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Artigo Negócio jurídico processual em contrato de consumo

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DEBATE. JORNAL CARTA FORENSE. 
MATÉRIA DE CAPA DE JANEIRO DE 2018. 
 
NEGÓCIO JURÍDICO PROCESSUAL EM CONTRATO DE CONSUMO: IMPOSSIBILIDADE. 
 
Flávio Tartuce. Advogado e parecerista. Doutor em Direito 
Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela 
PUCSP. Professor titular permanente do programa de mestrado 
e doutorado da FADISP. Professor e coordenador dos cursos 
de pós-graduação lato sensu da EPD. Professor do G7 Jurídico. 
Diretor do IBDFAM – Nacional e vice-presidente do 
IBDFAM/SP. Autor do Grupo GEN Editorial. 
 
Festejado por muitos e criticado por outros, o negócio jurídico processual é uma das principais 
novidades do Código de Processo Civil de 2015, previsto nos seus arts. 190 e 191, sem prejuízo de outros 
comandos. Trata-se de instituto que vem sendo abordado há tempos por processualistas de destaque como 
Fredie Didier Júnior, Antonio do Passo Cabral, Pedro Henrique Pedrosa Nogueira e Fernando Gajardoni. 
Cuida-se de projeção da teoria geral dos atos e negócios jurídicos para o âmbito do processo civil 
brasileiro, estando presente, na expressão alemã, um contrato processual (Prozessvertrage) ou um 
Processo Civil convencionado (Konventionalprozess). Como bem define Pedro Henrique Nogueira, em 
sua dissertação de mestrado defendida na Faculdade de Direito da UFBA, o negócio jurídico processual 
“é o fato jurídico voluntário em cujo suporte fático, descrito em norma processual, esteja conferido ao 
respectivo sujeito o poder de escolher a categoria jurídica ou de estabelecer, dentro dos limites fixados no 
próprio ordenamento jurídico, certas situações jurídicas processuais. Estando ligado ao poder de 
autorregramento da vontade, o negócio jurídico processual esbarra em limitações preestabelecidas pelo 
ordenamento jurídico, como sucede em todo negócio jurídico” (Negócios Jurídicos 
Processuais.Disponível em: <https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/10743/1/Pedro%20Henrique.pdf>. 
Acesso em: 8 dez. 2017). 
 Na verdade, a categoria não é uma total novidade no sistema processual, pois já existiam 
negócios jurídicos processuais típicos tratados anteriormente pela lei. A título de exemplo, podem ser 
citadas a convenção de arbitragem e a cláusula de eleição de foro, a última tratada desde a remota Súmula 
335 do STF, do ano de 1963. 
 Neste breve artigo, analisaremos o debate a respeito de se convencionar negócios jurídicos 
processuais em contratos de consumo. O cerne da discussão jurídica gira em torno do conteúdo do art. 
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190 do Novo CPC, segundo o qual, versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é 
lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento, com o fito de ajustá-lo às 
especificidades da causa. As partes ainda podem convencionar sobre os seus ônus probatórios, poderes, 
faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo. Ademais, conforme o parágrafo único do 
mesmo dispositivo, de ofício ou a requerimento, o juiz controlará a validade das convenções processuais 
celebradas entre as partes, recusando-lhes aplicação somente nos casos de nulidade absoluta ou de 
inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma parte se encontre em manifesta situação de 
vulnerabilidade. 
No último preceito é que parece haver sério entrave técnico para que seja estabelecido o negócio 
jurídico processual em contratos de consumo. Como é notório, o CDC é expresso ao vedar um dos 
