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SEBENTA FISIOLOGIA I BERNARDO MANUEL DE SOUSA PINTO FACULDADE DE MEDICINA DA UNIVERSIDADE DO PORTO 2011/2012 Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 2 Índice Músculo esquelético……………………………………………………………………...………………4 Considerações mecânicas e bioquímicas relativas ao processo de contracção muscular………12 Músculo liso visceral e vascular…….…………………………………………………………………17 Músculo cardíaco.…………………………….……………...……………………………....…………24 Actividade eléctrica cardíaca………………………………..….…………….…………...……….......30 Electrocardiograma……………………...…………………………………...…………………………36 Ciclo cardíaco.…………………………..………………………..……………………………...………49 Determinantes da função sistólica…………………...…………………...…………..………….……55 Determinantes da função diastólica……………………….………...………………...……...………65 Débito cardíaco e retorno venoso…..……………….……...………………………...……….………71 Circulação direita. Papel fisiopatológico do ventrículo direito…..…………………………..……78 Fisiopatologia da isquemia do miocárdio……………..………………...………………….………..82 Fisiopatologia da insuficiência cardíaca……………………………….………….………….………87 Hemodinâmica e hemorreologia……….…………...………..…………………………..…...….……93 Regulação da pressão arterial……….…………………………………….……………..……………96 Regulação da função vascular………………………...………….………...…………………...……103 Circulações especiais………………………………………………...………………………...………113 Microcirculação e vasos linfáticos…………………………………………………..……….………119 Hematopoiese………………..……………………………………..…...……………...……....………134 Cinética do ferro……………………………………..……...…….........................…………...………140 Hemóstase primária………………………………………...…….........................…………...………142 Hemóstase secundária……………………...………………………..……………….….…....………147 Fibrinólise…………………………..…………..………………………………………..…....…..……153 Transdução de sinal a nível celular..………………………………………..……...…...……………156 Sistema nervoso autónomo…………..……………………………………….………………..……..164 Regulação da temperatura corporal……….....……………………………………….………….…170 Ventilação pulmonar……………...……………………...………….……......................…….………178 Ventilação………………………………………….......…………….…………………………...….…195 Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 3 Perfusão…….………………………...…………………………...……………....…...…….……….…204 Trocas gasosas………………………………………………………………………...…....…………..220 Transporte de gases.………….....…………….……………………..………...………………...….…233 Regulação da ventilação pulmonar………………...…………………………………….….………245 Estão incluídos nesta sebenta, resumos de Fisiologia I da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto acompanhados por ilustrações e esquemas. Desde já agradeço a quem me ajudou na elaboração da sebenta, através da correcção de eventuais erros inicialmente presentes, ou através de ideias e sugestões. Bom trabalho e votos de sucesso nos exames, Bernardo M. Sousa Pinto Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 4 Músculo esquelético Existem muitas classificações possíveis para os músculos. Contudo, funcionalmente, o mais habitual é classificar o músculo como sendo esquelético, cardíaco ou liso. O músculo esquelético é estriado e voluntário, enquanto o músculo cardíaco é estriado e involuntário. Por fim, o músculo liso é não- estriado e involuntário. O facto de o músculo cardíaco e o músculo liso serem involuntários, significa que a sua actividade depende da acção do sistema nervoso autónomo. Fibras musculares Os músculos são constituídos por conjuntos de fascículos, que por sua vez, são grupos de fibras musculares. Cada fibra muscular corresponde a uma célula muscular esquelética, sendo estas células normalmente de grandes dimensões e multinucleadas. Cada fibra muscular é constituída por múltiplas miofibrilas, cuja unidade funcional é o sarcómero. Ao nível das fibras musculares, os organelos adquirem nomes diferentes dos aplicados às restantes células. Dessa forma, o citoplasma passa a ser designado por sarcoplasma, a membrana celular é denominada de sarcolema e o retículo citoplasmático é designado por retículo sarcoplasmático. O retículo sarcoplasmático encontra-se na periferia das fibras musculares, rodeando- as, e tem a capacidade de libertar cálcio, aquando da contracção muscular, e de o recapturar, aquando do relaxamento muscular. Próximo do retículo sarcoplasmático encontramos invaginações do sarcolema, as quais são designadas por túbulos T, cujo interior corresponde a espaço extracelular. As porções do 1. Fisiologia muscular Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 5 retículo sarcoplasmático mais próximas dos túbulos T são designadas por cisternas terminais, correspondendo aos locais onde ocorre a libertação de cálcio, algo fundamental para que possa ocorrer a contracção muscular. Já as porções longitudinais do retículo sarcoplasmático são contínuas com as cisternas terminais e estendem-se ao longo de toda a extensão do sarcómero. Estas porções contêm uma grande densidade de ATPase de cálcio (uma bomba de cálcio), algo que se revela fundamental para a recaptura de cálcio ao nível do retículo sarcoplasmático e, consequentemente, para o relaxamento muscular. Ao conjunto de um túbulo T e das suas duas cisternas terminais adjacentes dá-se o nome de tríade, sendo que, nos mamíferos, existem ao nível do músculo esquelético duas tríades por sarcómero (presentes ao nível da junção entre as bandas I e A). Já ao nível do músculo cardíaco, regista-se a presença de uma tríade por sarcómero, nomeadamente ao nível da banda Z. Sarcómero O sarcómero é a estrutura que se encontra por entre duas linhas Z. Consequentemente, estas linhas unem dois sarcómeros adjacentes. Ao nível do sarcómero encontramos dois tipos de miofilamentos – os miofilamentos grossos (também designados, de forma menos correcta por miofilamentos de miosina, devido ao facto de serem constituídos principalmente por miosina) e os miofilamentos finos (também designados, de forma menos correcta por miofilamentos de actina, devido ao facto de serem constituídos, sobretudo por actina). Para além da linha Z é ainda possível discriminar a presença de outras bandas no sarcómero. A banda I corresponde ao local onde apenas se encontram presentes miofilamentos finos, enquanto, por oposição, a banda H corresponde ao local onde apenas existem miofilamentos grossos. A banda H está incluída na banda A, que corresponde aos locais de sobreposição dos miofilamentos grossos com os miofilamentos finos e de presença exclusiva de miofilamentos grossos. Por fim, ao local onde os miofilamentos grossos se unem dá-se o nome de linha M, que corresponde à zona central do sarcómero. Esta linha inclui proteínas de importância vital para a organização e alinhamento dos miofilamentos grossos, ao nível do sarcómero. Os miofilamentos finos têm um comprimento de 1 μm, enquanto os miofilamentos grossos têm um comprimento de 1,6 μm. Isto implica forçosamente que o comprimento mínimo do sarcómero será de 1,6 μm, pois desta forma, o miofilamento grosso não “bate” na linha Z, nem se regista a interdigitação dos miofilamentos finos, algo que seria impeditivo do normal funcionamento do sarcómero. Apesar disso, os valores para o comprimento óptimo do sarcómero encontram-se no intervalo entre os 2 e os 2,2 μm. Apenas pode ocorrer contracção muscular, quando se verifica à partida a presençade sobreposição entre miofilamentos grossos e finos. Se no músculo esquelético, a distensão muscular é limitada pela presença das inserções ósseas do músculo, no músculo cardíaco poderia teoricamente ser registada uma distensão de tal maneira, que os miofilamentos grossos e os miofilamentos finos deixassem de se encontrar sobrepostos. Todavia, tal não acontece, devido à acção da titina. Esta molécula, que é a maior Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 6 do organismo, ancora os miofilamentos grossos à linha Z e, ao fazê-lo, regula as propriedades elásticas do músculo estriado, impedindo assim que se registe o estiramento excessivo do músculo cardíaco. Outra particularidade da titina prende-se com o facto de esta proteína acumular energia, aquando da contracção muscular, e libertar energia, aquando do relaxamento muscular. Miofilamentos Os miofilamentos finos são predominantemente constituídos por uma dupla hélice de F-actina (actina filamentar), sendo esta, um polímero de G-actina (actina glomerular). Ao longo do miofilamento fino regista-se igualmente a presença de nebulina, uma proteína que participa na regulação do comprimento deste tipo de miofilamento. Ao nível dos miofilamentos finos encontramos também dímeros de tropomiosina, que se estendem sobre todo o filamento de actina, cobrindo os locais de ligação à miosina das moléculas de actina (dessa forma, quando o músculo se encontra relaxado, a tropomiosina bloqueia a contracção muscular, ao impedir que a actina se ligue à miosina). Cada dímero de tropomiosina encontra-se sobre os “sulcos” formados pela dupla hélice de actina, estendendo-se sobre sete moléculas de actina. Em cada dímero de tropomiosina é possível encontrar um complexo de troponina, constituído por três subunidades (troponina T, troponina C e troponina I) – a troponina T liga-se à tropomiosina, a troponina I liga-se à actina (facilitando a inibição da ligação da miosina à actina), enquanto a triponina C se liga ao ião cálcio. Já o miofilamento grosso é, sobretudo, constituído por miosina. A miosina é formada por um par de cadeias pesadas e dois pares de cadeias leves. As cadeias pesadas formam no seu N-terminal uma estrutura globular, a qual é designada por cabeça. Essa porção é responsável pela interacção com a actina, tendo igualmente capacidade de hidrolisar ATP (ou seja, actividade de ATPase). Já as cadeias leves estão associadas com a secção da cabeça da miosina – as cadeias leves alcalinas participam na estabilização da região da cabeça, enquanto as cadeias leves reguladoras, regulam a actividade de ATPase da miosina. A actividade das cadeias leves reguladoras, por sua vez, é regulada por fosforilação operada por cínases dependentes e independentes de cálcio. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 7 Alinhamento das cabeças de miosina Quando se observa um sarcómero em corte transverso, depreende-se com uma estrutura de grosso modo hexagonal, na medida em que cada miofilamento fino se encontra rodeado por três miofilamentos grossos e que cada miofilamento grosso se encontra rodeado por três finos. Como num mesmo plano (ou seja num “corte transverso”) encontramos três filamentos grossos, concluímos que num mesmo plano, cada cabeça de miosina dista 120º da seguinte. Se atendermos agora a uma organização tridimensional, constatamos que uma cabeça de miosina dista 14,3 nm da cabeça que se encontra no plano adjacente (ou seja, dois planos contendo cabeças de miosina distam 14,3 nm um do outro). Contudo, as cabeças de miosina nestes dois planos adjacentes não se encontram alinhadas – elas fazem um ângulo de 40º entre si. Dessa forma, uma cabeça de miosina dista 43 nm da cabeça de miosina mais próxima que com ela se encontra perfeitamente alinhada (ver cálculos e esquema em baixo): . Acoplamento excitação/contracção As fibras musculares são inervadas por neurónios motores somáticos, cujos corpos celulares se encontram no corno anterior da espinal medula. Uma unidade motora é entendida como o número de fibras musculares inervadas por um mesmo neurónio, registando-se unidades motoras menores, sobretudo ao nível dos músculos que efectuam movimentos mais precisos (tais como os músculos da laringe), enquanto as unidades motoras maiores predominam em músculos cujas acções não requerem Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 8 tanta delicadeza (tais como os músculos posturais). Contudo, num mesmo músculo existem unidades motoras de diferentes dimensões. Os neurónios motores, que inervam as fibras musculares, libertam acetilcolina, que interage com receptores nicotínicos (um tipo de receptores colinérgicos), que se encontram acoplados a canais de sódio dependentes do ligando, levando à génese de um potencial pós-sináptico excitatório que, caso atinja o limiar da excitabilidade, se converte num potencial de acção. Este potencial chega até ao sarcolema, sendo inclusive transmitido aos túbulos T. Os túbulos T apresentam canais de cálcio do tipo L (canais esses que são passíveis de ser inibidos por di- hidropiridinas), que são sensíveis à voltagem e se encontram em íntimo contacto com os canais rianodínicos das cisternas terminais do retículo sarcoplasmático. Ora, aquando de um potencial de acção, a despolarização da membrana induz a abertura dos canais de cálcio do tipo L (por via de alterações conformacionais) e, subsequentemente, devido a um acoplamento mecânico entre os dois tipos de canal, os canais rianodínicos (também designados por canais libertadores de cálcio) do retículo abrem e o cálcio abandona as cisternas terminais do retículo sarcoplasmático, sendo libertado para o sarcoplasma, algo, essencial para a ocorrência de contracção muscular. Este processo descrito é designado por acoplamento excitação/contracção. É importante referir que no músculo cardíaco, contrariamente ao que se passa no músculo esquelético, parte do cálcio que entra para o sarcoplasma é proveniente do meio extracelular. Em termos de duração temporal, o potencial de acção apresenta uma duração mais longa no músculo cardíaco, comparativamente ao músculo esquelético e, como tal, o período refractário é maior. Ao potencial de acção, segue- se a libertação de cálcio pelo retículo sarcoplasmático, sendo que mal a concentração de cálcio atinge o seu valor máximo no sarcoplasma, este ião começa logo a ser recapturado para o retículo sarcoplasmático (contudo, após ser libertado, uma parte importante destes iões ficou ligada à troponina C, algo essencial para a ocorrência de contracção muscular). Mesmo assim, só passados alguns milissegundos é que o músculo se começa a contrair.Isto significa que num abalo muscular isolado, quando é Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 9 atingida a força máxima pelas fibras musculares, já não se verifica a presença da concentração máxima de cálcio no sarcoplasma (cuja manutenção seria capaz de activar a contracção muscular na sua plenitude). Activação das pontes cruzadas pelo cálcio O cálcio que entretanto foi libertado para o sarcoplasma liga-se à troponina C. Esta apresenta quatro locais de afinidade para o cálcio – dois de maior afinidade, que se encontram sempre ligados ao cálcio, e dois de menor afinidade, que se encontram ciclicamente ligados ao cálcio, nomeadamente quando há libertação de cálcio pelo retículo sarcoplasmático. A ligação do cálcio à troponina C leva a uma alteração na conformação do complexo de troponina, o que está associado ao afastamento da troponina I do filamento de actina/tropomiosina e a um maior “afundamento” da tropomiosina nos “sulcos da dupla hélice” da actina (por via da troponina T). Este movimento da tropomiosina permite a exposição dos locais de ligação da miosina (na molécula de actina), o que permite a interacção entre os filamentos de actina e os filamentos de miosina, algo que resulta na contracção do sarcómero. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 10 De referir que, a concentração crítica de cálcio no sarcoplasma para que se inicie a activação do aparelho contráctil é de 10-7 molares, sendo que a concentração de 10-5 molares de cálcio corresponde a uma situação de activação máxima do aparelho contráctil. Ciclo das pontes cruzadas Durante o ciclo das pontes cruzadas, as proteínas contrácteis do músculo convertem a energia resultante da hidrólise do ATP em energia mecânica e, como tal, este processo é a base molecular que possibilita a génese de força e movimento nas fibras musculares. Foi já descrito como é que a miosina se liga à actina, contudo, caso a miosina ficasse sempre ligada à actina, o músculo permaneceria rígido e contraído. Isto é o que se verifica nas primeiras horas que decorrem após a morte de um indivíduo (rigor mortis), até começar a ocorrer necrose e putrefacção. De facto, a actina tem muita afinidade para a miosina e a ligação que estas estabelecem é muito forte, sendo necessária a presença de ATP para “desligar” a miosina da actina. Ora, num indivíduo morto não há produção de ATP e, como tal, a actina permanece ligada à miosina e os músculos mantêm-se contraídos (para além do ATP ser necessário para que ocorra a dissociação do complexo actina-miosina, esta molécula também é essencial que o cálcio volte para o interior do retículo sarcoplasmático). Dessa forma, o primeiro passo do ciclo das pontes cruzadas consiste na ligação de uma molécula de ATP à cabeça de miosina (que forma um ângulo de 45º com o filamento de actina). Isto permite a dissociação do complexo actina-miosina, por diminuição da afinidade entre os dois filamentos. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 11 A cabeça de miosina opera então a hidrólise de ATP, passando a descrever um ângulo recto com o filamento de actina. Isto está associado a um aumento da afinidade entre o filamento de actina e o filamento de miosina - a cabeça de miosina liga-se então a uma nova posição do filamento de actina, formando-se uma ponte cruzada. Segue-se a libertação do fosfato inorgânico (resultante da hidrólise do ATP), que se encontrava ligado à molécula de miosina, o que leva a nova alteração conformacional da cabeça de miosina (que passa a descrever de novo um ângulo de 45º com o filamento de actina) e a um consequente deslizamento do filamento de actina no sentido da cauda da miosina, o que gera força e energia. Finalmente, ocorre a libertação do ADP (resultante da hidrólise do ATP) que ainda permanecia ligado à molécula de miosina - o complexo de actina-miosina volta ao estado rígido inicial, para que uma nova molécula de ATP se possa ligar à cabeça da miosina. De referir que, numa mesma fibra muscular, as pontes cruzadas não se encontram sempre na mesma fase, isto permite que haja sempre pontes cruzadas que se encontrem num estado rígido, que actuam “sustendo a força gerada” (de modo análogo a indivíduos que se encontrem a suster uma corda, de modo a impedir o seu movimento). É igualmente importante lembrar que a velocidade de contracção muscular depende da velocidade de degradação de ATP, ou seja da velocidade da acção ATPásica da cabeça de miosina, algo que é regulado pelas cadeias leves reguladoras da miosina. Acoplamento inactivação-relaxamento O processo principal associado à expulsão de cálcio do sarcoplasma requer a presença de uma bomba de cálcio do tipo SERCA (uma cálcio/ATPase), que opera o transporte activo do cálcio para o retículo sarcoplasmático, contra o gradiente de concentração. Contudo, a actividade da bomba de cálcio do tipo SERCA é inibida por concentrações elevadas de cálcio livre ao nível do lúmen do retículo sarcoplasmático. Como forma de evitar essa inibição, o cálcio presente no retículo sarcoplasmático liga- se à calreticulina e a calsequestrina (estas proteínas têm uma elevada afinidade para este ião), registando-se assim também a diminuição da sua osmolaridade naquele organelo, o que permite minimizar os gastos energéticos para o transporte de uma maior quantidade deste ião. Alternativamente, parte do cálcio pode ser igualmente expulsa para o meio extracelular. A célula pode, então, enviar o cálcio para o meio extracelular, quer através de um trocador sódio/cálcio (este antiporter é designado por NCX), quer através de uma bomba de cálcio presente na membrana celular (esta é designada por PMCA e acopla a saída de cálcio e a entrada de um protão para o sarcoplasma, com a hidrólise de ATP). Contudo, esta não é a forma preferencial de remoção de cálcio do sarcoplasma, na medida em que, caso todo o cálcio do sarcoplasma fosse removido para o meio extracelular, registar-se-ia uma depleção nas reservas celulares de cálcio. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 12 Considerações mecânicas e bioquímicas relativas ao processo de contracção muscular A força total gerada por um músculo corresponde à soma das forças geradas por muitas pontes cruzadas cíclicas de actina-miosina. O número de pontes cruzadas que ocorrem em simultâneo depende substancialmente do comprimento inicial da fibra muscular e do padrão ou frequência da estimulação das fibras musculares. Quando a contracção muscular é estimulada, o músculo exerce uma força, que tende a aproximar a origem e a inserção muscular – esta força é designada por tensão. A tensão muscular registada antes da contracção muscular é designada por tensão passiva, sendo esta influenciada pela pré-carga à qual está submetido o músculo. A pré-carga é a carga que se impõe ao músculo antes de este se contrair. O aumento da pré-carga leva igualmente a um aumento do comprimento do músculo e do sarcómero (tal como acontece quando adicionamos um peso a um elástico de borracha – o elástico estica), o que é determinante para influenciar as propriedades activas do músculo, caso este seja subsequentemente estimulado (como tal, a pré-carga influencia directamente a tensão passiva e, indirectamente, a tensão activa). Quando a contracção muscular é estimulada, desenvolve-se uma tensão adicional através dos ciclos das pontes cruzadas – a tensão activa (a tensão muscular total correspondeao somatório da tensão passiva com a tensão activa). A pós-carga influencia o músculo depois de este se começar a contrair, na medida em que esta oferece resistência ao encurtamento do músculo. De referir que quanto maior a pós-carga, maior a dificuldade de contracção muscular, pois o músculo precisa inicialmente de força para vencer a resistência da pós-carga aplicada e só depois se pode encurtar. Contracção isotónica e contracção isométrica Existem dois grandes tipos de contracção muscular concêntrica – aquando de uma contracção isotónica, uma das duas fixações musculares é móvel e, como tal, a estimulação permite uma redução do comprimento muscular (pois a tensão aplicada pelo músculo é superior à aplicada pela carga). Como esse encurtamento ocorre com carga constante, verifica-se a manutenção do tónus muscular. Se o encurtamento do músculo se verificar na ausência de pós-carga, presencia-se uma contracção isotónica pura (algo que apenas é presenciado em condições experimentais), enquanto numa contracção isotónica pós-carregada, o comprimento do músculo diminui, mas este primeiro tem de vencer a resistência oferecida pela pós-carga. Já a contracção isométrica está associada a uma imobilidade dos pontos de fixação muscular (e, como tal, o comprimento do músculo não varia), havendo somente uma variação na tensão muscular (tónus), aquando de uma estimulação. Este tipo de contracção verifica-se quando o músculo não consegue vencer a resistência da pós-carga que lhe é imposta e, como tal, não se consegue encurtar. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 13 No que concerne à velocidade de encurtamento do músculo, aquando de uma contracção isotónica, esta é tanto menor, quanto maior for a pós-carga aplicada, até que, a partir de um determinado valor de resistência oferecida pela pós-carga, o músculo não se consegue encurtar e a passa a ser registada uma contracção isométrica. Contudo, é importante referir que não importa por quanto é ultrapassada a capacidade de o músculo se encurtar – o músculo entra em contracção isométrica, independentemente do facto de a resistência oferecida pela pós-carga ser 0,1 ou 100% superior! É igualmente importante salientar que a velocidade de contracção máxima (situação teórica de pré- carga e pós-carga nulas) é a mesma para qualquer que seja o comprimento de músculo, mas que à medida que se aumenta a pós- carga, um sarcómero cujo comprimento inicial seja menor que óptimo tem menor capacidade de vencer a resistência oferecida pela pós-carga. Numa contracção isométrica, como já foi referido, existe uma relação entre a tensão passiva e o comprimento muscular (e do sarcómero), sendo essa relação de natureza exponencial (a tensão passiva depende do comprimento muscular). Contudo, numa contracção isométrica existe também uma relação entre o comprimento do sarcómero e a tensão activa desenvolvida pelo músculo. Esta tensão é máxima (Lmax), em sarcómeros que apresentem um comprimento óptimo (em sarcómeros cujo comprimento se situa entre 2 e 2,2 μm, apresentam melhores interdigitações entre os miofilamentos). Sarcómeros com valores de comprimento superiores aos “valores óptimos” registam uma área cada vez menor de interdigitações entre os miofilamentos finos e grossos (até que, quando deixa de haver interdigitações, a tensão activa desenvolvida passa a ser nula e toda a tensão registada corresponde à tensão passiva verificada), enquanto sarcómeros com valores de comprimento inferiores registam uma sobreposição cada vez maior entre os miofilamentos finos e uma proximidade cada vez maior entre o miofilamento grosso e a linha Z, o que reduz também a tensão activa produzida. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 14 Como o comprimento do sarcómero influencia quer a tensão activa, quer a tensão passiva, pode-se dizer que o grau de encurtamento do músculo também varia com o grau de tensão passiva. Trabalho e rendimento O trabalho realizado ( ) quer aquando contracção isométrica, quer aquando de uma contracção isotónica pura, é nulo, sendo que apenas realizam trabalho as contracções isotónicas pós-carregadas. O trabalho realizado é passível de ser descrito pela fórmula: Ora, como numa contracção isotónica pura a força aplicada na contracção ( ) é nula e numa contracção isométrica, o deslocamento ( ) é nulo (porque não há variação no comprimento muscular), o trabalho é nulo em ambas as situações. Como as contracções isotónicas pós-carregadas são as únicas que desempenham trabalho, estas são as únicas contracções em que se pode registar o rendimento (potência). Nas contracções isotónicas puras e nas contracções isométricas, o rendimento é nulo. Ao nível das contracções isotónicas carregadas, o rendimento aumenta inicialmente à medida que se aumenta a carga, sendo máximo quando se atinge entre 30 a 40% do pico de tensão necessário para se passar a registar uma contracção isométrica. Contracções excêntricas As contracções isotónicas são contracções concêntricas, na medida em que se regista um encurtamento do músculo, quando este se contrai. Contudo, existem também contracções excêntricas, nas quais se verifica um aumento do comprimento muscular na sequência de uma contracção. A título de exemplo, quando um indivíduo se encontra a descer escadas, os músculos da região anterior da perna encontram- se contraídos, mas o seu comprimento aumenta. De referir que as contracções excêntricas são registadas frequentemente, quando as cargas associadas são muito elevadas. Quer aquando de uma contracção isotónica, quer aquando de uma contracção isométrica, registam-se gastos de ATP, devido à ocorrência de ciclos de pontes cruzadas (sendo a velocidade desses ciclos, e, como tal, o gasto de ATP, maior nas contracções isotónicas). Todavia, nas contracções excêntricas, praticamente não há gastos de ATP – o que se verifica é que ocorre uma contra-rotação adicional do filamento de miosina sobre o de actina, seguida de deslizamento. Dessa forma, a contracção excêntrica é sempre levada a cabo à conta de estiramento muscular e, por isso, na sequência de contracções excêntricas regista-se uma grande frequência de lesões musculares por estiramento (até porque a tensão passiva imposta nestes músculos é maior). Tétano muscular Se em vez de presenciarmos um abalo muscular isolado, aplicarmos um novo estímulo às fibras musculares, antes de estas relaxarem completamente, compreendemos que o cálcio volta aos seus valores máximos no sarcoplasma, antes de ser completamente recolhido. Quando esta situação ocorre, o segundo potencial de acção consegue atingir maior tensão isométrica com o primeiro, na medida em que a tensão associada ao segundo estímulo é somada à que ainda restava do primeiro (este efeito é designado por sumação). Aumentando agora a frequência dos estímulos, de tal modo que os múltiplos estímulos, no seu somatório, aumentem significativamente a tensão desenvolvida, podemos obter duas situações – caso a frequência dos estímulos não seja ainda suficiente para evitar que o cálcio seja constantemente recapturado e recolhido (ainda que parcialmente), presenciamos um estado de tétano imperfeito. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 15 Contudo, quando a frequência dos estímulos é de tal ordem, que se regista uma manutenção dos níveis máximos de cálcio no sarcoplasma, presenciamos uma situação de tétano perfeito. Neste estado, osestímulos individuais são indistinguíveis uns dos outros, tal a proximidade temporal com que ocorrem. Em suma, a quando os potenciais de acção são aplicados a maior frequência, a tensão gerada é maior. Esse aumento da tensão muscular gerada, por via do aumento da frequência da estimulação muscular, é designado por somatório de frequências. Metabolismo muscular e tipos de fibras musculares A hidrólise de ATP é fundamental para que possa ocorrer o processo de contracção muscular. As reservas de ATP disponíveis do músculo e a conversão de ADP em ATP com concomitante conversão da fosfocreatina em creatina fornecem ATP de forma imediata, contudo, o ATP disponibilizado por estas vias, apenas consegue manter a contracção muscular durante alguns segundos. A glicólise, por sua vez, é um processo que permite obter ATP de forma rápida. Contudo, este é um processo anaeróbio e cujo rendimento energético é baixo, ao qual acresce o facto de, recorrendo à glicólise, as reservas de glicose se esgotarem rapidamente. Por seu turno, a fosforilação oxidativa é um processo aeróbio que permite um maior rendimento energético, sendo teoricamente ilimitado, caso seja atingido um equilíbrio entre o oxigénio e a glicose que entram para as fibras musculares e o tempo que decorre durante a fosforilação oxidativa. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 16 As fibras com grande capacidade de levar a cabo a fosforilação oxidativa, designadas fibras oxidativas lentas (fibras musculares do tipo I), como necessitam de uma maior quantidade de oxigénio, exprimem uma proteína adicional, a mioglobina, uma proteína similar à hemoglobina, mas que apresenta mais afinidade para o oxigénio. A presença de mioglobina confere uma cor avermelhada às fibras oxidativas lentas, que têm um menor diâmetro, pois o processo de difusão (que é necessário para o transporte de nutrientes) é mais eficaz para distâncias menores. É fácil perceber que as fibras oxidativas lentas predominam nos músculos posturais e estão mais desenvolvidas em atletas de resistência, como os maratonistas. Por outro lado, as fibras glicolíticas rápidas (fibras musculares do tipo II B) adquirem o seu ATP, sobretudo, através da glicólise. Estas fibras não apresentam mioglobina, tendo um aspecto mais pálido e sendo mais abundantes no ser humano, em comparação com as fibras musculares do tipo II A. De referir que estas fibras predominam nos músculos fásicos e que se encontram particularmente desenvolvidas nos atletas que desempenham grandes esforços num curto período de tempo, tais como os corredores de curtas distâncias ou os levantadores de peso. Por fim, as fibras oxidativas rápidas (fibras musculares do tipo II A) apresentam mioglobina e têm cor avermelhada. Estas fibras são mais abundantes em animais que têm de fazer contracções rápidas durante longos períodos de tempo (por exemplo, as presas), sendo pouco comuns no ser humano. A diferença entre fibras musculares rápidas e lentas deve-se também à diferença entre as isoenzimas da miosina apresentadas – as fibras musculares rápidas apresentam uma isoenzima rápida, enquanto as fibras musculares lentas apresentam uma isoenzima lenta. Paralelamente, a capacidade do retículo sarcoplasmático de bombear cálcio é mais elevada nas fibras rápidas, que nas fibras lentas. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 17 Músculo liso visceral e vascular As células musculares lisas são células pequenas, fusiformes, mononucleadas (de núcleo central) e que a microscópio de luz, se caracterizam pela ausência de estriação (e daí, o músculo ser designado por liso). Em termos fisiológicos, o músculo liso distingue-se do esquelético, pelo facto de poder haver contracção destas células, sem que haja despolarização da membrana e pelo facto do cálcio extracelular ser mais importante que o intracelular para a contracção muscular. De referir que os filamentos presentes no núcleo são de desmina e vimentina. Durante muito tempo pensou-se que o músculo liso não apresentava sarcómeros, devido ao facto de não apresentar estrias. Contudo, sabe-se agora que o músculo liso é constituído por sarcómeros com filamentos organizados, mas que se entrecruzam em várias direcções. Apesar disso, o sarcómero do músculo liso é diferente do apresentado pelo músculo esquelético, na medida em que não existem linhas Z, mas sim corpos densos ricos em α-actinina (no músculo esquelético, a α-actinina é a proteína principal de ancoragem da actina à linha Z). Ao nível dos miofilamentos finos do músculo liso, também não existe troponina, nem nebulina. Outra diferença entre o sarcómero dos dois tipos de músculo prende-se com o facto de no músculo liso os sarcómeros apresentarem menos miofilamentos grossos. Enquanto a contracção no músculo esquelético é regulada pelo miofilamento fino, no músculo liso esta é regulada pelo miofilamento grosso, uma vez que a miosina é sintetizada a partir de um gene diferente. Dessa forma, a regulação da miosina também é diferente nos dois tipos de músculo. A regulação da cadeia de miosina passa pela fosforilação desta proteína, um processo que envolve a acção de uma enzima. Dessa forma, o processo de contracção muscular é mais lento no músculo liso, mas simultaneamente mais prolongado. Isto permite que o músculo liso se mantenha contraído por um mais longo período de tempo, mas sem que ocorram tantos gastos energéticos (existem, contudo, excepções, tais como ao nível do músculo liso da íris, que apresenta um processo de contracção diferente, sendo caracterizado pelas suas rápidas contracções). Diferentes estados fisiológicos de contracção do músculo liso O músculo liso é um músculo intimamente associado às vísceras e aos vasos sanguíneos e, como tal, as células musculares lisas podem se encontrar em diferentes estados, dependendo dos órgãos aos quais estão associadas. Existem fibras musculares que se encontram geralmente contraídas, mas que por vezes relaxam, sendo que estas fibras estão associadas as esfíncteres (tais como o esfíncter esofágico superior). Por oposição, existem células que se encontram maioritariamente Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 18 relaxadas e, por vezes, contraem (a título de exemplo, é possível referir os músculos que promovem o esvaziamento do estômago ou da bexiga). Existem igualmente células musculares lisas que se encontram sempre contraídas, mas cujo grau de contracção varia (por vezes encontram-se mais contraídas e por vezes encontram-se menos), tal como acontece com os músculos vasculares, que aquando de um aumento de pressão, diminuem a tensão de parede e vice-versa. Por fim, existem músculos que participam em movimentos oscilatórios de contracção e relaxamento (tais como os movimentos peristálticos), sendo exemplo destas fibras, aquelas presentes ao longo de todo o tracto gastrointestinal. Inervação e comunicação intercelular entre as células do músculo liso O músculo liso não tem placa motora e, como tal, não é inervado por nervos motores. A inervação do músculo liso é da competência do sistema nervoso autónomo, sendo que alguns músculos são predominantemente inervados pelo sistema nervoso simpático, enquanto outros são sobretudo inervados pelo parassimpático. Os mecanismos de comunicação intercelular entre as células do músculo liso são mais diversos, que os apresentados pelo músculo estriado. Em alguns órgãos, o músculo liso é inervado de forma idêntica ao músculo esquelético,onde cada fibra recebe o seu input sináptico. Todavia, cada célula muscular lisa pode receber esse input através de mais que um neurónio. As fibras que são inervadas deste modo apresentam poucas gap junctions (e portanto, existe pouco acoplamento eléctrico entre essas células musculares) e, como tal, podem-se contrair independentemente das suas vizinhas. Dizemos, então, que estamos perante músculo liso multiunitário. As fibras musculares multiunitárias são capazes de um controlo mais refinado e, como tal, estas são passíveis de ser encontradas na íris, corpo ciliar do olho, músculos piloerectores da pele e em alguns vasos sanguíneos. Por oposição, as células musculares lisas da maior parte dos órgãos apresentam comunicação intercelular extensiva, através de gap junctions. Nem todas as células deste tipo precisam de ser inervadas por um neurónio motor, aquando de uma contracção - a presença abundante deste tipo de gap junctions permite a comunicação eléctrica entre células vizinhas e, como tal, a contracção coordenada de várias células. Como estas fibras se contraem como se fossem uma só, este tipo de músculo liso é designado por músculo liso unitário. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 19 As sinapses ocorridas ao nível do músculo liso, são feitas en passage, o que permite a libertação de neurotransmissores ao longo de toda a fibra muscular (e não num local isolado). Os neurotransmissores podem ser libertados mais próximos da fibra muscular, ou mais afastados, sendo que se a libertação de neurotransmissores ocorrer a maior distância da célula muscular, maior a área desta, pela qual os neurotransmissores se difundem. Despolarização celular Depois de as fibras musculares serem estimuladas, estas são, na maior parte dos casos, despolarizadas. Contudo, a despolarização não tem obrigatoriamente de ocorrer por via de um estímulo eléctrico, podendo ocorrer uma despolarização através de um estímulo químico. É importante referir que no músculo liso é igualmente possível verificar-se a ocorrência de contracção muscular, sem que haja despolarização celular. Este processo é designado por acoplamento fármaco- mecânico e mobiliza principalmente o cálcio do retículo sarcoplasmático para o sarcoplasma. Despolarização por estímulo eléctrico e repolarização No músculo liso, a despolarização celular não é directamente induzida pelos canais de sódio. De facto, a abertura dos canais de sódio, por consequência de um estímulo, leva à abertura de canais de cálcio dependentes de voltagem do tipo L. Estes últimos permitem a entrada de cálcio do meio extracelular para o interior da célula, o que gera um potencial de acção, que leva à despolarização da membrana. Contudo, uma vez que os canais de cálcio dependentes de voltagem são mais lentos, que os canais de sódio, raramente se registam despolarizações em pico. A repolarização da membrana, por sua vez, origina-se através da abertura de canais de potássio dependentes de voltagem ou de canais de potássio dependentes de cálcio (que abrem, aquando da concentração de cálcio). Os potenciais de acção são frequentemente observados no músculo liso unitário, sendo que esses potenciais se caracterizam por apresentar uma fase de despolarização mais lenta, bem como uma duração mais prolongada, comparativamente ao que acontece no músculo liso. O potencial de acção na célula muscular lisa pode se caracterizar por um único pico, pela presença de um pico seguido de uma fase de plateau, ou por uma série de picos. Em qualquer um dos casos, a longa fase de despolarização do potencial de acção reflecte o longo período de tempo associado à abertura dos canais de cálcio dependentes de voltagem. A entrada de cálcio para o sarcoplasma despolariza ainda mais a célula, causando assim, a abertura de mais canais de cálcio dependentes de voltagem. De referir que o cálcio proveniente do meio extracelular estimula também os canais rianodínicos do retículo sarcoplasmático, o que leva a que também ocorra libertação de cálcio do retículo para o sarcoplasma. A repolarização das células de músculo liso também é relativamente lenta. Contudo, ainda não se sabe se isto se deve a uma lenta inactivação dos canais de cálcio dependentes de voltagem ou, alternativamente, a um atraso na activação dos canais de potássio. Em alguns músculos lisos unitários, a repolarização sofre um atraso tal, que no potencial de acção verifica-se a presença de um plateau. Esses potenciais de plateau ocorrem no tracto urogenital e permitem que a entrada de cálcio se mantenha por um maior período de tempo e, consequentemente, que a concentração de cálcio permaneça elevada por um maior período de tempo, prolongando-se assim a contracção muscular. Despolarização por estímulo químico Enquanto a génese de um potencial de acção é essencial para iniciar a contracção do músculo cardíaco e do músculo esquelético, muitas células musculares lisas contraem-se, mesmo sendo incapazes de gerar um potencial de acção. Os potenciais de acção normalmente não ocorrem no músculo liso multiunitário, sendo que, neste músculo a despolarização celular é despoletada através da acção da fosfolipase C. Esta Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 20 enzima cliva fosfoinositídeos, permitindo a libertação de diacilglicerol e inositol trifosfato (IP3), sendo que o se IP3 liga a um receptor específico da membrana do retículo sarcoplasmático. Este receptor é um canal de cálcio dependente de cálcio e, como tal, a sua ligação ao IP3 permite a libertação de cálcio do retículo sarcoplasmático para o sarcoplasma. Repreenchimento de cálcio A membrana do músculo liso não apresenta túbulos T. Contudo, apresenta caveolae, invaginações membranares análogas aos túbulos T, que se encontram próximas do retículo sarcoplasmático. As caveolae comunicam com o retículo sarcoplasmático, através dos canais rianodínicos do retículo, bem como através do transportador sódio/cálcio e da ATPase de cálcio. Quando se verifica um défice de cálcio ao nível do retículo sarcoplasmático (ou seja os níveis de cálcio estão abaixo de um valor significativo), o retículo pode captar o cálcio extracelular, através de canais de cálcio dependentes do armazenamento, situados, sobretudo, ao nível das caveolae (a este processo se dá o nome de repreenchimento de cálcio). Deste modo, a ausência de cálcio extracelular impede a contracção do músculo liso, contrariamente ao que se passa com o músculo esquelético. Activação da miosina e ciclo das pontes cruzadas Os miofilamentos grossos são muito menos abundantes no músculo liso, comparativamente ao músculo esquelético. Todavia, esta propriedade está associada a uma melhor interposição entre miofilamentos finos e grossos. Ao nível destes miofilamentos grossos encontramos miosina II (miosina do músculo liso), que apresenta, na sua cabeça, uma cadeia leve reguladora, que é essencial para a sua activação. Quando esta cadeia se encontra fosforilada, a miosina pode-se ligar à actina, enquanto se a cadeia se encontrar desfosforilada, a miosina não se liga à actina. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 21 O mecanismo das pontes cruzadas é igualmente diferente no músculo liso e no músculo esquelético, na medida em que requer uma activação inicial. O primeiro passo dessa activação prende-se com a ligação de quatro iões cálcio à calmodulina (a concentração de cálcio no sarcoplasma que despoleta este processo é da ordem dos 10-6 molares), uma proteína presente no sarcoplasma. De seguida, o complexo cálcio-calmodulina activa uma enzimadesignada por cínase da cadeia leve de miosina, que, por sua vez, fosforila a cadeia leve reguladora da molécula de miosina II. A fosforilação dessa cadeia altera a conformação da cabeça de miosina, activando-a (ao aumentar a sua actividade ATPásica) e permitindo- lhe, assim, interagir com a actina. Uma vez que este mecanismo depende da acção de uma enzima, a contracção muscular é mais lenta nas células musculares lisas. O mecanismo descrito activa os miofilamentos grossos do músculo liso, sendo os restantes passos deste ciclo, similares aos descritos para o ciclo das pontes cruzadas do músculo esquelético. Dessa forma, a primeira contracção requer o gasto de duas moléculas de ATP – uma para activação da miosina e outra para o processo de contracção muscular, propriamente dito. Relaxamento muscular Quando se regista a diminuição dos níveis de cálcio, quer por este estar a ser bombeado para o retículo sarcoplasmático (por via da SERCA), quer por este estar a ser expulso para o meio extracelular (por via do trocador sódio/cálcio ou da ATPase de cálcio), torna-se necessário desfosforilar a cabeça da miosina, de modo a promover o relaxamento muscular. Esta desfosforilação é operada pela fosfátase da miosina, que é activada por baixos níveis de cálcio sarcoplasmático. A desfosforilação da cabeça de miosina é um processo lento (mais uma vez, por ser de natureza enzimática). O processo acima referido não envolve um mecanismo de tudo-ou-nada, ou seja, não temos, num dado momento todas as miosinas fosforiladas e noutro todas as miosinas desfosforiladas. De facto, o que se verifica é a presença de algumas fases em que as cínases estão mais activas (havendo mais fosforilação das cabeças de miosina e, como tal, maior força de contracção muscular) e de outras em que as fosfátases se encontram mais activas (registando-se menor força de contracção muscular). Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 22 Por outro lado, como o tempo de acção das fosfátases é elevado, enquanto ocorre a desfosforilação da miosina e o “desligar” do complexo miosina-actina, a força de contracção muscular vai sendo mantida por um maior período de tempo. Concomitantemente, uma vez que algumas cínases também se encontram activas, vai ocorrendo o estabelecimento de novas pontes cruzadas. Assim sendo, a manutenção em simultâneo de cínases e fosfátases em actividade, permite que a contracção seja mais prolongada e gaste menos ATP. Isto revela-se particularmente importante para o funcionamento dos esfíncteres e dos vasos sanguíneos, visto que o músculo liso associado a estas estruturas tem que estar sempre, ou quase sempre contraído. Regulação da contracção e relaxamento muscular Existem duas proteínas que, quando se encontram desfosforiladas, impedem a ocorrência de interacção entre a actina e a miosina – a calponina e a caldesmona. A calponina inibe a acção ATPásica da miosina (ligando-se à miosina e impedindo a sua ligação à actina), enquanto a caldesmona inibe a actividade ATPásica da miosina promovida pela actina (ou seja, liga-se à actina e impede a sua ligação à miosina). Aquando da contracção muscular, o complexo cálcio-calmodulina liga-se a estas proteínas e inibe a sua acção. Também a proteína cínase C, activada pelo diacilglicerol, inibe à acção da calponina e da caldesmona, fosforilando-as. Por outro lado, níveis elevados de cálcio activam o sistema Rho/ROCK, que promove a fosforilação da fosfátase da miosina (nomeadamente por acção da cínase ROCK), inibindo a sua acção. Isto impede que a miosina seja desfosforilada e, como tal, que o músculo se mantenha contraído por um maior período de tempo. De referir que uma desregulação deste sistema está na base do desenvolvimento de algumas hipertensões arteriais, na medida em que, caso o sistema se encontre hiperactivo, o músculo liso vascular se mantém contraído por um maior período de tempo, algo que está associado ao desenvolvimento de tensão mais alta. Nem sempre a subida dos níveis de cálcio condiciona a contracção. Por vezes registam-se picos transitórios de cálcio, que consistem em saídas espontâneas e rápidas de cálcio dos canais rianodínicos. Estas saídas condicionam a abertura dos canais de potássio do sarcolema, o que promove a saída de Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 23 potássio e, consequentemente, o relaxamento muscular. Os picos transitórios de cálcio são promovidos pelo cAMP, que também favorece o relaxamento muscular, ao fosforilar a PKA que, por sua vez, fosforila a cínase das cadeias leves de miosina (entre outras proteínas), inactivando- a. O cGMP leva também à génese de picos transitórios de cálcio, ao promover a abertura dos canais de cálcio e de potássio. Considerações mecânicas Ao nível do músculo liso distinguem-se dois tipos de contracções – as contracções fásicas e as contracções tónicas. As contracções fásicas são rápidas, sendo depressa sucedidas por um rápido relaxamento. Estas contracções verificam-se, por exemplo, ao nível do músculo da íris. Já as contracções tónicas são lentas, sendo o poder de contracção mantido, à custa de menores gastos de ATP. Verificamos que ao nível das contracções tónicas se verifica, após a subida dos níveis de cálcio, uma descida para níveis intermédios, o que permite que a força de contracção seja também intermédia, constante e mais prolongada. É, contudo, importante referir que a contracção muscular é apenas possível para um intervalo de concentrações de cálcio muito restrito, sendo que a fosforilação de miosina aumenta substancialmente, quando a concentração de cálcio sobe apenas uma unidade logarítimica. Caso o músculo liso seja submetido a mais estiramento, este, contrariamente ao músculo esquelético, tem capacidade de responder a esse estiramento e de se contrair normalmente. Isto apenas é possível, caso as fibras musculares lisas estejam sujeitas a este estiramento durante um certo período de tempo, que permita a adaptação e, consequente reorganização, dos miofilamentos de actina e miosina. Por outro lado, comparando a tensão com a velocidade, constatamos que para cada ponto de tensão, a velocidade de contracção muscular apresentada é muito baixa, até porque a quantidade de ATP gasta é muito reduzida. Contudo, não é possível descrever uma única curva velocidade-tensão para este músculo, mas sim várias, dependendo dos níveis de cínase e fosfátase activados. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 24 Músculo cardíaco Mecanismo geral de condução cardíaca Ao nível do coração são passíveis de ser encontrados dois tipos de fibras musculares – as fibras diferenciadas para a contracção muscular (as quais vão ser abordadas com pormenor neste texto) e as fibras diferenciadas para a génese e propagação de um estímulo. São estas últimas fibras que permitem que, caso o coração pudesse ser isolado e lhe seja fornecida energia, este continue a contrair- se espontaneamente (estas células têm capacidade de despolarização automática). Contudo, estes dois tipos de fibras “trabalham em conjunto”, motivo pelo qual, se as fibras diferenciadas para a génese e propagação de um estímulo sofrerem de algum problema, as fibras diferenciadas para a contracção muscular também são afectadas. Geralmente, pensa-se no coração como funcionando estritamente em uníssono. Todavia, o que se passa de facto é que os ventrículos funcionam como um sincício, enquanto as aurículas funcionam como outro sincíciodiferente. Isto deve-se à existência de tecido fibroso a separar as aurículas dos ventrículos, que funciona como um isolante, na medida em que não passa nenhum estímulo eléctrico pelo tecido fibroso. Assim sendo, um estímulo apenas é transmitido das aurículas para os ventrículos através do nó aurículo-ventricular e do feixe de His. Para que as aurículas apresentem máxima eficiência hemodinâmica, têm de se contrair primeiro e ”ajudar no enchimento dos ventrículos”, só depois se podendo dar a contracção ventricular (caso as contracções auricular e ventricular ocorressem em simultâneo, as aurículas não conseguiriam ejectar os seus conteúdos, antes de se iniciar a contracção ventricular). Este desfasamento é conseguido através de um atraso no nó aurículo-ventricular – o estímulo eléctrico é conduzido a alta velocidade (por via do tecido de condução), até aquele nó, onde sofre uma desaceleração que permite a contracção das aurículas. Após ocorrer a contracção auricular, o estímulo eléctrico volta a propagar-se a alta velocidade, de modo a chegar rapidamente às fibras ventriculares. Isto permite que estas fibras se contraiam todas quase em simultâneo, de tal modo que a eficácia hemodinâmica do coração se torna optimizada). Células musculares cardíacas diferenciadas para a contracção Os miócitos cardíacos diferenciados para a contracção são ramificados e mais pequenos que as células musculares esqueléticas. Contrariamente às células musculares esqueléticas, que são electricamente isoladas entre si, as células do músculo cardíaco Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 25 encontram-se electricamente conectadas por gap junctions. Desta forma, quando uma célula é estimulada, o estímulo propaga-se para todas as restantes células. Já a ligação mecânica entre as células musculares cardíacas é assegurada pela presença de discos intercalares e desmossomas. A célula muscular cardíaca diferenciada para a contracção tem uma estrutura similar à célula muscular esquelética, todavia, regista-se a presença de apenas uma tríade por sarcómero, que se encontra ao nível da linha Z. Também o retículo sarcoplasmático da fibra muscular cardíaca não é tão desenvolvido como o retículo da fibra muscular esquelética, o que implica que, ao nível das células cardíacas, por vezes sejam registadas díades, em vez de tríades (uma díade é constituída por uma cisterna terminal mais um túbulo T). Outra diferença entre as células musculares cardíacas e as células musculares esqueléticas prende-se com o facto de canais de cálcio de tipo L (também designadas por receptores dihidropiridínicos) permitirem a entrada de uma quantidade substancial de cálcio para o sarcoplasma das células cardíacas. Isto leva a que se gerem diferenças entre os potenciais de acção registados ao nível do músculo cardíaco e do músculo esquelético – verificamos que os primeiros, após a despolarização têm uma fase de plateau (ou seja, uma duração mais longa). Contudo, esse plateau apresenta diferentes características, consoante a cavidade cardíaca, na qual as fibras se encontram inseridas. Acoplamento excitação/contracção O potencial de acção do músculo cardíaco é caracterizado por uma fase de despolarização rápida, que se caracteriza pela entrada de sódio para o interior da célula. Subsequentemente, verifica- se uma diminuição na permeabilidade de sódio, passando os canais do estado “aberto” para o seu estado “inactivo”. Concomitantemente, verifica-se a abertura dos Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 26 canais de potássio, mas a repolarização é interrompida pela abertura dos canais de cálcio tipo L, que permitem a entrada de cálcio para o meio intracelular, o que serve como mecanismo de contrabalanço ao movimento do potássio. Desta forma, a célula mantém-se despolarizada, registando-se uma fase de plateau. A repolarização da membrana apenas se torna completa, quando os canais de cálcio fecham, na medida em que os canais de potássio permanecem abertos. A entrada de cálcio proveniente do meio extracelular, por via dos canais de cálcio de tipo L, leva a um aumento dos níveis de cálcio no sarcoplasma. Isto promove a abertura dos canais rianodínicos do retículo sarcoplasmático, o que por sua vez, leva a que se liberte cálcio do retículo sarcoplasmático para o sarcoplasma. Desta forma, este acoplamento excitação/contracção é designado por mecanismo de libertação de cálcio induzida pelo cálcio, sendo de natureza electroquímica (no músculo esquelético, por sua vez, verificava-se a presença de um acoplamento electromecânico). O ciclo das pontes cruzadas é similar no músculo cardíaco e no músculo esquelético, contudo, a troponina C do músculo cardíaco apresenta apenas um local de ligação ao cálcio (enquanto a do músculo esquelético apresenta dois). Remoção de cálcio do sarcoplasma Os níveis elevados de cálcio no sarcoplasma activam os mecanismos que levam à extrusão de cálcio. Cerca de dois terços do cálcio presente no sarcoplasma são recaptados pelo retículo sarcoplasmático por via da SERCA – quando a actividade deste transportador se encontra aumentada, não só o cálcio que se encontrava anteriormente no retículo é captado, mas também o cálcio que estava previamente no meio extracelular passa para o retículo. Isto leva, como tal, a um aumento das reservas intracelulares de cálcio. Por outro lado, cerca de um terço do cálcio presente no sarcoplasma é expulso para o meio extracelular por via do trocador (antiporter) sódio/cálcio – quando a actividade deste trocador se encontra mais aumentada, verifica-se uma diminuição das reservas intracelulares de cálcio. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 27 Convém referir que menos de 1% do cálcio sarcoplasmático é expulso, ou para o meio extracelular pela bomba de cálcio, ou para a mitocôndria. A libertação de cálcio para a mitocôndria tem particular interesse, na medida em que, se a concentração deste ião aumentar muito neste organelo (o que se pode dever, por exemplo, a menor actividade da SERCA, devido a um défice de ATP), é aberto um poro de transição mitocondrial, o que leva à libertação do citocromo c, uma substância que desencadeia a via intrínseca da apoptose. De referir que esta situação regista-se, por exemplo, aquando de uma situação de enfarte do miocárdio, sendo um dos processos que leva à morte celular nessa condição. Efeitos da estimulação simpática A estimulação simpática influencia a contracção muscular cardíaca, ao promover a fosforilação do fosfolamban. O fosfolamban é uma proteína que, quando desfosforilada, se encontra ligada à SERCA, inactivando-a. Por outro lado, o fosfolamban fosforilado desliga-se da SERCA, o que aumenta a actividade desta. Ora, isto significa que o fosfolamban fosforilado, ao permitir maior actividade da SERCA, leva a que o relaxamento muscular ocorra mais rapidamente e a que o retículo sarcoplasmático capte mais cálcio (o que leva a que a contracção seguinte seja mais vigorosa, na medida em que passa a ser disponibilizado mais cálcio para o sarcoplasma). Também a noradrenalina, um neurotransmissor libertado pelo sistema nervoso simpático, aumenta o aumento da força contráctil gerada. Esta hormona leva a um aumento da síntese de cAMP, o que está associado à fosforilação dos canais de cálcio do tipo L e a um consequente influxo passivo de cálcio para o sarcoplasma (sendo como tal, gerada mais força contráctil).Por outro lado, o cAMP produzido aumenta a sensibilidade ao cálcio, por parte do aparelho contráctil. Desta forma, a estimulação simpática aumenta a contractilidade cardíaca (tornando-a mais vigorosa) e a sua velocidade. Diz-se, por isso, que a estimulação simpática tem um efeito inotrópico positivo (inotrópico diz respeito à contractilidade) e, simultaneamente, lusotrópico positivo (lusotrópico diz respeito ao relaxamento. Como o relaxamento passa a ocorrer mais rapidamente, aquando o efeito diz- se lusotrópico positivo). Considerações mecânicas Impossibilidade de tetanização do músculo cardíaco O músculo cardíaco em condições fisiológicas não pode ser tetanizado. Isto deve-se ao facto de o potencial de acção ser muito longo, prolongando-se por três quartos do tempo de duração do abalo muscular. Dessa forma, quando se regista o pico de força, ao nível da contracção muscular cardíaca, o Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 28 músculo ainda se encontra em período refractário absoluto, não sendo possível induzir a génese de um potencial de acção nessa altura. Dessa forma, a tetanização do músculo cardíaco torna-se impossibilitada e as fibras musculares cardíacas encontram-se num processo de contracção e relaxamento intermitentes. Relação tensão-comprimento O músculo cardíaco consegue responder ao aumento do comprimento muscular com o aumento da tensão activa desenvolvida. É importante referir que, apesar da tensão activa aumentar, com o comprimento do sarcómero, este quase nunca excede o valor de comprimento óptimo. De facto, o aumento do comprimento dos miofilamentos leva a um aumento da sensibilidade das fibras musculares para o cálcio, passando a ser necessária uma menor quantidade de cálcio para activar o aparelho contráctil. Isso é possível, na medida em que, aquando do estiramento, uma fibra muscular activa mecanossensores, o que leva ao desencadeamento de uma cascata intracelular no sentido de aumentar a sensibilidade destas células ao cálcio. O aumento da concentração de cálcio no sarcoplasma, leva a que seja desempenhada maior força. Isto explica porque é que aquando da contracção crónica do coração contra resistência (pós-carga intensa aplicada), as paredes dos ventrículos sofrem um espessamento; enquanto um aumento crónico da pré-carga leva a uma dilatação das cavidades cardíacas. Outro mecanismo que permite explicar o fenómeno de aumento da tensão activa, aquando do aumento do comprimento muscular, prende-se com o facto de, com o estiramento muscular, as fibras musculares ficarem mais finas. Isto leva a que diminua a distância entre os miofilamentos grossos e finos e, como tal, a probabilidade dos miofilamentos interagirem entre si aumenta. Mecanismo de prevenção do estiramento O músculo esquelético permite movimentos amplos, contudo, a variação real do comprimento muscular é reduzida (devido ao facto de as inserções serem próximas das articulações), ou seja, por exemplo, aquando da contracção do bicípite braquial, é possível fazer um amplo movimento de 180º, mas a variação real do comprimento muscular é diminuta. Isto implica que a força gerada pelo músculo para Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 29 levantar um peso colocado próximo da ponta, seja superior à força gerada para erguer o mesmo peso, quando este é colocado próximo da inserção (a título de exemplo, quando se pega num peso, a contracção do bicípite braquial torna-se mais facilitada se o peso for colocado próximo do cotovelo, do que se for colocado na ponta da mão). Apesar disso, este mecanismo permite que o comprimento dos sarcómeros se mantenha sempre próximo dos valores óptimos. Contudo, isto não ocorre no músculo cardíaco e, como tal, aquando da ejecção de sangue, as fibras musculares contraem-se e o comprimento dos sarcómeros diminui, enquanto, aquando do influxo de sangue para o coração, verifica-se um aumento do comprimento dos sarcómeros. Ora, isto poderia teoricamente potenciar um grande estiramento das fibras musculares cardíacas, algo que não se verifica devido à maior rigidez apresentada pelo músculo cardíaco. Esta rigidez deve-se à presença de titina (que é mais rígida nas células musculares cardíacas, comparativamente às células musculares esqueléticas), que “obriga” os sarcómeros a actuarem, normalmente, em valores de comprimento inferiores aos óptimos – quando o comprimento do sarcómero se aproxima dos 2,2 μm gera-se uma tensão passiva tal, que o estiramento ulterior dos sarcómeros se torna praticamente interdito. Existem duas isoformas de titina no músculo cardíaco, sendo uma delas mais rígida (N2B) e outra mais complacente (N2BA). O miocárdio pode alterar a sua rigidez, fazendo variar a proporção destas isoformas de titina e a rigidez de ambas as isoformas pode ser alterada por mecanismos pós-traducionais. Isto revela-se importante porque um miocárdio pouco rígido oferece pouca resistência ao estiramento, enquanto um miocárdio demasiado rígido leva a dificuldades de enchimento do coração. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 30 Actividade eléctrica cardíaca Diferentes células cardíacas despenham funções diferentes – existem células especializadas para a contracção cardíaca (cardiomiócitos) e células especializadas na condução. Contudo, todas estas células são electricamente activas. O sinal eléctrico cardíaco normalmente origina-se num grupo de células da região superior da aurícula direita, que despolarizam espontaneamente. A partir daí, esse potencial propaga-se pelo coração, por ambos os tipos de células. Pela velocidade com que ocorre o upstroke, os potenciais de acção podem ser caracterizados como sendo lentos (como ocorre nos nós sinusal e AV) ou rápidos (o que se verifica nos miócitos auriculares, fibras de Purkinje e miócitos ventriculares). Uma vez que a excitação dos cardiomiócitos desencadeia um processo de acoplamento excitação- contracção, o tempo de propagação de potenciais de acção deve ser altamente regulado, de forma a verificar-se uma sincronização da contracção ventricular e, consequentemente, uma ejecção óptima de sangue. Correntes de membrana O tempo de iniciação e a duração do potencial de acção são distintos em diferentes porções do coração, o que reflecte as suas diferentes funções. Essas distinções advêm do facto de os miócitos em cada região do coração apresentarem um conjunto de canais característicos. Associados a esses canais, existem vários tipos de correntes de membrana, responsáveis pelas várias fases dos potenciais membranares: 1. Corrente de sódio (INa) – Responsável pela fase de despolarização rápida do potencial de acção nos músculos ventricular e auricular, bem como nas fibras de Purkinje. Ao nível das células do nó sinusal e do nó aurículo ventricular não se verifica a presença desta corrente, motivo pelo qual elas têm um potencial de acção lento. 2. Corrente de cálcio - (ICa) – Responsável pela fase de despolarização rápida do potencial de acção no nó sinusal e nó AV, despoletando também a contracção dos cardiomiócitos. 3. Correntes de potássio - Existem três correntes de potássio presentes ao nível da célula. IK é a principal corrente responsável pela fase de repolarização do potencial de acção em todos os cardiomiócitos e nas células especializadas na condução. Ito determina a fase I do potencial de acção dos cardiomiócitos, enquanto a corrente IK1 é a principal estabilizadorado potencial de repouso. 4. Corrente de pacemaker - (If) – Responsável, em parte, pela actividade de pacemaker nas células do nó sinusal, células do nó AV e fibras de Purkinje. Potencial de acção dos cardiomiócitos As células cardíacas especializadas na contracção apresentam um potencial de acção diferente das restantes. Este potencial é normalmente dividido em quatro fases separadas: 0. Fase 0 (Fase de despolarização rápida) – Upstroke do potencial de acção, devido à despolarização da membrana, uma vez ultrapassado o potencial limiar dos cardiomiócitos (- 65mV). Este rápido upstroke deve-se à acção das correntes de sódio (INa) e cálcio (ICa). A passagem de sódio para o interior dos cardiomiócitos deve-se à abertura dos canais rápidos de sódio dependentes de voltagem, enquanto a passagem de cálcio para o meio intracelular ocorre por via dos canais de cálcio do tipo L. 2. Fisiologia cardiovascular Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 31 1. Fase I (Fase de repolarização rápida/precoce) – Nesta etapa, verifica-se uma ligeira repolarização de membrana, que se deve à abertura transitória dos canais de potássio, que geram a pequena corrente Ito. Esta etapa, que é muito breve e de muito baixa amplitude, é acompanhada pela quase inactivação total das correntes de cálcio ou sódio. 2. Fase II (Fase de plateau) – Esta fase depende da entrada continuada de cálcio (ou, menos frequentemente, de sódio) através dos canais de cálcio do tipo L. Esta entrada de cálcio contrabalança a saída de potássio (note-se que, durante a fase de plateau, a membrana tem menor permeabilidade ao potássio), gerando-se assim duas correntes antagónicas. É importante referir que a fase de plateau é mais proeminente no músculo ventricular, onde os potenciais de acção têm uma maior duração, mas também estão associados a uma maior força de contracção. 3. Fase III (Fase de repolarização) – Nesta fase regista-se novo aumento da permeabilidade ao potássio. A abertura dos canais de potássio é acompanhada pelo fecho dos canais de cálcio, verificando-se a saída de potássio para o meio extracelular. Passam então a estar activas as três correntes de potássio, presentes ao nível da célula. 4. Fase IV (Fase de repouso) – Constitui a fase diastólica eléctrica do potencial de acção. O potencial de membrana durante a fase IV é designado por potencial diastólico (sendo que o potencial mais negativo registado é designado por potencial diastólico máximo). Nesta fase verifica-se a reposição das concentrações originais do sódio (que é expulso dos cardiomiócitos por via da bomba de sódio e potássio) e do cálcio (que é expulso das células musculares cardíacas por via do trocador Na+/Ca2+, ou por acção da ATPase de cálcio. A existência de períodos refractários impede que o músculo cardíaco possa ser tetanizado, ou que sejam desencadeados batimentos ectópicos (algo passível de ser observado em situações patológicas, por via da acção de pacemakers inapropriados). Isto é fundamental para que ocorra o normal funcionamento do coração, que tem de se contrair e relaxar ciclicamente, de modo a que seja possível que os ventrículos se encham de sangue, antes de se contraírem. É importante referir que o período refractário absoluto é aqui designado por período refractário efectivo. Aplicações clínicas e farmacológicas Em termos clínicos, o conhecimento do modo como se processam os potenciais de acção ao nível dos cardiomiócitos é de extrema importância. Todos os anos, vários indivíduos no Japão morrem por acção da tetrodotoxina. Esta toxina está presente no peixe-balão e a sua ingestão é letal, na medida em que bloqueia os canais rápidos de sódio. Isto leva a um bloqueio dos potenciais de acção ou a um atraso na sua transmissão, o que impede a normal contracção cardíaca. Por outro lado, mutações dos canais rápidos de sódio estão associadas a arritmias cardíacas, potenciais causadoras de morte súbita. Já os canais de potássio têm importância clínica, na medida em que é possível o bloqueio farmacológico de alguns destes canais (note-se que existem diversos tipos de canais de potássio), com o objectivo de aumentar a duração do potencial de acção e, consequentemente, a lentidão da frequência cardíaca. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 32 Propriedades gerais da actividade eléctrica cardíaca O coração saudável apresenta duas propriedades fundamentais - a ritmicidade e a automacidade. A ritmicidade está associada à presença de um intervalo de tempo igual entre cada duas contracções. Já a automacidade prende-se com a capacidade que o coração apresenta de génese de actividade eléctrica cardíaca de forma espontânea. De facto, caso toda a inervação do coração fosse removida, mas lhe fossem fornecidos nutrientes, este órgão ficaria a bater durante horas fora da cavidade cardíaca. Este cenário não é assim tão ficcional como parece – quando são feitos transplantes cardíacos, a inervação é seccionada, de forma a ser possível a introdução do coração. Isto faz com que o coração dos indivíduos transplantados continue a bater, embora a frequência cardíaca deixe de poder ser modulada pelo sistema nervoso autónomo. Não só a frequência de contracção cardíaca (cronotropismo) é modulada pelo sistema nervoso autónomo (SNA). Verifica-se que o SNA tem capacidade de alterar a excitabilidade cardíaca (batmotropismo), a capacidade de condução (dromotropismo) e a força de contracção (inotropismo) – através da regulação destas propriedades, o SNA consegue modular a automacidade cardíaca. Tecido de condução cardíaco O coração normal apresenta três tecidos intrínsecos de pacemaking – o nó sinusal, o nó AV e as fibras de Purkinje. O conceito “actividade de pacemaker” refere-se à capacidade de despolarização espontânea (dependente do tempo) que se verifica na membrana celular e leva a um potencial de acção (ou seja, necessita da presença ciclos regulares de despolarização e repolarização). Nas células dos nós sinusal e AV, a actividade de pacemaker é provocada por mudanças nas correntes IK, ICa e If, enquanto nas fibras de Purkinje esta actividade apenas se deve à corrente If. Qualquer célula cardíaca com actividade de pacemaker tem capacidade de iniciar o batimento cardíaco, sendo que o pacemaker com a frequência mais elevada será aquele que desencadeará um potencial de acção que se propagará através do coração. De forma corriqueira pode-se dizer, então, que o pacemaker mais rápido define a frequência cardíaca, anulando os efeitos dos pacemakers mais lentos. Assim sendo, os pacemakers cardíacos apresentam uma hierarquia, baseada na sua frequência. Como as células do nó sinusal, apresentando uma frequência de entre 60 a 100 batimentos por minuto, constituem o pacemaker mais rápido, o potencial de acção cardíaco é gerado ao nível das células do nó sinusal. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 33 Uma vez que as células cardíacas se encontram electricamente acopladas por via de gap junctions, o potencial de acção propaga-se de célula a célula, da mesma forma que um potencial de acção se propaga ao longo de um único axónio. Um potencial de acção espontâneo originado no nó sinusal é então conduzido de célula a célula, através da aurícula direita (pelas fibras internodais), sendo então transmitido para a aurícula esquerda. Um décimo de segundo após a sua génese, o sinal atinge o nó aurículo-ventricular – o impulso não se propaga directamente dasaurículas para os ventrículos, devido à presença do anel fibroso aurículo-ventricular. Assim sendo, a única via possível para o impulso se deslocar desde o nó aurículo-ventricular, passa pelo sistema de His-fibras de Purkinje, uma rede de células especializadas na condução, que permite a propagação do sinal até ao músculo de ambos os ventrículos. Nó sinusal O nó sinusal encontra-se na região superior da aurícula direita, próximo da entrada da veia cava superior, sendo o principal local de origem de sinal eléctrico no coração. Isto deve-se ao facto de constituir o pacemaker mais rápido do coração, com uma taxa de 60 batimentos por minuto, ou superior. Os impulsos eléctricos gerados a este nível apresentam como características intrínsecas a ritmicidade (conferida pelas interacções entre as correntes IK, ICa e If) e a automacidade. O potencial de acção que se verifica ao nível do tecido de condução especializado, sobretudo ao nível dos nós, é diferente do registado ao nível dos cardiomiócitos. Como já foi referido, enquanto nos cardiomiócitos se verifica a presença de um potencial de resposta rápida, o tecido de condução caracteriza-se pela presença de um potencial de resposta lenta. De facto, ao nível do tecido de condução ocorre uma despolarização automática das células que o integram (despolarização diastólica espontânea), o que está na base da automacidade verificada nos impulsos gerados pelo nó sinusal. Parte da despolarização espontânea deve-se à presença da corrente If. Esta corrente depende da presença de um canal de catiões não-específico (canal HCN) que é activado aquando da hiperpolarização das células com capacidade de pacemaker. Isto Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 34 permite a génese espontânea de uma corrente de despolarização após uma etapa de hiperpolarização. A despolarização das células do nó sinusal deve-se também à abertura de canais de cálcio do tipo T, que geram uma corrente ICa, que contribui, sobretudo para o upstroke do potencial de acção. Esta despolarização rapidamente inactiva a corrente If, verificando-se, subsequentemente, um processo de repolarização, com a abertura dos canais de potássio (não se verifica nestas células a presença de uma fase de repolarização rápida, nem de uma fase de plateau). À medida que a célula se vai repolarizando, os canais de potássio vão começando a fechar até que, quando a célula entra em repouso se verifica uma nova abertura dos canais HCN e um novo ciclo se inicia. De referir que o potencial diastólico máximo das células do tecido de condução é de -60mV. Este valor, assim como o valor do potencial limiar, é menor em módulo nestas células comparativamente aos cardiomiócitos. Estas correntes membranares encontram-se sob controlo de agentes locais e de agentes em circulação (tais como a acetilcolina, a adrenalina e noradrenalina) e são frequentemente alvos de agentes terapêuticos de modulação do ritmo cardíaco (por exemplo, actualmente, existe um fármaco que bloqueia os canais que geram a corrente If. Isto não suprime totalmente a despolarização espontânea, devido à presença dos canais de cálcio. O que se verifica, de facto, é o atraso da despolarização, o que acarreta uma diminuição da frequência cardíaca, ou seja, um efeito cronotrópico negativo). Nó aurículo-ventricular O nó aurículo-ventricular (AV) encontra-se localizado na aurícula direita, imediatamente superiormente ao anel fibroso aurículo-ventricular. Esta localização é extremamente importante, pois permite a passagem de um impulso eléctrico proveniente das aurículas para os ventrículos (esta é a única via pela qual um impulso eléctrico é transmitido para os ventrículos, porque de resto, estas estruturas encontram-se separadas por via de tecido fibroso). Assim sendo, normalmente o nó AV é excitado por um impulso proveniente das fibras internodais (vias de condução auriculares). Contudo, os impulsos que chegam ao nó AV sofrem um ligeiro atraso, o que impede que aurículas e ventrículos se contraiam em simultâneo, algo essencial para que o enchimento dos ventrículos ocorra, quando estes se encontram relaxados. É importante referir que o atraso que os impulsos sofrem ao chegar ao nó AV se deve ao facto do nó AV (contrariamente às fibras internodais) ser caracterizado por um potencial de acção lento, que depende apenas da corrente de cálcio para despolarizar. Para além dessa função moduladora, o nó AV funciona como um filtro, uma vez que, aquando de uma taquiarritmia (ou seja, uma arritmia caracterizada por um maior número de batimentos cardíacos por minuto) supra-ventricular, ocorre uma despolarização desorganizada ao nível das aurículas e o nó AV é bombardeado com estímulos. Contudo o nó AV transmite apenas alguns desses estímulos aos ventrículos, actuando numa tentativa de normalização da condução cardíaca. A ritmicidade intrínseca do nó AV depende, tal como a do nó sinusal, da interacção das correntes IK, ICa e If. Electricamente, verificam-se igualmente parecenças entre os dois nós – ambos apresentam potenciais de acção similares (que se transmitem lentamente) e mecanismos de pacemaker. Contudo, o nó AV não é o local principal de origem dos impulsos eléctricos cardíacos, na medida em que apresenta uma frequência de pacemaker (40 batimentos por minuto) inferior à registada pelo nó sinusal. Mesmo assim, aquando de uma falha do nó sinusal, o nó AV tem capacidade de “assumir o controlo do coração”, gerando estímulos eléctricos secundários e actuando como um pacemaker de escape. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 35 Feixe de His e células da rede de Purkinje Os estímulos que chegam ao nó AV deslocam-se até aos ventrículos através do feixe de His, que se encontra presente ao nível do septo interventricular e se divide num feixe direito (para o ventrículo direito) e num feixe esquerdo (para o ventrículo esquerdo). O feixe esquerdo, por sua vez, divide-se geralmente num fascículo anterosuperior e num fascículo posteroinferior. O feixe de His contacta com as células da rede de Purkinje, sendo que ambas as estruturas transmitem os potenciais de acção de forma muito rápida (mais rápida, que em qualquer outro tecido do coração) para ambos os ventrículos. Isto permite que a informação seja transmitida aos ventrículos, praticamente, em simultâneo, o que leva a que estes se consigam contrair em uníssono. As células da rede de Purkinje apresentam o ritmo de pacemaker mais lento do coração (20 batimentos por minuto, ou menos), o que leva a que estas se tornem pacemakers funcionais, apenas se os nós sinusal e AV falharem (são por isso, consideradas pacemakers terciários). Contudo, a presença da rede de Purkinje como pacemaker principal não é compatível com uma correcta actividade hemodinâmica. O potencial de acção das células da rede de Purkinje depende de quatro correntes dependentes do tempo e da voltagem – INa (que não se encontra presente ao nível das células dos nós sinusal e AV), ICa, IK e If. O potencial diastólico máximo para as células da rede de Purkinje é de -80 mV. A partir desse potencial de membrana, gera-se uma despolarização dependente da corrente If. Caso essa despolarização atinja o potencial limiar, ocorre um rápido upstroke, mediado pelas correntes ICa e INa, sendo que é esta última que permite que os potenciais de acção sejam conduzidos tão rapidamente. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I36 Electrocardiograma O electrocardiograma (ECG) é dos exames complementares de diagnóstico mais utilizados, devido ao facto de ser inócuo, versátil e barato. Este exame permite conhecer a orientação anatómica do coração, as dimensões das suas cavidades cardíacas, alterações do ritmo e condução cardíacos, o estudo de lesões isquémicas (extensão, localização e progressão), a influência de determinados fármacos e os efeitos de alterações de electrólitos. A obtenção de um ECG é possível através de um aparelho denominado electrocardiógrafo, que amplifica e regista os sinais detectados pelos eléctrodos. Estes sinais, apesar de serem detectados à superfície do organismo correspondem a potenciais de um campo eléctrico com origem no coração. Deflexões Os eléctrodos positivos num ECG funcionam de modo análogo a câmaras de vigilância, registando a actividade eléctrica do coração sob os seus “pontos de vista”. Assim sendo, quando uma dada onda de despolarização se propaga no sentido de um eléctrodo positivo, aproximando-se deste, é registada uma deflexão positiva (um traçado para cima da linha de base). Por outro lado, quando uma dada onda de despolarização se propaga no sentido oposto ao do eléctrodo positivo, afastando-se deste, é registada uma deflexão negativa (um traçado para baixo da linha de base). Isto ocorre, uma vez que ao nível de um electrocardiograma são detectadas as diferenças de potencial presentes no exterior da célula. A título de exemplo, se uma despolarização se registar da direita para a esquerda, um eléctrodo que esteja colocado à esquerda do coração “sente” a onda de propagação do estímulo a aproximar-se de si e regista uma deflexão positiva. Pelo contrário, um eléctrodo que esteja colocado à direita do coração “sente” a onda de propagação do estímulo a afastar-se de si e regista uma deflexão negativa. O impulso de despolarização foi o mesmo, mas foi registado sob dois “pontos de vista” diferentes. Quando um eléctrodo se encontra perpendicular à direcção de propagação de um impulso, este regista uma deflexão positiva, quando o impulso se aproxima, e uma deflexão negativa, quando o impulso se afasta. Isto gera uma deflexão bifásica (porque apresenta duas fases, uma positiva e uma negativa). Aquando da repolarização, a distribuição das cargas encontra-se invertida relativamente à situação de despolarização. Dessa forma, um impulso de repolarização a propagar-se na mesma direcção de um impulso de despolarização, produz uma deflexão com sentido inverso. Por outro lado, um impulso de repolarização que se propague na direcção inversa de um impulso de despolarização produz uma deflexão com o mesmo sentido. Obviamente que quando o músculo se encontra em repouso a diferença de potencial registada é nula e não é registada nenhuma deflexão. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 37 Amplitude do sinal eléctrico A amplitude do sinal eléctrico registado ao nível do ECG depende de vários factores: 1. Corrente gerada momentaneamente no interior do miocárdio, menos a anulação de forças associadas a ondas eléctricas que se propagam em direcções opostas. Isto significa que um bloqueio cardíaco é registado num ECG através de uma deflexão com mais amplitude. 2. Massa miocárdica – Maior massa miocárdica está associada a deflexões com maior amplitude. A título de exemplo, a despolarização de um ventrículo hipertrofiado leva ao registo de uma deflexão com maior amplitude, comparativamente à despolarização de um ventrículo normal. Isto é explicado, porque no ECG são registadas diferenças de potencial existentes no meio extracelular. 3. Factores extrínsecos – Estes factores estão geralmente associados a perdas de sinais eléctricos, antes de estes chegarem aos eléctrodos na superfície e devem-se sobretudo aos tecidos que se interpõem (nomeadamente os pulmões, o tecido adiposo e a parede torácica). Situações anómalas, como um derrame de sangue no pericárdio ou um excesso de tecido adiposo contribuem para essas perdas. Planos e derivações Como a electrografia lida com forças eléctricas, esta pode ser considerada vectorial, sendo o sentido do vector determinado pelo sentido do potencial eléctrico gerado pelo fluxo de corrente, enquanto o comprimento do vector é determinado pela voltagem do potencial. Como num mesmo momento se gera uma grande quantidade de forças eléctricas de diferente direcção e magnitude, o normal é registar o vector médio, ou seja, o vector resultante da actividade eléctrica na activação cardíaca (paralelamente, o vector instantâneo representa o conjunto de forças eléctricas que se propagam pelo coração num dado instante). O vector médio pode ser calculado para a fase de despolarização auricular, despolarização ventricular e repolarização ventricular. Foi referido que os eléctrodos funcionam analogamente a câmaras de vigilância, registando a propagação dos vários impulsos sob o seu ponto de vista. Dessa forma, e para ser registado o vector médio de forma tridimensional, é necessário o registo da propagação de estímulos em todos os sentidos. A colocação de eléctrodos nos membros, permite a determinação do plano frontal (ou seja, num plano coronal), isto é, a determinação das forças que se dirigem superiormente ou inferiormente e para a esquerda ou para a direita. Por outro lado, a determinação do plano horizontal (ou seja, do plano transversal) permite determinar se a propagação de estímulos está a ocorrer em direcção anterior ou posterior. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 38 Determinação do plano frontal e triângulo Einthoven A colocação de um eléctrodo no ombro esquerdo, de outro no ombro direito e de um último no púbis permite a obtenção de um triângulo equilátero em que o centro (teoricamente) corresponde ao centro da actividade eléctrica (triângulo de Einthoven). Na prática, os eléctrodos dos ombros são colocados nos respectivos braços, enquanto o eléctrodo do púbis é colocado na perna esquerda – isto não interfere com o registo do ECG, na medida em que o potencial eléctrico registado numa extremidade será o mesmo, seja qual for o local dessa extremidade, considerando-se, por isso os membros como extensões dos ombros e a perna esquerda como uma extensão do púbis. A colocação de eléctrodos nas regiões mencionadas permite obter três derivações bipolares (DI, DII e DIII), que permitem registar potenciais eléctricos no plano frontal. Em DI, o eléctrodo positivo encontra-se no braço esquerdo (LA) e, como tal, esta derivação regista a diferença de potencial entre o braço esquerdo (VLA) e o braço direito (VRA). Já em DII, o eléctrodo positivo encontra-se na perna esquerda (LL), sendo registada a diferença de potencial entre a perna esquerda (VLL) e o braço direito. Por fim, em DIII, o eléctrodo positivo encontra-se na perna esquerda, sendo registada a diferença de potencial entre a perna esquerda e o braço esquerdo. Desta forma, podemos concluir que, segundo as leis de Einthoven: Para determinar o plano frontal são ainda analisadas mais três derivações. Contudo, apesar de estas se localizarem nos membros, são unipolares. As derivações unipolares medem a diferença de potencial entre um eléctrodo indiferente e um eléctrodo explorador. O eléctrodo indiferente é constituído por três fios eléctricos que se encontram ligados entre si a um terminal central (que por sua vez está ligado ao pólo negativo do electrocardiógrafo) e cujas extremidadeslivres se ligam, simultaneamente, aos eléctrodos do braço esquerdo (LA), braço direito (RA) e perna esquerda (LL). Já o eléctrodo explorador liga-se ao membro em que se quer registar o potencial. O potencial “verdadeiro” desse membro é obtido através da diferença de potencial entre o potencial do membro (registado pelo eléctrodo explorador) e o potencial do eléctrodo indiferente. Uma vez que o potencial do eléctrodo indiferente é zero (porque a soma dos três potenciais é considerada nula), o potencial obtido pelo eléctrodo explorador corresponde directamente ao valor do potencial “verdadeiro” do membro em questão. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 39 Assim, é possível obter as três derivações adicionais – VL, VR e VF. VL corresponde ao potencial registado no braço esquerdo; VR corresponde ao potencial registado no braço direito e, por fim, VF corresponde ao potencial registado na perna esquerda. As três derivações constituem, no seu conjunto, as derivações unipolares não-aumentadas dos membros. Contudo, a amplitude destas três derivações pode ser aumentada através de uma alteração na técnica do registo, que consiste em desligar do terminal central a extremidade que está a ser explorada. Desta forma, é possível obter as derivações unipolares aumentadas dos membros – aVL, aVR e aVF; cujo conceito é o mesmo. Determinação do plano horizontal Para determinar o plano horizontal, recorre-se às seis derivações unipolares pré-cordiais. O eléctrodo indiferente mantém-se ligado às três extremidades já referidas, enquanto o eléctrodo explorador varia de posição ao longo da parede torácica. A posição das derivações pré-cordiais é a seguinte: V1 - Quarto espaço intercostal, imediatamente à direita do esterno V2 - Quarto espaço intercostal, imediatamente à esquerda do esterno V3 - Equidistante entre V2 e V4 V4 – Quinto espaço intercostal, na linha médio-clavicular V5 – No mesmo plano horizontal que V4, na linha axilar anterior V6 – No mesmo plano horizontal que V4,na linha médio-axilar Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 40 Propagação de um impulso eléctrico e registo no ECG O impulso eléctrico propaga-se rapidamente a partir do nó sinusal para as aurículas direita e esquerda. Aquando da despolarização auricular, as forças eléctricas encontram-se dirigidas inferiormente, para a esquerda e anteriormente. A despolarização auricular produz uma onda designada por onda P, que em DI, DII, aVF e V3-V6 corresponde a uma deflexão positiva, enquanto em aVR corresponde a uma deflexão negativa. Em aVL esta deflexão pode ser positiva, negativa ou bifásica (dependendo da posição anatómica do coração), enquanto, por fim, em V1, gera-se uma deflexão bifásica, em que a porção inicial é positiva e a porção final é negativa. A despolarização auricular progride desde as regiões adjacentes ao nó sinusal até às regiões mais distais das aurículas. A repolarização auricular progride também nesse mesmo sentido e, como tal, o vector da repolarização tem um sentido oposto, relativamente ao da despolarização e a deflexão desta onda gerada (onda Ta) é inversa à deflexão registada pela onda P. Contudo, num ECG, quase nunca vemos a onda Ta, porque esta surge em simultâneo com o complexo QRS, que “ofusca a sua presença”. O complexo QRS corresponde à despolarização ventricular. A despolarização ventricular ocorre do endocárdio para o epicárdio, sendo que a primeira porção do miocárdio ventricular que é activada é a porção antero-septal do ventrículo. As forças eléctricas encontram-se, neste momento, dirigidas para a direita, superiormente e anteriormente, sendo que, como apenas o septo está a ser despolarizado, as voltagens registadas são baixas. Deste modo, regista-se uma pequena deflexão negativa em DI, DII, DIII, aVF, aVL e V4-6, enquanto se regista uma deflexão positiva em aVR e V1-2. Segue-se a despolarização em força da maior parte da massa dos ventrículos esquerdo e direito. O vector resultante desta despolarização dirige-se para a esquerda, inferiormente e posteriormente, sendo marcadamente mais influenciado pela actividade do ventrículo esquerdo (pois este tem maior massa miocárdica que o direito). Assim sendo, regista-se uma deflexão positiva em DI, DII, DIII, aVF e V4-6 e uma deflexão negativa em aVL, aVR e V1-2. A última região do ventrículo despolarizar é a região posterobasal do ventrículo esquerdo. Aqui, o vector resultante dirige-se para a direita e superiormente, o que implica a presença de uma pequena deflexão negativa em aVF e V4-6 e uma pequena deflexão positiva em aVR e V1. Devido às diferentes fases de despolarização ventricular, o complexo QRS é diferente ao longo das várias derivações, nomeadamente em termos dos segmentos que estes apresentam – por exemplo, existem complexos QRS constituídos por uma onda Q, uma onda R e uma onda S, mas também existem complexos QRS constituídos apenas por uma onda Q e uma onda R. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 41 A onda Q define-se como a primeira deflexão negativa antes da onda R, que, por sua vez, é definida como sendo a primeira onda de deflexão positiva registada no complexo QRS. Já, a onda S define-se como a primeira deflexão negativa depois da onda R. Por fim, no caso de estar presente uma segunda deflexão positiva, esta toma a designação de r’. É importante ressalvar que as pequenas deflexões (< 5 mm) são representadas por letra minúscula, enquanto as grandes (>5 mm) são representadas por uma maiúscula. Assim, a despolarização do septo ventricular em DI corresponde à onda q (pois origina uma pequena deflexão negativa), enquanto em aVR corresponde à onda r (pois origina uma pequena deflexão positiva). Como tal, só podemos fazer corresponder uma dada onda (Q, R ou S) a uma determinada fase da despolarização ventricular, se especificarmos a derivação que estamos a considerar. Após a despolarização ventricular, ocorre o processo de repolarização ventricular, que gera a onda T. A repolarização é um fenómeno que não segue as mesmas vias da despolarização (não sendo um fenómeno propagado). De facto, enquanto a despolarização ocorre do endocárdio para o epicárdio, a repolarização inicia-se no epicárdio e transmite-se para o endocárdio – crê-se que o endocárdio contrai- se em último lugar, porque, aquando da contracção ventricular, gera-se uma pressão elevada que reduz o fluxo coronário registado ao nível desta camada. O vector médio resultante da repolarização ventricular está orientado inferiormente, anteriormente e para a esquerda. Assim sendo, verificamos uma deflexão positiva em aVF e V3-6, negativa em aVL e aVR, enquanto em V1-2 tanto podemos registar uma deflexão positiva, como uma deflexão negativa. Nas derivações pré-cordiais esquerdas é ainda possível distinguir uma pequena onda U, após a onda T. Esta onda, que se encontra aumentada em situações patológicas, é de origem desconhecida, podendo- se dever à recuperação do sistema His-Purkinje, ou à recuperação do miocárdio em áreas sem rede de Purkinje. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 42 Para além das ondas referidas, num electrocardiograma é importante considerar os seguintes intervalos: 1. Intervalo PR: Intervalo de tempo entre o início da onda P e o início do complexo QRS. Apesar de este intervalo ser normalmente utilizado para estimar o tempo de condução através do nó AV, na verdade este intervalo corresponde ao tempo de condução atravésdas fibras internodais, nó AV, feixe de His e respectivos ramos. O seu valor normal varia entre 0,12 e 0,20s, sendo que valores superiores podem indicar, por exemplo, um bloqueio aurículo- ventricular de primeiro grau (que implica atrasos na condução); enquanto valores inferiores ao normal, devem-se à presença de uma “ponte” de tecido eléctrico, que não passe pelo nó AV e que esteja associada a uma condução mais rápida. 2. Segmento PR: Este segmento encontra-se entre o final da onda P e o início do complexo QRS, sendo normalmente isoeléctrico (ou seja, idealmente, o segmento sobrepõe-se à linha de base). O tempo ideal deste segmento será inferior a 0,12s. 3. Intervalo QT: Intervalo de tempo entre o início do complexo QRS e o final da onda T. Este intervalo mede a duração com a sístole cardíaca, variando de acordo com a frequência cardíaca. 4. Segmento RS-T (ou ST): Este segmento é medido desde o fim do complexo QRS até ao início da onda T, devendo ser isoeléctrico (embora possam existir variações não-patológicas). O segmento ST corresponde ao período em que todo o miocárdio se encontra despolarizado, pois todos os dipólos em condições normais já desapareceram. Dessa forma, este segmento torna-se importante para compreender se existe um fenómeno isquémico no coração. De referir que o ponto onde começa o segmento ST e termina o complexo QRS designa-se por ponto J. 5. Intervalo RR: Distância entre duas ondas R consecutivas, que num ritmo sinusal regular deve ser igual ao intervalo PP (distância entre duas ondas P consecutivas). Registo do ECG Apesar de ser muito simples, a técnica de registo do ECG requer alguns cuidados, nomeadamente: 1. O paciente deve estar confortavelmente deitado numa plataforma que suporte todo o seu corpo. Deve estar em repouso e relaxado, pois os movimentos musculares podem alterar o registo. O paciente deve também estar em jejum, uma vez que as refeições causam alterações electrolíticas que podem dificultar a interpretação de um ECG. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 43 2. Os eléctrodos devem ser desinfectados com álcool e neles deve ser aplicada pasta electrolítica. Os eléctrodos deve também estabelecer um bom contacto com a pele. 3. A máquina deve estar adequadamente calibrada, de modo a reproduzir os registos no papel à escala padrão. Caso isso não aconteça, os traçados serão interpretados incorrectamente. 4. O paciente e a máquina devem estar convenientemente ligados à terra, sendo essa ligação feita através da perna direita. Cálculo da frequência cardíaca O papel electrocardiográfico apresenta inúmeras quadrículas de 1mm de lado, apresentando linhas mais carregadas de 5 em 5mm. O tempo (expresso em segundos) é medido no eixo das abcissas, enquanto o eixo das ordenadas diz respeito à voltagem (expressa em mV). Como a velocidade standard do papel é de 25 mm/s, 1 mm na horizontal corresponde normalmente a 0,04 s. Por outro lado, 1 mm na vertical corresponde em regra a 0,1 mV. A partir daqui é possível obter informações quanto à frequência cardíaca – na presença de um ritmo ventricular regular a fórmula aplicada é ou, alternativamente, . Contudo, caso o ritmo seja irregular, a fórmula aplicada é: Ritmo sinusal Um ritmo pode ser classificado como sinusal, caso se verifiquem as seguintes condições: 1. Presença da onda P antes do complexo QRS 2. Onda P com posição espacial normal (positiva em DI, DII e aVF) 3. Frequência adequada ao nó sinusal (entre 60 a 100 batimentos por minuto). O facto da terceira condição não se verificar não invalida necessariamente que um ritmo possa ser classificado como sinusal. De facto, a inspiração aumenta ligeiramente a frequência cardíaca (como se “retirasse inervação parassimpática ao coração”) e uma taxa de batimentos por minuto superior pode se dever, precisamente a este fenómeno natural, que é mais evidente nas crianças. Modificação tri-axial e construção de vectores médios O triângulo de Einthoven pode ser modificado, de forma a conseguirmos obter informações acerca do eixo eléctrico médio. O eixo eléctrico médio é definido por um vector com origem no centro do triângulo de Einthoven, sendo normalmente aplicado ao complexo QRS (embora também possa ser aplicado às ondas P e T). Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 44 A modificação tri-axial do triângulo de Einthoven representa as derivações bipolares e unipolares dos membros, através dos ângulos estabelecidos entre as derivações. Por convenção, define-se que o pólo positivo de DI se encontra a 0º, enquanto o seu pólo negativo está a 180º. Como aVF é perpendicular a DI, o pólo positivo de aVF está a 90º, enquanto o pólo negativo se encontra a -90º. Como as três derivações bipolares dos membros formam um triângulo equilátero, entre si, não admira que quando projectadas em modificação tri-axial, cada derivação diste 60º de outra ( ). Como já foi referido, os vectores médios podem ser calculados relativamente à onda P, complexo QRS e onda T, contudo, como a massa ventricular é maior, calculam-se os vectores médios, normalmente em função do complexo QRS. Cálculo do eixo eléctrico médio O cálculo do eixo eléctrico médio pode seguir uma abordagem geométrica, ou pode ser feito por simples análise do complexo QRS. Seguindo essa última via, começamos por determinar qual a derivação em que o complexo QRS é mais próximo de isoeléctrico (ou seja, em que as suas ondas estão mais próximas da linha de base). Depois, achamos derivação perpendicular, cuja amplitude é igual à amplitude do vector médio. Já o sinal do vector é igual ao sinal do complexo QRS nessa derivação perpendicular. Na imagem de exemplo (na página seguinte, à direita), constatamos que DI é a derivação mais isoeléctrica. Ora, aVF é a derivação perpendicular a DI, logo será aí que vamos achar o eixo eléctrico médio. Como o complexo QRS tem sinal positivo em aVF (forma uma deflexão, sobretudo, positiva), concluímos que o eixo é de +90º e não de -90º. O vector médio é representado com origem no centro, direcção vertical, sentido positivo (dos +90º) e amplitude igual à amplitude do complexo QRS. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 45 Um eixo eléctrico médio de 90º é considerado normal. De facto, considera-se que um indivíduo com um eixo entre -30º e 110º tem um eixo eléctrico normal (o que faz todo o sentido, na medida em que a onda de propagação da despolarização ventricular, que num ECG é traduzida pelo complexo QRS, ocorre num sentido inferior e para a esquerda). Já um indivíduo, cujo eixo se encontre entre -30º e -90º apresenta um desvio esquerdo do eixo, algo que se pode dever, por exemplo, a uma hipertrofia ventricular esquerda. Paralelamente, um indivíduo, cujo eixo se encontre entre 110º e 180º apresenta um desvio direito do eixo, algo que se pode dever, por exemplo, a uma hipertrofia ventricular direita. Por fim, um indivíduo cujo eixo se encontre entre -90º e - 180º apresenta um desvio extremo do eixo. Dessa forma, conhecer o eixo eléctrico do coração revela- se muito importante para a detecção de situações patológicas. Condições patológicas Arritmia Uma arritmia é uma alteraçãodo normal ritmo cardíaco. Existem dois tipos de arritmias - as taquiarritmias resultam numa frequência cardíaca mais elevada, enquanto as bradiarritmias resultam numa frequência cardíaca mais baixa. O mecanismo de reentrada é o principal causador de taquiarritmias. Este fenómeno verifica-se quando existe um bloqueio unidireccional, um circuito fechado de condução, em torno do qual se verifica a condução de potenciais de acção lentos. O bloqueio unidireccional é um fenómeno que impede a transmissão de impulsos num dado sentido, mas permite que estes se propaguem no sentido inverso. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 46 Gera-se então um movimento de reentrância que, caso continue, geralmente ultrapassará a frequência de pacemaker do nó sinusal. Como o pacemaker mais rápido dita a taxa de batimentos cardíacos, as reentrâncias são responsáveis por um grande número de taquiarritmias. Taquiarritmias supra-ventriculares As taquiarritmias supra-ventriculares podem se manifestar de dois modos. Quando se verifica a presença de múltiplos mecanismos de microreentrada (a uma escala pequeníssima), estamos perante um fenómeno de fibrilação auricular, caracterizado pela despolarização em círculo das aurículas. Ao nível de um ECG, aquando de um caso de fibrilação auricular, não se verifica a presença de ondas P, porque os vários vectores, gerados pelas inúmeras despolarizações que ocorrem em múltiplos sentidos, anulam-se (quando muito, podem ser registadas microflutuações não organizadas). Apesar de este fenómeno impossibilitar a contracção auricular, ele é perfeitamente compatível com a vida normal, pois o nó AV, sendo bombardeado com estímulos, actua analogamente a um filtro, fazendo com que seja transmitido um ritmo irregularmente irregular aos ventrículos. Já num caso de flutter auricular, verifica- se um fenómeno de macro-reentrada, que origina uma despolarização mais organizada e com menor frequência, comparativamente à situação de fibrilação auricular, mas que mesmo assim ainda não pode ser considerada uma despolarização normal. No ECG, o flutter auricular é evidenciado através de uma série de ondas serreadas (ondas F) em substituição das ondas P. Aquando deste fenómeno o nó AV é, mais uma vez, bombardeado por estímulos, actuando como um filtro. Extrassístoles As extrassístoles são definidas como sístoles fora de tempo, podendo ser classificadas como supra-ventriculares, ou ventriculares. As extrassístoles supra-ventriculares consistem em despolarizações automáticas Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 47 anormais, cujos estímulos provêm das aurículas, nó AV e porção supra-ventricular do feixe de His. Neste tipo de extrassístole verifica-se a presença de alterações na onda P, nomeadamente no que concerne ao seu tempo de duração (de resto, o trajecto e a despolarização é normal) e verifica-se a presença de complexos QRS normais. Por seu turno, as extrassístoles ventriculares estão associadas a despolarizações automáticas anormais com origem nas células de Purkinje ou porção ventricular do feixe de His. Num ECG, este tipo de extrassístoles é traduzido pela presença de QRS bizarros. Bloqueios AV Os bloqueios AV de 1º grau caracterizam- se pela presença de um atraso na condução AV. Num ECG isto traduz-se por um prolongamento do intervalo PR, cujo intervalo de tempo será superior a 0,20s. Nos bloqueios AV de 2º grau nem todos os estímulos das aurículas chegam aos ventrículos. Este é um meio-termo entre os bloqueios de 1º e os bloqueios de 3º grau. Os bloqueios AV de 3º grau caracterizam-se pela ausência de condução aurículo-ventricular, o que leva a que os estímulos gerados na região supra-ventricular não sejam transmitidos aos ventrículos. Assim sendo, nos ventrículos, as células da rede de Purkinje geram um pacemaker de escape, que não é compatível com a estabilidade hemodinâmica (note-se que estas células têm uma taxa de 20 batimentos por minuto). Assim sendo, não é de esperar que num ECG se observem ondas P independentes do complexo QRS, que por sua vez, decorre a um ritmo mais lento. Síndrome de Wolff-Parkinson-White A síndrome de Wolff-Parkinson-White é caracterizado pela presença de uma via de condução acessória, por entre as aurículas e os ventrículos. Esta via acessória é mais rápida, sendo composta, não por fibras de Purkinje, mas por células musculares, permitindo a condução de um potencial de acção directamente das aurículas para o septo ventricular, despolarizando porções de músculo septal mais precocemente do Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 48 que se esta ocorresse pela via tradicional. Como resultado, num ECG é observada uma onda delta no início do complexo QRS (correspondendo à despolarização inicial ou pré- excitação) e o complexo QRS demora mais, não havendo deflexões tão acentuadas. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 49 Ciclo cardíaco O ciclo cardíaco é entendido como sendo a sequência de eventos eléctricos e mecânicos que se repete em cada batimento cardíaco, sendo a sua duração passível de ser calculada pela fórmula: Por exemplo, uma taxa de batimentos cardíacos de 75 batimentos por segundo corresponde a um ciclo cardíaco de 0,8s. Sístole e diástole O coração funciona como uma bomba, alternando entre uma fase de enchimento e uma fase de esvaziamento. Sob circunstâncias normais, o nó sinusal determina a duração do ciclo cardíaco e as propriedades eléctricas do sistema de condução cardíaco, enquanto os miócitos cardíacos determinam a duração relativa dos períodos de contracção e relaxamento. Em termos clínicos, é comum separar o ciclo cardíaco em duas grandes fases – a sístole diz respeito à etapa de contracção ventricular (período que decorre entre o encerramento da válvula mitral até ao encerramento da válvula aórtica), enquanto a diástole está relacionada com o relaxamento muscular, sendo que, num ciclo cardíaco normal a diástole prolonga-se por um intervalo de tempo maior, comparativamente à sístole. Contudo, à medida que a taxa de batimentos cardíacos aumenta (e, como tal, a duração do ciclo diminui), o intervalo de tempo ocupado pela diástole diminui mais comparativamente ao da sístole. A perspectiva clínica tem essa designação pelo facto de a divisão entre sístole e diástole ter correlação com a auscultação cardíaca – os sons cardíacos S1 e S2 encontram-se associados ao encerramento das válvulas AV e semilunares, respectivamente. Contudo, existe também uma perspectiva fisiológica, que considera a diástole como englobando todas as fases em que há diminuição ou menores níveis de cálcio citosólico. Assim sendo a “diástole fisiológica” é muito mais longa que a “diástole clínica”. Etapas do ciclo cardíaco Existem quatro grandes fases neste ciclo, definidas pelo estado de abertura das válvulas cardíacas (a saber – fecho da válvula AV, abertura da válvula semilunar, fecho da válvula semilunar e abertura da válvula AV). Contudo, costuma-se considerar um número superior de fases, com base não só nos estados de abertura das válvulas, mas também nos gradientes de pressão e na velocidade de fluxo sanguíneo.Por motivos descritivos, será considerada a perspectiva clínica para assinalar a sístole e a diástole e será explicado o que se passa no coração esquerdo (apesar de as etapas do ciclo serem similares nos dois lados do coração). Contracção isovolumétrica Quando os ventrículos começam a despolarizar inicia-se a fase da sístole. Os ventrículos contraem-se e, rapidamente, a pressão do ventrículo esquerdo excede a da aurícula esquerda. Como resultado, a válvula mitral fecha. Uma vez que a válvula aórtica se encontra fechada, nesta fase, o ventrículo esquerdo contrai-se com as válvulas aórtica e mitral fechadas. Como o sangue não tem local para se deslocar, verifica-se a presença de uma contracção isovolumétrica que resulta num aumento rápido de Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 50 pressão no ventrículo esquerdo. A pressão ao nível desta cavidade acaba por exceder a pressão aórtica, o que causa a abertura da válvula aórtica. Fase de ejecção A fase de ejecção inicia-se com a abertura da válvula aórtica. A primeira parte desta etapa é designada por fase de ejecção rápida e é caracterizada pela continuação do aumento da pressão ao nível do ventrículo. Este aumento de pressão é acompanhado de perto por uma rápida elevação da pressão aórtica. Estes aumentos rápidos de pressão são acompanhados por uma redução do volume ventricular, à medida que o sangue flui para a aorta. Desta forma, a pressão aórtica continua a subir e, eventualmente, excede a pressão ventricular (início da fase de ejecção lenta). Apesar da alteração verificada ao nível do gradiente de pressão entre a aorta e o ventrículo esquerdo, as valvas da válvula aórtica não fecham de imediato, devido à inércia associada ao fluxo sanguíneo, que está na base de uma grande quantidade de energia cinética no sangue. Assim sendo, durante a etapa final da fase de ejecção lenta, o decréscimo do volume ventricular torna-se mais lento e quer a pressão ventricular, quer a pressão aórtica diminuem acentuadamente. De referir que, durante a fase de ejecção, cerca de 70 mL de sangue flui para a aorta, sendo deixados cerca de 50 mL de sangue no ventrículo (volume residual). Relaxamento isovolumétrico No final da fase de ejecção, o fluxo sanguíneo através da válvula aórtica decresce para valores extremamente baixos, até que começa a reverter a sua direcção (i.e. gera-se um fluxo retrógrado ou negativo). Nesta altura, a válvula aórtica fecha, iniciando-se assim a diástole. O fluxo sanguíneo na aorta torna-se de novo positivo (i.e. passa-se a deslocar de novo em sentido anterógrado), pois ocorre um aumento de pressão na aorta (em termos gráficos, observamos uma tendência de decréscimo da pressão aórtica, a incisura dícrota, interrompida por uma deflexão positiva, a onda dícrota). Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 51 Uma vez que, quer a válvula aórtica, quer a válvula mitral, se encontram fechadas e o sangue não pode entrar o ventrículo esquerdo, o período descrito no parágrafo anterior é designado por fase de relaxamento isovolumétrico. De referir que esta fase é caracterizada por uma rápida queda de pressão no ventrículo esquerdo. Período de enchimento ventricular rápido Quando a pressão ventricular cai para níveis inferiores aos da aurícula esquerda, a válvula mitral abre e, imediatamente, o volume sanguíneo do ventrículo esquerdo começa a aumentar rapidamente. Inicia-se então o período de diástole, cuja duração decresce com aumento da frequência cardíaca (algo conseguido, sobretudo, à custa de uma diminuição do período da diastase). Durante este período de enchimento ventricular rápido, as pressões na aurícula esquerda e ventrículo esquerdo evoluem em paralelo, uma vez que a válvula mitral se encontra amplamente aberta. Simultaneamente, a válvula aórtica mantém-se fechada, contudo, a pressão aórtica desce. Isto deve-se ao facto do sangue continuar a fluir da aorta proximal à válvula aórtica para regiões mais periféricas, o que acarreta a retracção da parede elástica da aorta. Diastase Durante a diastase, a válvula mitral mantém-se aberta, mas a quantidade de sangue que flui da aurícula esquerda para o ventrículo esquerdo é reduzida. Consequentemente, o volume de sangue ventricular aumenta lentamente e aproxima-se de uma fase de plateau. As pressões em ambas as cavidades (aurícula e ventrículo esquerdo) aumentam ligeiramente, devido ao facto de a pressão nas veias pulmonares ser ligeiramente maior, sendo que a pressão auricular continua a superar ligeiramente a pressão ventricular, devido ao facto de a válvula mitral se encontrar amplamente aberta e de o fluxo entre as duas cavidades ser mínimo. De referir que onda P do electrocardiograma ocorre no final desta fase. Contracção auricular Imediatamente após a diastase, ocorre uma fase de contracção auricular, que leva a um aumento variável da quantidade de sangue que entra no ventrículo esquerdo. Num indivíduo em repouso, a contracção auricular transfere para o ventrículo esquerdo uma quantidade de sangue que representa menos de 20% do volume sanguíneo que chega ao ventrículo, embora durante o exercício físico intenso esta percentagem possa atingir os 40%. A contracção auricular leva a um ligeiro aumento na pressão intra-auricular e a um aumento comparável na pressão e volume ventriculares. Concomitantemente, a pressão aórtica continua a diminuir, como resultado do fluxo de sangue para a periferia. Diferenças entre o lado esquerdo e o lado direito do coração As alterações de volume ocorridas no ventrículo esquerdo são as mesmas que as ocorridas no ventrículo direito, uma vez que os outputs cardíacos são teoricamente idênticos nas duas cavidades. Já no que concerne aos gráficos de pressão, estes são similares no lado esquerdo e no lado direito, excepto no que diz respeito ao facto de as pressões do lado direito serem proporcionalmente menores às registadas no lado esquerdo. Em termos temporais verifica-se a presença de um desfasamento temporal entre o coração esquerdo e o coração direito – a contracção auricular e a abertura da válvula AV ocorre mais precocemente no lado direito (pois é lá que se localiza o nó sinusal), mas a primeira válvula AV a encerrar é a válvula mitral. Por Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 52 outro lado, verifica-se que a abertura da válvula pulmonar antecede a abertura da válvula aórtica, na medida em que é necessária mais pressão para que ocorra a abertura da válvula aórtica. Contudo, uma vez que o ventrículo esquerdo exerce mais força de contracção, a fase de ejecção ocorre mais rapidamente no lado esquerdo, de tal modo que a válvula aórtica encerra primeiro que a válvula pulmonar. Ansas pressão-volume Um ciclo cardíaco pode ser representado por um gráfico que represente a pressão em função do volume (e não a pressão ou o volume em função do tempo), gráfico esse que toma o nome de ansa pressão- volume. Apesar do tempo não se encontrar explicitamente presente no gráfico, pode ser feita uma análise sequencial dos eventos ocorridos no ciclo, se analisarmos o gráfico no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio. Todavia, a distância entre dois pontos da ansa não é proporcional ao tempo decorrido. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 53 Análise das ansas pressão-volume A análise da ansa pressão-volume permite concluir que após se dar a ejecção de sangue a partir do ventrículo, este não fica totalmente vazio, mas sim com uma determinada quantidadede sangue, a qual é designada por volume residual. O volume de sangue que é ejectado a partir dos ventrículos é designado por volume de ejecção, sendo que a fracção de ejecção (ou seja, a proporção de sangue que é ejectada pelo ventrículo) é calculada pela seguinte fórmula: O volume de sangue telessistólico é o volume de sangue presente no final da sístole, enquanto o volume de sangue telediastólico é o volume de sangue presente no final da diástole e representa o “volume de sangue ventricular máximo”. Obviamente que a diferença entre o volume de sangue telediastólico e o volume de sangue sistólico corresponde ao volume de ejecção. A partir dessa diferença é igualmente possível calcular o débito cardíaco, que consiste no volume de sangue ejectado por unidade de tempo. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 54 O trabalho de ejecção calculado é calculado através da quantidade de sangue deslocada a uma pressão constante (W=Pressão x Volume de sangue). Em termos práticos, o trabalho de ejecção pode ser calculado, por via da determinação da área da ansa de pressão. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 55 Determinantes da função sistólica A função cardíaca ventricular é determinada por quatro factores principais intimamente relacionados – a pré-carga, a pós-carga, a contractilidade (ou inotropismo) e a frequência de contracção. Contudo, para fins descritivos, será feita a análise separada de cada determinante (quer para o músculo isolado, quer para o coração intacto). Pré-carga No músculo isolado, a pré-carga é passível de ser definida como a tensão aplicada ao músculo antes de este iniciar a sua contracção, o que determina directamente o seu estiramento passivo. Ao nível do músculo cardíaco, a tensão passiva aumenta com o comprimento de forma exponencial, ou seja, a partir de um dada altura, a tensão aumenta exponencialmente em resposta a pequenos aumentos de comprimento, o que impede o estiramento excessivo do músculo. Atendendo à definição de pré-carga, esta deverá ser quantificada antes de ocorrer a contracção ventricular, ou seja, ao nível da telediástole. A tensão telediastólica exercida na parede ventricular determina o comprimento das fibras musculares em repouso, mas como essa medição é algo difícil, assume-se, para simplificar, que a forma do ventrículo esquerdo é, de grosso modo, esférica. Assim, calculando a pressão ou o volume telediastólico é possível aplicar a lei de Laplace, (segundo a qual a tensão da parede de uma cavidade é directamente proporcional ao seu diâmetro interno e à pressão no seu interior, sendo inversamente proporcional à espessura da sua parede) e quantificar a pré-carga. Os efeitos da pré-carga são passíveis de ser traduzidos pela lei de Frank-Starling, segundo a qual um aumento do volume ventricular telediastólico provoca um aumento do volume de ejecção ou da pressão isovolumétrica máxima desenvolvida. Isto é, no coração intacto, aquando de um aumento da pré-carga Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 56 (correspondente a um aumento do volume/pressão em telediástole), o ventrículo passa a ejectar uma quantidade de sangue maior, de tal modo que o volume e a pressão sanguínea em telessístole serão os mesmos, qualquer que seja a pré-carga aplicada. Isto é análogo ao aumento do encurtamento muscular cardíaco, que ocorre no músculo cardíaco isolado em condições isotónicas, aquando do aumento da pré-carga. Paralelamente, caso o aumento da pré-carga seja registado em ciclos cardíacos isovolumétricos, ocorre um aumento da pressão isovolumétrica desenvolvida. Isto é passível de ser comparado ao maior desenvolvimento de tensão, que ocorre no músculo cardíaco isolado, aquando de contracções isométricas, por via de um aumento de pré-carga. Mecanismos moleculares subjacentes Em termos moleculares, aquando de um aumento da pré-carga, verifica-se um aumento da afinidade da troponina C para o cálcio e uma facilitação do estabelecimento de pontes cruzadas. Por outro lado, um aumento da pré-carga não resulta numa diminuição da função cardíaca, algo que se deve ao facto de a rigidez da parede ventricular aumentar exponencialmente a partir de determinados valores do comprimento dos sarcómeros (mesmo se a pressão intra-ventricular telediastólica for aumentada para valores da ordem dos 100 mm/Hg, o comprimento do sarcómero dificilmente ultrapassa os 2,2 μm). Factores determinantes e importância de alterações na pré-carga Alterações na pré-carga são essenciais para a regulação da função cardíaca, sendo que estes mecanismos de ajuste ocorrem ciclo a ciclo. São vários os factores que determinam alterações na pré- carga, nomeadamente o retorno venoso, o volume total de sangue e sua distribuição, a função cardíaca diastólica e a actividade auricular. Como tal a importância da pré-carga para a regulação cardíaca manifesta-se aquando de diversas situações: 1. Alterações do retorno venoso – Uma alteração do retorno venoso provoca uma alteração da pré-carga, o que, por sua vez, leva a ajustes na função cardíaca, nesse mesmo ciclo onde ocorre a alteração venosa. Este mecanismo é importante aquando de alterações posturais, do volume de sangue, da resistência vascular periférica e aquando dos movimentos respiratórios. 2. Desequilíbrio do débito dos dois ventrículos – A alteração no volume de ejecção de um dos ventrículos leva a que o retorno venoso ao ventrículo contralateral seja afectado, passados alguns ciclos cardíacos. O mecanismo de Frank-Starling permite que ocorra um ajuste do débito cardíaco ventricular, aquando de alterações do débito cardíaco no ventrículo contralateral. Isto impede que quando o débito cardíaco aumenta num ventrículo, se acumule sangue a montante do ventrículo contralateral, algo que se revela essencial aquando de várias situações fisiológicas (por exemplo, para o equilíbrio do débito dos dois ventrículos durante os movimentos respiratórios) ou patológicas. 3. Reforço da função auricular – A pré-carga é um importante factor determinante para a função do músculo da parede auricular, na medida em que quanto maior o volume sanguíneo presente nas aurículas antes da sua contracção, mais potente será a contracção auricular (e daí que maior retorno venoso resulte também numa contracção auricular mais poderosa), e maior será a pré-carga ventricular. Isto revela-se fundamental quando o enchimento ventricular é muito dependente da contracção auricular, algo característico do exercício físico, onde a frequência cardíaca está aumentada e, consequentemente, o tempo de enchimento ventricular está diminuído. 4. Volume cardíaco inferior ao normal – Quando o volume cardíaco telediastólico é inferior ao normal (por exemplo, aquando do exercício físico, quando se verifica um aumento da frequência cardíaca e consequente diminuição do tempo de enchimento) o mecanismo de Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 57 Frank-Strarling continua activo, sendo que, qualquer variação adicional de volume telediastólico está associada a uma alteração do volume de ejecção, no mesmo sentido (isto é, por exemplo, caso o volume telediastólico aumente, o volume de ejecção também aumenta. 5. Condições patológicas – Aquando da presença de uma frequência cardíacamuito baixa, ou de insuficiência cardíaca, verifica-se um aumento da pré-carga (por via de um enchimento ventricular superior ao normal), algo que está associado a um aumento do volume de ejecção para valores compatíveis com a vida. Pós-carga A pós-carga é passível de ser definida, no músculo cardíaco isolado, como sendo a tensão exercida no músculo depois de este ter iniciado a sua contracção, isto é, como sendo o somatório das cargas que o músculo terá de “vencer” para se encurtar. Aplicando esta definição ao coração intacto, a pós-carga pode ser definida como a tensão exercida sobre as fibras da parede ventricular, aquando da ejecção. A avaliação da tensão da parede ventricular (pós-carga) é mais difícil comparativamente à da pré-carga. Embora a lei de Laplace se mantenha válida, é necessário ter em atenção que a pós-carga não é constante, pois ocorre diminuição dos diâmetros ventriculares, variação da pressão interventricular e aumento da espessura da parede ventricular. De referir que a avaliação da pós-carga pode ser levada a cabo por avaliação da impedância aórtica, embora na prática clínica, essa quantificação precisa esteja associada a várias dificuldades de ordem técnica (podendo se proceder à aproximação grosseira da quantificação da pós-carga através da medição da pressão arterial sistólica). No coração intacto, um aumento da pós-carga está associado a uma diminuição da velocidade e volume de ejecção (o que corresponde, no músculo isolado, a uma diminuição da velocidade e grau de encurtamento, respectivamente). A pós-carga (e, como tal, a resistência à ejecção) pode ser de tal modo elevada, que a ocorrência de ejecção ventricular se torna impossibilitada – a velocidade de ejecção é nula e origina-se um ciclo isovolumétrico (o que equivale a uma contracção isométrica do músculo isolado). Por outro lado, quando a pós-carga é nula, teoricamente, a velocidade de ejecção é máxima, sendo que o valor da velocidade máxima de ejecção, apesar de não ser afectado pela pré-carga, é bastante sensível à contractilidade. Determinantes da pós-carga ventricular A pós-carga ventricular esquerda é determinada, no coração intacto, pela resistência vascular periférica, pela impedância aórtica, pelas características físicas da parede vascular arterial, pelo volume de sangue na aorta e pela viscosidade sanguínea. Por outro lado, a pós-carga ventricular direita é determinada pela resistência vascular pulmonar, pela impedância do tronco pulmonar, pelas características físicas da rede Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 58 arterial pulmonar, pelo volume de sangue na artéria pulmonar e pela viscosidade sanguínea. Para além disso, segundo a lei de Laplace, também o diâmetro e a espessura ventricular são componentes importantes da pós-carga. Desta forma e, dado que a elevação da pré-carga é determinada pelo aumento do comprimento pré-contráctil das fibras musculares do ventrículo, o aumento do volume telediastólico aumenta não só a pré-carga, mas também a pós-carga. De referir que, a elevação da pós- carga ocorre por via da diminuição da espessura da parede ventricular e aumento dos diâmetros ventriculares. Importância de alterações na pós-carga Tal como a pré-carga, também a pós-carga se revela essencial para a regulação da função cardíaca em várias situações: 1. Regulação da pressão arterial – Alterações na pressão arterial estão associadas a alterações da pós-carga no mesmo sentido e, como tal, a alterações no sentido oposto do volume de ejecção e débito cardíaco (a título de exemplo, o aumento da pressão arterial leva a um aumento da pós-carga ventricular, o que está associado a um menor volume de ejecção e a um menor débito cardíaco). 2. Resposta ventricular a um aumento súbito da pressão aórtica – Um aumento súbito da pressão aórtica leva a um aumento da pós-carga ventricular, associado a uma diminuição imediata do volume de ejecção. Contudo, após o registo deste fenómeno, após alguns ciclos verifica-se a recuperação parcial da função cardíaca (mecanismo de regulação homeométrica). Este mecanismo de regulação não ocorre à conta de alterações no comprimento muscular, embora os processos que lhe estão associados também ainda não estejam completamente esclarecidos – alguns autores defendem que ocorre um aumento da contractilidade, secundário à elevação da profusão coronária e à recuperação de um isquemia subendocárdica transitória, enquanto outros defendem que isto ocorre por via de um aumento da pré-carga, em consequência da diminuição do volume de ejecção (mecanismo de Frank-Starling). 3. Equilíbrio do débito dos dois ventrículos – Tal como a pré-carga, a pós-carga desempenha um papel fundamental no equilíbrio do débito dos dois ventrículos; quando um ventrículo diminui o volume de ejecção, isso repercute-se através da acumulação de sangue a montante desse ventrículo, o que leva a que se verifique um aumento da pós-carga no ventrículo contralateral. Esse aumento da pós-carga leva a uma diminuição do volume de ejecção por parte do ventrículo e, como tal, ao equilíbrio do débito dos dois ventrículos. 4. Condições patológicas – O aumento da pós-carga está associado a um agravamento de patologias caracterizadas pela diminuição da contractilidade (como a insuficiência cardíaca). Isto explica porque é que se registam melhorias em doentes tratados com fármacos que diminuem a pós-carga (tais como os anti-hipertensores). Contractilidade (inotropismo) Alterações do inotropismo, também designado por contractilidade, estão associadas a alterações na velocidade e grau de encurtamento ou do desenvolvimento de tensão pelo músculo cardíaco intacto, para um determinado nível fixo de pré-carga e pós-carga. Desta forma, um aumento da contractilidade está associado a um aumento da velocidade e da capacidade de desenvolvimento de tensão ao nível das contracções isométricas; e a um aumento do grau e velocidade de encurtamento muscular, aquando de contracções isotónicas. Paralelamente, no coração intacto, não fazendo variar nem a pré-carga, nem a pós-carga, um aumento da contractilidade está associado a um aumento da pressão máxima desenvolvida nos ciclos isovolumétricos; e a um aumento do volume e velocidade de ejecção nos ciclos cardíacos com fase de ejecção. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 59 A avaliação da contractilidade requer, normalmente, a análise da força, comprimento, velocidade e tempo, sendo que enquanto no músculo isolado, a contractilidade é avaliada por via das relações tensão activa- comprimento e velocidade de encurtamento-tensão; ao nível do coração intacto costumam-se utilizar relações pressão-volume. Analisando um gráfico velocidade de encurtamento-tensão que compare duas situações em que ocorre variação de contractilidade mas a carga se mantém, constata-se que situações de maior contractilidade estão associadas a um maior valor da tensão máxima passível de ser desenvolvida pelo músculo em contracção isométrica, bem como a uma maior velocidade de encurtamento máxima (velocidade de encurtamento a carga nula). Este último parâmetro é útil como indicador da contractilidade na medida em que, para além de ser sensível a alterações de contractilidade, não é influenciado pela pré-carga. Já ao nível do coração intacto, o declive da relação pressão- volume telessistólica, também designado por elastância máxima, é um bom indicador da contractilidade, pois este é independente da carga. Por análise das ansas pressão-volume para situações dediferente contractilidade, mas em que a carga seja mantida, observa-se que aumentos da contractilidade levam, não só a um aumento do volume de ejecção, como também a maiores declives na relação pressão-volume telessistólica (como seria de esperar, a tendência com que se verificam estes fenómenos é oposta, aquando de uma diminuição da contractilidade). Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 60 Factores determinantes do inotropismo A alteração da contractilidade cardíaca é determinante para a modulação da função cardíaca, sendo influenciada por diferentes factores tais como: 1. Sistema nervoso autónomo (nomeadamente por via do sistema nervoso simpático) – Os terminais simpáticos do coração libertam catecolaminas, que constituem o mais importante factor de regulação da contractilidade miocárdica. Assim sendo, as variações no número de impulsos nos nervos cardíacos adrenérgicos estão sobretudo associadas a variações rápidas do inotropismo. Por outro lado, a libertação de catecolaminas por parte da medula supra-renal tem efeitos cardíacos mais lentos, podendo ter alguma relevância em situações patológicas como a insuficiência cardíaca congestiva, ou a hipovolémia. Por fim, o sistema nervoso parassimpático induz um efeito inotrópico negativo a nível auricular, desempenhando, contudo, um papel pouco relevante no que concerne à contractilidade cardíaca em termos gerais. 2. Endotélio cardíaco – O endotélio cardíaco compreende o endotélio epicárdico e o endotélio vascular coronário e é um importante modulador da função cardíaca, desempenhando um efeito inotrópico positivo. Os efeitos do endotélio na função cardíaca fazem-se, provavelmente, sentir através da libertação de várias substâncias tais como o monóxido de azoto (NO), a endotelina 1 (ET1) e a prostaciclina (PGI2). Para além disso, pensa-se que os efeitos cardíacos de várias substâncias são influenciados pelo endotélio. Entre essas últimas substâncias destaque para os agonistas α1, peptídeo natriurético auricular, vasopressina, 5- hidroxitriptamina, angiotensinas I e II, ET1 e dadores de NO, tais como o nitroprussiato de sódio. 3. Hormonas – A contractilidade miocárdica é passível de ser influenciada por várias hormonas. De entre as hormonas com efeito inotrópico positivo, destaque para as angiotensinas I e II, cortisol, vasopressina (ADH), glicagina e hormonas T3 e T4. Já o peptídeo natriurético auricular apresenta um efeito inotrópico negativo. Para além da contractilidade, algumas hormonas têm capacidade de influenciar a pré-carga, a pós-carga e a frequência cardíaca, sendo que as hormonas que conseguem actuar ao nível da carga, fazem-no através de efeitos que exercem na vasomotricidade e/ou natriurese. Importância de alterações no inotropismo As alterações da contractilidade cardíaca têm uma grande influência na função cardíaca, registando-se esse tipo de alterações aquando de várias situações fisiológicas e patológicas, nomeadamente: 1. Alterações hemodinâmicas - Alterações na pressão arterial estão associadas a alterações na contractilidade no sentido oposto. A título de exemplo, uma diminuição da pressão arterial leva a um aumento da contractilidade (e vice-versa), o que por sua vez, leva a um aumento do débito cardíaco e consequente aumento da pressão arterial. 2. Extra-sístoles e variações da frequência cardíaca – Uma extra-sístole ou um aumento da frequência cardíaca aumentam a contractilidade do miocárdio (relação força-frequência) 3. Alterações metabólicas – Aquando de isquemia, hipoxia ou acidose registam-se alterações metabólicas que diminuem a contractilidade e, como tal, a função cardíaca. 4. Patologia endócrina – Os seus efeitos na contractilidade variam consoante o tipo de hormona em questão e os seus níveis plasmática. O hipertiroidismo, o hipotiroidismo e tumores do córtex da supra-renal são exemplos de patologias endócrinas que influenciam a contractilidade. 5. Perturbações da estrutura e função cardíaca – Existem duas possibilidades no que toca a perturbações da estrutura e função cardíaca. Numa situação de necrose miocárdica (da qual é Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 61 exemplo a situação de enfarte do miocárdio) verifica-se um aumento compensatório da contractilidade da porção do miocárdio que não sofreu necrose. Este mecanismo, juntamente com o aumento da pré-carga, entre outros factores, permite a manutenção da função cardíaca global. Por outro lado, numa situação de insuficiência cardíaca ocorre uma diminuição da contractilidade miocárdica, sendo estimulados outros mecanismos que procurem aumentar a função cardíaca. Todavia, em situações graves, a acção destes mecanismos nem sempre é suficiente para manter uma função cardíaca que assegure as necessidades do organismo. 