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E. Nicoll A LEI DE AÇAO E REAÇAO

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A LEI DE AÇÃO E REAÇÃO
(KARMA)
 
E. Nicoll
 
            (Publicado pelo Serviço de Divulgação do Livro Teosófico, da Sociedade Teosófica no Brasil, em 1960, em São Paulo-SP; não foram fornecidas informações sobre tradução e revisão. Para esta apresentação utilizamos um exemplar pertencente à 3ª edição do livro.)
            A palavra Karma significa ação. É a lei divina de justiça imanente, segundo a qual todo o homem deve inevitavelmente suportar as conseqüências de suas próprias faltas, a ninguém podendo transferir sua responsabilidade.
            Para quem inicia o estudo da Teosofia, a lei do Karma é de compreensão, um pouco difícil; por isso vamos torná-la acessível aos que desejam progredir na senda da Evolução.
            Explicaremos o que é o Karma; como ele limita nossos atos, e tentaremos provar que a nossa vontade, bem orientada, é superior ao destino.
            Responderemos a estas perturbadoras perguntas: “Somos escravos ou somos senhores do Karma? Devemos deixá-lo agir, cruzando os nossos braços com resignação, ou lutar energicamente contra ele?”
            Muitos dos meus irmãos conhecem o admirável monólogo de Shakespeare, no Hamlet: “To be or not to be? That is the question...” - "Ser ou não ser, eis a questão”. O que é mais nobre para a alma: sofrer as pedradas da fortuna cruel ou pegar em armas contra um mundo de dores e terminar com elas resistindo? Morrer, dormir... mais nada. Dizer que, por meio de um sono acabamos com as angústias e os mil acidentes a que a nossa carne está sujeita é, na verdade, um desenlace que todos nós fervorosamente podemos desejar.
            “Morrer... dormir... dormir... sonhar talvez, quem sabe? Ah! Aqui está a dúvida! Pois que sonhos podem sobreviver naquele sono da morte, depois de nos termos libertado deste bulício mortal?
            “Eis o que nos obriga a fazer pausa: eis a reflexão, de que procede a calamidade de uma vida tão longa. Com efeito, quem suportaria os açoites e os escárnios da vida, a injustiça do opressor, a contumélia do orgulhoso, os tormentos do amor desprezado, as dilações da lei, a insolência do poder, e os maus tratos que o mérito paciente recebe de criaturas indignas, podendo com um simples punhal outorgar a si mesmo a tranqüilidade? Quem quereria sopesar o fardo, gemer e suar debaixo de uma vida pesadíssima, se o temor de alguma coisa depois da morte - o desconhecido país de cujas raias nenhum viajante ainda voltou, - não nos dominasse a vontade, e não fizesse antes padecer os males que sofremos, do que voar para outros que ignoramos? Assim a consciência torna-nos covardes, assim o fulgor natural da resolução é amortecido, pelo pálido clarão do pensamento e assim empresas enérgicas e de grande alcance torcem o caminho e perdem o nome de ação...”
            Eis o célebre monólogo de Hamlet, da tragédia de Shakespeare. Hamlet esmagado pelo sofrimento e pela dúvida, vendo em torno de si infâmias e perfídias, pergunta se não fora melhor libertar-se da vida. Mas, o temor das conseqüências dos nossos atos e a dúvida em saber o que se passa além da morte torna-o covarde diante do inevitável. É o destino; é a responsabilidade de um ato impensado; são as conseqüências das nossas ações em vidas subseqüentes que nos levam a meditar antes de tomarmos uma resolução suprema.
            Mas, se quisermos sentir e compreender o karma, contemplemos um instante esse grupo que a estatuária antiga nos legou - Laocoonte.
            O homem, enlaçado pelas serpentes que o envolvem por todos os lados, luta, contorce-se, curva-se distendendo a sua musculatura de atleta; todas as fibras se retesam, numa atitude vencedora. Mas, os filhos, ainda fracos e inexperientes, sem envergadura para a luta, são facilmente dominados pela dor, esmagados pelo aperto formidável do destino. O homem forte consegue afastar o abraço compressor do réptil. Ei-lo lutando, o olhar dominador, o porte vitorioso. A criança sem energia, deixa-se facilmente asfixiar no círculo cada vez mais apertado da serpente. E no olhar do pai percebe-se a luta interior diante da sua impotência em não poder levar o auxílio aos filhos. E o desespero, a piedade, a compaixão, pintam-se no seu semblante de lutador. Quando o destino deve-se cumprir a ninguém é dado desviá-lo. Laocoonte é um símbolo. O karma, na sua perfeita compreensão, diz que devemos arrostar com todas as dificuldades da vida, combatendo-as.
            Como no Laocoonte o forte vence, o fraco é esmagado.
            Por isso as grandes dores, os grandes sofrimentos foram feitos para as grandes almas, porque só estas o podem compreender e suportar.