negócios jurídicos processuais típicos, qual seja a cláusula compromissória de arbitragem, quando esta 
for compulsória (art. 51, inc. VII, da Lei n. 8.078/1990). Não obstante algumas quebras 
doutrinárias e jurisprudenciais, a verdade é que a arbitragem ainda não mergulhou de verdade no âmbito 
dos contratos de consumo. 
A afirmação também vale para os demais negócios jurídicos processuais, pelo fato de ter o 
legislador processual utilizado o termo vulnerabilidade ao final do parágrafo único do art. 190 do Estatuto 
Processual emergente. Como se sabe, há forte corrente doutrinária que defende existir uma presunção 
absoluta ou iure et de iure de vulnerabilidade do consumidor nas relações de consumo, conclusão retirada 
da dicção do art. 4º, inc. I, do Código de Defesa do Consumidor. Segundo essa mesma visão, essa 
vulnerabilidade é inafastável, o que justificou a elaboração da norma consumerista, diante do mandamento 
constitucional constante do art. 48 das Disposições Finais e Transitórias da CF/1988. Essa também é a 
posição que sigo, sendo certo que a vulnerabilidade é elemento posto da relação de consumo, ou seja, 
todo consumidor é vulnerável, sem exceção. Em outras palavras, trata-se de um conceito jurídico que não 
aceita declinação ou objeção, sendo fixado previamente, sem qualquer análise casuística. 
Por outra via, a hipossuficiência é uma disparidade fática a que está submetido o destinatário 
final da relação jurídica de consumo, podendo ser ela econômica, política, social ou até técnico-
informacional, pelo desconhecimento específico que se tem em relação ao produto ou serviço que está 
sendo adquirido. Todo consumidor é vulnerável, mas nem sempre será hipossuficiente. Sendo o 
consumidor vulnerável – expressão que chega a ser pleonástica –, justifica-se a aplicação do CDC. Se, 
além de ser vulnerável, for hipossuficiente, o consumidor terá a seu favor um plus, qual seja a 
possibilidade de pleitear a inversão do ônus da prova, nos termos do art. 6º, inc. VIII, da Lei n. 8.078/1990. 
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Em conclusão, penso que o legislador processual pecou ao utilizar o termo vulnerabilidade na 
limitação dos negócios jurídicos processuais. Se tivesse utilizado a expressão hipossuficiência, teria 
aberto a possibilidade jurídica de se instituírem negócios jurídicos processuais em contratos de consumo. 
 Com o devido respeito à posição em contrário, concluo que, pela vulnerabilidade reconhecida 
nas relações de consumo, sempre haverá invalidade do negócio jurídico processual inserido em contrato 
de consumo, pelo fato de estar a previsão em desacordo com o sistema de proteção ao consumidor, nos 
termos do art. 51, inc. XV, do CDC. O caso, sem dúvidas, é de nulidade absoluta, como está previsto no 
art. 190, parágrafo único, do CPC, pois estamos diante de hipótese de cláusula ou previsão abusiva, que 
não é admitida pelo ordenamento jurídico brasileiro. 
 Como palavras finais, não desconheço que os processualistas têm uma visão diferente a respeito 
da vulnerabilidade, analisada casuisticamente, como fazem os consumeristas em relação à 
hipossuficiência. O tema, a propósito, foi desenvolvido por minha irmã, Fernanda Tartuce, em sua tese 
de doutorado defendida na USP, com que debato o tema há tempos (Igualdade e vulnerabilidade no 
processo civil. Rio de Janeiro: GEN/Forense, 2012). Porém, o legislador parece ter ignorado as visões 
multifacetadas da ideia de vulnerabilidade e, infelizmente, fechou as portas para os negócios processuais 
em contratos de consumo. 
 
