Correndo o risco de desvirtuar o contexto da frase, Kira está imbuído desse pensamento, realizando genocídios em nome da ―paz‖, acreditando que uma ―violência maior‖ irá cessar a violência. No primeiro episódio, o ―shinigami‖ Ryuk aponta como Light Yagami se tornaria o único vilão caso seguisse esse caminho. Uma escolha duvidosa, já que violência gera mais violência. Mesmo com Kira podendo atuar livremente em momento algum, a criminalidade cessa. Além disto, o confinamento de Misa Amane e Light Yagami, é baseado no conceito de ―experiência do testemunho‖. Definido como sendo: ―No testemunho, a verdade é prometida para além de qualquer prova, de qualquer percepção, de qualquer demonstração intuitiva‖ (DERRIDA, 2000, p.86). Yagami necessita que L acredite nele, que ele não seja Kira que ele estava sendo manipulado, ao contrário de Misa, no qual possuía provas concretas. Indo aos 42 limites aceitando ficar preso em cativeiro deixando que L torne-se sua testemunha, afinal de contas não haveria maneira para que Yagami continuasse matando criminosos estando sobre custódia do maior detetive do mundo. Caso L se convencesse de que os dois fossem inocentes não haveria testemunho melhor para livrar a cara de Yagami. Ao longo do episódio trinta, o ―shinigami‖ Shidoh revela que as evidências que provavam a inocência de Light Yagami e Misa Amane eram falsas. Quando Near transmite essa informação ao novo ―time L‖, possibilita que o investigador Shuichi Aizawa, questione-se sobre a integridade de Yagami. ―O ato de fé exigido pela atestação leva, por estrutura, para além de qualquer intuição e de qualquer prova, de qualquer saber (―Juro que digo a verdade, não necessariamente a ―verdade objetiva‖, mas a verdade do que acredito ser a verdade, digo-te essa verdade, acredita em mim, acreditar no que acredito, tanto mais que nunca poderás ver nem conhecer o lugar insubstituível e, no entanto, universalizável, exemplar, a partir do qual eu te falo, meu testemunho, talvez, seja falso, mas eu sou sincero e tenho boa-fé, não se trata de um falso testemunho‖)‖. (DERRIDA, 2000, p.86) Messias ―Isso seria a abertura ao futuro ou à vida do outro como advento da justiça, mas sem horizonte de expectativa nem prefiguração profética. A vinda do outro só poderá surgir como um acontecimento singular exatamente onde não é possível qualquer antecipação, exatamente onde o outro e a morte – e o mal radial – podem surpreender a qualquer instante. ‖ (DERRIDA, 2000, p.29) O primeiro momento da ―vinda‖ do messias é no episódio um. De forma inesperada Light Yagami adquire o Caderno e ao usá-lo entra em um conflito existencial. Yagami define que a única utilidade do Caderno seria para eliminar os malfeitores, assim salvando o mundo. Por ser um gênio acredita ser o único digno de usar o Caderno em prol da construção de um mundo melhor. 43 E x tr em o s O ri en te s Ademais, no segundo episódio o surgimento dos sites de adoração à Kira mostra sua popularidade em especial um deles, que possui a seguinte mensagem ―A lenda de Kira o salvador‖ (DEATH NOTE, 2006). A internet possibilita que pessoas manifestem seus reais desejos, por ser no anonimato, sem a preocupação de serem reprimidas por valores sociais. Esses sites reforçam a ânsia pelo messias, o mundo para estas pessoas está podre e apenas Kira pode purificá-lo.Em contrapartida, os criminosos passam a temer a ―mão divina de Kira‖.Entretanto em nenhum momento da obra Kira recebe o total apoio da sociedade como ―o messias‖. Yagami explica isso a Ryuk, mas olhando apenas um lado, o seu. Ele acredita fielmente que as pessoas aceitam a morte de criminosos e o apoio dos websites ―legitima‖ suas ideias. Ora na sociedade japonesa, a qual aceita a pena de morte (YAMAMOTO, 2015), não é surpresa a rápida aceitação dos ideais de Kira. No episódio onze, o segundo Kira, ao fazer o pronunciamento em rede nacional, afirma publicamente o seu desejo de salvar o mundo, algo que Kira em momento nenhum o fez. Ao afirmar seu posicionamento, instaura um maior ―efeito de realidade‖ sobre a população. Além do mais, esse ato impulsiona tanto seus adoradores, quanto seus opositores a dizerem publicamente sua opinião sobre o conflito entre a nova ordem de Kira e a velha ordem do Governo. Para tanto, é necessário de seus adoradores uma fé inabalável. Além do mais no décimo terceiro episódio, o segundo Kira ao receber uma falsa mensagem do primeiro, aceita obedecer suas ordens, mostrando-se mais um prenunciador da salvação e não passando de um simples adorador do messias.Por fim, no décimo quarto episódio, o segundo Kira, abandona o título, mas reafirma que continuará buscando a aprovação do primeiro Kira,executando criminosos. ―Um invencível desejo de justiça liga-se a essa expectativa […]. Essa messianicidade abstrata pertence, para começar, à experiência da fé, do crer ou de um crédito irredutível ao saber e de uma fiabilidade que ―fundamenta‖ qualquer relação com o outro
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