6. Resposta a fármacos – No que concerne à acção dos fármacos sobre a contractilidade cardíaca esta pode ser de dois tipos – os fármacos inotrópicos positivos promovem um aumento da contractilidade e neles se incluem a cafeína, os glicosídeos, os cardiotónicos e as aminas. Por outro lado, os fármacos inotrópicos negativos promovem o efeito inverso e deles são exemplo os bloqueadores β, os bloqueadores de canais de cálcio e a maioria dos anestésicos gerais e locais. Frequência de contracção A frequência de contracção, assim como a sequência com que são gerados os potenciais de acção, têm importantes implicações ao nível da força desenvolvida ou do grau de encurtamento do músculo cardíaco isolado. Assim sendo, um aumento da frequência de contracção está inicialmente associado a uma diminuição da força desenvolvida, à qual se segue um período de recuperação da força desenvolvida, até que o seu valor consegue ultrapassar o inicial. Deste modo, no cômputo geral, um aumento da frequência de contracção tem um efeito inotrópico positivo (relação força-frequência ou efeito de Bowditch), cuja exuberância é tanto maior, quanto maior for o aumento da frequência de contracção. A diminuição inicial da força desenvolvida, que se verifica aquando de um aumento da frequência de contracção, deve-se à incompleta recuperação das reservas de cálcio por parte do retículo sarcoplasmático e outros locais de armazenamento – durante o relaxamento muscular, embora o cálcio seja bombeado activamente para esses locais, é necessário algum tempo (500ms a 800ms) para que o cálcio reabsorvido possa estar disponível para ser libertado em resposta a uma próxima despolarização. Deste modo, quando ocorre um aumento da frequência de contracção, diminui o tempo entre duas contracções sucessivas (que corresponde ao período de recuperação das reservas de cálcio), o que explica que se verifique uma diminuição da quantidade de cálcio disponível para a contracção. Contudo, após se verificar este fenómeno, regista-se um aumento progressivo da força desenvolvida, algo que se deve ao facto da concentração intracelular do cálcio aumentar gradualmente durante a contracção muscular. Isto ocorre devido ao maior número Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 62 de despolarizações por minuto registadas, bem como a um aumento do fluxo de cálcio para o sarcoplasma em cada despolarização (por via da estimulação da actividade reabsorptiva do retículo sarcoplasmático). Contracções prematuras Por outro lado, contracções prematuras também alteram a função do músculo isolado, por via de alterações da cinética do cálcio. Ao estimular prematuramente um músculo, verifica-se umadiminuição da força de contracção, tanto mais acentuada, quanto menor o intervalo de tempo entre a contracção normal e a contracção prematura. Este fenómeno é análogo à etapa inicial registada aquando de um aumento da frequência de contracção, podendo ser igualmente explicado pela incompleta recuperação das reservas de cálcio ao nível do retículo sarcoplasmático e de outros locais de armazenamento. Todavia, a contracção prematura é sucedida por uma pausa prolongada e por uma contracção muscular que desenvolve mais força que o normal, verificando-se que, no cômputo geral, a presença de contracções prematuras está associada a um efeito inotrópico positivo. De referir que esse efeito é tanto mais acentuado, quanto mais prematura tiver sido a contracção extra. Isto é passível de ser explicado pelo facto de, aquando do período de repouso, os locais de armazenamento reabsorverem uma maior quantidade de cálcio, que depois estará disponível para ser libertado durante a fase de contracção. Aumento da frequência de contracção no coração intacto Ao nível do coração intacto, o aumento da frequência de contracção induz também um efeito inotrópico positivo, através da relação força-frequência, embora de modo menos pronunciado que no músculo isolado. Apesar disso, a frequência cardíaca é um dos mais importantes factores que contribui para o débito cardíaco: Apesar do aumento da frequência cardíaca estar associado a um aumento da contractilidade cardíaca, este fenómeno está também implicado numa diminuição do tempo de enchimento ventricular. O aumento da contractilidade e a diminuição do tempo de enchimento ventricular induzem efeitos opostos no volume de ejecção – o primeiro efeito está associado a um maior volume de ejecção, enquanto o segundo está associado a um menor volume. Desta forma, quando se avaliam os efeitos da frequência no débito cardíaco, convém ter em conta a importância relativa dos vários factores que influenciam o volume de ejecção. A título de exemplo, se for colocado um pacemaker que aumente amplamente a frequência, o débito cardíaco manter-se-á, de grosso modo, constante, pois diminui o tempo de enchimento ventricular e o volume de ejecção diminui. Contudo, numa situação de exercício Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 63 físico, verifica-se simultaneamente um aumento da frequência cardíaca e um aumento do débito cardíaco. Isto porque, embora o volume de ejecção diminua (tal como no exemplo anterior), o retorno venoso aumenta. Assim, verifica-se que a frequência cardíaca revela-se fundamental na regulação do débito cardíaco, aquando do exercício físico. Extrassístoles Ao nível do coração intacto, podem-se verificar a presença de extrassístole, cujo efeito é similar ao das contracções prematuras no músculo isolado. Isto significa que ao nível da extrassístole, ocorre uma diminuição da função cardíaca tanto mais acentuada, quanto mais prematura tiver sido a extrassístole (devido à incompleta recuperação das reservas de cálcio). Todavia, tal como ocorre com as contracções prematuras, a extrassístole é sucedida por um período de pausa prolongada e por um ciclo cardíaco cuja função se encontra aumentada. É importante, contudo, ressalvar que este aumento da função cardíaca (designado por potenciação pós-extra-sistólica) não se deve apenas a uma maior libertação de cálcio aquando da contracção, mas também ao facto da pausa prolongada propiciar a um enchimento ventricular mais eficaz (aumento da pré-carga), que por via do mecanismo de Frank-Starling aumenta a função cardíaca. Determinantes da frequência cardíaca No que concerne aos determinantes da frequência cardíaca, destaque para os dois principais: 1. Automatismo intrínseco do nó sinusal – Este factor é influenciado por factores tais como a temperatura e o metabolismo. De facto, a febre e o hipertiroidismo estão associados a um efeito cronotrópico positivo, enquanto a hipotermia e o hipotiroidismo induzem no efeito inverso. 2. Sistema nervoso autónomo – O sistema nervoso simpático está implicado num efeito cronotrópico positivo, enquanto o sistema nervoso parassimpático tem um efeito cronotrópico negativo. Interacções entre determinantes da função sistólica 1. Interacção pré-carga/pós-carga: No coração intacto, um aumento da pré-carga leva a um aumento da pós-carga, através de dois diferentes mecanismos. Em primeiro lugar, a diminuição da espessura da parede e o aumento dos diâmetros ventriculares associados ao aumento da pré-carga levam, de acordo com a lei de Laplace, a um aumento da tensão de parede ventricular, aquando da contracção (aumento de pós-carga). Por outro lado, o aumento do volume de ejecção induzido pelo aumento da pré-carga está associado a um incremento da pressão arterial e, como tal, ao aumento da pós-carga. Paralelamente, o aumento da pós-carga também leva a um aumento na pré-carga, na medida em que a diminuição do volume de ejecção leva a um aumento do volume telediastólico (pré-carga) nos ciclos cardíacos subsequentes. 2. Interacção pré-carga/inotropismo: Um aumento da pré-carga tem um efeito inotrópico positivo, na medida em que se verifica um aumento da sensibilidade dos miofilamentos ao cálcio. Para além disso, uma vez que, aquando de um aumento da pré-carga, se regista um aumento da libertação de cálcio pelo retículo sarcoplasmático, verifica-se que elevações na pré-carga correspondem a uma maior contractilidade por um maior período de tempo. 3. Interacção pós-carga/inotropismo: Como já foi referido, um aumento súbito da pós-carga está associado a um aumento da contractilidade (efeito de Anrep) de causas ainda mal conhecidas (vide supra na página 4 em “resposta ventricular a um aumento súbito da pressão aórtica”). Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 64 4. Interacção frequência cardíaca/inotropismo: O aumento da frequência cardíaca está associada a maiores concentrações intracelulares de cálcio, o que por sua vez está associado a um aumento da contractilidade (relação força-frequência). 5. Interacção frequência cardíaca/pré-carga: O aumento da frequência cardíaca está associado a menor tempo de enchimento ventricular e, como tal, a menor pré-carga e a menor volume de ejecção. Assim sendo, um aumento da pré-carga, da contractilidade ou da frequência cardíaca estão associados a uma melhoria da função cardíaca, algo que também ocorre aquando da diminuição da pós-carga. Contudo, é necessário ter em conta que todos estes determinantes interagem entre si e, como tal, eventuais alterações num destes factores podem ser compensadas por alterações em outros, o que faz com que a função cardíaca possa nem ser afectada no cômputo geral. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 65 Determinantes da função diastólica A função diastólica é entendida como englobando os mecanismos relacionados com o enchimento e relaxamento ventricular, contrariamente à função sistólica, associada aos mecanismos relacionados com a contractilidade (contracção e ejecção ventricular). Deste modo, uma disfunção sistólica é definida como sendo uma perturbação da contractilidade (contracção e ejecção), manifestando-se através de uma alteração do declive da relação pressão-volume telessistólica (diminui o volume de ejecção e a ansa pressão-volume desloca-se para a direita). Por outro lado, aquando de uma disfunção diastólica, verifica-se que a relaçãopressão-volume e o volume de ejecção estão preservados, mas que as pressões de enchimento se encontram mais elevadas. Os determinantes da função diastólica incluem o relaxamento ventricular, as propriedades passivas da parede ventricular (nas quais se incluem a rigidez miocárdica, a espessura da parede e a gemoetria da cavidade ventricular) e factores extrínsecos (nomeadamente estruturas que rodeiam o ventrículo, tais como a aurícula esquerda, as veias pulmonares, a válvula mitral; assim como a frequência cardíaca). Avaliação da função diastólica De forma a proceder à avaliação da função diastólica, procura-se avaliar a velocidade de queda de pressão ocorrida dentro do ventrículo, pois a queda de pressão dentro do ventrículo é a manifestação hemodinâmica que traduz o relaxamento miocárdico. Existem várias formas de proceder a esta avaliação, nomeadamente: 1. Determinação do tempo que o ventrículo demora a relaxar isovolumetricamente (isovolumetric relaxation time) - A vantagem deste método é o facto de ser facilmente calculado (pode ser detectado, por exemplo, por via de um electrocardiograma). Contudo, esta forma de avaliação está igualmente associada a uma grande desvantagem – o tempo que o ventrículo demora a relaxar isovolumetricamente não se deve forçosamente e unicamente a variações na velocidade e, como tal, a partir deste método apenas podemos obter inferências aproximadas (analogamente, dizer que um indivíduo A demora o dobro do tempo do indivíduo B a chegar ao mesmo local, não significa necessariamente que A tenha sido mais rápido que B, pois A pode ter percorrido uma distância maior). Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 66 2. Determinação da velocidade de queda de pressão – A velocidade de queda de pressão é determinada através do cálculo da derivada da curva em função do tempo (dP/dt). Assim, a velocidade máxima de elevação de pressão é entendida como o dP/dtmáximo, enquanto a velocidade máxima de queda de pressão é entendida como o dP/dtmínimo. Este último índice é amplamente utilizado na avaliação da função diastólica mas implica uma grande desvantagem, que se prende com o facto de a velocidade máxima não reflectir necessariamente a velocidade média (analogamente, um indivíduo que se desloque sempre a 60 km/h, mas que acelere momentaneamente para 100 km/h tem maior velocidade máxima que outro que se desloque sempre a 90 km/h, mas menor velocidade média). 3. Determinação do declive da curva de pressão – Este é o índice mais fiável. Aquando da obtenção de um declive maior, conclui-se que a queda de pressão ocorre mais rapidamente. Obviamente que, aquando da obtenção de um declive menor, conclui-se que a queda de pressão ocorre mais lentamente. O declive da curva de pressão pode ser feito de muitas maneiras – uma vez que a curva de pressão traduz uma função exponencial, é possível aplicar o logaritmo da função, obtendo-se uma recta, cujo declive é de fácil obtenção. Contudo, como estamos a avaliar uma queda de pressão, o declive obtido é negativo. Assim sendo, para se “retirar” a carga negativa, calculam-se, a partir dos declives obtidos, as constantes de tempo (Tau), cuja fórmula é: . As relações pressão-volume telediastólicas são índices também muito utilizados, mas neste caso, com o objectivo de avaliar a complacência e rigidez ventriculares (ou seja, as suas propriedades passivas). Determinantes da função diastólica Relaxamento O relaxamento é o processo através do qual o miocárdio regressa a um estado de força e comprimento não submetidos a stress. Ao nível do coração normal, o relaxamento constitui a maior parte do período de ejecção ventricular, bem como o período inicial do enchimento rápido. É fácil compreender que se o ventrículo relaxar mais rapidamente, atinge pressões ventriculares mais baixas e a passagem de sangue das aurículas fica facilitada. Desta forma, a queda de pressão ao nível do ventrículo esquerdo é a manifestação hemodinâmica do relaxamento ventricular. O relaxamento miocárdico é modulado pela carga, inactivação e não-uniformidade. Os efeitos da carga no relaxamento estão dependentes do seu tipo, da sua magnitude, do intervalo de tempo durante o qual o ventrículo se encontra submetido à carga. Influência da carga no relaxamento miocárdico Quando uma pós-carga ligeira ou moderada é imposta numa fase precoce do ciclo cardíaco (carga de contracção), verifica-se um atraso no despoletar da queda de pressão ventricular, que é compensado pela aceleração com que se regista essa queda (mecanismo de resposta compensatória). Por oposição, uma grande elevação da pós-carga, ou uma elevação da pós-carga a ocorrer num período tardio da ejecção ventricular (carga de relaxamento), induz um despoletar prematuro da queda de pressão, acompanhado por uma maior lentidão registada neste processo, algo que acontece, inclusive, em corações saudáveis (mecanismo de resposta descompensatória). Esta maior lentidão pode levar a um relaxamento incompleto e, subsequentemente, ao aumento das pressões de enchimento, um fenómeno que se torna exacerbado, aquando de um aumento da pré-carga. Ora, isto é o que se verifica ao nível dos doentes hipertensos – uma vez que a hipertensão está associada à submissão de uma maior quantidade de pós-carga para o ventrículo esquerdo, este mecanismo pode contribuir para a exacerbação da disfunção diastólica. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 67 Em termos moleculares isto é passível de ser explicado pelo facto de o cálcio citosólico regressar para níveis quase basais, ainda antes de se registar o máximo da força. Ora, a imposição de uma carga mais precocemente (carga de contracção), faz com que ainda haja cálcio livre para recrutar pontes cruzadas e, como tal, cada ponte cruzada não precisa de desenvolver força adicional. Adicionalmente, a este nível ainda se regista um processo de actividade cooperativa, ou seja, o recrutamento de um certo número de pontes cruzadas leva ao recrutamento de pontes adicionais, o que permite que se verifique a presença de menos força por ponte cruzada. Assim sendo, aquando da imposição de uma carga de contracção, o ventrículo consegue gerar menos pressão por um maior período de tempo (verifica-se a presença de uma fase de ejecção prolongada contra uma maior resistência), mas a velocidade de relaxamento é acelerada. Por oposição, aquando da imposição de uma carga de relaxamento, verifica-se que já não há mais cálcio livre para recrutar mais pontes cruzadas. Assim sendo, cada ponte cruzada “carrega” uma força adicional e a velocidade de relaxamento é lentificada, o que gera um efeito descompensador sobre o relaxamento do miocárdio. Podem ainda existir situações de cargas mistas. Caso seja aplicada uma carga de contracção, mas que seja progressivamente aumentada, esta carga passa a ser designada por mista – a velocidade de relaxamento torna-se então muito lenta, sendo que o ventrículo deixa de ter tempo de relaxar totalmente, caso as pressões diastólicas não atinjam os valores basais. Influência da inactivação no relaxamento miocárdico No que concerne à inactivação miocárdica, este processo diz respeito à extrusão de cálcio presente no citosol e ao desligar das pontes cruzadas. Assim, os determinantes da inactivação miocárdica incluem os mecanismos relacionados com a homeostasia de cálcio e os reguladores dos miofilamentos participantes nos ciclos das pontes cruzadas. A diminuição da concentração ou da actividade da SERCA podem levar a uma maior lentidão na remoçãodo cálcio presente ao nível do citosol. Consequentemente, um aumento dos níveis de fosfolamban, uma proteína inibidora da SERCA, leva a um impedimento do normal relaxamento. Deste modo, para se dar uma melhoria do relaxamento diastólico, torna-se necessário um aumento do cAMP, que actua na fosforilação do fosfolamban, permitindo que o seu efeito inibidor na SERCA seja removido. Esta noção é importante em termos clínicos, na medida em que uma hipertrofia ventricular esquerda patológica, que surja na sequência de hipertensão, ou uma estenose aórtica, têm como resultado uma diminuição da actividade da SERCA e um aumento do fosfolamban, o que se traduz em maiores dificuldades de relaxamento. De referir que alterações similares são passíveis de ser observadas no miocárdio de pacientes com cardiomiopatia hipertrófica ou dilatada. Por outro lado, é necessário ter em consideração os efeitos associados ao desligar das pontes cruzadas para o relaxamento miocárdico. De facto, a alteração dos miofilamentos que formam as pontes cruzadas, ou da ATPase que possibilita a ocorrência deste ciclo, pode alterar a função diastólica. Desta forma, uma vez que aquando de uma situação de isquemia cardíaca, ocorre menor aporte de ATP e Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 68 oxigénio, a inactivação e relaxamento miocárdico ficam comprometidos, o que leva a maiores dificuldades no relaxamento cardíaco. Influência da não-uniformidade no relaxamento miocárdico O tecido especializado na condução actua de modo a que o coração actue quase em sincronia, ou seja, que os dois ventrículos não se encontrem em fases completamente diferentes (por exemplo, um ventrículo em contracção e outro em relaxamento). Deste modo, verifica-se somente a presença de uma assincronia fisiológica limitada que cria pequenos gradientes para favorecer o enchimento ventricular e o encaminhamento do sangue para a câmara de saída do ventrículo. Contudo, numa situação patológica, esta assincronia pode ser exacerbada até um nível patológico (presença da não-uniformidade). Por exemplo, aquando de um enfarte do miocárdio é possível que se verifique a contracção de uma zona ventricular, enquanto, simultaneamente, outra zona ventricular não se encontra em contracção, ou encontra-se em distensão. Assim sendo, uma re-extensão precoce e assíncrona de um segmento ventricular e uma não-uniformidade regional induzem um despoletar precoce da queda de pressão ventricular, que passa a decorrer com maior lentidão, comparativamente ao que seria esperado. As assincronias patológicas são também passíveis de ser observadas, aquando de bloqueios de ramo. A título de exemplo, se ocorrer o bloqueio do ramo esquerdo do feixe de His, o ventrículo esquerdo terá que ser estimulado fibra-a-fibra, contrariamente ao direito; o que gera uma grande assincronia. Propriedades passivas ventriculares As propriedades passivas da parede ventricular são influenciadas pela rigidez ventricular, espessura da parede e geometria das cavidades ventriculares. Estas propriedades, apesar de serem denominadas de passivas, podem sofrer alterações lentas a longo prazo, inclusive, por acção de hormonas ou estímulos. Influência da espessura da parede e geometria das cavidades ventriculares A espessura das paredes está intimamente associada ao enchimento ventricular. Assim, quando a parede dos ventrículos é mais espessa, verifica-se que o enchimento se processa de modo mais rígido. Por outro lado, a quantidade de tecido fibroso ao nível da parede ventricular também condiciona a sua rigidez, sendo que ventrículos com mais tecido fibroso (por exemplo, aquando de uma situação de fibrose), tornam-se mais rígidos. No que concerne à geometria da câmara, aquando da presença de cavidades mais pequenas verifica-se a presença de uma menor tensão de parede e, consequentemente, a força gerada pelo ventrículo para a distensão também é menor, registando-se assim uma disfunção diastólica. Influência da rigidez ventricular Os determinantes da rigidez ventricular incluem factores intrínsecos aos próprios cardiomiócitos (nomeadamente relacionados com o seu citosqueleto) e à matriz extracelular. O citosqueleto dos cardiomiócitos é constituído por microtúbulos, filamentos intermediários (constituídos por desmina) e microfilamentos (constituídos por actina), bem como por proteínas endosarcoméricas (nomeadamente a titina, α-actinina, miomesina e proteína M), sendo que alterações em algumas destas proteínas citosqueléticas têm sido correlacionadas com alterações na função diastólica. Pensa-se que a maior parte da força elástica dos cardiomiócitos esteja associada à titina. Quando o sarcómero apresenta o seu comprimento muito diminuído, devido à contracção, a titina fica sob tensão, verificando-se um fenómeno de recuo elástico, que constitui a base do mecanismo de sucção Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 69 ventricular, aquando da fase de enchimento rápido. Por outro lado, aquando da distensão do sarcómero, verifica-se a distensão da titina, o que impede o sobre- estiramento do sarcómero. A titina encontra-se expressa sob várias isoformas que estão associadas a diferentes propriedades mecânicas e a diferentes níveis de rigidez ventricular. Quando a isoforma predominante é a forma N2B verifica-se maior rigidez ventricular. Por seu turno, caso a isoforma predominante seja a N2BA, então verifica-se que o músculo cardíaco é mais complacente. Todavia, a titina pode sofrer modificação pós-traducional, por via do cálcio e por fosforilação/desfosforilação. Assim, a fosforilação da titina, especialmente da isoforma N2B, permite diminuir a sua rigidez (e, como tal, a fosforilação de proteínas sarcoméricas pela pKA ocorre num sentido de normalizar a maior rigidez dos cardiomiócitos, aquando de uma situação de insuficiência cardíaca). Alterações na estrutura da matriz extracelular miocárdica também podem afectar a função diastólica. A matriz extracelular miocárdica é composta por proteínas fibrilares (tais como o colagénio dos tipos I e III e a elastina), proteoglicanos e proteínas da membrana basal (nomeadamente colagénio do tipo IV, laminina e fibronectina). Dos componentes supracitados o colagénio é aquele que aparenta desempenhar o papel mais importante ao nível da matriz extracelular, no que concerne ao desenvolvimento de insuficiência cardíaca. De facto, o colagénio fibrilar presente ao nível da matriz encontra-se frequentemente alterado em processos patológicos associados a disfunção diastólica, nomeadamente no que concerne à sua quantidade, geometria, distribuição, grau de cross-linkings e Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 70 proporção entre colagénio do tipo I e colagénio do tipo III. O mecanismo de regulação da biossíntese de degradação de colagénio é feito de várias formas, nomeadamente através de: 1. Mecanismos de regulação transcricional por via de factores físicos (nomeadamente a pré- carga e a pós-carga), neurohumorais (tais como o sistema renina-angiotensina-aldosterona e o sistema nervoso simpático) e de crescimento. 2. Regulação pós-traducional, incluindo ao nível da formação de cross-links de colagénio. 3. Degradação enzimática (a degradação de colagénio é da responsabilidade das metaloproteinases presentes ao nível da matriz). Assim sendo, para além do facto de alterações na síntese, degradação de colagénio, e respectivos processos de regulação levarem a alterações da função diastólica e propiciarem o desenvolvimento de insuficiênciacardíaca; também a qualidade do colagénio (nomeadamente no que concerne aos cross- links e à glicação) é essencial para determinar a rigidez miocárdica. Para além da ocorrência de modificações pós-traducionais da titina, existem outras evidências que sugerem que a rigidez diastólica é activamente modulada. Uma dessas evidências prende-se com o facto da interacção entre as pontes cruzadas ocorrer (ao nível da diástole), mesmo a um tónus muscular reduzido, quando ocorre baixa produção de cálcio. A rigidez ventricular é também modulada pela carga, pela endotelina-1 e pelo óxido nítrico (NO). Aumentos de carga aumentam de forma aguda a rigidez ventricular, enquanto a endotelina-1 promove uma diminuição aguda da rigidez miocárdica. Factores extrínsecos Os factores extrínsecos não são considerados propriamente causas da disfunção diastólica, no sentido de não serem intrínsecos ao coração. A título de exemplo, a presença de muito líquido no pericárdio, ou de um tumor no mediastino, leva à compressão extrínseca do coração e dificulta o seu enchimento. Situações patológicas ao nível dos vasos com ligação ao coração ou ao nível das válvulas (tal como uma estenose da válvula mitral) também geram problemas no enchimento ventricular, mas cuja origem é extrínseca ao próprio músculo ventricular. Frequência cardíaca A frequência cardíaca influencia as necessidades miocárdicas de oxigénio e o tempo de profusão coronária. Aumentos rápidos da frequência cardíaca aumentam as necessidades de oxigénio por parte do miocárdio, mas diminuem o tempo de profusão coronária. Isto permite que uma disfunção diastólica isquémica possa ocorrer na ausência de doença coronária, especialmente em corações hipertróficos. Para além disso, uma maior frequência cardíaca pode levar a um encurtamento tal da diástole que impeça um relaxamento completo por entre batimentos cardíacos, o que resulta numa maior pressão de enchimento e consequente disfunção diastólica (o ventrículo não tem assim tempo de encher e, como tal, não se regista o seu enchimento completo, apesar de o ventrículo em si poder estar a funcionar em pleno). Este fenómeno é passível de ser observado em situações de insuficiência cardíaca que, contrariamente a situações normais, podem estar associadas a aumentos na frequência cardíaca não co-relacionados com um aumento da frequência cardíaca, ou mesmo co-relacionados com um decréscimo. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 71 Débito cardíaco e retorno venoso O retorno venoso é definido como o fluxo de sangue que regressa ao coração. Na maioria dos casos, este conceito é utilizado para nos referirmos ao retorno venoso sistémico (ou seja, para o lado direito do coração). Uma vez que, em condições fisiológicas, a quantidade de sangue que é enviada para o lado direito do coração deve equivaler à fracção de sangue ejectada, e uma vez que os débitos cardíacos do coração esquerdo e do coração direito são exactamente os mesmos, o input sanguíneo para o coração direito deve equivaler ao output do coração esquerdo. Isto significa que o retorno venoso sistémico deve equivaler ao débito cardíaco sistémico. O débito cardíaco é influenciado por factores cardíacos (ou seja, que dizem respeito apenas ao coração) e nos quais se incluem a frequência cardíaca e a contractilidade, bem como por factores acopladores (que dizem respeito que à função cardíaca, quer à função vascular), nos quais se incluem a pré-carga e a pós- carga. Curvas de função vascular A pressão auricular direita determina a magnitude do enchimento ventricular registado. Por sua vez, a pressão arterial direita depende do retorno venoso do sangue para o coração. A relação entre o retorno venoso sistémico e a pressão auricular direita, bem como os diferentes factores que influenciam o retorno venoso sistémico, é passível de ser estudada através de uma curva de função vascular. Esta curva descreve a variação da pré-carga em função do débito cardíaco – normalmente a pré-carga é avaliada em mm/Hg evidenciando a pressão auricular direita, enquanto o débito cardíaco equivale ao retorno venoso sistémico (como já foi referido, estes dois parâmetros devem ser iguais) e é expresso em unidades de volume/unidades de tempo. Quando, o retorno venoso é nulo, verifica-se a presença de pressões uniformes ao nível das artérias, capilares, veias e aurícula direita. Esta pressão é designada por pressão de enchimento sistémica média (ponto Pmc do gráfico em cima), rondando os cerca de 7 mm/Hg. De referir que este valor depende do volume sanguíneo total e da complacência total. Ora, ao aumentar o débito cardíaco, a pré-carga diminui, na medida em que se regista um menor volume de sangue ao nível ventricular (ou seja, regista-se um decréscimo da pressão auricular direita), sendo que a níveis mais elevados de débito cardíaco, podem se registar inclusive, valores negativos de Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 72 pressão vascular, devido à presença de mecanismos de sucção ventricular. Não é difícil compreender que, em termos práticos, quando se regista um aumento da pressão venosa central, de tal modo que esta excede a pressão auricular direita, o sangue flui das grandes veias para a aurícula direita. De modo similar, a diminuição do débito cardíaco está associada a uma maior pré-carga, na medida em que a quantidade de sangue presente ao nível dos ventrículos é superior. Alterações da curva de função vascular As alterações do volume circulante (ou seja, da volémia) podem fazer deslocar as curvas de função vascular. Desta forma, aquando de um aumento do volume circulante (situação designada por hipervolémia e que ocorre, por exemplo, aquando de uma transfusão sanguínea), verifica-se um aumento da pressão venosa e, como tal, a curva de função vascular fica deslocada para a direita, mas paralela à curva original. Paralelamente, situações de diminuição do volume circulante (episódios de hipovolémia, característicos, por exemplo, de situações de hemorragia) deslocam a curva para a esquerda, devido à diminuição geral da pressão venosa que se regista. De referir que, as alterações de volémia não levam a alterações no declive das curvas, na medida em que não são induzidas alterações na resistância ou complacência dos vasos. Alterações no tónus venomotor, ou seja, situações de venoconstrição e venodilatação, são equivalentes a alterações no volume sanguíneo. Assim uma maior complacência venosa (venodilatação) reduz a tensão na parede venosa, o que acarreta um menor retorno venoso, enquanto uma menor complacência venosa (venoconstrição) induz o efeito oposto. Deste modo, no que concerne às curvas de função vascular, verificamos em situações de venodilatação um deslocamento para a esquerda, enquanto, situações de venoconstrição estão associadas a um deslocamento da curva para a direita. A alteração do tónus das arteríolas (ou seja, da resistência vascular periférica) apresenta um efeito totalmente diferente na curva de função vascular. Uma vez que as arteríolas contêm apenas uma pequena fracção do volume sanguíneo, alterações na resistência vascular periférica apresentam um efeito muito pouco significativo ao nível da pressão média sistémica de enchimento. Deste modo, alterações na resistência vascular periférica não originam curvas de função vascular paralelas à original, mas sim um deslocamento divergente a partir do ponto em que o débito cardíaco é nulo, isto é, o BernardoManuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 73 efeito da resistência vascular periférica é tanto mais sentido, quanto maior for o débito cardíaco. Assim, a vasoconstrição (ou seja, uma maior resistência vascular periférica) aproxima a curva de função vascular do eixo das ordenadas, enquanto a vasodilatação afasta a curva de função vascular deste eixo. Isto deve-se ao facto da vasoconstrição reduzir a pressão venosa central, o que diminui a driving pressure que favorece o retorno venoso para o coração. Já a vasodilatação favorece o efeito inverso. As situações apresentadas são situações experimentais, onde são assumidas alterações puras no volume sanguíneo ou no tónus vascular. Todavia, em cenários reais as situações são mais complicadas – a título de exemplo, a uma hemorragia segue-se, normalmente, uma situação de vasoconstrição, como forma de manter a pressão arterial sistémica. Assim, em situações reais pode ocorrer a alteração simultânea do ponto de intersecção com o eixo das abcissas e do declive da curva de função vascular. Curvas de função cardíaca Tal como existe uma curva de função vascular, também se verifica a presença de uma curva de função cardíaca que também descreve a variação do débito cardíaco em função da pré-carga. Esta curva, uma vez que traduz aquilo que se passa em termos cardíacos, não é mais que uma aplicação da Lei de Starling, todavia, em vez de exprimirmos o volume de ejecção em função da pressão auricular, passamos a exprimir o débito cardíaco em função da pressão auricular. Posto isto, não admira que um aumento da pré-carga leve a um aumento do débito cardíaco até um determinado limite. Alterações das curvas de função cardíaca Tal como ocorre nas curvas de função vascular, também ao nível das curvas de função cardíaca se verifica que outros determinantes podem influenciar estas curvas, nomeadamente a contractilidade e a pós-carga. Assim, uma redução da contractilidade ou um aumento da pós-carga estão associados a uma diminuição do débito cardíaco, para um mesmo valor de pré-carga. Por outro lado, um aumento da contractilidade ou uma diminuição da pós-carga induzem o efeito oposto. Não admira, portanto, que uma diminuição da contractilidade/aumento da pós-carga desloquem a curva de função cardíaca para baixo, enquanto um aumento da contractilidade/diminuição da pós-carga deslocam esta curva para cima. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 74 Combinação das curvas de função cardíaca e função vascular As unidades das variáveis da curva de função cardíaca são as mesmas das variáveis da curva de função vascular. Deste modo, estas duas curvas podem ser expressas no mesmo gráfico. Contudo, enquanto na curva de função cardíaca, o eixo dos y corresponde ao débito cardíaco, na curva de função vascular, o eixo dos y corresponde ao retorno venoso. Assim, para representar ambas as funções, o que se faz normalmente é inverter os eixos da curva de função vascular. Isto é possível, na medida em que, o débito cardíaco e o retorno venoso dependem da pressão auricular direita, enquanto a pressão auricular direita também depende do retorno venoso e do débito cardíaco. Esta interdependência permite então que as variáveis não possam então ser classificadas estritamente como sendo dependentes ou independentes. A curva de função vascular apenas se intersecta com a curva de função cardíaca num ponto, que corresponde ao ponto de equilíbrio para essa circunstância. Isto é importante na medida em que pequenas alterações numa das variáveis levam a que a outra se ajuste de modo a que seja de novo atingido o equilíbrio. Deste modo, um aumento transitório na pressão auricular direita (tal como se verifica no gráfico que acompanha este parágrafo) pela Lei de Starling leva a um aumento compensatório do débito ventricular (ponto B da figura). Contudo, simultaneamente, o aumento na pressão auricular direita leva a uma diminuição da driving pressure para o retorno venoso (ou seja, a uma menor diferença entre a pressão venosa central e a pressão auricular direita). Desta forma, o retorno venoso diminui aquando de uma situação como esta (ponto B’ do gráfico). Todavia, estes efeitos não duram muito – por um lado, o maior débito cardíaco resultante diminui a pressão auricular direita, porque deixa a aurícula direita mais vazia (percurso B-C-A da figura), enquanto, por outro, aumenta a pressão venosa central, aumentando a driving pressure para o retorno venoso (percurso B’-C’-A do gráfico). Estes mecanismos compensatórios resultantes permitem que o ponto de equilíbrio possa ser de novo atingido. Em suma, o sistema cardiovascular apresenta um mecanismo intrínseco para contrariar pequenos desequilíbrios entre o input e o débito cardíaco. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 75 A única forma de produzir uma alteração sustentada no débito cardíaco, retorno venoso e pressão auricular direita, requer, pelo menos, a alteração de uma das duas curvas de função. Um aumento da resistência vascular periférica (aumento da pós-carga), por exemplo, influencia o posicionamento das duas curvas (deslocando a curva de função cardíaca para a direita e fazendo divergir a curva de função vascular), sendo atingido novo ponto de intersecção. Já a contractilidade apenas afecta as curvas de função cardíaca, na medida em que é um factor cardíaco (e não um factor acoplador como a pós-carga). Assim, um aumento da contractilidade (que pode advir, por exemplo, da estimulação simpática) está associado a maior volume de ejecção, o que se traduz numa situação de maior débito cardíaco. Ora este maior débito cardíaco acaba por implicar uma diminuição da pré- carga, uma vez que passa a ser removida uma maior quantidade de sangue. Esta diminuição da pré-carga faz com que se atinja um novo ponto de equilíbrio (ou seja, um novo ponto de intersecção entre as duas curvas), em que ocorre maior débito cardíaco para menores pressões de enchimento. O débito cardíaco é calculado através do produto entre a frequência cardíaca e o volume de ejecção. Todavia, uma vez que uma maior frequência cardíaca está associada a uma menor tempo (e volume) de enchimento e, consequentemente, a um menor volume de ejecção, o efeito final despoletado pelo aumento da frequência cardíaca depende da compensação ocorrida pelo volume de ejecção. Assim, um aumento da frequência cardíaca nem sempre se traduz num aumento do débito cardíaco – até dado valor, o aumento da frequência cardíaca está associado a um maior débito cardíaco, todavia, aumentos progressivos da frequência levam a que seja sucessivamente atingida uma fase de plateau e uma fase de diminuição do débito cardíaco (isto já aquando de valores muito elevados de frequência cardíaca). Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 76 Factores que condicionam o retorno venoso O retorno venoso é condicionado por vários factores, nomeadamente: 1. Gravidade - Quando um indivíduo se encontra deitado as pressões venosas são aproximadamente as mesmas. Contudo, quando este se encontra de pé, verificamos a presença de diferenças descaradas nas pressões venosas sentidas ao nível das várias partes corpo (nos membros inferiores, a pressão venosa é de 90 mm/Hg, enquanto ao nível da cabeça são obtidas pressões de -35 mm/Hg). Esta variação de pressõesexplica porque é que um indivíduo quando se levanta rapidamente pode se sentir tonto – de facto, ocorre uma diminuição da pressão venosa na cabeça de cerca de 40 mm/Hg, algo que é sentido ao nível de barorreceptores. Por outro lado, quando um indivíduo se coloca de cabeça para baixo (por exemplo, quando está a fazer o pino), verifica-se um aumento das pressões cerebrais que pode, inclusive, ser perigoso. 2. Contracção muscular esquelética - A contracção muscular é um factor determinante para o retorno venoso, uma vez que a contracção do músculo esquelético promove a propulsão do sangue em direcção ao coração. Todavia, como o músculo não se encontra permanentemente contraído, no caso das veias infra-cardíacas, aquando do relaxamento muscular, torna-se necessário um mecanismo que previna o sangue de fluir no sentido oposto ao do coração (ou seja no sentido favorecido pela gravidade). Tal mecanismo é assegurado pela presença de válvulas, que abrem aquando da contracção muscular e fecham aquando do relaxamento, permitindo um fluxo unidireccional do sangue venoso. Maiores pressões venosas ao nível dos membros inferiores propiciam a um extravasamento do sangue para o fluido extracelular e, como tal, quando os indivíduos se mantêm de pé por muito tempo, passam a sentir as “pernas pesadas”. Isto deve-se ao facto de se perderem os mecanismos que procuram contrariar esse “peso aplicado”, algo que em termos práticos se traduz pelo facto de a propulsão muscular não se fazer sentir e pelo facto das válvulas venosas, por estarem submetidas a uma sobrecarga constante, acabarem por ficar ineficientes. 3. Competência valvular - Aquando de uma insuficiência venoso-valvular (por exemplo, em situações de veias varicosas), as válvulas não têm capacidade de fechar completamente, permitindo Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 77 assim que o sangue venoso flua no sentido favorecido pela gravidade, aquando do relaxamento muscular. 4. Respiração - A inspiração está associada a uma diminuição da pressão intra-torácica por expansão da parede torácica. Isto favorece, não só a uma entrada de ar proveniente do meio exterior, mas também o retorno venoso (consequentemente, na sequência de uma inspiração verifica-se um aumento da pré-carga no coração direito). Por outro lado, a expiração está associada ao fenómeno inverso. 5. Tónus vascular - Variações do tónus vascular são também determinantes para variações do retorno venoso. De facto, aquando de um menor retorno venoso (algo que ocorre, por exemplo, ao nível dos membros inferiores, quando um indivíduo sentado se levanta), ocorre uma consequente diminuição do débito cardíaco, o que se traduz num decréscimo da pressão arterial. A menor pressão arterial é detectada pelos barorreceptores do organismo, sendo despoletado o reflexo barorreceptor – este reflexo tem por consequência não só um aumento da vasoconstrição arteriolar em todos os órgãos excepto o cérebro e o coração (o que aumenta a resistência vascular periférica ao nível destes órgãos), mas também um aumento da venoconstrição. Ora, o aumento da venoconstrição favorece o retorno venoso, actuando como mecanismo compensatório da situação inicial. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 78 Circulação direita. Papel fisiopatológico do ventrículo direito Apesar de ter sido negligenciado durante muito tempo, o estudo do ventrículo direito tem sido alvo de um interesse crescente, na medida em que a análise do ventrículo direito revela-se fundamental no prognóstico de algumas doenças cardíacas esquerdas. Por outro lado, conhecer o ventrículo direito revela-se essencial para que seja possível um aprofundamento do conhecimento fisiológico da doença vascular pulmonar. Todavia, é importante ressalvar que o estudo da função cardíaca é apenas possível, devido ao recente desenvolvimento de técnicas imagiológicas. A acção do ventrículo direito depende, sobretudo, das condições em que opera, nomeadamente do facto da circulação pulmonar funcionar a baixas pressões (a resistência vascular periférica ao nível pulmonar é cerca de um décimo da resistência vascular periférica sistémica). Dessa forma, as características do miocárdio, tão determinantes para o papel desempenhado pelo ventrículo esquerdo, desempenham um papel de menor importância ao nível do ventrículo direito. Anatomia do ventrículo direito Em termos anatómicos, o ventrículo direito é passível de ser dividido em três porções - câmara de entrada, miocárdio apical e infundíbulo. Todavia, este ventrículo apresenta uma conformação muito complexa, podendo apresentar uma forma crescêntica, trapezóide, ou triangular, dependendo da secção em que for observado. Esta complexidade anatómica deve-se à relação que o ventrículo direito desenvolve com o ventrículo esquerdo (a primeira cavidade quase “abraça” a segunda), que se mostra crucial para que os dois ventrículos se influenciem mutuamente. Comparativamente ao ventrículo esquerdo, o ventrículo direito apresenta uma reduzida espessura de parede (a sua parede livre apresenta uma espessura que varia entre 1 e 3 mm), a válvula AV mais apicalmente localizada, e um miocárdio mais trabeculado. O ventrículo direito é menos espesso que o esquerdo, uma vez que o miocárdio do ventrículo direito contém apenas duas camadas musculares (uma externa, circunferencial, e uma interna, longitudinal), enquanto o ventrículo esquerdo apresenta três (a camada adicional do ventrículo esquerdo é oblíqua, o que faz com que os movimentos gerados ao nível desta cavidade sejam mais complexos, ocorrendo também movimentos de torção). Por fim, a irrigação principal do ventrículo direito provém sobretudo da artéria coronária direita e, como tal, problemas nesta artéria estão associados a complicações no ventrículo direito. De referir que a perfusão no ventrículo direito ocorre durante todo o ciclo cardíaco em condições fisiológicas (perfusão sitodiastólica), devido às baixas pressões registadas ao nível da circunvolução pulmonar. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 79 Fisiologia do ventrículo direito O ventrículo direito recebe o sangue venoso proveniente da circulação sistémica, bombeando-o para os pulmões. Tanto o retorno venoso para o ventrículo direito, como o fluxo de sangue para os pulmões, ocorrem a baixas pressões. Apesar destas particularidades, o débito cardíaco registado ao nível do ventrículo direito tem de ser exactamente igual ao que se verifica no ventrículo esquerdo (só assim se pode registar uma circulação em série). Contracção ventricular direita A contracção ventricular direita ocorre de modo sequencial (alguns autores entendem, inclusive, que esta circulação ocorre de modo peristáltico), iniciando-se na câmara de entrada, progredindo para região apical e, por fim, para o infundíbulo. Já a ejecção de sangue é conseguida através do encurtamento longitudinal do maior eixo ventricular (que é passível de ser traçado desde o ápice até à artéria pulmonar) e da aproximação da parede anterior ao septo interventricular. Ao nível do ventrículo direito a pós-carga registada é menor, comparativamente ao ventrículo esquerdo (isto é óbvio, se pensarmos que a resistência vascular pulmonar é também menor). Isto significa que aquando da contracção do ventrículo direito, o período de contracção isovolumétrica é muito curto. Ditoisto por outras palavras, uma vez que a pressão da artéria pulmonar é muito baixa, a pressão ventricular rapidamente a ultrapassa, o que faz com que este período seja tão curto. Quando a pressão sentida ao nível do tronco pulmonar ultrapassa a sentida ao nível do ventrículo direito, verifica-se uma manutenção do fluxo anterógrado do sangue, algo que ocorre devido à cinética do sangue (período de hang-out). Este mecanismo, apesar de se registar em todos os circuitos de baixa pressão, também se verifica ao nível do ciclo cardíaco do ventrículo esquerdo. Estas características levam a que as ansas pressão-volume obtidas para o ventrículo direito sejam, não de natureza quadrilateral (como ocorre ao nível do ventrículo esquerdo), mas de tipo triangular. Como foi referido, quase não se verifica a presença de períodos isovolumétricos e, como tal, nestas ansas torna-se difícil obter as verticais linhas isovolumétricas. Esta morfologia das ansas permite deduzir que o trabalho realizado pelo ventrículo direito seja muito inferior ao registado pelo ventrículo esquerdo (isto verifica-se pelo facto de a área das ansas pressão-volume ser menor), algo passível de ser explicado pelo facto da pós-carga também ser menor. Com estes dados não é de admirar que recém-nascidos cujo ventrículo direito bombeie para a circulação sistémica apresentem ansas pressão-volume para o ventrículo direito de morfologia quadrilateral. Avaliação da contractilidade Para avaliar a contractilidade do ventrículo direito, torna-se difícil achar a o ponto de pressão-volume telessistólica. Deste modo, utiliza-se preferencialmente a elastância como parâmetro de avaliação. Em termos comparativos, a contractilidade influencia a acção do ventrículo direito, de forma similar ao que se verifica no ventrículo esquerdo. Resposta à pré-carga O ventrículo direito e o ventrículo esquerdo respondem de forma similar a variações da pré-carga, aplicando-se a lei de Frank-Starling a ambas as estruturas. Todavia, é necessário ter em conta dois Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 80 aspectos, quando se considera o efeito da pré-carga no ventrículo direito – a variabilidade respiratória e a interdependência ventricular. O facto de o ventrículo direito actuar a menor pressões, faz com que este seja muito mais influenciado pelas pressões que o circundam (nomeadamente pelos movimentos respiratórios). De facto, aquando de uma inspiração profunda gera-se uma menor pressão intra-torácica, o que origina um maior retorno venoso e, consequentemente, um aumento da pré-carga. Paralelamente, uma expiração profunda está associada a um aumento da pressão intra-torácica, o que gera um menor retorno venoso e, consequentemente, uma diminuição da pré-carga. Todavia, se os pulmões forem insuflados a pressões muito elevadas, regista-se também um aumento da pós-carga, devido ao aumento da resistência vascular pulmonar. Resposta à pós-carga Um aumento de pressão na artéria pulmonar surte mais efeitos ao nível do ventrículo direito, comparativamente a um aumento de pressão aórtico ao nível do ventrículo esquerdo, uma vez que o ventrículo direito apresenta uma menor quantidade de músculo. Esta característica impede o ventrículo direito de gerar pressões superiores a 40 mm/Hg de forma aguda. Contudo, quando esta cavidade se encontra cronicamente submetida a pós-cargas elevadas, ocorre hipertrofia ventricular, e o ventrículo direito passa a ser capaz de gerar pressões superiores a 40 mm/Hg. De referir que a resistência vascular pulmonar depende da função respiratória, na medida em que esta função está associada a alterações da PaO2 e da PaCO2. Interdependência ventricular A função do ventrículo esquerdo afecta significativamente a função sistólica ventricular direita, sendo que a contracção ventricular esquerda contribui para entre 20% a 40% da pressão sistólica ventricular direita e débito cardíaco direito. Esta dependência é possível, sobretudo, através da presença do septo interventricular, embora também se deva presença do pericárdio. Contudo, a interacção entre os dois ventrículos não é unidireccional (não é por acaso que este fenómeno é designado por interdependência ventricular). De facto, verifica-se que o ventrículo direito também influencia a actividade do ventrículo esquerdo, embora de forma mais discreta. A título de exemplo, aquando da dilatação do ventrículo direito (algo que ocorre numa situação de enfarte desta cavidade), a geometria do ventrículo esquerdo sofre alterações, o que leva a que a sua contractilidade seja afectada. Apesar de o ventrículo esquerdo influenciar amplamente a função ventricular direita, não se pode menosprezar o papel da contracção da parede livre do ventrículo direito. De facto, apesar de não ser decisiva, a acção da parede livre do ventrículo desempenha um importante papel na determinação do volume de sangue a ser ejectado. Função diastólica no ventrículo direito A função diastólica encontra-se ainda muito pouco estudada ao nível do ventrículo direito, todavia, alguns dados já são conhecidos: 1. O enchimento ventricular direito inicia-se primeiro que o enchimento ventricular esquerdo, mas termina depois. 2. A complacência ventricular registada ao nível do ventrículo direito é maior, comparativamente à registada no ventrículo esquerdo. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 81 3. Ao nível da diástole ventricular direita, as propriedades activas auriculares adquirem maior importância. De facto, aquando de situações de maior pós-carga, torna-se imperativa a ocorrência de contracção auricular, de modo a assegurar um correcto enchimento ventricular. 4. Maior susceptibilidade ao aumento da pressão intra-pericárdica. Fisiopatologia do ventrículo direito Aquando de uma situação de insuficiência ventricular direita, o coração não tem capacidade de assegurar um débito cardíaco suficiente para assegurar as necessidades do organismo (nomeadamente ao nível dos pulmões). Esta é uma condição que põe em risco a vida e que é avaliada por um aumento da pressão venosa jugular, embora também se manifeste por via da formação de edema periférico. Muitas vezes associada a esta condição, verifica-se uma situação de hipertensão pulmonar, caracterizada por um aumento de pressão ao nível dos vasos da circulação pulmonar. Os sintomas mais comuns incluem fadiga, edema periférico, falta de ar e tosse seca. Outro factor de risco para a insuficiência ventricular direita é a presença de disfunção ventricular direita, uma vez que pacientes cujo ventrículo direito ejecte uma menor fracção sanguínea apresentam menor tolerância ao exercício. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 82 Fisiopatologia da isquemia do miocárdio A doença coronária é responsável por cerca de 20% da mortalidade global, enquanto a doença cérebro-vascular apresenta uma prevalência menor comparativamente à doença coronária, mas uma maior mortalidade. Em termos gerais, a mortalidade associada às doenças cardiovasculares está a diminuir, contudo, num futuro próximo é expectável uma inversão desta tendência, devido ao aumento da prevalência da obesidade, entre outros factores. Assim, torna-se fundamental conhecer os mecanismos fisiopatológicos associados à doença coronária. Definição de isquemia do miocárdio e conceitos básicos Entre 4 a 5% do débito cardíaco destina-se para a circulação coronária, apesar da massa docoração corresponder apenas a cerca de 0,5% da massa corporal. O fluxo sanguíneo coronário é regulado por via de mecanismos locais (que envolvem, por exemplo, a adenosina). Estes mecanismos de regulação permitem que, quando necessário, o coração aumente a sua capacidade de fluxo 4 a 5 vezes. De referir que essa capacidade é designada por reserva coronária e é útil tanto em condições fisiológicas (por exemplo, aquando do exercício físico), como em situações patológicas (a existência de reserva coronária justifica que, aquando de uma estenose, o coração continue a ser irrigado). De referir que a compressão extra-vascular que ocorre durante a sístole leva a que o fluxo coronário ocorra, maioritariamente, ao nível da diástole. Apesar de uma fracção significativa do débito cardíaco ser direccionada para irrigação cardíaca, o coração tem uma elevada taxa de extracção de oxigénio e, como tal, aquando de um aumento das necessidades de oxigénio, o coração aumenta preferencialmente a captação de sangue, em detrimento de um aumento da quantidade de oxigénio que extrai do sangue. Deste modo, o fornecimento de oxigénio ao miocárdio depende quer do fluxo sanguíneo coronário, que do conteúdo do sangue em oxigénio. Como é facilmente compreensível, o fornecimento de oxigénio ajusta-se às necessidades do miocárdio e, caso esta correspondência não seja assegurada, gera-se uma situação de isquemia do miocárdio. A isquemia do miocárdio é então passível de definida como sendo Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 83 um deficit do fornecimento de oxigénio ou um aumento não correspondido da necessidade do miocárdio de oxigénio. A ocorrência destes desequilíbrios, está dependente de vários factores, nomeadamente: O desenvolvimento de um processo isquémico está frequentemente associado ao desenvolvimento subsequente de enfarte agudo do miocárdio. A ocorrência de um enfarte agudo do miocárdio requer, não só, a presença de isquemia, mas também a ocorrência de necrose, algo que se verifica na sequência de um episódio de isquemia aguda do miocárdio. Assim, enquanto numa situação de isquemia, as lesões induzidas nos primeiros vinte minutos são reversíveis, aquelas ocorridas no período de tempo subsequente são totalmente irreversíveis, devido à morte celular ocorrida. De referir que, a necrose se inicia na região subendocárdica e progride para as restantes regiões miocárdicas e, por isso, quanto maior for o período de tempo decorrido, maior será a área que sofre necrose. Isquemia de necessidade e isquemia de fornecimento. Correlação com aterosclerose A aterosclerose é uma condição que propicia o desenvolvimento, quer de isquemia de fornecimento, quer de isquemia de necessidade. Situações nas quais se verifica o impedimento do fluxo de sangue (por exemplo, devido à formação de um trombo), estão associadas a isquemia de fornecimento. Já situações de obstrução coronária crónica, em que o aporte de oxigénio é suficiente em repouso, mas insuficiente aquando de necessidades energéticas aumentadas, estão associadas a isquemia de necessidade. A presença de placas ateroscleróticas ao nível das artérias coronárias leva ao desenvolvimento de fenómenos de estenose (ou seja, de estreitamento do vaso), que podem estar associados a isquemia de necessidade. Todavia, devido à presença do mecanismo de reserva coronária, mesmo aquando de estenoses de 60-70%, o fornecimento de sangue para o fluxo coronário mantém-se adequado em situações de repouso. De facto, em repouso, só quando o fluxo se encontra comprometido em 80-90% é que o paciente desenvolve isquemia de necessidade (em situações de esforço, esse valor baixa para os 50%). Contudo, as placas ateroscleróticas são susceptíveis de ruptura, algo que propicia o desenvolvimento de fenómenos de isquemia de fornecimento – quando uma placa de uma artéria coronária Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 84 rompe são activados mecanismos de coagulação, formando-se subsequentemente um coágulo que obstrui a artéria e perturba o fluxo sanguíneo. É importante referir que as placas de aterosclerose são distintas no que concerne à sua vulnerabilidade à ruptura. Placas com uma cápsula fibrosa mais fina, com menor grau de estenose, com um núcleo rico em lipídeos e com mais macrófagos são mais propensas para a ocorrência de fenómenos de ruptura. Já as restantes placas, sobretudo devido à presença uma maior quantidade de tecido fibroso, são mais susceptíveis de sofrer calcificação e, embora contribuam para um maior grau de estenose (que, muitas vezes, é compensada pelo mecanismo de reserva coronária), não levam a um evento “dramático” como a ruptura. Aspectos clínicos da doença coronária Aquando de um fenómeno de isquemia, verifica-se a presença de um deficit de ATP, uma vez que a ocorrência da fosforilação oxidativa fica impedida, devido a um menor aporte de oxigénio. Este impedimento da obtenção da energia por via aeróbia leva a que o ATP seja obtido em condições anaeróbias, com consequente formação de lactato. Este fenómeno traz duas consequências importantes – por um lado, o défice de ATP leva ao desenvolvimento de disfunção sistólica e diastólica, enquanto a acumulação de lactato está associada a uma acidose intracelular e, subsequentemente, ao desenvolvimento de dor. O deficit de ATP que advém de um processo isquémico está associado ao desenvolvimento de disfunção sistólica - verifica-se o desenvolvimento de mecanismos de hipocinésia, acinésia e discinésia, bem como de hipertensão arterial, de cansaço e de hipoperfusão periférica. Apesar disso, verifica-se que as áreas miocárdicas adjacentes àquelas que sofreram necrose desenvolvem hipercinésia, numa tentativa de desenvolver um mecanismo de compensação. Por outro lado, o deficit de ATP está associado a uma maior propensão para o desenvolvimento de arritmias, assim como ao desenvolvimento de disfunção diastólica (uma vez que o ATP é essencial para o funcionamento da SERCA, que promove a entrada de cálcio para o retículo sarcoplasmático). Devido a um menor aporte de oxigénio, verifica-se que fenómenos de isquemia são sucedidos por morte celular. Em termos clínicos, quando um doente se apresenta numa situação isquémica torna-se muito importante detectar se já ocorreu necrose (de facto, um enfarte é caracterizada pela presença de fenómenos de isquemia e necrose). Essa detecção é conseguida através do doseamento de troponina no sangue periférico – uma vez que quando os cardiomiócitos sofrem lise vertem alguns dos seus componentes para a circulação sanguínea, proteínas como a troponina ou a mioglobina (presentes ao nível destas células) constituem importantes marcadores da ocorrência de necrose. De referir que, após um enfarte verifica-se a presença de mecanismos de remodelagem na região afectada, nomeadamente num sentido de dilatação ventricular. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 85 Obstrução total e parcial A obstrução de uma artéria coronária (considerando, por exemplo, a ruptura de uma placa aterosclerótica) pode ser total ou parcial. Esta distinção é importante, na medida em que o tratamento administrado difere nas duas situações. Ao nível do electrocardiograma, fenómenos de obstrução coronária total são traduzidos por um supra-desnivelamento do segmento ST, enquanto fenómenos de obstrução parcial manifestam-se através de um infra-desnivelamento deste segmento, ou através da inversão da onda T. Apesar disso, ador sentida na sequência de um processo isquémico é de natureza similar, sendo caracterizada por uma elevada intensidade, por um ardor com origem retro-esternal, e pelo facto de irradiar para o pescoço e membro superior. O electrocardiograma como meio auxiliar de diagnóstico em fenómenos isquémicos A ocorrência de fenómenos isquémicos está associada a alterações passíveis de ser observadas no electrocardiograma, nomeadamente ao nível do segmento ST (que deixa de ser isoeléctrico passando a sofrer um desnivelamento) e da onda T. O electrocardiograma é um meio auxiliar de diagnóstico muito útil, na medida em que permite deduzir qual a parede do coração que está a sofrer isquemia – alterações ao nível das derivações pré-cordiais indicam a ocorrência de um enfarte agudo do miocárdio na parede anterior, devido a oclusão da artéria descendente anterior. Por outro lado, caso as alterações se registem em DI e aVL, verifica-se a presença de um enfarte agudo da parede lateral do miocárdio, algo que se deve a oclusão da artéria circunflexa. Por fim, alterações em DII, DIII e aVF estão associadas à oclusão da artéria coronária direita e, consequentemente, a um enfarte da região posteroinferior do miocárdio. Terapêutica associada Terapêutica faramcológica A ruptura das placas ateroscleróticas despoleta a activação de mecanismos de hemóstase primária e secundária e, como tal, em situações deste tipo, administram-se fármacos anti-plaquetários e hipocoagulantes. Também as estatinas são amplamente utilizadas na terapêutica, na medida em que estas estabilizam as placas de aterosclerose, diminuindo o risco de estas sofrerem ruptura. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 86 Numa fase aguda de um enfarte é comum administrarem-se bloqueadores β, cujo efeito se prende com a inibição da actividade do sistema nervoso simpático sobre os receptores β1. De facto, um aumento do tónus simpático produz efeitos cronotrópicos e inotrópicos positivos, que aumentam as necessidades de oxigénio do coração. Por outro lado, a diminuição da actividade simpática leva a uma redução da frequência cardíaca, o que está associado a um maior tempo de diástole, ou seja, a um maior tempo de perfusão coronária. Um raciocínio similar justifica a administração de inibidores do eixo renina-angiotensina em indivíduos nessa situação. De facto, a angiotensina tem um efeito inotrópico positivo e promove um aumento da pressão arterial. Pelo contrário, o óxido nítrico desempenha uma acção vasodilatadora, assim como (de forma menos significativa) uma acção anti-plaquetária e anti-trombótica, o que justifica a administração de nitratos a indivíduos que se encontrem com um enfarte em fase aguda. Terapêutica invasiva Aquando da oclusão completa da artéria coronária, esta deve ser de novo aberta (reperfusão da artéria). Como tal, procede-se à administração de fármacos activadores do sistema fibrolítico (que promovem a dilatação do coágulo) assim como à introdução de um cateter, que é insuflado na artéria em questão, com o objectivo de promover a sua dilatação. Alternativamente, também pode ser feito um bypass de um outro vaso para a artéria ocluída, ou, em último caso, pode-se introduzir um balão intra- aórtico, que insufla em diástole e desinsufla em sístole, o que permite aumentar a pressão diastólica de perfusão e reduzir a pós-carga, através de um efeito tipo sucção. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 87 Fisiopatologia da insuficiência cardíaca Apesar de não existir uma definição consensual para a insuficiência cardíaca, esta é frequentemente entendida como um estado fisiopatológico caracterizado por uma anomalia da função cardíaca, que causa uma incapacidade de bombear sangue de acordo com as necessidades metabólicas do organismo (insuficiência cardíaca sistólica), ou em que se verifica a presença dessa capacidade, mas o enchimento ventricular apenas ocorre à custa de pressões elevadas (insuficiência cardíaca diastólica). Os dois tipos de insuficiência cardíaca também são passíveis de ser distinguidos através da morfologia ventricular – situações de insuficiência cardíaca sistólica caracterizam-se pela presença de ventrículos dilatados e globosos, enquanto situações de insuficiência cardíaca diastólica estão associadas a um aumento da espessura do ventrículo (isto é compreensível, na medida em que um ventrículo muito espesso é, consequentemente, menos dilatável). A insuficiência cardíaca é frequentemente desenvolvida na sequência de doenças valvulares, hipertensão arterial, cardiopatias, ou doença coronária. Todavia, o “perfil típico de paciente” é diferente nos dois tipos de insuficiência cardíaca – indivíduos do sexo masculino e/ou com antecedentes de enfartes são mais propensos a desenvolver insuficiência cardíaca sistólica, enquanto indivíduos do sexo feminino, com idade avançada, com hipertensão e/ou com diabetes mellitus têm mais tendência a desenvolver insuficiência cardíaca diastólica. Apesar disso, os sintomas e sinais associados à insuficiência cardíaca sistólica são similares àqueles associados à insuficiência cardíaca diastólica. São vários os sintomas apresentados pelos doentes que apresentam insuficiência cardíaca, nomeadamente: 1. Cansaço 2. Dispneia de esforço – A dispneia é definida como sendo um sentido subjectivo de “falta de ar”, sendo que, em situações de insuficiência cardíaca, este fenómeno verifica-se devido a uma maior acumulação de fluido no espaço intersticial pulmonar. 3. Ortopneia – A ortopneia é definida como sendo dispneia sentida quando o doente se encontra em decúbito. Isto deve-se ao facto de, quando os pacientes se encontram deitados, a força gravítica deixar de fazer efeito e mais fluido regressar ao coração. Ora, como o coração se encontra pouco capaz de bombear sangue, acumula-se mais fluido no espaço intersticial pulmonar. Isto explica porque é que muitos doentes com insuficiência cardíaca muitas vezes não conseguem dormir deitados. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 88 Já no que concerne aos sinais da insuficiência cardíaca, verifica-se a presença de turgescência venosa jugular, de edemas nos membros inferiores, de ascite (acumulação de fluido na região abdominal) e de derrames pleurais (acumulação excessiva de fluido na cavidade pleural). Os edemas, a ascite e os derrames pleurais resultam da acumulação de fluido intersticial nas respectivas regiões, por diminuição da função cardíaca. Para além disso, aquando de situações de insuficiência cardíaca, registam-se alterações na auscultação cardíaca (presença do som S3) e pulmonar. Avaliação dos determinantes da função cardíaca No que concerne à avaliação dos determinantes da função cardíaca, uma vez que em situações de insuficiência cardíaca o coração se vê incapaz de bombear sangue que assegure todas as necessidades do organismo, um doente com disfunção sistólica apresenta uma menor contractilidade, assim como um aumento da pré-carga. Contudo, apesar desse aumento da pré-carga, o volume de ejecção é menor, porque o ventrículo tem menor capacidade de ejectar sangue. Assim, os indivíduos com disfunção sistólica apresentam ansas pressão-volume com largura menor. Já um doente com disfunção diastólica mantém a sua contractilidade, contudo, uma vez que o ventrículo se encontra mais rígido, para um mesmo volume, a pressão sentida dentro do ventrículo é superior. Disfunção diastólica Papel da SERCA A disfunçãodiastólica pode se dever a um atraso na recaptação de cálcio para o retículo sarcoplasmático, por via da inactivação da SERCA. Ora, uma vez que a actividade da SERCA depende da presença de ATP, a disfunção diastólica pode estar associada a um processo de isquemia (em situações de isquemia, verifica-se uma diminuição do aporte de ATP). Uma vez que o fosfolamban actua por inibição/desinibição da SERCA, e dado que o próprio fosfolamban se pode encontrar activo ou inactivo (algo que ocorre por via de mecanismos de fosforilação/desfosforilação), actualmente estão a ser estudadas terapias para a insuficiência cardíaca que envolvam a alteração do estado de fosforilação do fosfolamban, como forma de promover a Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 89 activação da SERCA. De referir que estão ainda a decorrer investigações no sentido de promover a entrada de SERCA para o interior dos cardiomiócitos. Aumento da rigidez ventricular: Determinantes e consequências O aumento da rigidez ventricular é determinado por factores intrínsecos aos cardiomiócitos (que incluem a alteração das isoformas da titina, bem como alterações na fosforilação desta proteína), mas também por alterações da matriz extracelular, nomeadamente por um aumento da fibrose da matriz extracelular (a fibrose impede a distensibilidade ventricular). O aumento da rigidez ventricular acarreta um aumento da pressão de enchimento ventricular, o que origina uma maior pressão auricular, e o que, por sua vez, leva a um incremento da pressão nos capilares pulmonares. Isto justifica o extravasamento de fluido para o espaço intersticial pulmonar e consequente dispneia nos indivíduos com insuficiência cardíaca. Num indivíduo normal, o ventrículo enche, sobretudo, aquando da fase de enchimento rápido, no início da diástole (onda E do ecocardiograma). Esse enchimento decresce na fase da diastase, mas volta a aumentar na fase de contracção auricular (onda A do ecocardiograma), de tal modo que a razão entre a amplitude da onda E e a amplitude da onda A é superior a 1 ( ). Todavia, num indivíduo cujo relaxamento ventricular esteja atrasado (disfunção diastólica de grau I), o enchimento regista-se, sobretudo, ao nível da contracção auricular, na medida em que no início da diástole, o ventrículo ainda não se encontra preparado para receber a quantidade de sangue que deveria. Deste modo, em situações de disfunção diastólica de grau I, . Em fases mais avançadas da insuficiência cardíaca diastólica, o enchimento ventricular torna-se muito dificultado, na medida em que, devido à rigidez ventricular, basta um pequeno influxo de sangue para o ventrículo, para que se registe um aumento desproporcionalmente grande da pressão, ao nível desta Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 90 cavidade. Em termos de classificação, caso o doente apresente disfunção diastólica e , então esta é classificada como sendo uma disfunção diastólica de grau II. Uma vez que num indivíduo normal a razão entre a amplitude de E e a amplitude de A também é superior a 1, este padrão de disfunção diastólica é designado por pseudo-normalizado e é muito difícil de distinguir do padrão normal. Por outro lado, caso , o paciente apresenta um padrão restritivo, ou seja, uma disfunção diastólica de grau III. De referir que disfunções diastólicas deste tipo são mais características de indivíduos com disfunção diastólica em fase avançada. Insuficiência cardíaca sistólica A insuficiência cardíaca sistólica resulta da falência da capacidade contráctil do coração e está frequentemente associada à ocorrência prévia de um enfarte do miocárdio, na medida em que a necrose que advém do enfarte leva a uma diminuição da quantidade de células contrácteis ao nível do miocárdio. Aquando de situações de insuficiência cardíaca sistólica, o organismo activa uma série de mecanismos de compensação que, inicialmente, apresentam um efeito benéfico, mas cuja acção crónica leva a efeitos nefastos. Estes mecanismos incluem: 1. Dilatação ventricular - Numa fase inicial, permite um aumento da pré-carga e, consequentemente, um aumento da quantidade de sangue ejectada. 2. Aumento da vasoconstrição periférica – Uma vez que em situações de insuficiência cardíaca sistólica verifica-se uma diminuição do débito cardíaco, de modo a manter a pressão arterial constante, o organismo promove o aumento da vasoconstrição periférica, pois este fenómeno leva a um aumento da resistência vascular periférica (note-se que: 3. Aumento da retenção renal de sódio e água e activação do sistema nervoso simpático: Estes mecanismos promovem a manutenção do débito cardíaco (por aumento do volume plasmático), sendo que a activação do sistema nervoso simpático gera ainda um efeito inotrópico e cronotrópico positivo. O despoletar destes processos deve-se à activação de mecanismos neuro-hormonais que envolvem, entre outros, o sistema nervoso simpático, o sistema renina-angiotensina, o sistema da endotelina e o sistema dos peptídeos natriuréticos. Sistema nervoso simpático O sistema nervoso simpático actua promovendo o inotropismo, o cronotropismo, o relaxamento, a vasoconstrição periférica, a activação do eixo renina-angiotensina e a reabsorção de água. Todavia, a sua acção exacerbada crónica leva ao desenvolvimento de efeitos nefastos, nomeadamente: 1. Aumento do consumo energético 2. Aumento da pós-carga 3. Aumento de um maior risco de arritmias 4. Promoção da remodelagem ventricular Estes efeitos justificam a administração de bloqueadores dos receptores β1 aquando do tratamento de indivíduos com insuficiência cardíaca. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 91 Sistema renina-angiotensina A activação do sistema renina- angiotensina despoleta efeitos similares – verifica-se um aumento do inotropismo, maior vasoconstrição periférica e um aumento da retenção de sódio e água. Contudo, em termos crónicos, a activação deste sistema leva a situações de hipertrofia e fibrose, a remodelagem ventricular e vascular, a maior síntese de aldosterona e a uma maior propensão para o desenvolvimento de edema. Estes efeitos justificam a administração de IECAs (inibidores da enzima de conversão da angiotensina), de bloqueadores dos receptores AT1 (aos quais a angiotensina II se liga, promovendo os efeitos descritos) e de inibidores da renina, aquando da terapêutica da insuficiência sistólica. Por outro lado, o facto de o sistema renina- angiotensina e o sistema nervoso simpático promoverem a retenção de água e sódio motiva o uso de diuréticos no tratamento de indivíduos com insuficiência sistólica. Sistema da endotelina A síntese de endotelina também se encontra promovida, aquando de situações de insuficiência cardíaca. Esta hormona, ao actuar sobre os receptores ETA, promove a hipertrofia e fibrose ventriculares, assim como um aumento da vasoconstrição, do inotropismo, e dos níveis de aldosterona. Todavia, na terapêutica da insuficiência sistólica não são utilizados os antagonistas da endotelina, na medida em que estes apresentam vários efeitos colaterais. Sistema da vasopressina Também o sistema da vasopressina se encontra activo em indivíduos com insuficiência sistólica. A ligação da vasopressina aos receptores V1 promove a vasoconstrição, enquanto a ligação desta hormona aos receptores V2 promove a retenção de água.De referir que, o bloqueio dos receptores V2 já foi estudado como prática terapêutica, contudo, este processo não é utilizado, na medida em que despoleta vários efeitos colaterais. Sistema dos peptídeos natriuréticos Por fim, o sistema dos peptídeos natriuréticos também se encontra activo aquando de situações de insuficiência sistólica. De entre estes peptídeos, destaque para o peptídeo natriurético B (BNP), que é produzido pelas células ventriculares em resposta ao estiramento dos cardiomiócitos. O BNP actua como um mecanismo de contra-regulação aos restantes mecanismos, já referidos – de facto, este Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 92 peptídeo inibe a acção do sistema nervoso simpático e o sistema renina-angiotensina, ao mesmo tempo que promove a diurese, a natriurese e a vasodilatação arterial. Deste modo, actualmente, procura-se desenvolver uma terapêutica para a insuficiência sistólica que passe pela promoção dos efeitos do BNP. Actualmente, também se está a investigar as possibilidades da administração de anti- inflamatórios nos doentes com insuficiência cardíaca, na medida em que esta perturbação acarreta uma grande activação do sistema inflamatório. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 93 Hemodinâmica e hemorreologia O fluxo sanguíneo (Q) é passível de ser definido como a quantidade de sangue que atravessa um determinado local por unidade de tempo (exprime-se por isso em mL/minuto ou L/minuto) e pode ser calculado através do quociente entre a variação de pressões (ΔP) e a resistência (R), ou seja: A pressão corresponde à força exercida pelo sangue por unidade de área da parede de um vaso, podendo ser expressa em mm Hg ou cm H2O. Quando se afirma que a pressão de um vaso é de x mm Hg ou de y cm H2O significa que a força exercida permite elevar uma coluna de mercúrio x mm, ou uma coluna de água y cm, respectivamente. Já a resistência é passível de ser definida como a oposição ao fluxo num vaso. As arteríolas são os vasos mais importantes na génese da resistência à ejecção ventricular esquerda, devido à elevada quantidade de músculo liso presente nas suas paredes (deste modo, as arteríolas são o principal componente da resistência vascular periférica). A constrição arteriolar leva a um aumento da pressão a montante e a uma diminuição da pressão a jusante, enquanto a dilatação arteriolar leva ao efeito oposto. Assim, a constrição arteriolar leva a um aumento da pressão arterial, mas a uma diminuição da pressão dos capilares e veias. A velocidade do fluxo (expressa em unidades de distância por unidades de tempo) varia ao longo dos diferentes tipos de vasos que constituem o sistema cardiovascular, mesmo que o fluxo sanguíneo se mantenha. A velocidade de fluxo varia inversamente com a área de secção transversal agregada. À medida que caminhamos desde a aorta até aos capilares, apesar da área de secção transversal individual (de cada vaso) diminuir, a área de secção transversal agregada (correspondente ao somatório das áreas de secção transversal de todos os vasos do mesmo tipo) aumenta. Isto explica porque é que a velocidade de fluxo é máxima na aorta e mínima nos capilares (que apresentam a maior área de secção transversal agregada). A lentidão do fluxo capilar constitui uma vantagem, na medida em que maximiza o tempo disponível para as trocas transcapilares, permitindo que todas as trocas entre o eritrócito e o tecido ocorram ao longo do primeiro terço do capilar. Caracterização do fluxo O sangue flui normalmente nos vasos de forma ordenada, descrevendo um fluxo laminar. Este fluxo é caracterizado por uma trajectória do sangue paralela à parede do vaso e pelo facto da velocidade do sangue ser maior no centro do vaso, comparativamente à periferia. O fluxo é avaliado com base no número de Reynolds associado – caso o número de Reynolds seja inferior a 2000, o fluxo diz-se laminar, enquanto um número de Reynolds entre 2000 e 3000 diz respeito a um fluxo de transição. Já um número de Reynolds superior a 3000 corresponde a um fluxo turbulento, característico do fluxo de sangue a altas velocidades, ou por vasos estreitos ou estenosados. O fluxo laminar é o mais eficiente sob Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 94 o ponto de vista energético, na medida em que toda a energia é gasta na produção de movimento (no fluxo turbulento, por seu turno, parte da energia é gasta na génese de correntes espirais). De referir que o número de Reynolds é passível de ser calculado pela fórmula: Sendo que, nesta fórmula, corresponde à densidade do fluido, D corresponde ao diâmetro do vaso, v corresponde à velocidade média do fluxo, e corresponde à viscosidade do fluido. Viscosidade e shear stress O sangue é um fluido viscoso, sendo que a viscosidade depende de vários factores, nomeadamente: 1. Hematócrito (razão entre o volume de eritrócitos e o volume de sangue) – Uma situação de anemia, na qual o hematócrito se encontra diminuído, cursa com menor viscosidade. Por outro lado, uma situação de policitemia (em que se verifica um aumento do hematócrito) está associada ao fenómeno inverso. 2. Composição do plasma – A título de exemplo, a viscosidade é proporcional à concentração de fibrinogénio. 3. Diâmetro do vaso – A viscosidade é inversamente proporcional ao diâmetro do vaso. 4. Temperatura – O aumento da temperatura promove a diminuição da viscosidade, enquanto a diminuição da temperatura está associada à precipitação de várias proteínas, o que promove um aumento da viscosidade. 5. Resistência oferecida pelas células – Indivíduos com anemia falciforme apresentam eritrócitos com forma de foice, que oferecem mais resistência, comparativamente aos eritrócitos normais. A viscosidade do sangue leva a que a sua passagem através de um vaso gere shear stress. O shear stress, também designado por força de cisalhamento, corresponde ao atrito que o sangue provoca na parede dos vasos, ou seja, à força que tenta “arrastar” a parede endotelial, à medida que o sangue flui. O shear stress (τ) é passível de ser calculado através da seguinte fórmula: Isto significa que o shear stress é proporcional à viscosidade do sangue ( ) e ao fluxo sanguíneo (Q), e inversamente proporcional à densidade do sangue ( ) e ao cubo do raio do vaso (r). É importante referir que o shear stress promove a libertação de factores vasodilatadores e de factores angiogénicos tais como o PDGF e o TGF-β, assim como a libertação de endotelina 1 e enzima de conversão da angiotensina. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 95 Propriedades elásticas dos vasos O padrão de pressão da circulação atinge valores máximos nas artérias e mínimos nas veias, sendo que a maior queda de pressão ocorre ao nível das arteríolas. Já a aorta, é responsável por transformar a variação abrupta da pressão ventricular esquerda num padrão mais suave e de pressão diastólica mais elevada. A compliance (complacência ou capacitância) de um vaso descreve a forma como as variações de volume se repercutem em alterações na pressão transmural (diferença entre a pressão no lúmen e a pressão externa ao vaso), sendo calculada através da fórmula: Deste modo, vasos com elevada compliance toleramgrandes alterações de volume sem que daí resultem aumentos muito elevados de pressão, enquanto em vasos com baixa compliance acontece o oposto. Desta forma, não é de estranhar que as veias tenham maior compliance que as artérias – os aumentos de volume ao nível das veias repercutem-se, sobretudo, sob a forma de alterações na geometria destes vasos (e não tanto através do aumento de pressão). A compliance é entendida como o inverso da rigidez e, visto que a rigidez aumenta nas artérias mais periféricas, a compliance é menor nas artérias mais periféricas. Isto explica porque é que para um mesmo fluxo, as artérias mais periféricas apresentam um maior pico de pressão máxima (ou seja, uma maior pressão arterial sistólica) e um menor valor de pressão mínima (ou seja um valor menor da pressão diastólica) – as mesmas alterações de volume produzem alterações de pressão mais pronunciadas. Por outro lado, as artérias menos rígidas (como a artéria aorta) são caracterizadas pelo seu elastic recoil. O elastic recoil diz respeito à capacidade de armazenar energia potencial na sua parede durante a sístole, e de a converter em energia cinética durante a diástole (ou seja, o elastic recoil pode ser entendido como a propriedade que induz os vasos a regressarem à sua morfologia inicial). Deste modo, o elastic recoil é responsável pela incisura e pela onda dícrota presentes na curva de pressão das artérias mais proximais. Uma vez que as artérias mais rígidas apresentam menos elastic recoil, as suas curvas de pressão não apresentam incisura nem onda dícrota. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 96 Regulação da pressão arterial A pressão arterial é passível de ser definida como a força exercida pelo fluxo sanguíneo por unidade de área. A avaliação deste parâmetro pode-se fazer por avaliação directa intravascular, sendo necessária a introdução de um transdutor de pressão, ao nível dos vasos. Com isto se depreende que este método é altamente invasivo, apesar de permitir a obtenção dos valores de tensão arterial sistólica e tensão arterial diastólica com elevada precisão. A tensão arterial sistólica é o valor máximo registado de pressão arterial, enquanto a tensão arterial diastólica é o valor mínimo. Assim, na prática clínica quotidiana, como forma de registar a tensão arterial sistólica e a tensão arterial diastólica, recorre-se frequentemente a métodos menos invasivos, mas também menos precisos, tais como a medição da pressão ao nível do pulso. Os dois valores obtidos permitem calcular a tensão arterial média. Esta é passível de ser definida como sendo a média da pressão efectiva que conduz o sangue aos órgãos sistémicos e é estimada através da fórmula: sendo que a pressão de pulso é calculada através da diferença entre a tensão arterial sistólica e a tensão arterial diastólica (ou seja, . A magnitude de um aumento de pressão causada por um aumento de volume arterial depende, não só do valor de aumento do volume, mas também da complacência do espaço arterial. A complacência (compliance) é passível de ser definida como sendo o inverso da rigidez e, como tal, diminui, à medida que os vasos se encontram mais perifericamente. Assim, numa estrutura com complacência nula, aquando de uma pequena alteração de volume, regista-se um aumento infinito de pressão; enquanto numa estrutura com complacência infinita, o volume pode variar indeterminadamente, sem que haja variação na pressão. Ao nível venoso, encontramos uma complacência superior àquela registada ao nível arterial, algo que se deve ao facto de variações de volume ao nível venoso se repercutirem mais numa alteração de morfologia, que propriamente em alterações de pressão. De referir que a complacência diminui progressivamente para os indivíduos mais idosos, uma vez que estes têm, normalmente, maior pressão arterial e devido ao facto de a aterosclerose estar associada a maior rigidez. Mecanismos de regulação a curto prazo Cada órgão, quer se encontre mais próximo ou mais distante do coração, encontra-se sujeito à mesma pressão arterial média, mas controla o fluxo de sangue local, através do aumento ou decréscimo da resistência arteriolar local. Assim, enquanto o coração conseguir manter a pressão arterial média, o Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 97 fluxo sanguíneo num leito capilar não afecta o fluxo sanguíneo noutros capilares. Contudo, a questão não é assim tão simples – não basta ao coração manter a pressão arterial constante, a pressão arterial também se deve encontrar de tal modo elevada, que se torne possível a ocorrência de filtração glomerular nos rins, ou que as pressões elevadas ao nível de tecidos de órgãos como o olho possam ser ultrapassadas. Existem, como tal, dois tipos de vias para regulação da pressão arterial – o mecanismo de regulação arterial a curto prazo ocorre numa escala de segundos ou minutos e é feito através de vias neurais, tendo como alvos o coração, vasos e medula da glândula supra-renal. Já a regulação da pressão arterial a longo prazo ocorre numa escala de horas ou dias, através de vias que têm como alvo os vasos sanguíneos e, sobretudo, os rins, no seu controlo do volume do fluido extracelular (desta forma, na regulação a longo prazo são activados sistemas neuro-humorais, que envolvem a acção do sistema nervoso simpático e do sistema renina-angiotensina). Os sistemas de reflexo neural que regulam a pressão arterial média através de mecanismos de curto prazo operam através de uma série de mecanismos de feedback negativo, que envolvem sempre: 1. Um detector – Um sensor ou receptor quantifica a variável a ser controlada e transduz a mensagem num sinal eléctrico. Os receptores primários envolvidos nos mecanismos de regulação a curto prazo são barorreceptores (receptores de pressão), mais concretamente, receptores de estiramento (ou mecanorreceptores), que detectam a distensão das paredes vasculares. Já os sensores secundários são designados por quimiorreceptores, detectando variações nas pressões sanguíneas de oxigénio e dióxido de carbono, assim como alterações de pH. 2. Vias neurais aferentes – Enviam a mensagem para o sistema nervoso central. 3. Centro coordenador – Um centro de controlo no sistema nervoso central compara o sinal detectado na periferia a um ponto-padrão, gerando um sinal de erro, processando a informação e originando uma mensagem que codifica a resposta adequada. Os centros de controlo envolvidos nos mecanismos de regulação a curto prazo encontram-se localizados, sobretudo, ao nível do bulbo raquidiano, embora haja locais no hipotálamo e córtex cerebral, que também exerçam controlo em mecanismos deste tipo. 4. Vias neurais eferentes – Enviam a mensagem proveniente do centro coordenador para a periferia. 5. Efectores – Elementos que executam a resposta apropriada e alteram a variável a ser controlada. Neste caso, os efectores incluem as células musculares cardíacas e de pacemaker, as células musculares lisas vasculares das artérias e veias, e a medula da glândula supra-renal. Reflexo barorreceptor Os barorreceptores desta via reflexa encontram-se presentes ao nível das artérias aorta e carótida interna, em locais estratégicos de elevada pressão, sendo por isso designados por barorreceptores de alta pressão. Os dois locais mais importantes onde estes receptores se encontram presentes são o seio carotídeo e o arco aórtico. Deste modo, um aumento da pressão arterial média leva ao estiramento das paredes vasculares nesteslocais, o que causa vasodilatação e bradicardia, enquanto uma diminuição da pressão arterial média leva a vasoconstrição e taquicardia. O seio carotídeo e o arco aórtico são estruturas muito complacentes, sendo que a parede arterial do seio carotídeo contém muitas fibras elásticas, mas pouco colagénio e músculo liso (o seio carotídeo é, contudo, mais rígido em indivíduos hipertensos). Os barorreceptores em ambas as estruturas encontram-se em terminais de fibras nervosas sensitivas mielinizadas e não-mielinizadas, que se encontram por entre as camadas elásticas. Esses terminais exprimem uma série de canais de catiões Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 98 não-selectivos (canais TRP), que actuam como transdutores electromecânicos e moduladores da transdução. Desta forma, um aumento da diferença de pressão transmural alarga o vaso e, consequentemente, deforma os barorreceptores. Ora, o estiramento destes receptores produz uma corrente que despolariza o receptor, gerando um potencial de receptor (verifica- se a génese de uma resposta bifásica em resposta ao aumento de pressão, que inclui a presença de um componente dinâmico, ou seja, uma grande despolarização inicial; e a presença de um componente estático, em que a despolarização ocorre de modo mais discreto). Contudo, é necessário ressalvar que o potencial receptor é proporcional ao grau de estiramento, ocorrendo um progressivo recrutamento de receptores, com o aumento da pressão. Também é importante referir que os reflexos barorreceptores são altamente sensíveis a variações de pressão que ocorram quando a pressão arterial se encontra entre os 100 e os 200 mm/Hg. Quando a pressão é superior a 200 mm/Hg é atingido um nível de saturação, enquanto para valores de pressão arterial inferiores a 50 mm/Hg, os barorreceptores apresentam actividade quase inexistente (todavia, o seio carotídeo, embora seja activado mais precocemente, também satura mais precocemente, comparativamente ao arco aórtico). Após uma alteração na pressão arterial ter provocado uma alteração na actividade de um nervo sensitivo, os sinais são enviados para o bolbo raquidiano. A via aferente para o reflexo do seio carotídeo encontra-se ao nível do nervo sinusal, que se junta ao nervo glossofaríngeo (os corpos celulares dos aferentes dos barorreceptores carotídeos encontram-se localizados no gânglio petroso deste nervo). Já as vias aferentes do reflexo do arco aórtico consistem nas fibras sensitivas do ramo depressor do nervo vago, cujos corpos celulares se encontram no gânglio nodoso do vago. A maior parte das fibras aferentes provenientes dos dois barorreceptores de alta-pressão projectam para o núcleo do tracto solitário (o neurotransmissor associado é o glutamato). Subsequentemente, os interneurónios inibitórios que se projectam a partir do núcleo do tracto solitário fazem-no para a área vasomotora no bolbo ventrolateral. Os neurónios da área vasomotora promovem tonicamente a vasoconstrição e, como tal, aquando de aumentos de pressão, os neurónios inibitórios do núcleo do tracto solitário inibem os neurónios da área vasomotora, o que resulta em vasodilatação. Esta via contribui então para a componente vascular do reflexo barorreceptor. Já os interneurónios excitatórios projectam-se a partir do núcleo do tracto solitário para uma área cardio-inibitória, que inclui o núcleo ambíguo e o núcleo motor dorsal do vago (estes últimos contribuem para a componente cardíaca do reflexo). Assim, quando a pressão arterial aumenta, os neurónios excitatórios do núcleo do tracto solitário estimulam a acção dos neurónios da área cardio- Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 99 inibitória. Por fim, existe ainda uma área cardio- aceleratória, para a qual se projectam alguns interneurónios inibitórios. Como o seu nome indica, a estimulação dos neurónios da carga cardio-aceleratória leva a um aumento da frequência e contractilidade cardíaca. As fibras simpáticas eferentes apresentam os seus corpos localizados na coluna intermediolateral da espinal medula. Os seus neurónios pós-ganglionares simpáticos associados controlam uma grande diversidade de funções, sendo que os que controlam a pressão sanguínea deslocam-se com os grandes vasos e inervam artérias musculares, arteríolas e veias. Um incremento na actividade simpática produz vasoconstrição, enquanto um aumento na actividade parassimpática leva a vasodilatação. Todavia, quando o reflexo barorreceptor é despoletado, o efeito da vasodilatação é conseguido, sobretudo através de uma inibição da actividade do sistema nervoso simpático (e não tanto por activação do sistema nervoso parassimpático). Para além dos vasos, estes neurónios pós-ganglionares autónomos actuam ao nível do coração. No que concerne ao sistema nervoso simpático, os outputs provenientes dos gânglios cervical médio, estrelado e torácicos superiores ramificam-se e formam os nervos cardíacos. Estes exercem um efeito cronotrópico positivo (sobretudo os nervos cardíacos do lado direito, devido à maior proximidade ao nó sinusal), dromotrópico positivo e inotrópico positivo (nomeadamente, por acção dos nervos do lado esquerdo). Já no que concerne ao sistema nervoso parassimpático, a sua acção cardíaca é, novamente, secundária - as suas fibras deslocam-se por via do nervo vago e, ao nível do coração, exercem um efeito cronotrópico negativo (sobretudo, por acção do nervo vago direito, pela proximidade com o nó sinusal) e um efeito inibidor da condução ao nível do nó AV (por acção, sobretudo, do nervo vago esquerdo). Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 100 Reflexos cardio-pulmonares Os barorreceptores localizados em sítios de alta pressão não são os únicos receptores de estiramento envolvidos na regulação da circulação por feedback. Os barorreceptores de baixa pressão, que consistem em terminais simples de fibras nervosas mielinizadas, encontram-se localizados em sítios estratégicos de baixa pressão, incluindo a artéria pulmonar, o local de junção das aurículas com as veias correspondentes, as aurículas e os ventrículos. A distensão desses receptores depende, sobretudo, do retorno venoso para o coração. Dessa forma, estes mecanorreceptores detectam a “completude” da circulação, pertencendo a um conjunto maior de sensores de volume que controlam o volume circulante efectivo do sangue. Assim, estes receptores também ajudam no controlo do débito cardíaco e, como tal, indirectamente, da pressão arterial média. Receptores auriculares de baixa pressão do tipo B As vias aferentes para os receptores de baixa pressão auriculares do tipo B são similares às vias para os barorreceptores de alta pressão, sendo que as fibras associadas se deslocam para o vago e se projectam, sobretudo, para o núcleo do tracto solitário (embora também para outros centros cardiovasculares do bolbo). As vias eferentes são também similares. Contudo, enquanto um aumento do estiramento sentido pelos receptores de alta pressão leva a uma diminuição da frequência cardíaca; o aumento do estiramento sentido pelos receptores de baixa pressão eleva a frequência cardíaca (reflexo de Bainbridge). Para além disso, o aumento do estiramento dos receptores de baixa pressão leva a um decréscimo do output simpático vasoconstritor apenas ao nível do rim. Assim, no cômputo geral, um maior estiramento auricular leva a taquicardia e a vasodilatação renal e, consequentemente,regista-se um aumento do fluxo sanguíneo renal e um aumento da produção de urina. O aumento de produção de urina deve-se também a mecanismos não-neurais – as fibras aferentes dos receptores auriculares que se projectam para o núcleo do tracto solitário também sinaptizam aí com neurónios que se projectam para o hipotálamo. Consequentemente, verifica-se a inibição da síntese de hormona anti-diurética (ADH) por parte do hipotálamo (ou seja, a diurese fica promovida). Paralelamente, verifica-se um aumento da produção do peptídeo natriurético auricular, um vasodilatador renal, que actua num sentido de aumentar a Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 101 excreção renal de sódio (que está associada a uma subsequente excreção de água). Assim, aquando da estimulação dos barorreceptores auriculares também a diurese e a natiurese ficam estimuladas. Reflexo de Bainbridge O reflexo de Bainbridge é o nome dado à taquicardia causada por um aumento do retorno venoso. O aumento do volume sanguíneo, por sua vez, leva a um aumento da actividade das fibras B de baixa pressão, durante o enchimento auricular. A via eferente deste reflexo é conduzida pelo sistema nervoso autónomo (simpático e parassimpático) para o nó sinusal, que determina a frequência cardíaca. Assim o despoletar deste reflexo está associado a um aumento na frequência cardíaca e a efeitos insignificantes na contractilidade cardíaca e volume de ejecção. Uma vez que o reflexo de Bainbridge atinge saturação, o aumento da frequência cardíaca é maior, aquando de baixas frequências cardíacas basais (ou seja, quando o mecanismo é activado num contexto de baixas frequências cardíacas). O reflexo de Bainbridge actua como um contrabalanço do reflexo barorreceptor no controlo da frequência cardíaca, num sentido em que o aumento do volume circulante (isto é, o aumento do retorno venoso e a estimulação dos receptores de baixas pressões) aumenta o débito cardíaco. Por outro lado, um menor estiramento auricular tem um efeito muito reduzido na frequência cardíaca, na medida em que não está associado ao despoletar do reflexo de Bainbridge. Receptores de baixa pressão ventriculares Existem também receptores de baixa pressão ao nível ventricular. O estiramento sentido por esses receptores leva a bradicardia e vasodilatação, ou seja, verificam-se respostas similares àquelas associadas ao estiramento dos receptores arteriais de alta pressão. Todavia, os receptores ventriculares não contribuem, de modo significativo, para a homeostasia do output cardíaco. Reflexo quimiorreceptor Apesar de os barorreceptores constituírem os sensores primários para o controlo da pressão sanguínea, também os quimorreceptores periféricos participam neste processo. Contudo, enquanto os inputs provenientes dos barorreceptores exercem um efeito negativo no centro vasomotor do bolbo, causando vasodilatação; os inputs provenientes dos quimiorreceptores periféricos exercem um efeito positivo no centro vasomotor, levando a vasoconstrição, mas também a bradicardia. Quimiorreceptores periféricos Os quimiorreceptores periféricos localizam-se ao nível do corpo aórtico e corpo carotídeo. Uma queda do oxigénio arterial, um aumento de dióxido de carbono, ou um decréscimo do pH estimulam a actividade dos neurónios aferentes associados aos quimiorreceptores periféricos. As fibras aferentes são transportadas pelos nervos vago e glossofaríngeo até aos centros de controlo, ao nível do bolbo. Subsequentemente, a esse nível é induzida uma resposta de vasoconstrição e bradicardia. Apesar disso, pacientes com hipoxia (patologia caracterizada por uma menor concentração de oxigénio no sangue), Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 102 não apresentam bradicardia, mas sim taquicardia. Este aparente paradoxo deve-se ao facto de, numa situação de hipoxia, a elevada pressão de dióxido de carbono estimular os quimiorreceptores centrais que, independentemente dos periféricos, estimulam a ventilação pulmonar. A ventilação pulmonar, para além de levar a uma estimulação dos receptores de estiramento pulmonares, leva à diminuição da pressão de dióxido de carbono sistémica. Isto inibe o centro cardio-inibitório e, como tal, leva a que a resposta fisiológica para a hipoxia seja a taquicardia. Quimiorreceptores centrais Os quimiorreceptores centrais encontram-se presentes ao nível do bulbo raquidiano, registando, sobretudo, baixos níveis de pH ao nível do encéfalo, sendo normalmente estimulados por um aumento do dióxido de carbono arterial. Subsequentemente, a área vasomotora é desinibida, o que se traduz num aumento do output simpático e em vasoconstrição. Mecanismos de regulação local e mecanismos de regulação central A regulação da pressão arterial pode compreender mecanismos locais ou centrais. Os fenómenos de regulação local envolvem uma regulação metabólica local, enquanto um fenómeno de regulação da resistência vascular periférica central se caracteriza por um predomínio da acção simpática (estando associada, por exemplo, à presença de barorreceptores de alta pressão). A predominância de um dado tipo de regulação de um dado território vascular depende do órgão em si - enquanto ao nível do encéfalo e coração predominam os fenómenos locais, ao nível da pele e territórios esplâncnicos ocorre predominância dos fenómenos centrais. Já o tipo de regulação predominante no músculo é mais variável. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 103 Regulação da função vascular Noções de regulação local Os vasos são capazes de manter o seu fluxo constante, através da regulação da resistência que oferecem à passagem de sangue (resistência vascular periférica), nomeadamente através de alterações no seu diâmetro (a vasoconstrição, associada à diminuição do diâmetro, acarreta maior resistência vascular periférica, enquanto a vasodilatação, pelo contrário, leva à diminuição). Este mecanismo de auto-regulação encontra-se presente ao nível do rim, encéfalo, coração, músculo esquelético, fígado e mesentério, variando consoante o tipo de tecido, o tipo de vasos envolvidos e com o tempo. Existem vários mecanismos de auto-regulação. Os mecanismos miogénicos prevalecem em artérias musculares e arteríolas, sendo que aquando de um aumento brusco da pressão arterial, ocorre a contracção de muitos vasos, como forma de impedir que esse aumento súbito seja transmitido aos outros órgãos. Esta contracção ocorre, na sequência do estiramento ao qual são submetidas as células musculares lisas dos vasos, devido à activação subjacente de canais sensíveis ao estiramento. Já um decréscimo na pressão arterial leva ao desenvolvimento de vasodilatação. Por outro lado, existem mecanismos metabólicos de auto-regulação, relacionados com o modo como alterações do ambiente metabólico em que as células se encontram influenciam o relaxamento ou a contracção das células musculares lisas vasculares. A título de exemplo, o decréscimo na concentração de oxigénio, o aumento da concentração de dióxido de carbono, e a diminuição do pH promovem o relaxamento das células vasculares musculares lisas causando, deste modo, vasodilatação. Por outro lado, em resposta à actividade, as células excitáveis expulsam potássio para o meio extracelular, o que também causa vasodilatação. Por último, os mecanismos endoteliais estão relacionados com as substâncias vasoactivas libertadas pelas células endoteliais, tais como o óxido nítrico (cuja libertação pode ser promovida por um aumentodo shear stress), um potente vasodilatador. Convém ter a noção de que a regulação local tem capacidade de influenciar, não só o fluxo sanguíneo que chega a determinado órgão, mas também a pressão arterial sistémica, na medida em que a acção conjunta e concertada de vasos de menores dimensões repercute-se num mesmo sentido na pressão arterial sistémica (a título de exemplo, se grande parte dos vasos de menores dimensões dilatarem, a pressão arterial sistémica diminui). Mecanismo de remodelagem O mecanismo de remodelagem consiste na capacidade que os vasos apresentam de responder de forma dinâmica a estímulos crónicos (por exemplo, a angiotensina está associada a uma maior síntese de factores tróficos). Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 104 Existem vários tipos de remodelagem, sendo que cada patologia está associada a um tipo específico de remodelagem. Contudo, para classificar genericamente a remodelagem verificada, usam-se duas pedidas – o diâmetro do lúmen do vaso e a espessura do vaso (ou seja, a massa da parede do vaso). Desta forma, quando se verifica um aumento do diâmetro luminal, presencia-se uma remodelagem para fora, enquanto uma diminuição do diâmetro luminal está associada a uma remodelagem para dentro. Por outro lado, quando se verifica um aumento da espessura do vaso, a remodelagem diz-se hipertrófica, enquanto uma diminuição da espessura corresponde a uma remodelagem hipotrófica. Os mecanismos subjacentes à remodelagem são os mesmos que presidem aos mecanismos de curto prazo (por exemplo, mecanismos de vasoconstrição e vasodilatação) e, de facto, a remodelagem é inicialmente reversível (tornando-se irreversível com o passar do tempo). O facto de haver uma coincidência de factores e fenómenos leva a pensar que a remodelagem apenas difere dos mecanismos a curto prazo, pelo facto de a exposição aos factores ser mais prolongada. Vasoconstrição Acção do sistema nervoso simpático O sistema nervoso simpático desempenha uma acção vasoconstritora, através da libertação de duas catecolaminas - a adrenalina e a noradrenalina (apesar de a dopamina também ser uma catecolamina, esta tem pouca relação directa com a vasoconstrição). A adrenalina é produzida ao nível da medula da glândula supra-renal, nomeadamente ao nível das suas células cromafins, sendo também o neurotransmissor utilizado, aquando da sinapse entre os neurónios pré-sináptico e pós-sináptico do sistema nervoso simpático. Já a noradrenalina é usada como neurotransmissor libertado a partir dos terminais dos neurónios pós-sinápticos e, como tal, os seus efeitos no sistema cardiovascular são maiores. De referir que a síntese destas duas catecolaminas requer a presença da enzima hidroxilase da tirosina. Existem duas grandes classes de receptores adrenérgicos – os receptores α (divisíveis em duas classes – α1 e α2, sendo que cada uma destas classes apresenta várias subclasses) e os receptores β (que também apresentam vários subtipos). Os receptores α1 existem em grande quantidade ao nível das células musculares lisas dos vasos, encontrando-se ligados à proteína Gq e sendo alvos de ligação de catecolaminas. A ligação de catecolaminas aos receptores α1 leva à activação da fosfolipase C, algo que está associado a um aumento dos níveis de IP3 e, como tal, à abertura dos canais de cálcio do retículo sarcoplasmático dessas células (o que está associado a contracção muscular). Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 105 Por seu turno, os receptores α2 estão ligados à proteína Gi e a ligação das catecolaminas a estes receptores está associada a uma inibição da adenilciclase e subsequente diminuição da síntese de cAMP, algo que está associado quer a mecanismos vasodilatadores, quer a mecanismos vasoconstritores. Por fim, os receptores β encontram-se ligados à proteína Gs, existindo duas grandes classes deste tipo de receptores envolvidas em mecanismos de vasodilatação/vasoconstriç ão. A ligação de adrenalina aos receptores β1 está associada a um efeito inotrópico positivo, cronotrópico positivo, dromotrópico positivo e batmotrópico positivo, ao nível cardíaco, ou seja, a um aumento da contractilidade e da taxa de batimentos cardíacos. Isto deve-se ao facto da activação da proteína Gs levar a um aumento dos níveis de cAMP, que por sua vez, fosforila a PKA. Esta última intervém na fosforilação (e consequente activação) de canais de cálcio de membrana, o que está associado a uma maior entrada de cálcio para o meio intracelular e, consequentes efeitos, já referidos. Por fim, a adrenalina também se liga aos receptores β2, que se encontram confinados aos vasos sanguíneos do músculo esquelético, coração, fígado e medula da supra renal, promovendo a vasodilatação (daí que a adrenalina não possa ser considerada um vasodilatador sistémico), bem como a broncodilatação (isto faz com que, no tratamento da asma, possam ser utilizados agonistas dos receptores β2). Dessensibilização e down-regulation A acção das catecolaminas ao nível da vasoconstrição é passível de ser regulada por dessensibilização e por down-regulation. De facto, a exposição muito prolongada dos receptores β a um determinado agonista, está associada a uma dessensibilização a esse sinal (verifica-se que, após um momento inicial de ampla resposta, esta diminui para valores quase basais, com a exposição continuada ao agonista). Este efeito é passível de se obtido através da fosforilação dos receptores β (por via da cínase de receptores dos agonistas β), o que promove a ligação da β-arrestina aos resíduos fosforilados e consequente desligamento da proteína Gs do seu receptor. O mecanismo de down-regulation (diminuição da quantidade de receptores presentes ao nível da membrana, aquando de um excesso de sinalização) é igualmente importante para este mecanismo e a sua compreensão (bem como do mecanismo inverso) é fundamental em termos clínicos – quando se administram β-bloqueadores, fármacos que bloqueiam os receptores β (com o objectivo, por exemplo, de reduzir a pressão arterial), a membrana das células musculares vasculares passa a exprimir uma Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 106 maior quantidade destes receptores. Ora, quando se suprime a administração de β- bloqueadores, a maior presença de receptores β, leva a que menores variações da acção do sistema nervoso simpático levem a aumentos mais marcados da tensão arterial, que podem resultar, inclusive, no coma e morte. Sistema renina-angiotensina A angiotensina é um dos vasoconstritores mais poderosos que existe, sendo que a renina é a enzima que participa no passo limitante da síntese deste composto. De facto, o angiotensinogénio é um composto que no fígado é convertido em angiotensina I, por via da renina, uma enzima segregada pelas células granulares justaglomerulares. A angiotensina I é um peptídeo inactivo com 10 aminoácidos e, só quando a enzima de conversão da angiotensina actua, clivando os dois aminoácidos de uma das extremidades, se forma angiotensina II, um peptídeo de oito aminoácidos que constitui a forma activa da angiotensina. A angiotensina II induz a produção de aldosterona ao nível do córtex da glândula supra-renal, que por sua vez, aumenta a retenção de sódio ao nível renal. A retenção de sódio está associada a uma reabsorção de água e, como tal, a um aumento do volume sanguíneo,o que leva a um aumento da pressão arterial. A regulação da disponibilidade da renina é operada por via do sistema nervoso simpático (através dos receptores β1), da própria angiotensina (através Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 107 de mecanismos de feedback negativo) e do sistema de profusão. Assim sendo, por exemplo, aquando de uma hemorragia, verifica-se um aumento da pressão arterial, por aumento da disponibilidade de renina. Para além de catabolisar a síntese de angiotensina II, a enzima de conversão da angiotensina também degrada a bradicinina, um importante vasodilatador e daí que esta enzima seja um bom alvo para a acção de fármacos com o objectivo de reduzir a pressão arterial (nomeadamente as IECA’s). Existem dois receptores para a angiotensina, o AT1 e o AT2. O receptor AT1 encontra-se, sobretudo, ligado à proteína GQ, mas também às proteínas GI e GS, actuando de modo análogo aos receptores do sistema nervoso simpático. Já o receptor AT2 actua de modo quase oposto ao do AT1 (estimulando todas as vias antagónicas às activadas pelo AT1) e poderá ser um bom alvo terapêutico no futuro, no combate à hipertensão. A angiotensina, através da sua ligação ao AT1, pode desenvolver um efeito a longo prazo e muito profuso. Quando o receptor AT1 se liga à fosfolipase D, ocorre um prolongamento da acção do diacilglicerol e são activadas vias mitogénicas (por exemplo, é activada a síntese de factores de crescimento e de proteínas da matriz extracelular). Por outro lado, a ligação do receptor AT1 à fosfolipase A2 promove a produção de eicosanóides, que estão associados aos efeitos inflamatórios da angiotensina II. Contudo, é necessário referir que o receptor AT1 do sistema renina-angiotensina é regulado por down-regulation, analogamente ao que ocorre no sistema nervoso simpático, todavia, o mesmo não se verifica para o receptor AT2. Em termos clínicos é importante referir que o sistema renina- angiotensina se encontra relacionado com a aterosclerose, pois a ligação da angiotensina ao receptor AT1 promove um amento da permeabilidade vascular, uma maior proliferação celular e maior actividade oxidativa por parte dos ROS. Por oposição, a bradicinina desempenha um papel anti- aterogénico. Endotelina A endotelina é o vasoconstritor endógeno mais poderoso, actuando, contudo, a nível local, contrariamente ao que ocorre com os dois sistemas descritos anteriormente. Como o seu nome indica, a endotelina é sintetizada no endotélio, actuando nos receptores ETA e ETB, por difusão parácrina, sendo rapidamente eliminada por via pulmonar e renal (o seu período de semi-vida é muito curto, sendo de apenas cinco minutos). Existem três tipos de endotelina – ET-1, ET-2 e ET-3, tendo todas elas funções similares e sendo todas constituídas por 21 aminoácidos. Paralelamente, todos os tipos de endotelina são sintetizados da mesma forma – a pré-pró-endotelina (um precursor inactivo) sofre clivagem por acção de uma endopeptidase específica e origina a pró-endotelina (tal como ocorre nas endotelinas, existem três classes de pró-endotelinas – pró-endotelina-1, pró-endotelina-2 e pró-endotelina-3) e, como expectável, cada classe de pró-endotelina origina a respectiva endotelina, por via da enzima de conversão da endotelina. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 108 A produção das diferentes isoformas de endotelinas ocorre em locais diferentes do organismo – a ET-1 é sintetizada ao nível das células endoteliais, do rim e SNC, a ET-2 é produzida ao nível do rim e intestino, enquanto a ET-3 é produzida ao nível dos neurónios, intestino e glândula supra-renal. De referir que a produção deste vasoconstritor pode ser induzida por várias hormonas, nomeadamente, a vasopressina, a noradrenalina e a angiotensina II, bem como por vários factores físico-químicos, nomeadamente a hipoxia, o shear stress e a osmolaridade. É importante referir que, quando administrada por via endovenosa, a endotelina tem um duplo efeito – a sua acção directa no músculo induz a vasoconstrição, enquanto a sua acção no endotélio está associada à vasodilatação. Vasopressina A vasopressina (ou ADH, hormona anti-diurética) é um potente vasoconstritor sintetizado no hipotálamo e libertado na hipófise. Esta hormona desempenha um papel pouco importante ao nível do organismo humano, na medida em que os receptores aos quais se liga, de modo a promover a vasoconstrição (receptores V1), existem no organismo em pequena quantidade. Já os receptores V2 existem em maior abundância, sendo os receptores aos quais a vasopressina se liga, para actuar como anti- diurética, ou seja, para promover a retenção de sódio e água (o que lhe permite responder a uma situação de perda de volume sanguíneo, tal como uma hemorragia). Outros vasoconstritores Existem outros vasoconstritores no nosso organismo, nomeadamente o tromboxano A2, as prostaglandinas D2 e E2, os aniões superóxido e a urotensina. Este último elemento encontra-se presente ao nível do coração, artérias e rim e apresenta um papel de vasoconstritor e vasodilatador (algo que depende do epitélio), variando em função da espécie e do leito vascular. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 109 Vasodilatação Acetilcolina A acetilcolina é libertada pelos neurónios pós- ganglionares parassimpáticos e, como tal, tem normalmente um efeito vasodilatador. A ligação da acetilcolina aos receptores muscarínicos M2 presentes no endotélio (que se encontram acoplados à proteína Gi) promove a libertação de óxido nítrico por parte das células endoteliais. O óxido nítrico libertado actua nas células musculares lisas vasculares, despoletando o relaxamento destas e, como tal, uma resposta vasodilatadora. De referir que a acetilcolina também se pode ligar a receptores M2 presentes no coração, onde apresenta um efeito inotrópico negativo e cronotrópico negativo. Contudo, a actuação directa da acetilcolina nas células musculares lisas, promove uma resposta vasoconstritora, através dos receptores muscarínicos M1 e M3. Esses receptores encontram-se acoplados a proteína Gq e a sua activação leva à génese de IP3 e diacilglicerol, o que, por sua vez, cursa com um maior influxo de cálcio para o sarcoplasma e, subsequentemente, com uma resposta vasoconstritora. Em vasos ateroscleróticos, uma vez que o endotélio se encontra lesado, a acetilcolina despoleta frequentemente um efeito vasoconstritor, precisamente devido ao facto de se ligar directamente a receptores das células musculares lisas vasculares. Bradicinina A bradicinina actua de modo análogo à acetilcolina, na medida em que o seu efeito vasodilatador é potenciado pela sua ligação aos receptores B2 do endotélio. Subsequentemente, as células endoteliais produzem óxido nítrico e prostaglandinas que, por sua vez, actuam nas células musculares lisas vasculares, promovendo o seu relaxamento e, como tal, uma resposta vasodilatadora. A bradicinina é produzida a partir do cininogénio, sendo essa reacção catalisada pela calicreína (uma protease que também participa na via intrínseca da coagulação). Como já foi referido, a bradicinina está sujeita a degradação por parte da enzima de conversão da angiotensina. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 110 Óxido nítrico O óxido nítrico (NO) é um vasodilatadorque é sintetizado ao nível do endotélio, mas que actua de forma parácrina ao nível das células musculares lisas vasculares, promovendo o seu relaxamento. A ligação de um agente vasodilatador (como sendo a acetilcolina, ou a bradicinina) a um receptor endotelial promove a activação da fosfolipase C, cuja actividade leva à formação de IP3 e diacilglicerol. O IP3 promove a saída de cálcio do retículo endoplasmático, sendo o cálcio necessário para activar a síntase do óxido nítrico. Esta enzima, como o seu nome indica, promove a síntese de óxido nítrico que, uma vez formado, difunde-se de modo parácrino para as células musculares lisas vasculares próximas, onde activa a guanil cíclase. A activação desta enzima promove a formação de cGMP a partir de GTP, sendo que o cGMP promove o relaxamento do músculo liso. De referir que existem três classes de síntase do óxido nítrico: 1. Síntase do óxido nítrico do tipo I (neuronal) – A sua activação é promovida pela ligação do glutamato às estruturas pós-sinápticas nas células piramidais do hipocampo 2. Síntase do óxido nítrico do tipo II (indutiva) – Esta isoforma é activada por excreções de resposta inflamatória e é a única que não necessita de cálcio para a sua activação. 3. Síntase do óxido nítrico do tipo III (endotelial) – Única isoforma presente no endotélio De entre os vasodilatadores que promovem a síntese de óxido nítrico ao nível do endotélio, destaque para a bradicinina, histamina, acetilcolina, substância P, ADP, ATP, serotonina e trombina. Para além disso, a produção de óxido nítrico encontra-se favorecida em situações de elevado fluxo sanguíneo ou shear stress. O óxido nítrico pode ser inactivado pela presença de radicais livres, que o convertem em peroxinitrito, uma espécie reactiva. Por outro lado, a dimetilarginina é um inibidor endógeno da síntase de óxido nítrico, enquanto a L-arginina pode ser administrada exogenamente, com o intuito de inibir a síntese de óxido nítrico. Para além da vasodilatação, o óxido nítrico promove um efeito inotrópico negativo, impede a adesão e a agregação plaquetária, inibe a secreção de renina e endotelina-1, inibe a proliferação de células musculares lisas e de células miocárdicas e promove uma diminuição da permeabilidade vascular, da expressão de proteínas aterogénicas, e da oxidação das LDL. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 111 Prostaciclina A activação da fosfolipase C endotelial por parte de um agente vasodilatador (como a bradicinina, o shear stress, a trombina, a serotonina, o PDGF, e a IL-1), para além de levar à génese de IP3, leva à síntese de diacilglicerol. Por sua vez, o diacilglicerol activa a PKC, uma enzima que promove a activação da fosfolipase A2. Esta última enzima está envolvida na síntese de ácido araquidónico a partir de fosfolipídeos, podendo o ácido araquidónico gerado seguir uma de duas vias alternativas: 1. Via da lipoxigénase: Promove a formação de leucotrienos, compostos que promovem a contracção do músculo liso, nomeadamente ao nível dos brônquios (motivo pelo qual os leucotrienos se encontram envolvidos na fisiopatologia da asma). 2. Via da ciclo-oxigénase: Ao seguir esta via, o ácido araquidónico pode originar prostaciclina (também designada por prostaglandina I2, ou PGI2) ou tromboxano A2, sintetizados, respectivamente, pela síntase da prostaciclina e pela síntase do tromboxano. A síntese de prostaciclina prevalece a nível endotelial, enquanto a génese de tromboxano A2 (um vasoconstritor e pró-agregante plaquetário) predomina nas plaquetas. Apesar de ser produzida nas células endoteliais, a prostaciclina actua de modo parácrino nas células musculares lisas vasculares, através da activação da adenil cíclase. Ora, a adenil cíclase, por sua vez, promove um aumento dos níveis de cAMP, estando o cAMP envolvido no relaxamento das células musculares lisas. Deste modo, contrariamente ao tromboxano A2, a prostaciclina apresenta um efeito vasodilatador e anti-agregante. Para além disso, a prostaciclina inibe a proliferação das células musculares lisas e promove a fibrinólise (destruição da rede de fibrina, formada durante a coagulação). A síntese de prostaciclina é inibida pelos radicais livres de oxigénio e por anti-inflamatórios não-esteróides (AINEs). Os AINEs inibem a ciclo-oxigénase (enzima que converte o ácido araquidónico no precursor comum da prostaciclina e tromboxano A2), podendo fazê-lo de forma reversível ou irreversível. A título de exemplo, a aspirina é um inibidor irreversível das duas isoformas da ciclo-oxigénase. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 112 Factor hiperpolarizante derivado do endotélio O factor hiperpolarizante derivado do endotélio é um agente vasodilatador cuja identidade ainda permanece desconhecida. Este factor promove uma resposta vasodilatadora através de mecanismos independentes do óxido nítrico e prostaciclina, nomeadamente, nos territórios mesentérico, carotídeo, coronário, e renal. A síntese deste factor ocorre ao nível do endotélio, sendo promovida pela acetilcolina e pela bradicinina (por activação de uma enzima da superfamília do citocromo P450). Subsequentemente, o factor derivado do endotélio produzido actua de modo parácrino nas células musculares lisas vasculares, onde promove a abertura dos canais de potássio e, consequentemente, a hiperpolarização celular. Shear stress O shear stress (força de cisalhamento) corresponde à força de fricção gerada quando uma coluna de sangue passa ao longo de uma superfície endotelial (podendo ser avaliado através da tendência para o fluxo sanguíneo “arrastar consigo” as células endoteliais). A magnitude do shear stress é directamente proporcional à viscosidade do sangue e à velocidade do sangue, mas inversamente proporcional ao raio do vaso. No que concerne aos efeitos do shear stress, estes envolvem alterações citosqueléticas, a estimulação de canais iónicos sensíveis ao estiramento (nomeadamente canais de cálcio e canais de potássio) e a activação da fosfolipase C (o que promove a síntese de prostaciclina e óxido nítrico). Assim, aquando de uma situação de shear stress, ocorre vasodilatação e, subsequentemente, verifica-se um aumento do raio do vaso sanguíneo em causa. Ora, uma vez que o shear stress é inversamente proporcional ao raio do vaso, este aumento do raio permite diminuir o shear stress registado. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 113 Circulações especiais Circulação cerebral Embora a massa do encéfalo corresponda a apenas 2% da massa corporal total, o encéfalo recebe cerca de 15% do débito cardíaco no indivíduo em repouso. Mesmo assim, o encéfalo é o órgão menos tolerante à isquemia, de tal modo que a interrupção do fluxo sanguíneo para o encéfalo (mesmo que num período de segundos) provoca a perda de consciência, sendo que uma situação de isquemia que se prolongue por alguns minutos acarreta, muito provavelmente, danos celulares irreversíveis. O sangue chega ao encéfalo através das artérias carótidas internas e das artérias vertebrais (que confluem para formar a artéria basilar que, por sua vez, se divide para formar as duas artérias cerebrais posteriores). As artérias cerebrais posteriores, juntamente com as artérias carótidas internas, participam numa grande anastomose, a qual é designada por círculode Willis. Contudo, existem ainda várias anastomoses na superfície do encéfalo, sendo estas alimentadas por pequenos ramos de distribuição. Essas anastomoses permitem a existência de mecanismos de circulação colateral, algo que se revela fundamental caso se verifique a oclusão de uma artéria de distribuição (ou de um dos seus ramos). Todavia, caso se verifique um grande impedimento do fluxo através de uma artéria carótida interna torna-se quase inevitável a ocorrência subsequente de um fenómeno isquémico no hemisfério ipsilateral. Barreira hemato-encefálica A barreira hemato-encefálica é característica dos capilares encefálicos, prevenindo os solutos presentes ao nível do lúmen dos capilares de ter acesso directo ao fluido extracelular do encéfalo. Os solutos polares e hidrofílicos difundem-se muito lentamente, enquanto a capacidade das proteínas atravessarem a barreira hemato-encefálica é muito limitada (estas restrições explicam porque é que muitos fármacos que actuam noutros órgãos ou leitos vasculares não surtem efeito no encéfalo). Já os gases e a água difundem-se rapidamente ao longo da barreira hemato-encefálica, enquanto a glicose, único substrato energético dos neurónios, atravessa a barreira hemato-encefálica por difusão facilitada. De referir que os órgãos circunventriculares correspondem a regiões encefálicas especializadas onde os capilares da barreira hemato-encefálica são fenestrados, apresentando muita permeabilidade. Regulação do fluxo sanguíneo para o encéfalo O crânio é rígido e o seu volume total é fixo, de tal modo que situações de vasodilatação, ou de aumentos no volume vascular numa determinada região, deverão ser compensadas por um decréscimo do volume do fluido cefalo-raquidiano ou do volume vascular noutras regiões encefálicas. Caso contrário, um aumento do volume intra-craniano levaria a um aumento de pressão intra-craniana, o que poderia despoletar um quadro de disfunção neurológica. Deste modo, o volume vascular deverá ser estritamente regulado, algo que é possível, através de mecanismos de controlo neural, metabólico e miogénico. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 114 O mecanismo de controlo neural não é muito importante, embora o sistema nervoso simpático promova a vasoconstrição, enquanto o sistema nervoso parassimpático promova (de forma modesta) uma resposta vasodilatadora. De referir que perturbações locais da pressão ou do ambiente químico podem estimular a libertação de vasodilatadores, por parte dos terminais nervosos sensitivos (reflexo axonal). Os mecanismos metabólicos são os mais importantes no controlo da função vascular do encéfalo. De facto, aquando de aumentos na actividade (e, como tal, do metabolismo) neuronal, verifica-se um aumento na hidrólise de ATP com produção resultante de adenosina, um potente vasodilatador. Por outro lado, aumentos da actividade neuronal cursam com hipóxia, hipercápnia e acidose local, o que despoleta uma resposta vasodilatadora e subsequente aumento do fluxo sanguíneo para o encéfalo. Por fim, os vasos de resistência do cérebro respondem a alterações na sua pressão transmural, sendo que aumentos da pressão transmural cursam com vasoconstrição, enquanto a diminuição está associada a vasodilatação (mecanismo de controlo miogénico). Num sentido de regular o fluxo vascular, verifica-se ainda uma resposta colaborativa local entre neurónios, astrócitos e vasos cerebrais, aquando de um aumento da actividade neuronal. De facto, parte do glutamato e do GABA libertados durante uma sinapse difundem-se para fora da fenda sináptica, actuando em receptores presentes nos pés terminais dos astrócitos. Estes interactuam com os capilares sanguíneos, gerando ondas de cálcio que promovem a libertação de vasodilatadores poderosos, tais como o óxido nítrico. Circulação coronária O coração recebe cerca de 5% do débito cardíaco em repouso, apesar constituir menos de 0,5% da massa total corporal. A irrigação coronária para o miocárdio deriva das artérias coronárias direita e esquerda (que se divide perto da sua origem na artéria circunflexa esquerda e na artéria descendente anterior esquerda): 1. Artéria coronária direita: Irriga o ventrículo direito e a aurícula direita 2. Artéria circunflexa esquerda: Irriga o ventrículo esquerdo e a aurícula esquerda 3. Artéria descendente anterior esquerda (artéria interventricular anterior): Irriga o septo interventricular e porções ventriculares adjacentes Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 115 Estas artérias ramificam-se ao longo do coração, originando uma densa rede capilar. Por outro lado, o pequeno diâmetro das fibras musculares cardíacas favorece a difusão de oxigénio para estas células, que têm necessidades metabólicas muito elevadas. De referir que se verifica a presença de muitos vasos colaterais ao nível das redes coronárias arterial e venosa, com o objectivo de assegurar um correcto fluxo sanguíneo, aquando da oclusão de um vaso primário. Perfusão coronária e ciclo cardíaco Apesar de o coração ser a fonte da sua própria pressão de perfusão, a contracção do miocárdio comprime a sua própria irrigação. Deste modo, o perfil do fluxo sanguíneo através das artérias coronárias depende da pressão de perfusão na aorta e da compressão extra-vascular que resulta da contracção ventricular (nomeadamente da contracção do ventrículo esquerdo). De facto, o fluxo sanguíneo na artéria coronária esquerda pode reverter transitoriamente no início da sístole, devido à força de compressão gerada pelo ventrículo esquerdo em contracção isovolumétrica. Contudo, à medida que a pressão aórtica aumenta (numa fase mais tardia da sístole), o fluxo coronário aumenta, embora apenas atinja os seus valores máximos durante o início da diástole (quando o ventrículo esquerdo relaxado já não comprime os vasos coronários e a pressão aórtica se mantém elevada). Deste modo, apesar do fluxo sanguíneo na artéria coronária esquerda apresentar um perfil sisto-diastólico, cerca de 80% do fluxo coronário total ocorre em diástole. Por oposição, o fluxo sanguíneo na artéria coronária direita ocorre, sobretudo, em sístole, não se verificando reversão do sentido do fluxo sanguíneo em protossístole. Isto acontece devido ao facto do ventrículo direito desenvolver uma menor tensão de parede e, como tal, não exercer uma força de compressão tão grande nos vasos coronários. Uma vez que, um aumento da frequência cardíaca se repercute, sobretudo, através da diminuição do tempo de diástole, a perfusão coronária esquerda encontra-se diminuída numa situação de taquicardia. Num coração saudável, isto não constitui grande problema, na medida em que os vasos coronários têm Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 116 capacidade de dilatar adequadamente. Todavia, aquando de um quadro de doença coronária que restrinja o fluxo sanguíneo, um aumento da frequência cardíaca pode pôr em causa a irrigação cardíaca. Regulação do fluxo sanguíneo para o coração O coração extrai entre 70% e 80% do oxigénio presente no sangue arterial e, deste modo, aquando de um aumento das necessidades de oxigénio, o coração aumenta preferencialmente a captação de sangue, em detrimento de um aumento da quantidade de oxigénio que extrai do sangue. Uma vez que a pressão sanguínea varia normalmente entre limites estritos, a vasodilatação é a única forma de aumentar substancialmente o fluxo coronário. A vasodilatação é conseguida, sobretudo, através demecanismos metabólicos locais, envolvendo, nomeadamente, a libertação de adenosina. O sistema nervoso autónomo tem também a capacidade de regular o fluxo coronário, embora de forma menos decisiva. O sistema nervoso simpático promove directamente a ocorrência de vasoconstrição, embora essa resposta seja, por vezes, “mascarada”. De facto, os neurónios pós-ganglionares simpáticos também actuam nos receptores adrenérgicos β1 do coração, promovendo um efeito cronotrópico positivo e inotrópico positivo. Ora, esse aumento da actividade cardíaca promove um aumento das necessidades metabólicas do coração e, como tal, através de mecanismos metabólicos, é despoletada uma resposta vasodilatadora compensatória. Por outro lado, a activação do sistema nervoso parassimpático promove uma resposta vasodilatadora moderada, sobretudo nas vizinhanças do nó sinusal. Deste modo, o efeito do sistema parassimpático é preferencialmente sentido ao nível da frequência cardíaca. Fenómeno de “roubo coronário” Conhecer o modo como a irrigação coronária se processa apresenta importância capital em termos clínicos. A título de exemplo, os fármacos vasodilatadores, embora administrados no sentido de aumentar o fluxo sanguíneo para o miocárdio, podem acabar por comprometer o fluxo coronário. De facto, numa situação de isquemia por estenose dos vasos coronários, a administração de um vasodilatador apenas aumenta o diâmetro dos vasos sanguíneos não-estenosados (ou seja, dos vasos que irrigam regiões não-isquémicas). Isto deve-se ao facto dos vasos a jusante da região estenosada já se encontrarem maximamente dilatados, não conseguindo dilatar mais. Assim, ao promover a dilatação dos vasos não-estenosados, os vasodilatadores levam a que esses vasos sejam ainda mais perfundidos e a que os vasos estenosados (e respectivos territórios de irrigação) se tornem ainda menos perfundidos (fenómeno de “roubo coronário”). Circulação do músculo esquelético O fluxo sanguíneo para o músculo esquelético é caracterizado por amplas variações, de acordo com o estado de actividade do indivíduo. De facto, o fluxo sanguíneo pode aumentar até 50 vezes, quando se passa de uma situação de repouso para uma situação de exercício aeróbio máximo. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 117 As artérias nutritivas para o músculo esquelético encontram- se externamente ao músculo, gerando entre 30 a 50% da resistência total ao fluxo sanguíneo. Quando as artérias nutritivas entram no músculo esquelético, originam arteríolas, que se ramificam várias vezes até originarem arteríolas terminais, que são os últimos ramos que contêm músculo liso e, como tal, os últimos ramos nos quais ainda existe capacidade de controlar o fluxo sanguíneo. O conjunto dos capilares alimentados por uma mesma arteríola terminal designa-se por unidade microvascular, correspondendo à unidade funcional mais pequena de controlo do fluxo sanguíneo. Quando o músculo esquelético se encontra em repouso, a sua resistência vascular é elevada, o fluxo sanguíneo é reduzido, e a taxa de extracção de oxigénio é reduzida. Todavia, numa fase inicial do exercício, verifica-se uma dilatação das arteríolas terminais, algo que permite um aumento do fluxo sanguíneo através dos capilares já perfundidos e a abertura de capilares quiescentes. Deste modo, à medida que o nível de exercício aumenta, verifica-se um aumento da taxa de extracção de oxigénio e uma dilatação de vasos progressivamente mais proximais. De referir que a libertação de substâncias vasodilatadoras (tais como a adenosina, o dióxido de carbono, e o potássio) por parte das fibras musculares activas é o principal estímulo para uma resposta vasodilatadora. Acção do sistema nervoso simpático Apesar do sistema nervoso simpático promover a vasoconstrição dos vasos que irrigam o músculo esquelético, o elevado shear stress gerado subsequentemente leva a que sejam libertadas substâncias vasodilatadoras, estabelecendo-se assim um equilíbrio que permite a manutenção do tónus basal das células musculares lisas vasculares. Assim sendo, parece paradoxal que situações de elevada actividade muscular (onde ocorre dilatação dos vasos que irrigam o músculo esquelético e, por conseguinte, um aumento do fluxo sanguíneo para o músculo) cursem com um aumento da actividade simpática. Este aparente paradoxo é passível de ser explicado por três fenómenos: 1. O aumento da actividade simpática promove vasoconstrição em todos os órgãos excepto o coração e o cérebro. 