NEGÓCIO JURÍDICO PROCESSUAL EM CONTRATOS DE CONSUMO: POSSIBILIDADE 
 
Fernando da Fonseca Gajardoni. Juiz de Direito no Estado de São Paulo. Doutor e Mestre 
em Direito Processual pela Faculdade de Direito da USP (FD-USP). Professor Doutor de Direito 
Processual Civil da Faculdade de Direito da USP – Ribeirão Preto (FDRP-USP), do programa de 
Mestrado em Direitos Coletivos e Cidadania da UNAERP, e do G7 Jurídico. 
A vontade das partes é, no CPC/2015, fonte da norma processual. O art. 190 permite que elas 
possam convencionar sobre procedimento, bem como sobre seus poderes, deveres, faculdades e ônus 
processuais. Exemplificativamente, reconhece-se às partes o poder de, antes ou no curso do processo 
judicial, ampliar ou reduzir prazos, renunciar antecipadamente à interposição de recursos,fixar hipóteses 
de impenhorabilidade além das previstas em lei, e até mesmo autorizar a penhora sobre vencimentos (no 
limite de 30%). 
Já tive a oportunidade de discorrer sobre o tema e afirmar a existência de 06 (seis) requisitos de 
validade/eficácia dos negócios jurídicos processuais atípicos. Só serão aceitas convenções processuais 
nas hipóteses em que: 1) as partes sejam as titulares da situação jurídica a respeito do qual pretendam 
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dispor, sendo vedada convenção processual que atinja deveres, direitos, ônus e faculdades de terceiros; 2) 
o objeto da convenção seja lícito, de modo a não se admitir negócios jurídicos processuais que acabem 
por violar o conteúdo mínimo do processo constitucional (regras constitucionais de competência, o 
contraditório, a ampla defesa, a publicidade, a motivação, a licitude da prova, etc.); 3) a celebração da 
convenção seja feita por escrito (especialmente no negócios jurídicos pré-processuais), pois só assim é 
possível se operacionalizar judicialmente, com o mínimo de segurança e presteza, a alteração da regra 
legal por convenção das partes; 4) haja preservação da autonomia da vontade do contratantes, devendo o 
juiz deixar de aplicar a convenção processual nos casos de nulidade (erro, dolo, coação, etc.), inserção 
abusiva em contrato de adesão ou vulnerabilidade manifesta de um dos celebrantes; 5) as partes sejam 
civilmente capazes, vedada a celebração de convenção por incapazes, ainda que representados ou 
assistidos; e 6) o direito objeto da convenção processual seja autocomponível, isto é, esteja na esfera de 
disponibilidade das partes (GAJARDONI, DELLORE, ROQUE e OLIVEIRA JR, Teoria Geral do 
Processo: comentários ao CPC/2015. 2ª ed. São Paulo. Método, 2018, p. 683-688). 
Observados tais requisitos, perfeitamente possível a celebração convenções processuais nos 
contratos de consumo entre partes capazes, não sendo a suposta presunção legal de vulnerabilidade do 
consumidor (art. 4º, III, do CDC) suficiente para impedir a incidência da regra processual. 
Primeiro, porque, de ordinário, os contratos consumeristas encerram direito autocomponível, 
estando seu objeto na esfera de disponibilidade dos contratantes, conforme exige o art. 190, caput, do 
CPC. 
 Segundo, pois a presunção legal de vulnerabilidade do CDC não parece absoluta, cedendo diante 
da demonstração da preservação da autonomia de vontade das partes e da oportunidade real de livre 
negociação. Note-se que o CPC/2015, ao tratar do reconhecimento do vício da convenção processual, não 
tolera presunções, exigindo que a parte celebrante esteja em “manifesta situação de vulnerabilidade” (art. 
190, parágrafo). 
Terceiro, pois mesmo no regime processual revogado já se admitia – sem resistência 
acadêmica/jurisprudencial -, a celebração de convenções pré-processuais típicas em contratos de 
consumo. As convenções de eleição de foro sempre estiveram presentes nestes contratos e jamais se 
cogitou de pronunciar automaticamente a nulidade delas com base na presunção de vulnerabilidade do 
consumidor. Ao contrário, sempre se exigiu para a decretação da nulidade da cláusula a constatação 
judicial da efetiva dificultação do exercício da defesa em juízo (art.112, parágrafo, CPC/1973). 
 Quarto, porque o autoregramento das partes é tendência do direito pátrio, já tendo alcançado 
espaços até mais tutelados pelo Estado do que o das relações de consumo. Basta ver, neste sentido, a 
recente admissão, no direito brasileiro, de cláusula compromissória de arbitragem nos contratos com a 
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Fazenda Pública (art. 1º e §§ da Lei 9.307/96, conforme redação da Lei 13.129/2015) e nos individuais 
de trabalho (art. 507-A da CLT, conforme redação da Lei 13.467/2017). 
E quinto, pois vedar, prima facie, o cabimento das convenções processuais nos contratos de 
consumo, implica privar o consumidor da celebração de negócios processuais que lhe sejam vantajosos, 
tais como aqueles em que o fornecedor renuncia antecipadamente ao direito ao recurso, caso sua 
condenação não supere determinada alçada; ou que aceite pagar integralmente as custas de eventual 
processo judicial, independentemente da sorte da causa. 
Portanto, não há nulidade automática das convenções processuais celebradas nos contratos do 
consumo, inclusive em vista da regra geral do sistema processual de que não se decretará nulidade sem 
prejuízo (art. 277 do CPC). 
Eventual vício de vontade ou a situação de vulnerabilidade real do consumidor deve ser analisado 
pelo juiz no caso concreto, na forma do art. 190, parágrafo único, do CPC, e somente se for constatado o 
vício na celebração e o prejuízo é que a convenção processual constante do contrato de consumo deixará 
de ser aplicada. 
Evidentemente, a questão se torna mais complexa quando, além da relação de consumo, o 
contrato entre as partes também seja de adesão (art. 54 do CDC). 
Para estes casos, à luz do art. 190, parágrafo único, do CPC, também se entende que a nulidade 
não é automática e depende da aferição se a inserção da convenção processual foi ou não abusiva; se 
causou ou não prejuízo ao aderente. “Talvez um bom parâmetro para interpretação da hipótese seja o do 
artigo 4.º, § 2.º, da Lei de Arbitragem n.º 9.307/1996, que só reconhece a eficácia da convenção se, em 
juízo, o aderente concordar expressamente com a regra, ou tomar a iniciativa de utilizá-la” (GAJARDONI, 
DELLORE, ROQUE e OLIVEIRA JR, Teoria Geral do Processo: comentários ao CPC/2015. 2ª ed. São 
Paulo. Método, 2018, p 700).

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