            Procuremos penetrar no pensamento de Hamlet. Ele vacila diante do destino. No Laocoonte ele luta, ele se opõe ao destino. E nada nos torna tão grandes como uma grande dor, disse um Poeta. Para os que procuram o princípio da moral nas leis da vida e da ação espiritual, a dor, sem dúvida, pela luta que ocasiona, pela resistência, pela resignação intelectual e pela coragem, põe em jogo a força interior, revela-se a si mesmo e num certo sentido, exalta-a. A vida não é um repouso no prazer, não é a inércia do gozo passivo: a vida é a conquista do bem sob o estímulo da dor, sob o aguilhão da imperfeição sentida. A ânsia de aperfeiçoamento, a vontade de crescer espiritualmente é um sentimento comum no homem. As religiões são pontos de parada na vida intérmina do homem que procura ascender na evolução.
            Mas, para progredir, o homem luta, emprega a sua energia e por isso todos nós somos, a cada instante, uma fonte constante de efeitos porque pensamos, sentimos e agimos, isto é, a cada instante desenvolvemos forças no plano físico por nossas atividades, emitimos desejos e sentimentos no plano astral e pensamentos no plano mental. Vivemos simultaneamente em três planos ou mundos, que envolvem o nosso planeta minúsculo. Há, pois, um tríplice aleito nas ações humanas. Tudo que fazemos foi antes um desejo que gerou um pensamento, e que, por sua vez desenvolveu uma ação física.
            Somos, conscientemente ou não, uma fonte constante de causas e efeitos.
            Há dois poderes que lutam dentro de nós: a animalidade com todo o seu passado de desejos gerados em vidas anteriores; e a espiritualidade que, apenas nascente no homem, desperta os pensamentos de amor, de renúncia e resignação.
            Enquanto a vontade humana não tiver ação coercitiva bastante sobre os impulsos desordenados do corpo astral que é o corpo dos desejos (kama), o homem mais se assemelha ao animal, acostumado a seguir seus próprios instintos. Quando atma vai esclarecendo manas, quando a vontade domina pouco a pouco as vibrações inferiores pela indiferença e pela renúncia, o homem-animal transforma-se no homem-espiritual.
            Diz Jinarajadasa:
            “A psicanálise chamou a esta ânsia de satisfação e de gozo - libido, a paixão, o desejo. Buddha chamou-lhe tanha, a sede de vida, a causa fundamental das reencarnações sucessivas, ou melhor a fonte única do nosso karma”.
            Lemos no Bhagavad-Gita:
            “Mas, que é, Senhor, o que incita o homem a pecar, mesmo contra sua vontade, como se estranha força o impelisse?” Responde Krishna: “É o desejo, é a cólera nascida da qualidade passional que tudo corrompe e tudo consome. Aí tendes o inimigo do homem sobre a terra”.
            Quando o homem consegue subjugar o desejo e a ambição, quando domina os sentidos, sem preocupação de domínio, quando achou no fundo do copo dos prazeres apenas cinzas e fel, volta-se para a filosofia e nela procura a razão de ser da vida.
            Surge então na mente humana o desejo da libertação. E o homem procura dentro de si, o que não encontra fora.
            Dizem todos os Mestres da Teosofia, que não é fora de nós que encontraremos a Verdade. Fora de nós só há ilusão e movimento que é uma das formas da ilusão. Para conhecer isto o homem deve conhecer-se a si mesmo: “Conhece-te a ti mesmo, que conhecerás o Universo e os Deuses”. Esteadágio nos recomenda simplesmente o conhecimento real de nossa natureza espiritual. E foi com a mesma intenção que o Grande Mestre, o Cristo, pedia aos seus discípulos que procurassem o reino de Deus neles mesmos.
            O homem, procurando a razão de ser das coisas e da vida, solta esta exclamação: Por que o sofrimento?
            É neste momento que a explicação teosófica vem lhe desvendar o universo visível e invisível. Estudemos a Lei do Karma.
            Diz ela: a ação e a reação se equilibram e se opõem; ou melhor, a toda ação resulta uma reação igual e contrária.
            Chocai um corpo: sua resistência é a reação que ele opõe ao vosso golpe.
            O bilhar é um jogo baseado nas ações e reações das bolas, com a tabela. Se quisermos um determinado efeito, devemos chocar a bola de uma certa maneira especial. É a lei. Mas, que é a Lei?
            A observação conduz a definir a lei natural como série de causas e efeitos que se sucedem numa ordem invariável. Vamos apresentar um exemplo da natureza. Analisando a água, verifica-se que ela é formada pela combinação de oxigênio e hidrogênio na proporção de oito partes em peso de oxigênio e uma parte em peso de hidrogênio.
            Pois bem, se colocarmos nas condições de se combinarem oito partes de oxigênio e uma de hidrogênio, forma-se a água sem sobrar a menor quantidade de um desses elementos. Se, em vez da proporção indicada, tivéssemos empregado, por exemplo um peso de 24 de oxigênio e 5 de hidrogênio, acharíamos 27 d’água, ficando o excesso de um peso de hidrogênio que não foi aproveitado na combinação. Logo, o hidrogênio e o oxigênio se combinam na proporção de 1:8. É a lei fundamental da Química.