2. Os efeitos vasodilatadores dos metabolitos libertados pelo músculo esquelético activo superam os efeitos vasoconstritores do sistema nervoso simpático. 3. As substâncias libertadas durante a contracção das fibras musculares (nomeadamente o óxido nítrico e a adenosina) podem inibir localmente a libertação de noradrenalina por parte dos neurónios simpáticos. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 118 Assim, quando vários grupos musculares se encontram em actividade, o sistema nervoso simpático actua como árbitro, promovendo vasoconstrição das artérias nutritivas (que se encontram externamente ao músculo esquelético e, por isso, não estão sujeitas à influência das substâncias vasodilatadoras produzidas pelas fibras musculares esqueléticas), o que estabelece um limite ao fluxo sanguíneo disponibilizado para o músculo esquelético e impede que fibras de um só grupo de músculos esqueléticos “monopolizem” todo o fluxo sanguíneo. “Bomba muscular” Durante o exercício, o músculo esquelético sofre alterações rítmicas no seu comprimento e na sua tensão, de modo análogo ao que ocorre no coração activo. A contracção do músculo esquelético promove o efluxo de sangue venoso e impede o influxo de sangue arterial. Assim, a contracção muscular permite esvaziar as veias, enquanto o relaxamento potencia a perfusão capilar (devido à redução da pressão venosa) e promove o influxo de sangue arterial. Este fenómeno de “bomba muscular”, ao induzir energia cinética considerável ao sangue, consegue gerar até metade da energia necessária para a circulação do sangue. Circulação cutânea A pele, que é o maior órgão do corpo humano, encontra-se sobre-perfundida relativamente às suas necessidades nutricionais. Desta forma, o controlo metabólico local do fluxo sanguíneo para a pele tem uma importância funcional muito reduzida e o fluxo sanguíneo para a pele encontra-se, sobretudo, dependente da acção do sistema nervoso simpático – aumentos na temperatura corporal aumentam o fluxo sanguíneo para a pele, levando a perdas de calor, enquanto uma diminuição da temperatura corporal leva ao efeito oposto. A pele apical (que se encontra nas extremidades, nomeadamente no nariz, lábios, orelhas, mãos e pés) apresenta uma grande relação superfície-volume que favorece a perda de calor. Nessas regiões é possível encontrar uma grande quantidade de anastomoses arterio-venosas, as quais constituem os corpos de glomus. Os vasos que intervêm nessas anastomoses encontram-se em paralelo com os capilares da pele envolvidos na troca de nutrientes e estão sob intenso controlo neural. De facto, a acção do sistema nervoso simpático promove a constrição das arteríolas, vasos anastomósicos e vénulas, o que diminui as perdas de calor (deste modo, a acção simpática verifica-se aquando de um decréscimo da temperatura corporal). Paralelamente, aquando de um aumento da actividade corporal, o tónus simpático diminui e verifica-se uma resposta vasodilatadora (deste modo,não existe vasodilatação activa - a vasodilatação é sempre passiva, ocorrendo por inibição da actividade simpática). Já ao nível da pele não-apical, quase não se verificam anastomoses arterio-venosas, de tal modo que as variações na actividade simpática apresentam um efeito muito reduzido na regulação térmica do organismo. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 119 Microcirculação e vasos linfáticos Os capilares constituem os locais de excelência onde ocorre a troca de gases, água, nutrientes e produtos do metabolismo. Na maior parte dos tecidos, os capilares estão associados, exclusivamente, a essas necessidades nutricionais. Contudo, noutros, uma grande porção do fluxo capilar é não- nutricional. A título de exemplo, ao nível dos glomérulos renais, o fluxo capilar forma o filtrado glomerular. Por outro lado, ao nível da pele a microcirculação ao nível das anastomoses arterio-venosas está associada à regulação térmica. Os capilares também desempenham outras funções, tais como a sinalização (transporte de hormonas) e defesa do indivíduo (através do transporte de plaquetas). Vasos constituintes da microcirculação A microcirculação é definida como sendo o conjunto de vasos sanguíneos que se encontram entre a arteríola de primeira ordem e a vénula de primeira ordem. Embora ocorram variações entre órgãos, normalmente, os componentes principais da microcirculação incluem uma única arteríola e uma única vénula, por entre as quais se encontra uma rede de capilares. Tanto as arteríolas como as vénulas apresentam células musculares lisas vasculares, sendo que, por vezes, é possível encontrar esfíncteres pré- capilares na transição entre um capilar e uma arteríola ou meta-arteríola. Estes esfíncteres controlam o acesso do sangue até segmentos particulares da rede capilar, sendo que a abertura ou o fecho de um esfíncter criam pequenas diferenças locais de pressão, que podem alterar a magnitude do fluxo sanguíneo ou reverter a direcção do fluxo sanguíneo em alguns locais da rede. Contudo, é importante ressalvar que o músculo liso associado aos esfíncteres pré-capilares não é, normalmente inervado – a acção destes esfíncteres varia, sobretudo, de acordo com alterações das condições locais. As arteríolas diferem das artérias, uma vez que as primeiras apresentam um raio interno situado entre 5 e 25 µm, enquanto as segundas apresentam um raio interno superior a 25 µm. Por outro lado, as arteríolas apenas apresentam uma única camada contínua de células musculares lisas vasculares. Já as metarteríolas são similares às arteríolas, mas o seu comprimento é menor. Para além disso, as células musculares lisas vasculares das metarteríolas não são contínuas nem, normalmente, inervadas. As metarteríolas funcionam como “vias rápidas” da microcirculação que permitem que o sangue flua, sem passar pela rede capilar. Os verdadeiros capilares, por sua vez, apresentam um raio interno situado entre 2 e 5 µm, consistindo numa única camada de células endoteliais muito finas rodeadas por uma membrana basal, fibras de colagénio e, por vezes, pericitos. Algumas células endoteliais apresentam em ambas as superfícies inúmeras cavéolas, envolvidas na ligação a ligandos. Por outro lado, o facto das células endoteliais se encontrarem altamente envolvidas na endocitose faz com que sejam encontradas a esse nível inúmeras Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 120 vesículas revestidas por caveolina. Para além disso, o citoplasma das células endoteliais dos capilares é rico em vesículas pinocíticas, que contribuem para a transcitose de água e de compostos solúveis em água, ao longo da membrana endotelial. De referir que, em alguns casos, as vesículas endocíticas encontram-se alinhadas de tal modo que aparentam estar juntas para formar um canal transendotelial. Entre as células endoteliais encontram-se junções inter-endoteliais, que permitem que duas membranas celulares estejam separadas apenas por cerca de 10 nm. Apesar disso, existem regiões, onde o espaço entre as células é menor (é de cerca de 4nm), pois estas estão unidas por junções de aderência. É igualmente possível encontrar junções apertadas entre as células endoteliais, sendo que estas junções são extremamente importantes para formar a barreira hemato-encefálica (pois impedem a presença de espaço interendotelial no encéfalo). Existem três tipos de capilares, sendo esta classificação baseada na permeabilidade existente ao nível destes: 1. Capilares contínuos: Tipo de capilar mais comum. 2. Capilares fenestrados: Nestes capilares as células encontram-se perfuradas com fenestrações, passagens que atravessam completamente as células, desde o lúmen capilar até ao espaço intersticial. Os capilares fenestrados delimitam sobretudo os epitélios, pois são locais onde ocorrem grandes fluxos de fluidos e solutos ao longo das paredes capilares. De referir que, por vezes, um pequeno diafragma fecha as perfurações das fenestrações. 3. Capilares descontínuos: Estes capilares apresentam gaps (grandes espaços maiores que as fenestrações), sendo passíveis de ser encontrados ao nível dos sinusóides hepáticos, na medula óssea e no baço. Ao nível das suas extremidades distais, os capilares convergem em vénulas (cujo raio interno varia entre 5 e 25 µm), que transportam sangue para veias de baixa pressão que, por sua vez, fazem o retorno Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 121 venoso para o coração. As vénulas apresentam uma camada descontínua de células musculares lisas vasculares e, como tal, têm capacidade de controlar o fluxo sanguíneo e de estabelecer trocas de solutos ao longo das suas paredes. Difusão Os gases difundem-se de forma transcelular entre as duas membranas e o citosol das células endoteliais de um capilar. Embora, por motivos descritivos, a troca de oxigénio seja destacada, convém referir que os mecanismos são similares para a troca de dióxido de carbono, apesar de estes últimos ocorrerem numa direcção inversa. Em termos gerais, à medida que o sangue arterial (muito rico em oxigénio) atravessa um capilar sistémico, o oxigénio difunde-se ao longo da parede capilar, para o espaço tecidular, que inclui o fluido intersticial e as células vizinhas. Cilindro tecidular de Krogh O cilindro tecidular de Krogh é o modelo para as trocas gasosas mais frequentemente aceite. O cilindro tecidular corresponde ao volume tecidular ao qual um único capilar fornece oxigénio e, como tal, cada cilindro de tecido rodeia um único capilar. De acordo com este modelo, o raio de um cilindro tecidular num órgão corresponde, normalmente, a metade do espaço médio intercapilar. Uma vez que a densidade capilar é altamente variável entre os tecidos, também a distância intercapilar média apresenta grandes variações. Assim sendo, a densidade capilar é maior em tecidos com maior consumo de oxigénio (tais como o miocárdio e pulmões) e menor em tecidos com baixo consumo de oxigénio (tais como a cartilagem articular). O modelo de Krogh é útil porque ajuda a prever como é que a concentração de oxigénio (ou pressão parcial de oxigénio – PO2) cai ao nível do lúmen ao longo do comprimento do capilar, à medida que o oxigénio é expulso para os tecidos adjacentes. De referir que PO2 em qualquer local de um capilar depende de vários factores, que combinados, contribuem para a forma e perfis de concentração dentro do vaso e do tecido: 1. Concentração de oxigénio livre no sangue arteriolar que “alimenta”os capilares. Esta concentração é proporcional a PO2 nas arteríolas. 2. Conteúdo de oxigénio de sangue. A quantidade de oxigénio livre no sangue é muito reduzida – a maior parte encontra-se ligada à hemoglobina, dentro dos eritrócitos. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 122 3. Fluxo sanguíneo capilar (F). 4. Coeficiente de difusão radial (Dr) - factor que preside à difusão de oxigénio para fora do lúmen capilar, sendo o mesmo no sangue, parede dos capilares (em todo o seu comprimento) e tecidos adjacentes. 5. Raio capilar (rc). 6. Raio do cilindro tecidular (rt) ao qual o capilar está a fornecer oxigénio. 7. Consumo de oxigénio pelos tecidos adjacentes (QO2) 8. Distância axial (x) ao longo do capilar. A diferença entre a concentração de uma substância no influxo arterial e no efluxo venoso é determinada pela diferença arterio-venosa. A título de exemplo, se a concentração de oxigénio arterial que entra num tecido for de 20 mL O2/dL de sangue e se a concentração de oxigénio venoso que abandona o tecido for de 15 mL O2/dL de sangue, a diferença arterio-venosa para aquele tecido é de 5 mL O2/dL de sangue. Outra forma de exprimir a quantidade de substância (por exemplo, de oxigénio) que é removida pelos tecidos é pela proporção de extracção. Este parâmetro não é mais que a normalização da diferença arterio-venosa para o conteúdo arterial da substância e, como tal, a proporção de extracção para o oxigénio (EO2) é de: Fazendo as contas para o exemplo que estava a ser dado, seria obtida uma proporção de extracção de 0,25 (25%). O que significa, em termos práticos, que o órgão do exemplo remove (e consome) 25% do oxigénio que lhe está disponível no sangue arterial. Coloca-se então a questão de quais os factores que determinam a extracção de oxigénio. Ora, os oito factores que influenciam os perfis de PO2 são precisamente os mesmos que determinam a extracção de oxigénio do órgão. De entre esses factores, os mais importantes são o fluxo capilar e o consumo de oxigénio pelos tecidos (o que corresponde à exigências metabólicas). De referir que a proporção de extracção de oxigénio diminui com o aumento de fluxo sanguíneo (uma vez que ocorre maior fornecimento de sangue, os tecidos necessitam de extrair uma menor percentagem de oxigénio para satisfazer as suas necessidades) e aumenta com as exigências metabólicas. Estas conclusões não são mais que um reajuste da lei de Fick que poderá ser reescrita como: Lei de Fick Apesar da célula endotelial ser altamente permeável a oxigénio e a dióxido de carbono, esta funciona como uma importante barreira para a troca de substâncias insolúveis em lipídeos. Os solutos hidrofílicos Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 123 que são mais pequenos que a albumina apresentam a capacidade de atravessar a parede capilar por via de difusão paracelular (entre as junções inter-endoteliais, os pequenos espaços, as fenestrações e as gaps, caso estas últimas estejam presentes). A quantidade de soluto que atravessa uma área particular de um capilar por unidade de tempo é designada por fluxo. O fluxo é proporcional à magnitude da diferença de concentrações que existe ao longo da parede capilar e é maior em capilares mais permeáveis. Ora, estes conceitos básicos são expressos pela lei de Fick: Jx=Px×(Xc-Xif) Na fórmula, Jx representa o fluxo do soluto X em moles/(cm 2/s), sendo que esse fluxo é positivo quando ocorre fluxo dos capilares para o fluido intersticial. por seu turno, correspondem às concentrações de soluto dissolvido no capilar e fluido intersticial, respectivamente. Uma vez que a espessura da parede capilar (a) é difícil de determinar, utiliza-se um coeficiente de permeabilidade (Px) para exprimir a razão entre o coeficiente de difusão (Dx) e a espessura. Deste modo, o coeficiente de permeabilidade exprime a facilidade, com a qual um soluto atravessa um capilar por difusão. Uma vez que, na prática, a área da superfície do capilar (S) é por vezes desconhecida, torna-se impossível calcular um fluxo de um soluto, expresso por unidade de área. Assim, é mais comum calcular o fluxo de massa (Q), que é simplesmente a quantidade de soluto transferido por unidade de tempo (unidades: mol/s). Small pore effect A permeabilidade de uma célula endotelial é maior para solutos lipossolúveis (tais como o oxigénio e o dióxido de carbono), pois estes têm maior capacidade de se difundir através de toda a célula endotelial, comparativamente a solutos hidrossolúveis, tais como o cloreto de sódio, a ureia e a glicose. Deste modo, as pequenas moléculas hidrofílicas polares apresentam uma permeabilidade relativamente baixa, uma vez que só têm capacidade de se difundirem por via paracelular, através de fendas inter- endoteliais ou vias aquosas, que constituem apenas uma pequena fracção de toda a área capilar (de lembrar que a área é um dos factores que para a permeabilidade celular). Assim, a difusão destas pequenas moléculas hidrofílicas por descontinuidades, ou espaços nas junções apertadas (que constituem os small pore, cujo raio é de cerca de 10 nm) é designada por small pore effect. Contudo, é necessário ter em conta que o efeito do glicocálice na superfície das células endoteliais, ajuda a explicar o small pore effect. Uma vez que as fendas inter-endoteliais são mais largas nas extremidades venosas dos capilares e que as fenestrações são também mais comuns a esse nível, Px aumenta ao longo do capilar. Isto explica porque é que numa situação em que a diferença de concentrações transcapilares - fosse a mesma, o fluxo de soluto seria, mesmo assim, maior ao nível da extremidade venosa da microcirculação. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 124 Pequenas proteínas também apresentam a capacidade de se difundirem ao longo de fendas inter-endoteliais ou por via de fenestrações. Contudo, para além do tamanho molecular, também a carga eléctrica das proteínas e de outras macromoléculas constitui um importante determinante do seu coeficiente de permeabilidade aparente. Sob o ponto de vista geral, o fluxo de proteínas negativamente carregadas é muito menor, comparativamente àquele de macromoléculas neutrais de tamanho equivalente, enquanto as macromoléculas carregadas positivamente apresentam um maior coeficiente de permeabilidade aparente. De facto, a presença de cargas negativas fixas nas proteínas do glicocálice endotelial impede a passagem de macromoléculas com carga negativa e favorece o transporte de macromoléculas com carga positiva. O movimento difusivo de solutos é o modo dominante de trocas transcapilares. Todavia, o movimento convectivo da água também pode transportar solutos. Este efeito, de menor importância, é designado por solvent drag e corresponde ao fluxo de um soluto dissolvido que é feito passar, devido à imensidão do movimento do solvente. Large pore effect As macromoléculas cujo raio excede 1 nm (tais como proteínas plasmáticas) têm a capacidade de cruzar os capilares, através de fendas intercelulares, fenestrações e gaps (quando estes se encontram presentes). Contudo, este mecanismo de transporte para este tipo de moléculas apresenta muito pouca importância. As cavéolas são as principais responsáveis pelo large pore effect que permite a translocação celular de macromoléculas. Assim sendo, a transcitosede macromoléculas muito grandes por transporte vesicular envolve: 1. O equilíbrio das macromoléculas dissolvidas no lúmen capilar com as macromoléculas presentes na fase fluida, ao nível da vesícula aberta. 2. A formação da vesícula e a passagem desta para o citosol, onde ocorre fusão com outras vesículas 3. A fusão das vesículas com a membrana endotelial do lado oposto. 4. O equilíbrio com a fase do fluido extracelular oposto. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 125 Apesar de o movimento transcitólico de macromoléculas poder ser designado por fluxo, as leis da difusão não presidem à transcitose. É ainda importante referir que a transcitose raramente se verifica ao nível do encéfalo – a presença de junções apertadas contínuas contribuem para uma barreira encefálica cuja permeabilidade aparente para as macromoléculas é muito inferior. Limites à difusão Ao nível dos capilares, a difusão de moléculas insolúveis em lipídeos encontra-se restrita a canais aquosos ou a poros. Para pequenas moléculas, tais como a água, o cloreto de sódio, a ureia e a glicose, os poros dos capilares apresentam baixa restrição à difusão, de tal modo que a difusão dessas substâncias se torna tão rápida, que o gradiente de concentração médio ao longo do endotélio capilar se torna extremamente pequeno. Assim, quanto maiores são as moléculas insolúveis em lipídeos, mais restrita é a sua difusão através dos capilares. A difusão torna-se eventualmente mínima, quando a massa molecular das moléculas excede os 60000. Já no que concerne às pequenas moléculas, a única limitação ao movimento ao longo da parede capilar é a taxa através da qual o fluxo sanguíneo transporta as moléculas para os capilares. Diz-se então que o transporte dessas moléculas é limitado pelo fluxo. Enquanto, aquando de um grande fluxo sanguíneo, uma pequena molécula ainda consegue estar presente num local distal do capilar, uma molécula maior mover-se-ia apenas até um dado ponto, em que a sua concentração no sangue se tornaria insignificante. Para além disso, o número de moléculas grandes que entram na extremidade arterial de um capilar mas não conseguem passar através dos poros capilares iguala o número de moléculas que abandonam a extremidade venosa do capilar. Em grandes moléculas, a difusão ao longo dos capilares torna-se o factor limitante (transporte limitado pela difusão). Isto significa que a permeabilidade de um capilar a grandes moléculas de soluto limita o seu transporte ao longo da parede capilar. O movimento de moléculas lipossolúveis ao longo da parede capilar não se encontra limitado aos poros capilares, ocorrendo também directamente através das membranas lipídicas de todo o endotélio capilar. Consequentemente, as moléculas lipossolúveis movem-se rapidamente por entre o sangue e os tecidos. Desta forma, o grau de lipossolubilidade é um bom indicador da facilidade de transferência de moléculas lipídicas através do endotélio capilar. Transporte por convecção Equação de Starling A via para o movimento de fluidos ao longo da parede dos capilares é uma combinação das vias transcelular e paracelular. As membranas celulares endoteliais exprimem canais activos de aquaporina 1 (AQP1), que constituem a principal via transcelular para o movimento de água. Já as fendas inter- endoteliais, as fenestrações ou as gaps, actuam como substrato anatómico para a via paracelular. Enquanto o principal mecanismo para a transferência de gases e outros solutos é a difusão, o principal mecanismo para a transferência de fluido ao longo da membrana capilar é a convecção. Existem duas grandes driving forces para a convecção, nomeadamente a diferença transcapilar de pressões hidrostáticas e a diferença de pressão osmótica efectiva (também designada por pressão osmótica colóide, ou por diferença de pressão oncótica). A diferença de pressões hidrostáticas (ΔP) ao longo da parede dos capilares consiste na diferença entre a pressão intravascular (ou seja, a pressão hidrostática capilar, Pc) e a pressão extra-vascular (ou seja, a pressão hidrostática do fluido intersticial, Pif). De referir que o termo “hidrostático” inclui todas as fontes de pressão intravascular, sendo utilizado como antónimo de “osmótico”. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 126 Já a diferença de pressão osmótica colóide (Δπ) ao longo da parede capilar consiste na diferença entre a pressão osmótica colóide intravascular causada pelas proteínas plasmáticas (πc) e a pressão osmótica colóide extra-vascular causada pelas proteínas do fluido intersticial e proteoglicanos (πif). Assim, enquanto um ΔP positivo tende a repelir a água para fora do lúmen capilar, um Δπ positivo tende a atrair a água para o lúmen capilar. A hipótese de Starling permite descrever o fluxo de volume de fluido (Jv) através da parede de um capilar e encontra-se descrita pela seguinte equação: Esta equação encontra-se concebida de tal modo que o fluxo de água que abandona o capilar é positivo e que o fluxo de água que entra no capilar é negativo. A condutividade hidráulica (Lp) é a constante de proporcionalidade que relaciona a driving force com o Jv, exprimindo a permeabilidade total fornecida pelo conjunto dos canais AQP1 e pela via paracelular. Embora de acordo com a lei de van’t Hoff possamos ainda referir que a diferença teórica de pressões osmóticas colóides (Δπteoria) é proporcional à diferença de concentrações proteicas (Δ[X]), sabe-se que as paredes capilares fazem a extrusão de proteínas de modo imperfeito, de tal modo que a diferença de pressões osmóticas colóides observadas (Δπobservado) é, de facto, menor que a diferença teórica. Assim, torna-se importante incluir na fórmula o coeficiente de reflexão (σ), que não é mais que o rácio Δπobservado/Δπteoria, e que uma forma de descrever como é que uma barreira semi-permeável exclui ou “reflecte” um dado soluto X, à medida que a água se movimenta ao longo da barreira, por via de gradientes de pressão hidrostática ou osmótica. Uma vez que σ é uma proporção, pode adquirir qualquer valor entre 0 e 1. Quando o σ é zero, o deslocamento da água leva consigo a totalidade do soluto, que não exerce pressão osmótica ao longo da barreira. Contudo, quando σ é 1, a barreira exclui por completo o soluto, à medida que a água a atravessa, sendo que o soluto exerce pressão osmótica total. De referir que o σ para as proteínas plasmáticas é próximo de 1. Já pequenos solutos que atravessam livremente o endotélio, como os iões sódio e cloreto, apresentam um σ igual a zero. Deste modo, a alteração da concentração intravascular ou intersticial destas últimas entidades não cria uma driving force osmótica efectiva, ao longo da parede capilar. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 127 Forças de Starling Filtração e absorção A expressão para a driving force na equação de Starling [(Pc - Pif) - σ(πc - πif)] é designada por pressão de filtração líquida. A filtração de um fluido a partir de um capilar para o espaço tecidular ocorre quando esta pressão de filtração é positiva. No caso especial em que o σ para as proteínas é 1, o fluido que abandona o capilar encontra-se livre de proteínas e este processo designa-se por ultra-filtração. Por contraste, a absorção de fluido a partir do espaço tecidular para o espaço vascular ocorre quando a pressão de filtração líquida é negativa. Ao nível da extremidade arterial dos capilares, a pressão de filtração é geralmente positiva, de tal modo que ocorre filtração. Já ao nível da extremidadevenosa, a pressão de filtração é geralmente negativa, de tal modo que se verifica a presença de absorção. Contudo, existem órgãos que não seguem esta regra. Pressão hidrostática capilar A pressão sanguínea capilar (Pc), também designada por pressão hidrostática capilar, varia ao nível das extremidades arteriolar e venular dos capilares. A título de exemplo, na pele Pc apresenta um valor de cerca de 35 mm/Hg ao nível da extremidade arteriolar, e de cerca de 15 mm/Hg ao nível da extremidade venular. Quando a pressão arteriolar é da ordem dos 60 mm/Hg e a pressão venular é de 15 mm/Hg, a pressão médio-capilar não corresponde ao valor médio entre as duas (que neste caso seria de 37,5 mm/Hg), mas sim a um valor de apenas 25 mm/Hg. Isto deve-se ao facto de a resistência pré-capilar (a resistência que se encontra a montante do capilar, ao nível da terminação das arteríolas) exceder normalmente a resistência pós-capilar (a resistência que se encontra a jusante do capilar, ao nível da terminação das vénulas). O valor de Pc não é uniforme e varia em função de quatro parâmetros, nomeadamente as resistências pré e pós capilar, a localização, o tempo e a gravidade. No que concerne às resistências pós e pré capilares, quando a resistência pós- capilar é inferior á pré-capilar, como ocorre normalmente, a pressão hidrostática dos capilares torna-se mais próxima da pressão hidrostática venular, do que da pressão hidrostática arteriolar. Deste modo, alterações idênticas ao nível das pressões hidrostáticas arteriolar e venular obtêm efeitos diferentes na pressão hidrostática capilar, sendo que a alteração na pressão hidrostática venular surte mais efeito, que a variação da pressão arteriolar (a título de exemplo, considerando um Rpos/Rpre de 0.3, um aumento de 10 mm/Hg na pressão arteriolar apenas aumentaria a pressão capilar em 2 mm/Hg, mas o mesmo aumento para a pressão venular, aumentaria a pressão capilar em 8 mm/Hg). Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 128 Já a localização prende-se com os tecidos onde está a ocorrer passagem de fluido. Ao nível dos capilares renais são necessárias pressões hidrostáticas capilares elevadas para que ocorra ultrafiltração, enquanto os capilares pulmonares apresentam valores baixos de pressão hidrostática capilar, minimizando assim a ultra-filtração, que poderia levar à acumulação de fluido de edema ao nível dos espaços alveolares. Pressão hidrostática intersticial Ao nível do fluido intersticial, a pressão hidrostática (Pif) apresenta um valor ligeiramente negativo (na ordem dos -2 mm/Hg). O facto de Pif ser ligeiramente negativo deve-se à remoção de fluido pelos linfáticos. Existem, contudo, excepções ao nível dos compartimentos fechados rígidos (como a medula óssea ou o encéfalo) e ao nível dos órgãos encapsulados, tais como o rim. Nestas situações P if é positivo, pois, no caso dos órgãos encapsulados, a expansão dos vasos de alta pressão empurra o fluido intersticial contra a cápsula fibrosa/fáscia, aumentando Pif. Como é de esperar, Pif não varia ao longo das extremidades arteriolar e venular dos capilares, todavia, Pif é altamente sensível à adição de fluido para o compartimento intersticial (de facto, o aumento de Pif em função do aumento de fluido para o compartimento intersticial traduz-se numa relação quase logarítmica). Pressão osmótica colóide capilar A diferença de pressões osmóticas colóides ao longo do endotélio dos capilares deve-se apenas às proteínas plasmáticas, tais como a albumina. A concentração de proteínas total no plasma é de cerca de 7,0 g/L, ou seja 1,5 mM. De acordo com a lei de van’t Hoff, essas proteínas exerceriam uma pressão osmótica de cerca de 28 mm/Hg caso fossem totalmente reflectidas pela parede do capilar (σ=1). Uma vez que σ não é 1, mas sim próximo de 1, o valor real da pressão osmótica colóide nos capilares (πc) é de cerca de 25 mm/Hg. πc não varia consideravelmente ao longo do comprimento do capilar. De facto, a maior parte dos leitos capilares filtram menos que 1% do fluido que entra na extremidade arteriolar, de tal modo, que a perda de fluido livre de proteínas não leva a uma concentração mensurável de proteínas plasmáticas ao longo do capilar e não eleva consideravelmente o πc. Contudo, πc varia de forma marcada com a composição e concentração proteica. Também o coeficiente de reflexão para os colóides varia amplamente entre os órgãos. Deste modo, os valores mais baixos de σ encontram-se ao nível dos locais onde existe descontinuidade dos capilares (por exemplo, ao nível do fígado), valores intermédios encontram-se ao nível do músculo e, por fim, os valores mais elevados (σ=1) encontram-se ao nível dos leitos capilares contínuos e apertados do encéfalo. As proteínas plasmáticas não actuam somente como agentes osmóticos. Uma vez que estas proteínas também transportam cargas Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 129 negativas, pelo efeito de Donnan, ocorre um aumento na concentração de catiões e na pressão osmótica colóide, ao nível do lúmen capilar. Pressão osmótica colóide do fluido intersticial Assumindo que a pressão osmótica colóide do fluido intersticial (πif) será a mesma que a pressão osmótica da linfa, conseguimos perceber que, devido ao facto do conteúdo proteico linfático ser altamente variável, πif também o é. De facto, πif varia no organismo entre cerca de 3 e 15 mm/Hg. Por outro lado, πif aumenta ao longo do eixo do capilar – os valores mais baixos encontram-se ao nível da extremidade arteriolar, onde o fluido intersticial recebe fluido livre de proteínas proveniente dos capilares, como resultado da filtração ocorrida. Já os valores mais elevados registam-se ao nível da extremidade venular, onde o fluido intersticial perde fluido livre de proteínas para os capilares, como resultado da absorção capilar. Aplicação da equação de Starling Através da equação de Starling é então possível calcular a transferência líquida de fluido (Jv) em ambas as extremidades de um capilar típico: A pressão de filtração líquida é então positiva (favorecendo a filtração) ao nível da extremidade arteriolar e negativa ao nível da extremidade venular (favorecendo a absorção). No ponto em que se atinge um equilíbrio entre as forças de filtração e reabsorção, não se verifica a presença de movimento líquido de água ao longo da parede capilar. A pressão de filtração líquida varia consideravelmente entre alguns tecidos. Por exemplo, ao nível da mucosa intestinal, Pc é muito inferior a πc, de tal modo que a absorção ocorre continuamente ao longo Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 130 de todo o comprimento do capilar. Por outro lado, ao nível dos capilares glomerulares, Pc excede πc ao nível da maior parte da rede, de tal modo que a filtração pode ocorrer ao longo de todo o capilar. Também a condutividade hidráulica (Lp) pode afectar o perfil de filtração/absorção ao longo dos capilares – uma vez que as fendas inter-endoteliais se tornam maiores em direcção à extremidade venular dos capilares, Lp aumenta ao longo dos capilares, deste a extremidade arteriolar até à extremidade venular. Por fim, a filtração líquida de fluido num órgão depende da área da superfície dos capilares que estão a sofrer profusão (por exemplo, o exercício físico recruta capilares abertos adicionais no músculo, aumentando a área e, como tal, aumentando a filtração). Modelo clássico e modelo actual As trocas de fluido ao nívelda barreira endotelial de capilares contínuos é mais complexa que o considerado pelo modelo clássico (que tem vindo a ser descrito neste texto). De facto, estudos experimentais evidenciam que as estimativas de filtração e absorção são consideravelmente superiores aos dados obtidos experimentalmente. O motivo pelo qual isto acontece deve-se ao facto de o modelo clássico considerar a barreira capilar como uma única barreira separando dois compartimentos uniformes bem definidos (modelo altamente simplista). Foi então concebido um novo modelo (modelo actual) para colmatar as discrepâncias entre as previsões do modelo clássico e os dados experimentais. O modelo actual considera duas características adicionais – em primeiro lugar, a barreira primária para a pressão osmótica colóide, ou seja a “membrana semipermeável” que reflecte proteínas, mas permite a passagem de água e pequenos solutos, não corresponde à membrana de todo o capilar, mas apenas ao glicocálice luminal (nomeadamente a porção particular de glicocálice que se sobrepões às fendas paracelulares). Em segundo lugar, a superfície do glicocálice que não está voltada para o lúmen não se encontra em contacto directo com o fluido intersticial – verifica-se que esta superfície se encontra banhada pelo fluido subglicocalical, de tal modo que o fluxo ao longo da barreira glicocalical depende não de Pif e de πif (valores associados ao fluido intersticial), mas dos parâmetros comparáveis para o fluido subglicocalical (Psg e πsg): Durante a ultra-filtração, quando Jv é positivo, Psg é superior a Pif, o que permite o movimento do fluido desde o espaço subglicocalical para o fluido intersticial, ao longo da fenda paracelular. Para além disso, À medida que o ultra-filtrado livre de proteínas entra no espaço subglicocalical, a pressão osmótica colóide torna-se baixa (πsg<πi). Todavia, o aumento que se regista em Psg e a diminuição que se verifica em πsg tendem a opor-se progressivamente à filtração, o que explica que no modelo actual esta não seja tão grande, como se pensava. Por outro lado, quando Jv é próximo de zero, os parâmetros do fluido subglicocalical (i.e., Psg e πsg) encontram-se muito próximos dos seus correspondentes ao nível do fluido intersticial (i.e., Pif e πif) e o modelo actual pode ser simplificado para o modelo clássico. Por fim, aquando da absorção, quando o Jv é negativo, a água e os pequenos solutos movem-se do espaço subglicocalical para o lúmen dos capilares, aumentando a concentração proteica ao nível do espaço subglicocalical. O aumento resultante do πsg opõe-se a mais absorção e, de facto, até pode travar o progresso da absorção. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 131 Sistema linfático Os linfáticos iniciam-se ao nível do interstício como pequenos canais de paredes finas constituídas por células endoteliais. Estes vasos linfáticos juntam-se depois para formar vasos linfáticos cada vez maiores. Os linfáticos iniciais são similares aos capilares, embora apresentem várias junções inter- endoteliais que se comportam como microválvulas de um único sentido (válvulas linfáticas primárias). Existem ainda filamentos de ancoragem que ancoram os linfáticos iniciais ao tecido conjuntivo nas redondezas. Já os vasos linfáticos de maiores dimensões, tal como as veias, também apresentam válvulas – as válvulas linfáticas secundárias, que restringem o movimento retrógrado da linfa. Ao nível dos linfáticos iniciais, as junções inter-endoteliais apresentam poucas junções apertadas ou moléculas de adesão a unir células endoteliais vizinhas. Como resultado, as células endoteliais podem se sobrepor umas às outras e actuar como microválvulas de único sentido. Apesar de os linfáticos iniciais apresentarem uma aparência colapsada e de não evidenciarem actividade contráctil, o gradiente de pressão que se estabelece entre o fluido intersticial e o lúmen do linfático deforma as células endoteliais de tal modo que as microválvulas abrem e o fluido entra no linfático inicial durante a chamada fase de expansão. De referir que, durante este período de tempo, as válvulas linfáticas secundárias encontram- se fechadas. A pressão externa (registada, por exemplo, ao nível do músculo esquelético), por seu turno, leva ao fecho das microválvulas, e permite a abertura de válvulas linfáticas secundárias, o faz com que o fluido entre em vasos linfáticos de maiores dimensões. Esta fase é designada por fase de compressão. Pensa-se que a filtração na extremidade arteriolar dos capilares exceda a absorção que ocorre ao nível da extremidade venosa em dois a quatro litros por dia. Contudo, o fluido não se acumula normalmente no interstício, porque este Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 132 fluido em excesso e as proteínas se movimentam para os linfáticos. Deste modo, cada dia, os linfáticos fazem o retorno para a circulação de entre dois a quatro litros de fluido intersticial. Aquando da acumulação de fluido no interstício, verifica-se a presença de um edema. Fluxo linfático A pressão hidrostática ao nível dos linfáticos iniciais (Plinfa) varia entre -1 e 1 mm/Hg e, sendo a pressão média do fluido intersticial mais negativa que estes valores, a driving force para o fluido intersticial se deslocar para os linfáticos iniciais prende-se com aumentos transitórios em Pif que a tornam maior que Plinfa. Deste modo, a adição de fluido ao interstício aumenta a sua Pif, o que aumenta a driving force para a entrada do fluido ao nível dos linfáticos. Assim, o fluxo linfático torna-se extremamente sensível a aumentos no Pif. O facto do efluxo linfático corresponder ao excesso de filtração capilar permite, então, que o volume do fluido intersticial varie muito pouco. Todavia, em situações em que a complacência do fluido intersticial é muito grande, o aumento de fluido ao nível do interstício aumenta pouco a (já elevada) Pif e, como tal, o retorno linfático não compensa adequadamente o excesso de filtração capilar. Isto faz com que o volume do fluido intersticial aumente e se forme um edema. A compressão e relaxamento intermitentes dos linfáticos ocorrem devido à respiração, caminhar e movimentos peristálticos intestinais. Quando a Plinfa num segmento a jusante cai para níveis inferiores aos que ocorrem num segmento a montante, a aspiração de um fluido produz um fluxo unidireccional. Esta sucção é altamente responsável pelos valores subatmosféricos de Pif, que são passíveis de ser observados em vários tecidos. As pressões nos vasos linfáticos colectores vão aumentando progressivamente ao longo do vaso. Um mecanismo miogénico de contracção activa do músculo liso das paredes linfáticas permite dirigir a linfa em direcção às veias. Para além deste processo activo, também alguns processos passivos presidem à condução da linfa para as veias, nomeadamente a contracção das células musculares esqueléticas, os movimentos respiratórios e a contracção intestinal. Já as proteínas que entraram no fluido intersticial provenientes dos capilares não têm a capacidade de regressar à circulação sanguínea devido ao gradiente químico adverso que se verifica ao longo da parede endotelial capilar. A acumulação dessas macromoléculas no interstício permite a criação de um gradiente de difusão desde o interstício até à linfa, que complementa o movimento convectivo dessas macromoléculas para o sistema linfático. Assim, o retorno proteico de um indivíduo em condições normais é de cerca de 100 a 200g de proteínas. A linfa contém também leucócitos(que também se deslocaram do sangue para o interstício), mas não contém eritrócitos nem plaquetas. Deste modo, os ciclos de compressão e relaxamento linfático não apenas promovem o movimento de fluido, como também aumentam a quantidade de linfócitos ao nível da linfa. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 133 Circuitos do fluido extracelular O fluido extracelular desloca-se por via de três ansas convectivas. A primeira é a ansa cardiovascular. Assumindo um débito cardíaco de 5 litros/minuto, o fluxo convectivo de sangue por via da ansa cardiovascular é de 7200 litros/dia, num indivíduo em repouso. A segunda é a ansa transvascular, onde o fluido se move para fora dos capilares ao nível da sua extremidade arteriolar e o fluido entra para os capilares ao nível da sua extremidade venular. Não contando com os glomérulos renais, que filtram uma grande quantidade de fluido, ocorre uma filtração de cerca de 20 litros de sangue por dia (ao nível da extremidade arteriolar) e uma reabsorção de entre 16 e 18 L (ao nível da extremidade venular). Apesar de estes valores se encontrarem sobre-estimados (por considerarem o modelo clássico, e não o actual), a diferença de 2-4 litros por dia, entre o fluido filtrado e o fluido absorvido, é uma estimativa razoável do volume da terceira ansa de fluido – a ansa linfática. Para além das trocas convectivas, as trocas de água e solutos por difusão também ocorrem ao longo dos capilares. A troca de água por difusão ocorre a uma taxa muito superior (80 000 litros/dia), comparativamente à que ocorre por movimento convectivo. Contudo, a difusão de água é um processo de troca que não contribui consideravelmente para o movimento líquido de água, ou seja, todos os dias, 80 000 litros de água difundem-se para fora dos capilares e 80 000 litros difundem-se para dentro. No que concerne aos pequenos solutos que se difundem ao longo do endotélio capilar, o seu transporte é deveras diferente do transporte por ansas convectivas para a água. Relativamente à passagem desses solutos para o interstício, a quantidade de soluto que é transportada por filtração, dissolvidos em água, é muito menos expressiva, comparativamente à quantidade de soluto que entra por difusão (mesmo que parte dos solutos que entrem para o interstício por difusão, se difundam de novo para os capilares). O transporte de proteínas ilustra outro padrão de ansas circulatórios. O plasma apresenta cerca de 210 g de proteínas e o coração bombeia por dia 277 000 g de proteínas por dia, através da circulação. Dessa quantidade de proteínas, entre 100 e 200 g de proteínas por dia (correspondentes quase à quantidade total de proteínas plasmáticas) atravessam as paredes dos capilares através do large pore system. Uma vez que apenas muito pequenas quantidades de proteínas filtradas regressam à circulação, pela extremidade venosa dos capilares (cerca de 5 g/dia), quase todas as proteínas filtradas (entre 95 e 195 g/dia) dependem da ansa linfática convectiva para voltarem à circulação sanguínea. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 134 Hematopoiese A hematopoiese é o processo que permite a génese de todos os tipos de células presentes ao nível do sangue. Devido à diversidade de células geradas, a hematopoiese é um processo essencial para a ocorrência de muitas funções, que vão desde o transporte de gases, até à resposta imunitária, passando pela hemóstase. Em termos embriológicos, identificam-se já células hematopoiéticas, às três semanas, ao nível do saco vitelino. Já no feto, os órgãos preferenciais para a ocorrência de hematopoiese são o fígado e o baço, sendo que aquando do nascimento, estes órgãos ainda estão envolvidos na produção de células sanguíneas (embora a esta altura, já se verifique a ocorrência de hematopoiese ao nível da medula óssea). Na vida adulta, a hematopoiese ocorre ao nível da medula óssea vermelha (que se encontra apenas ao nível do osso esponjoso), salvo se houver patologia. Todavia, com o aumento progressivo da idade, a medula vermelha, vai sendo substituída por medula amarela, contendo gordura. Para além das células hematopoiéticas e sanguíneas, a medula óssea vermelha apresenta ainda células de suporte, tais como células endoteliais, células do estroma, osteoclastos e osteoblastos. As células hematopoiéticas não se encontram dispostas de forma desorganizada ao longo da medula óssea – à medida que vão sendo atingidos sucessivos graus de diferenciação, as células vão se aproximando dos vasos, onde a disponibilidade de oxigénio é maior. Aí essas células vão ocupando nichos centrais. Já as stem cells e outras células com um grau relativamente baixo de diferenciação mantêm-se próximas das trabéculas, ocupando nichos medulares. De referir que os nichos são ambientes altamente regulados, onde ocorre o desenvolvimento de células da medula óssea. Stem cells As stem cells são células totipotentes, histologicamente iguais a linfócitos, que apresentam a capacidade de originar famílias de células completamente distintas. Estas células são auto-renováveis e são passíveis de diferenciação, sendo que à medida que uma stem cell se diferencia, vai perdendo a sua totipotência e as suas capacidades de auto-renovação. Particularizando para a hematopoiese, as stem 3. Sangue e hemóstase Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 135 cells têm a capacidade de originar todas as linhas celulares hematopoiéticas, ao mesmo tempo que têm capacidade de se auto-renovarem. Ainda não se sabe muito bem o que faz com que as stem cells se diferenciem ou mantenham a sua totipotência. Todavia, existem já duas hipóteses colocadas que procuram responder a essa questão. A primeira hipótese propõe que são as propriedades das células envolventes (tais como as células do estroma), que fazem com que as stem cells permaneçam totipotentes ou se diferenciem. Contudo, caso essa hipótese se verificasse, aquando de um estímulo extracelular demasiado forte, todas as stem cells entrariam em diferenciação e, consequentemente, deixaria de haver renovação das células sanguíneas (o que estaria associado a uma condição patológica). Assim, a segunda hipótese propõe que o destino das stem cells se deve simplesmente ao acaso. Em termos estruturais, as stem cells são ancoradas às células de suporte por via do complexo CXCR4 e SDF1 (que interagem entre si). Este ancoramento é reversível e, de facto, quando as stem cells se diferenciam, o complexo em causa desfaz-se e estas deixam de estar ancoradas. Um dos factores que pode promover o desfazer do complexo de ancoramento é o stem cell factor. Este factor é expresso pelas células do estroma, e liga-se a um receptor das stem cells. Isto despoleta uma cascata de transdução de sinal, cujo segundo mensageiro pode actuar, não só no sentido de desfazer o complexo de ancoramento, mas também de induzir a multiplicação das células, de impedir a sua apoptose e de promover a produção de hemoglobina a nível celular. As stem cells multipotentes, contrariamente às totipotentes, podem ser transportadas até ao sangue, mediante certos estímulos, num fenómeno que se designa por mobilização. Todavia, verifica-se um equilíbrio entre as células viajantes e as células que estão nas trabéculas, na medida em que a acção de certos factores de crescimento promove o regresso das células do sangue para a medula óssea, onde passam a ocupar nichos vazios (fenómenode homing). Eritropoiese Os eritrócitos, na espécie humana, são células anucleadas (embora espécies mais primitivas, como as rãs, apresentem eritrócitos nucleados) produzidas através de um processo designado por eritropoiese. A eritropoiese é altamente regulada através da eritropoietina, uma citocina produzida, sobretudo no rim, mas também no fígado (no período de vida fetal verifica-se uma situação inversa). Assim, quando o teor de oxigénio se encontra reduzido (tal como ocorre numa situação de anemia), ocorre uma maior produção de eritropoietina, o que está associado a um aumento da eritropoiese. Por oposição, quando o teor de oxigénio se encontra aumentado, parte da eritropoietina sofre hidroxilação, sendo destruída nos proteossomas, o que inibe o processo de eritropoiese. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 136 A eritropoietina não é totalmente requerida para a determinação das células progenitoras da linhagem eritróide. Todavia, esta citocina revela-se essencial para a para a formação dos proeritroblastos, células que ainda não apresentam hemoglobina, sendo, por isso, altamente basófilas. Essa basofilia deve-se à ocorrência de uma taxa de síntese proteica muito elevada (o RNA e os ribossomas são estruturas ácidas). A elevada síntese proteica é essencial para que as células filhas sejam dotadas de todas as proteínas que necessitam. As células a jusante dos proeritroblastos não requerem a presença de eritropoietina. De entre estas, as primeiras células da linhagem eritropoiética a apresentar hemoglobina são os eritroblastos policromáticos. Estas células originam, subsequentemente, eritroblastos ortocromáticos que, por sua vez, geram reticulócitos, aquando da exocitose do seu núcleo. Por fim, a perda de ribossomas e de mitocôndrias leva à formação de eritrócitos maduros que são lançados para a circulação sanguínea. É importante referir que as células mais diferenciadas da linha eritropoiética, assim como os próprios eritrócitos, são estruturas acidófilas. Isto deve-se ao facto de estas células apresentarem uma quantidade progressivamente maior de hemoglobina (uma proteína acidófila), que se concentra, maioritariamente, à periferia das células. Os eritrócitos apresentam um período de vida médio de 120 dias, sendo que a sua destruição ocorre de modo muito curioso. De modo a conseguir passar pelos apertados sinusóides do baço, os eritrócitos têm de sofrer deformação. Todavia, à medida que os eritrócitos vão envelhecendo, a sua membrana vai perdendo flexibilidade e, como tal, estas células vão perdendo a capacidade de se deformarem, até chegarem a um ponto em que já nem conseguem atravessar os sinusóides do baço. Isto actua como um sinal para estas células serem destruídas, sendo que as substâncias libertadas na sequência dessa destruição são todas reaproveitadas. Ao nível da eritropoiese são, por vezes, produzidas células com defeito (fracção eritropoiética ineficaz), sendo que a génese dessas células é normal, ocorrendo em todos os indivíduos. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 137 Leucopoiese A leucopoiese é o processo associado à produção dos leucócitos, sendo estimulada por factores como o IL-3, o IL-5, o GM-CSF, o G-CSF e o M-CSF. A maturação celular associada à leucopoiese envolve o desenvolvimento de grânulos citoplasmáticos que conferem diferentes funções aos vários leucócitos. De referir que, apesar de os leucócitos serem células nucleadas, estes apresentam cromatina densa, que se encontra maioritariamente sob a forma inactiva. De grosso modo, pode-se dizer que as células leucopoiéticas podem apresentar dois comportamentos distintos. Enquanto as células mais primitivas assumem um comportamento mitótico, as células mais diferenciadas estão associadas a um comportamento maturativo. É importante referir que mais do dobro das células leucopoiéticas apresenta um comportamento maturativo. Os leucócitos maduros gerados por leucopoiese são libertados para a corrente sanguínea, sendo que cerca de metade destas células se encontra encostada à parede das células endoteliais, deslocando-se por movimentos do tipo amebóide. Assim, apenas a restante metade dos leucócitos flui livremente no sangue e, por isso, os resultados de contagem de leucócitos presentes ao nível dos hemogramas dizem respeito apenas a cerca de metade dos valores totais dos leucócitos existentes. Neutrófilos O facto de uma quantidade substancial de leucócitos (nomeadamente neutrófilos) se encontrar adjacente às paredes das células endoteliais não se deve ao acaso. De facto, essa localização permite que estas células entrem de imediato em acção, aquando de uma infecção A acção dos neutrófilos ocorre quando estas células libertam os seus grânulos. Os grânulos do tipo A (também designados de grânulos primários) apresentam proteases, peroxidases, fosfátases, esterases e Cytokine Function GM-CSF Stimulates proliferation of a common myeloid progenitor and promotes the production of neutrophils, eosinophils, and monocytes-macrophages G-CSF Guides the ultimate development of granulocytes M-CSF Guides the ultimate development of monocytes-macrophages/dendritic cells IL-3 Broad effect on multiple lineages IL-5 Sustains the terminal differentiation of eosinophilic precursors Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 138 lisozimas. Já os grânulos do tipo B (também designados por grânulos secundários) contêm isozima, lactoferrina (uma enzima que também está presente no leite materno e que actua “roubando” o ferro às bactérias, impedindo assim que estas se dividam), e fixadores da vitamina B12 (estes “roubam” a vitamina B12 às bactérias, impedindo a sua proliferação). Quando o período de vida dos neutrófilos chega ao fim, estes têm obrigatoriamente de sofrer apoptose. Aquando da apoptose, os grânulos são incorporados em vesículas que, por sua vez, são fagocitadas por macrófagos. De referir que os neutrófilos não podem sofrer necrose, pois a ocorrência deste processo levaria a que o conteúdo dos grânulos fosse libertado para o sangue, o que seria altamente perigoso, dada a quantidade de enzimas “destrutivas” presentes ao nível desses grânulos. Restantes leucócitos Os eosinófilos participam no ataque a parasitas, intervindo também em reacções inflamatórias e alérgicas. A produção desta linhagem de células é estimulada pelo factor IL-5. Por seu turno, os basófilos partilham de algumas funções dos neutrófilos, nomeadamente no que concerne a intervenção em reacções alérgicas. Já os monócitos são células cuja actividade depende da sua transformação noutras células, nomeadamente, em macrófagos, osteoclastos, células mesoteliais e células reticulares dendríticas. No que concerne aos linfócitos, existem duas classes, de acordo com o local onde sofrem maturação. Os linfócitos T sofrem maturação ao nível do timo, participando na destruição de células estranhas ou infectadas por vírus, activando células fagocitárias e regulando a resposta imune. Já os linfócitos B sofrem maturação ao nível da medula óssea, tendo por função a produção de anticorpos. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 139 Trombopoiese A trombopoiese é o processo associado à formação das plaquetas. As células precursoras da trombopoiese designam-se por megacariócitos. Nestascélulas verificam-se divisões nucleares sucessivas, sem concomitante formação de células-filhas. Deste modo, os megacariócitos apresentam um citoplasma muito grande e quantidade de DNA múltipla da normal. A fragmentação do citoplasma dos megacariócitos origina múltiplas plaquetas, enquanto o núcleo destas células gigantes sofre fagocitose. A regulação da trombopoiese deve-se a uma proteína designada por trombopoietina (TPO), que é produzida no fígado e rim, sempre na mesma quantidade. Subsequentemente a trombopoietina é lançada para o sangue, ligando-se às plaquetas. Ora, como a quantidade de trombopoietina produzida é constante, aquando de uma quantidade elevada de plaquetas, estas retêm muita trombopoietina e a trombopoiese é inibida. Por outro lado, aquando de um reduzido número de plaquetas, estas retêm uma pequena quantidade de trombopoietina e, subsequentemente, a trombopoiese é estimulada. De referir que a acção da trombopoietina é levada a cabo através da regulação do número e tamanho dos megacariócitos. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 140 Cinética do ferro O ferro é captado nos enterócitos sob a forma de ião ferroso (Fe2+), de tal modo que o ião férrico (Fe3+) presente no lúmen do intestino tem de ser convertido em ião ferroso para ser absorvido. Essa conversão é catalisada pela redútase do ferro (Dcytb), que se encontra ancorada ao pólo apical dos enterócitos. Subsequentemente, o ião ferroso é transportado para o interior dos enterócitos, através do transportador DMT1, sendo que, uma vez presente no lúmen dos enterócitos, o ferro é transportado até ao pólo basal, ligado à apoferritina. Uma vez chegado ao pólo basal, o ião ferroso é expulso através da ferroportina, sendo convertido (no meio extracelular) em ião férrico por via da oxídase do ferro (hepfastina). Esta conversão permite que o ião férrico seja transportado na corrente sanguínea ligado à transferrina. Ao nível dos tecidos periféricos, o complexo ferro-transferrina liga-se ao TfR (receptor da transferrina), sendo endocitado. O ferro captado pode ser armazenado nesses tecidos, ligando-se para isso à ferritina e à hemosiderina (as reservas de ferro são particularmente proeminentes no fígado). Metabolismo do ferro e hematopoiese Particularizando para o caso dos eritroblastos, o ferro captado é utilizado na biossíntese do heme, sob a forma de ião ferroso. De referir que a produção de heme é essencial para que se dê a síntese de hemoglobina, uma proteína essencial para o transporte de oxigénio e que se encontra presente nos eritrócitos. Por outro lado, quando os eritrócitos são fagocitados pelos macrófagos do baço, estes reciclam o ferro que se encontrava presente no eritrócitos – parte do ferro é usado e armazenado (ligado à ferritina) nos macrófagos, enquanto o restante é enviado para a corrente sanguínea, onde se liga à transferrina (neste caso, a oxídase que converte o ião ferroso em ião férrico designa-se por ceruloplasmina). Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 141 Regulação dos níveis de ferro Uma vez que níveis excessivos de ferro não são desejáveis, torna-se necessário a presença de um mecanismo regulador do metabolismo do ferro. A hepcidina é uma proteína que actua aquando de níveis muito elevados de ferro, inibindo a ferroportina e, como tal, impedindo que o ferro seja lançado para o meio extracelular (assim uma menor quantidade de ferro chega aos tecidos periféricos para constituir reservas). Por outro lado, baixos níveis séricos de ferro promovem a divisão celular dos enterócitos que contêm apoferritina. Isto permite que os enterócitos que contêm apoferritina migrem para a superfície luminal do intestino e, consequentemente, que se verifique um aumento na capacidade de armazenamento de ferro por parte das células da mucosa intestinal. Ora, isso traduz-se num aumento do transporte de ferro para a corrente sanguínea (e, consequentemente, uma maior quantidade de ferro chega aos tecidos periféricos para constituir reservas). Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 142 Hemóstase primária As maquinarias hemostática e fibrinolítica têm por objectivo assegurar a fluidez do sangue, mas simultaneamente que este não se extravasa a partir das paredes dos vasos sanguíneos. De facto, o sangue encontra-se normalmente no estado líquido, visto que não contacta com superfícies com cargas negativas (tais como o colagénio sob as células endoteliais), que activam uma via de coagulação intrínseca; nem com os factores tecidulares que activam uma via extrínseca da coagulação. Para além disso, as vias trombolíticas mantêm as vias de coagulação reguladas. De facto, o plasma contém proteínas que podem ser convertidas em proteases que destroem a fibrina e, como tal, promovem a lise dos coágulos sanguíneos. A hemóstase é entendida como a prevenção da hemorragia, sendo conseguida através de quatro métodos: 1. Vasoconstrição 2. Aumento da pressão tecidular 3. Formação de um trombo plaquetário (aquando de um sangramento capilar) 4. Coagulação do trombo formado. A vasoconstrição contribui para a hemóstase, na medida em que reduz o fluxo sanguíneo ao nível da região lesada. A vasoconstrição é promovida, entre outros, pelos subprodutos químicos do agregado plaquetário e da coagulação. Por exemplo, a activação plaquetária promove a libertação dos vasoconstritores tromboxano A2 e serotonina. Para além disso, a trombina, um dos principais produtos da maquinaria de coagulação, promove a libertação de endotelina-1 por parte do endotélio, sendo a endotelina-1 o vasoconstritor fisiológico mais poderoso. O aumento da pressão tecidular contribui para a hemóstase, na medida em que diminui a pressão transmural (ou seja, a diferença entre a pressão intra-vascular e a pressão tecidular), que é a principal determinante do raio dos vasos sanguíneos. Uma vez que existe uma relação entre o fluxo e o raio do vaso sanguíneo, um incremento na pressão tecidular de x vezes leva a que o fluxo sanguíneo diminua x4 vezes! Plaquetas As plaquetas são corpúsculos celulares anucleados de forma discóide (devido à presença de microtúbulos) e com uma duração que varia entre os sete e os dez dias. Estes corpúsculos formam trombos ao nível do endotélio vascular, de forma altamente controlada, através de um processo que inclui as etapas de adesão, activação e agregação. As plaquetas dispõem de um sistema canalicular aberto e de um sistema tubular denso. O sistema canalicular aberto é análogo às cavéolas do músculo liso, permitindo a comunicação entre o exterior e o interior das plaquetas. Assim, o sistema canalicular é o local a partir de onde as plaquetas libertam os seus grânulos, quando são activadas. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 143 Já o sistema tubular denso das plaquetas tem por função o armazenamento de cálcio, sendo homólogo ao retículo sarcoplasmático do músculo liso. O armazenamento de cálcio ao nível do sistema tubular denso ocorre por via de uma SERCA, sendo essencial, na medida em que toda a activação da coagulação depende da presença deste ião. Adesão O fenómeno de adesão consiste na ligação das plaquetas ao subendotélio. As plaquetas normalmente não aderem entre si, a outras células sanguíneas, ou às membranas endoteliais. Um dos factores preventivospara essa adesão envolve, provavelmente, a presença de cargas negativas na superfície, quer das plaquetas, quer das células endoteliais (no caso destas últimas, essas cargas negativas devem- se à presença de proteoglicanos, nomeadamente do sulfato de heparano). Por outro lado, as células endoteliais intactas segregam vários factores que impedem a hemóstase, nomeadamente o óxido nítrico e prostaciclinas. Deste modo, uma lesão endotelial promove a hemóstase, na medida em que a acção inibitória sobre este processo deixa de se fazer sentir. Paralelamente, uma ruptura do endotélio permite que passem a ser expostos vários factores que se encontram ao nível do subendotélio. Os receptores plaquetários podem se ligar a esses factores, o que permite a adesão de plaquetas entre si ou a outros componentes. As membranas das plaquetas apresentam várias glicoproteínas, nomeadamente as integrinas, as selectinas e as glicoproteínas ricas em leucina. Todavia, os receptores plaquetários em questão são glicoproteínas membranares integrais pertencentes à família das integrinas com duas subunidades (α e β) e cujo ligando é do tipo RGD. Um dos ligandos para esses receptores designa-se por factor de von Willebrand (vWF) e é produzido pelas células endoteliais e pelos megacariócitos (encontramos estes factores ao nível dos corpos de Weibel-Palade das células endoteliais, assim como nos grânulos α das plaquetas). Lesões endoteliais promovem a libertação e exposição do vWF, ao qual se ligam várias glicoproteínas. Outros factores subendoteilais que são expostos, aquando de uma brecha no endotélio, incluem o colagénio, que se liga ao receptor Ia/IIa, a fibronectina e laminina, que se ligam ao receptor Ic/IIa, e a vitronectina, que se liga ao receptor da vitronectina. A primeira glicoproteína a ligar-se ao vWF é a glicoproteína VI (que também se liga ao colagénio), sendo seguida da glicoproteína Ib IX/Ib V. Esta última actua associada ao factor VIII (que é transportado pelo wWF, que inibe a sua degradação) e permite uma adesão forte das plaquetas ao subendotélio, algo particularmente importante aquando de uma grande tensão de parede (por exemplo, aquando da passagem de uma grande quantidade de sangue). Apesar da ligação estabelecida ser forte, esta não é de natureza covalente, sendo do tipo electrostático e requerendo pontes de hidrogénio. Activação A ligação desses ligandos (ou de outros agentes em particular, tais como a trombina) despoleta uma alteração conformacional nos receptores plaquetários, de tal modo que é iniciada uma cascata de Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 144 sinalização intracelular, algo que leva a um evento exocítico, o qual é designado por reacção de libertação, ou por activação plaquetária. O modo de activação do sistema tubular denso é similar ao do retículo sarcoplasmático ao nível do músculo liso – a acção da fosfolipase C, promove a formação de IP3, que se liga ao seu respectivo receptor, o que promove a saída de cálcio para o citosol (já o DAG formado promove a exposição de glicoproteína IIb/IIIa na superfície plaquetária, bem como a activação da secreção de grânulos, por fosforilação da cínase de cadeia leve da miosina). De referir que, tanto a fosfolipase C, como a fosfolipase A2, são activadas aquando da ligação do colagénio, do vWF, da adrenalina, da vasopressina e da trombina a receptores específicos. Estes factores também inibem a produção de cAMP, um factor anti-hemostático. O cálcio é essencial para a activação plaquetária, ao activar a cínase das cadeias leves da miosina (via calmodulina) e ao activar algumas proteases que se encontram dependentes da sua acção (nomeadamente a calpaína I e a calpaína II), sendo assim essencial para que se dê a reorganização do citosqueleto plaquetário. Assim, quanto maiores os níveis intracelulares de cálcio, maior a activação plaquetária. De facto, a activação plaquetária está associada a descaradas alterações citosqueléticas e morfológicas, sendo emitido inicialmente um largo lamelipódio, e ulteriormente, vários pseudópodes. Essa formação de pseudópodes é conseguida através de uma despolimerização e repolimerização reorganizada dos microtúbulos. Após ocorrer a emissão de pseudópodes, regista-se uma contracção plaquetária, algo que permite que se dê a libertação de grânulos. Essa contracção está dependente da presença de alterações conformacionais na actina. De facto, quando a plaqueta se encontra em repouso, esta apresenta actina, sobretudo, na forma G (nesse estado, a polimerização da actina encontra-se inibida pela profilina e pela gelsotina). Ora, à medida que se dá a activação plaquetária, uma quantidade progressivamente maior de actina polimeriza, passando a constituir F-actina, sendo esta última fundamental para que ocorra a contracção plaquetária. De referir que, aquando da contracção, verifica-se que os pseudópodes emitidos se mantêm ligados ao citosqueleto, algo que se deve ao facto de a actin binding protein se ligar à F-actina e à Ib IX/Ib V. Aquando da activação plaquetária é também importante de referir que, uma série de fosfolipídeos com carga negativa passam da face interna da membrana (onde estão por norma) Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 145 para a face externa, por movimentos de flip-flop. Este movimento é essencial para a conversão da pró- trombina em trombina. Grânulos plaquetários Como já foi referido, quando as plaquetas são activas, estas expulsam os conteúdos dos seus grânulos. Existem vários tipos de grânulos plaquetários que podem apresentar conteúdos específicos e/ou não-específicos. Os grânulos plaquetários podem ser de várias categorias, nomeadamente: 1. Grânulos α – Estes grânulos contêm três factores hemostáticos (que são moléculas não- específicas), nomeadamente o vWF, o factor V de coagulação e o fibrinogénio (que constitui a forma inactiva da fibrina). Para além disso, os grânulos α também contêm moléculas específicas, nas quais se destacam o factor de crescimento das plaquetas, a β-trombiglobulina, e o factor plaquetário IV (estes dois últimos factores neutralizam a heparina, que é produzida ao nível das células endoteliais e tem efeitos anti-coagulantes). 2. Grânulos densos – Estes grânulos contêm cálcio, ATP, ADP, serotonina e anti-plasmina. O ADP é essencial para promover a adesão e a agregação, enquanto a serotonina se revela fundamental para a promoção da vasoconstrição e da agregação plaquetária. 3. Lisossomas 4. Inclusões lipídicas 5. Glicogénio - A presença de glicogénio ao nível das plaquetas é essencial, na medida em que estas têm capacidade de catabolisar este polímero, de modo a obter glicose. A glicose obtida sofre então um processo de glicólise anaeróbia, a partir do qual é possível obter ATP. Amplificação Moléculas de sinalização libertadas pelas plaquetas activadas, tais como o ADP, prostaglandinas e o tromboxano A2, activam plaquetas adicionais, o que amplifica a activação plaquetária. A ocorrência de amplificação está muito associada à acção de duas enzimas – a fosfolipase A2 e a ciclo-oxigénase. A fosfolipase A2 hidrolisa a fosfatidilcolina e a fosfatidilserina, levando à formação de ácido araquidónico. A ciclo-oxigénase promove a subsequente quebra do ácido araquidónico, formando-se tromboxano A2, que é libertado e activa, subsequentemente, a fosfolipase C noutras plaquetas. Em termos clínicos, a aspirina é um inibidor da ciclo-oxigénase, inibindo assim a coagulação, por redução da libertaçãode tromboxano A2. Outro agente anti-plaquetário, o clopidogrel, actua por inibição dos receptores para o ADP presentes ao nível da superfície plaquetária. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 146 Agregação A agregação é o fenómeno que permite a formação de um coágulo plaquetário, sendo que a sua ocorrência depende do fenómeno de amplificação. Tal como referido anteriormente, o vWF libertado por parte das plaquetas activas liga-se ao receptor Ib IX/Ib V e à medida que são activadas mais plaquetas são formadas pontes moleculares por entre estas. A activação plaquetária também induz alterações conformacionais do receptor plaquetário IIb/IIIa, ancorando-o ao citosqueleto (por via de vinculina e talina) e dotando-o da capacidade de se ligar ao fibrinogénio. Deste modo, como resultado da alteração conformacional no IIb/IIIa, o fibrinogénio que se encontra sempre presente no sangue forma pontes de ligações covalentes por entre as plaquetas, participando assim na formação do coágulo plaquetário. De referir que o vWF e a fibronectina também são capazes de se ligar a este receptor. Regulação da resposta hemostática A resposta hemostática é localizada e confinada ao local onde ocorreu a lesão, na medida em que nas regiões adjacentes, alguns inibidores impedem a propagação da resposta hemostática. Assim, nas vizinhanças da lesão, verifica-se um aumento dos níveis de cAMP, sendo que o cAMP inibe a fosfolipase C, a ciclo-oxigénase, a PKC, a formação de ácido araquidónico e a fosforilação da cínase das cadeias leves de miosina, e activa a ATPase Mg2+ e Ca2+. Também a presença de heparina, produzida pelas células endoteliais das vizinhanças, é essencial para o impedimento do alastramento da activação plaquetária. Por outro lado, a guanil cíclase desempenha um papel essencial na contenção da hemóstase ao local de lesão endotelial. De facto, esta enzima promove um aumento da síntese de óxido nítrico, o que está associado a uma maior produção de cGMP. Ora, o cGMP inibe a degradação do cAMP, ao mesmo tempo que impede a mobilização de cálcio e, como tal, a agregação plaquetária. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 147 Hemóstase secundária Um coágulo sanguíneo é uma massa semi-sólida constituída por plaquetas e fibrina. Por seu turno, um trombo também é um coágulo sanguíneo, apesar de este termo ser normalmente reservado para os coágulos intravasculares (e, como tal, um coágulo formado no local de uma lesão da pele não é designado por trombo). A composição relativa dos trombos varia consoante o local de trombose. Ao nível dos trombos da circulação arterial encontramos uma proporção maior de plaquetas, enquanto os trombos da circulação venosa apresentam uma maior proporção de fibrina. A activação plaquetária e a formação de coágulos são eventos relacionados, mas distintos, que podem ocorrer em paralelo, ou na ausência um do outro. De facto, as plaquetas activadas podem libertar pequenas quantidades de alguns factores (tais como o cálcio, o factor V, o factor VIII ou a trombina) que participam na coagulação sanguínea. Paralelamente, alguns factores de coagulação (nomeadamente a trombina e o fibrinogénio) desempenham um papel muito importante na activação plaquetária. Deste modo, as interacções moleculares ao nível da maquinaria envolvida na activação plaquetária e formação de coágulos plaquetários ajudam à ocorrência de hemóstase coordenada. O sistema cardiovascular normalmente mantém um frágil balanço, evitando dois estados extremos e patológicos – por um lado, uma coagulação inadequada levaria ao extravasamento de sangue e, consequentemente, a hipovolémia. Por outro lado, uma coagulação hiperactiva resultaria em trombose e, em última análise, no término do fluxo sanguíneo. O sistema cardiovascular consegue atingir este equilíbrio entre um estado anti-trombótico e pró-trombótico a partir de uma série de componentes da parede vascular e do sangue. A promoção de um estado anti-trombótico ocorre naturalmente, ao nível das células endoteliais normais. Já a promoção de um estado pró-trombótico está associado a danos vasculares, nomeadamente à incapacidade das células endoteliais produzirem factores anti- trombóticos, e à remoção física ou lesão das células endoteliais, o que permite que o sangue passe a contactar com factores trombogénicos que se encontram sob o endotélio. Por outro lado, a activação das plaquetas por qualquer um dos ligandos que se liga às plaquetas promove também um estado pró- trombótico. De acordo com a visão clássica, podem ocorrer duas sequências distintas ao nível da coagulação – a via intrínseca e a via extrínseca. A via intrínseca é aquela que fica activada, quando o sangue entra em contacto com uma superfície carregada negativamente, ao nível de um laboratório (esta via é observada quando se coloca sangue num tubo de ensaio de vidro). Já a via extrínseca torna-se activa quando o sangue entra em contacto com o material das membranas celulares danificadas. Contudo, em ambos os casos, o evento precipitante despoleta uma reacção em cadeia que converte os precursores em factores activos que, por sua vez, catalisam a conversão de outros precursores em outros factores activos, e assim sucessivamente. A maior parte desses “precursores” são zimogénios, que originam proteases de serina designadas por “factores activos”. Desta forma, a proteólise controlada participa na amplificação de sinais de coagulação. Todavia, estas cascatas não ocorrem ao nível da fase fluida do sangue, onde a concentração desses factores é baixa. No caso da via intrínseca, a cadeia de reacções ocorre, sobretudo, ao nível das membranas das plaquetas, enquanto no que refere à via extrínseca, as reacções ocorrem, sobretudo, ao nível de um “factor tecidular” que se encontra ligado às membranas. Ambas as vias convergem numa via comum, que culmina na génese de trombina e, em última análise, na sua “estabilização” em fibrina. As proteínas da cascata de coagulação apresentam uma estrutura de domínio distinta, o que inclui diferenças a vários níveis, nomeadamente: Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 148 1. Domínio do peptídeo de sinal - necessário para a translocação do peptídeo para o retículo endoplasmático, onde o peptídeo sinal é clivado. 2. Domínio do pró-peptídeo (domínio rico em ácido γ-carboxigultâmico) - Necessário para a ligação do cálcio 3. Domínio do factor de crescimento do tipo epidermal - Essencial para a formação de complexos proteicos 4. Domínios kringle – Estrutura em ansa que é criada a partir de várias pontas dissulfureto, sendo essencial para a formação de complexos proteicos e para a ligação da protease ao seu alvo. 5. Domínio catalítico – Confere a função de protease de serina às proteínas de coagulação. Via intrínseca A via intrínseca consiste numa cascata de reacções iniciadas por factores que se encontram, todos eles, presentes ao nível do sangue. Quando contacta com uma superfície carregada negativamente, tal como o vidro, ou a membrana de uma plaqueta activa, uma proteína plasmática designada por factor XII torna-se activa, originando o factor XIIa (o sufixo “-a” indica que esta é a forma activa do factor respectivo). Uma molécula designada por cininogénio de alto peso molecular (HMWK) é produzida pelas plaquetas e pode se encontrar ligada à membrana plaquetária, ajudando a ancorar o factor XII à superfície carregada negativamente das plaquetas(como tal, o HMWK actua como co-factor do factor XII). Todavia, a conversão do factor XII em factor XIIa operada pelo HMWK é limitada em velocidade. Deste modo, quando se regista a acumulação de uma pequena quantidade de XIIa (por acção do HMWK), o XIIa formado converte a pré-calicreína em calicreína (contudo, a prolilcarboxipeptidase é a enzima mais importante para converter a pré-calicreína em calicreína). Por sua vez, a calicreína acelera a conversão do factor XII em factor XIIa (mecanismo de feedback positivo), sendo que este é o único processo da coagulação para o qual não é necessária a presença de cálcio (embora seja essencial a presença de zinco). Por outro lado, a actividade proteolítica das calicreínas nos cininogénios leva à libertação de pequenos peptídeos vasodilatadores, designados por cininas. De referir que a conversão de pré- calicreína em calicreína também pode ocorrer por auto-activação, aquando do contacto desta com o colagénio subendotelial ou por via da acção de uma carboxipeptidase endotelial. Subsequentemente, o factor XIIa cliva proteoliticamente o factor XI, convertendo-o em factor XIa. Por seu turno, o factor XIa activa o factor IX numa protease - o factor IXa. O factor IXa e os dois produtos a jusante da cascata (os factores Xa e, mais importante, a trombina) clivam proteoliticamente o factor VIII (que, por ser muito instável, circula ligado ao vWF), desligando-o do vWF e activando-o em factor VIIIa, que é um co-factor da reacção subsequente. Assim, os factores IXa e VIIIa, juntamente com o cálcio (que, tal como o factor Va e a trombina pode ser originado a partir de plaquetas activas) e com Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 149 fosfolipídeos carregados negativamente, formam um complexo trimolecular, o qual é designado por tenase intrínseca. A tenase converte subsequentemente o factor X numa protease – o factor Xa. Via extrínseca A via extrínseca é uma cascata de reacções de proteases, que é iniciada por factores que se situam fora do sistema vascular. As células não-vasculares exprimem uma proteína integral membranar designada por factor tecidular (tromboplastina tecidular ou factor III), que é um receptor de uma proteína plasmática, designada por factor VII. Quando ocorre uma lesão no endotélio, o factor VII entra em contacto com o factor tecidular que, por via não-proteolítica, activa o factor VII em factor VIIa (de facto, todos os factores de coagulação são produzidos no fígado sob a forma inactiva, excepto uma pequena quantidade de factor VII, que é produzida na forma activa. Essa pequena quantidade de factor VIIa é essencial para que mais factor VII seja convertido em factor VIIa). Subsequentemente, o factor VIIa, o factor tecidular e o cálcio formam um complexo trimolecular, análogo à tenase. Este complexo cliva proteoliticamente os factores X e IX, o que leva à formação de factor Xa e IXa, respectivamente. É importante salientar que todo o factor Xa livre é inibido pelo TFPI (inibidor do factor tecidular), algo que é potenciado pela heparina. Isto faz com que este factor dificilmente consiga actuar junto às plaquetas, onde ocorrerá a via comum. Todavia, esta inibição se verifica para o factor IXa e, por isso, o factor IXa proveniente da via extrínseca migra para junto das plaquetas, onde activa o factor X, que inicia a via comum. Já o factor Xa formado ao nível do endotélio permanece aí, sendo essencial para a activação precoce de uma pequena quantidade de plaquetas que se encontram próximas do endotélio. Via comum Quer o factor Xa provenha da via intrínseca, quer este factor provenha da via extrínseca, a cascata procede ao longo da via comum, que tem como primeira protease, precisamente, o factor Xa. A trombina, um produto a jusante destas reacções, converte o factor V em factor Va (um factor altamente homólogo ao factor VIIIa). Os factores Xa, Va, juntamente com o cálcio e com fosfolipídeos, formam outro Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 150 complexo trimolecular, o qual é designado por pró-trombinase. A pró-trombinase, como o seu nome indica, actua numa proteína plasmática designada por pró-trombina, para formar trombina (factor IIa) e fragmentos de pró-trombina 1 e 2. Os fragmentos de pró-trombina são muito estáveis e, como tal, muito úteis na avaliação da coagulação, enquanto a trombina é a protease central da cascata de coagulação, sendo responsável por três tipos principais de acções: 1. Activação de componentes a jusante da cascata de coagulação: A acção principal da trombina prende-se com a catalisação da proteólise do fibrinogénio, por via da clivagem da cadeia Aα (o que permite a libertação de fibrinopeptídeo A) e da clivagem da cadeia Bβ (o que permite a libertação de fibrinopeptídeo B). A libertação de fibrinopeptídeos (que, devido ao facto de serem muito mais estáveis que a fibrina são úteis para avaliar a coagulação) resulta na formação de monómeros de fibrina, que são ainda solúveis. Os monómeros de fibrina, compostos por cadeias α, β e γ, polimerizam espontaneamente para formar polímeros de fibrina (que aprisionam algumas células sanguíneas). Por outro lado, a trombina também activa o factor XIII em factor XIIIa que, por sua vez, medeia a interacção covalente entre as cadeias α e γ dos polímeros de fibrina, para formar uma rede de fibrina estável, ainda menos solúvel que os polímeros de fibrina (esse incremento da estabilidade prende-se com o facto de se passarem a estabelecer ligações covalentes, em substituição das pontes de hidrogénio). 2. Mecanismo de feedback positivo em vários níveis da cascata a montante: A trombina pode catalisar a formação de nova trombina (a partir da pró-trombina), podendo também catalisar a formação dos co-factores Va e VIIIa e do factor XIa, entre outros. 3. Acções parácrinas que influenciam a hemóstase: Em primeiro lugar, a trombina promove a libertação, por parte de células endoteliais, de PGI2, ADP, vWF e activador do plasminogénio tecidular. Para além disso, a trombina tem a capacidade de activar as plaquetas a partir do PAR-1, um receptor acoplado à proteína G activado por uma protease (sendo que as plaquetas activadas promovem a via intrínseca, e estão associadas à génese de mais trombina). Desta forma, a trombina é um elemento chave da interacção molecular entre a activação plaquetária e a coagulação sanguínea, sendo que ambos os processos são necessários para uma óptima coagulação. Comparação entre via intrínseca e via extrínseca A divisão entre “via intrínseca” e “via extrínseca” está a ficar deveras ultrapassada, sendo apenas utilizada por motivos pedagógicos. De facto, a coagulação opera através de várias interligações entre as vias, quer numa direcção a montante, quer numa direcção a jusante. As várias acções desempenhadas pela trombina ilustram perfeitamente a afirmação anterior. Porém este não é o único exemplo - o complexo trimolecular [factor tecidular + factor VIIa + cálcio] da via extrínseca também activa os Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 151 factores IX e XI da via intrínseca. Por outro lado, os factores IXa e Xa da via intrínseca têm a capacidade de activar o factor VII da via extrínseca. Contudo, as evidências clínicas mostram que as reacções da via extrínseca são mais importantes, comparativamente às da via intrínseca, para a coagulação. Apesar do factor tecidular se encontrar normalmente ausente das células intravasculares, a inflamação pode despoletar a expressão de factortecidular, ao nível dos monócitos periféricos e das células endoteliais. Como tal, num quadro de sepsis, o factor tecidular produzido pelos monócitos em circulação inicia uma trombose intravascular. Defeitos nos factores de coagulação A ocorrência de defeitos em factores de coagulação está associada a três tipos de situações distintas: 1. Certos defeitos em determinados factores são de tal magnitude que são incompatíveis com a vida. 2. Existem defeitos em factores que são compatíveis com a vida, mas que estão associados a doenças hemorrágicas. Defeitos dos factores VII, X, V, VIII, IX e trombina levam a este tipo de situação (o defeito do factor VIII corresponde a um quadro de hemofilia A, enquanto o défice de factor IX está associado a hemofilia B). 3. Defeitos nos factores da via intrínseca não condicionam doença hemorrágica. Por outro lado, défices de vitamina K estão associados a defeitos na coagulação (inicialmente de natureza trombótica e, depois, de natureza hemorrágica). Isto ocorre porque, após serem sintetizados no fígado, alguns factores de coagulação (trombina, VII, IX e X, proteína C e proteína S) sofrem uma γ- carboxilação em resíduos essenciais para ligação à membrana plaquetária. Essa carboxilação é efectuada por uma carboxílase dependente da vitamina K, que se oxida na reacção, sendo convertida à sua forma epóxido (e para ser re-utilizada, a vitamina K tem de ser de novo reduzida). Assim, a ausência de vitamina K condiciona a ocorrência de coagulação. Acção de anti-coagulantes As células endoteliais são as principais fontes dos agentes que ajudam a manter a normal fluidez do sangue, permitindo a localização da hemóstase à região lesada. Estes agentes são de dois tipos gerais, podendo ser factores parácrinos e factores anti-coagulantes. Factores parácrinos As células endoteliais geram prostaciclina (PGI2), que promove a vasodilatação e, como tal, o fluxo sanguíneo. Paralelamente, a prostaciclina também inibe a activação plaquetária e, como tal, a coagulação. Para além disso, as células endoteliais também produzem óxido nítrico (devido à estimulação pela trombina). De referir que, através do cGMP, o óxido nítrico inibe a adesão e agregação plaquetária. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 152 Factores anti-coagulantes As células endoteliais também geram factores anti-coagulantes, que interferem com a cascata da coagulação. Estes factores inibem os factores de coagulação que se encontram fora do endotélio lesado ou fora da região das plaquetas activas. Em termos sumários, estes factores incluem: 1. Inibidor da via do factor tecidular (TFPI): O TFPI é uma proteína plasmática dependente de cálcio e da presença de factor Xa, que se liga ao complexo trimolecular [factor tecidular + factor VIIa + cálcio] da via extrínseca, bloqueando a actividade de protease do factor VIIa. Por outro lado, o TFPI inibe o factor Xa que flui livremente no plasma. 2. Anti-trombina III (AT III): A anti-trombina III liga-se ao factor Xa e à trombina, inibindo-os. A heparina e o sulfato de heparano são co-factores da ATIII, sendo que a heparina de baixo peso molecular expõe o centro activo da trombina à ATIII, potenciando a sua ligação; enquanto a heparina de alto peso molecular, também promove esta ligação, ao ligar-se à anti-trombina e trombina. O heparano encontra-se presente ao nível da superfície externa da maior parte das células, incluindo das células endoteliais. Por outro lado, os mastócitos e os basófilos participam na libertação de heparina. É importante referir que a AT III inibe ainda o factor XI e o complexo factor VII-tecidular. 3. Co-factor II da heparina: A sua acção é similar à da ATIII, mas o seu efeito é menos potente. 4. Trombomodulina: Este glicosaminoglicano produzido nas células endoteliais apresenta a capacidade de formar um complexo com a trombina, removendo-a da circulação e inibindo a coagulação. Para além disso, a trombomodulina também se liga à proteína C. 5. C1-inibidor: Principal inibidor da via intrínseca. 6. Proteína C: Após a proteína C se ligar ao complexo trombina-trombomodulina (nomeadamente ao componente da trombomodulina), esta torna-se activa pela trombina. A proteína C activa (Ca) é uma protease que, juntamente com a proteína S, inactiva os co-factores Va e VIIIa, inibindo, deste modo, a coagulação. Assim, considera-se a proteína Ca como sendo a principal inibidora da trombose na microcirculação. 7. Proteína S: Co-factor da proteína C. Por fim, a fagocitose dos factores de coagulação activos, por parte das células de Kuppfer do fígado, também mantém a hemóstase sob controlo. Bernardo Manuel de Sousa Pinto ❖Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Fisiologia I 153 Fibrinólise A fibrinólise é o processo que permite a quebra da fibrina estável. Este processo inicia-se com a conversão do plasminogénio em plasmina (que corta os fragmentos de fibrina), algo que é catalisado por um de dois activadores – o activador de plasminogénio tecidular (t-PA) ou o activador do plasminogénio do tipo urocínase (u-PA). Via intrínseca da fibrinólise A via intrínseca da coagulação promove simultaneamente a fibrinólise (constituindo a via intrínseca da fibrinólise), nomeadamente devido à acção dos factores XIIa, XIa e calicreína. Apesar da via intrínseca da coagulação ter uma ocorrência muito residual, esta adquire particular importância ao nível da fibrinólise (mais até que ao nível da coagulação), nomeadamente para gerar uma resposta precoce. A calicreína, o factor XIIa e XIa, activam a conversão do plasminogénio em plasmina, enquanto a bradicinina promove a libertação pelo endotélio de um activador do sistema extrínseco da fibrinólise, o t-PA. Para além disso, a calicreína converte o u-PA de cadeia simples em u-PA de cadeia dupla, sendo esta última a única forma activa do u-PA. Via extrínseca da fibrinólise A libertação do t-PA e do u-PA, que promovem a conversão do plasminogénio em plasmina ao nível da via extrínseca da fibrinólise, é promovida pela bradicinina, pelo stress, pela pressão, pela trombina, pela adrenalina, ou por uma diminuição do fluxo sanguíneo. O t-PA é uma protease de serina produzida pelas células endoteliais. Cada cadeia de t-PA contém duas kringles ao nível do seu N-terminal e um motivo protease no C-terminal. A t-PA é activa quer em cadeia simples, quer em cadeia dupla, embora seja mais activa em cadeia dupla. A sua acção prende-se com a conversão do plasminogénio em plasmina, sendo que a presença de fibrina acelera amplamente a conversão do plasminogénio em plasmina. A acção do t-PA envolve um importante fenómeno de amplificação. O t-PA de cadeia simples promove a conversão limitada de plasminogénio em plasmina. A pequena quantidade de plasmina formada, por sua vez, promove a formação de t-PA de cadeia dupla, que actua promovendo uma maior génese de plasmina. Já o u-PA é produzido pelas células endoteliais ou pelas células epiteliais renais, tendo apenas acção quando se encontra em cadeia dupla. Para isso, o u-PA de cadeia simples tem de sofrer uma clivagem proteolítica, por parte do t-PA (algo que é potenciado pela calicreína e plasmina). Tal como o t-PA, o u- PA converte o plasminogénio em plasmina, contudo, esta acção requer a ancoragem do u-PA a um receptor presente na superfície celular, o qual é designado por receptor activador do u-PA (u-PAR). Plasminogénio e plasmina O plasminogénio é produzido, sobretudo, ao nível do fígado, sendo uma grande glicoproteína de cadeia simples, constituída por uma cadeia pesada com