            Assim como no bilhar há uma lei: o ângulo de incidência é igual ao ângulo de reflexão: assim também na combinação dos corpos na natureza há uma lei: “Os corpos combinam-se em proporções fixas e invariáveis”.
            Se deixarmos um corpo pesado cair de certa altura, o espaço percorrido pelo corpo e o tempo gasto em percorrê-lo guardam entre si uma relação fixa, isto é, uma lei invariável. Há mesmo uma equação que enlaça analiticamente estes dois elementos: espaço e tempo.
            Assim vemos que as causas e os efeitos sucedem-se numa ordem invariável. Juntemos hidrogênio e oxigênio na proporção de 1:8 e teremos Água. É portanto a reunião de elementos determinados que produzem um resultado invariável.
            Assim, se quisermos obter água devemos aproximar hidrogênio e oxigênio na proporção de 1:8.
            Se não quisermos água devemos afastar o hidrogênio do oxigênio. Eis, porque se pode dizer com convicção que uma lei natural não é uma força que obriga, mas que permite agir. Ela nos ensina a conhecer as condições que devemos satisfazer para obter ou evitar um efeito determinado. Mas, uma vez postos os elementos em contato, ninguém poderá evitar que a água apareça. Quando o jogador dá com precisão a tacada, segundo as regras, ninguém poderá evitar o desejado efeito da bola. A lei só é coercitiva em seus resultados, obedecendo a certas condições.
            O karma é a lei que nos coloca aonde devemos estar para progredir, deixando-nos o nosso livre arbítrio, a nossa liberdade de escolha.
            O karma jamais obrigou alguém a praticar qualquer ação: apresenta-nos simplesmente as circunstâncias e o homem dispõe à sua vontade destas circunstâncias.
            Suponhamos que eu me encaminho a fim de insultar a alguém. Ao aproximar-me da pessoa, vencendo a minha cólera, calo-me. Isto é, não pus em efeito a energia astral. Mas, se não consigo dominar-me e chego a injuriar a pessoa, eu ponho em ação as forças astrais e crio karma contra mim. Somos senhores da palavra que guardamos, mas somos escravos da palavra que deixamos escapar.
            É devido a este encadeamento inevitável de causas e efeitos que os ignorantes permanecem impotentes em presença das leis naturais: produzem inconscientemente certos fatores cujas conseqüências se acumulam confusamente em torno deles, e os esmagam. Eis o símbolo de Laocoonte.
            Os exemplos que apresentamos, tirados tanto da Física como da Química nos conduzem o pensamento para Platão. Diz o grande filósofo grego: “Deus geometriza”. Ele quer dizer que tudo obedece à regularidade matemática, isto é, à lei, que é a harmonia das partes com o todo.
            Na matéria física há uma força que parece ser a sua verdadeira raiz: a eletricidade. Mas ninguém sabe o que é a eletricidade, e nem o magnetismo, que dela deriva por indução.
            Embora a natureza dessas duas forças seja desconhecida sabemos entretanto, que a ação de uma delas, o magnetismo, é sempre acompanhado do aparecimento de figuras geométricas. Se mantivermos um eletro-imã por cima de agulhas de cozer imantadas - convertidas em ímã com os respectivos pólos - fixadas em rolhas de cortiça, verticalmente flutuando dentro da água, e se colocarmos apenas uma agulha, esta vem parar debaixo do imã: se são duas, ficam uma ao lado da outra; se são três, formam um triângulo eqüilátero; quatro, um quadrado; cinco um pentágono; seis, um pentágono com uma agulha no centro. Podemos levar a experiência até cinqüenta e duas agulhas e sempre, matematicamente, vão surgindo figuras geométricas perfeitas.
            Vemos que a força magnética do ímã dispõe as agulhas obedecendo a uma lei invariável, porque este é o plano de Deus.
            Por estas rápidas palavras verificamos que tudo obedece na natureza a uma ordem que é regulada pela Lei.
            Se assim não fosse não poderia haver Ciência, não poderia haver previsão. E tão perfeita é esta regularidade na sucessão de causas e efeitos dos fenômenos naturais, que o astrônomo prevê com antecedência de anos e de séculos, a data exata de um eclipse, sem erro de segundos de tempo.
            Estendendo estas considerações, a Teosofia nos ensina a prever o futuro do homem, em suas vidas sucessivas, por suas ações atuais, porque o homem colhe o que semeia.
            Dizemos mais que as Leis naturais são invioláveis porque a relação de causa e efeito não pode ser modificada.
            A violação duma lei natural depende da nossa vontade exclusivamente; mas a lei nos destruirá e nós não a destruiremos. Se alguém, ao cair do alto de uma torre, se despedaça no solo, não viola a lei da gravidade, apenas demonstra desconhecê-la, e a queda é uma prova. Podemos concluir que o Universo que nos envolve é um agregado de vibrações e movimentos, uma série de modificações contínuas, ou melhor um fluxo constante de energias ou karma.
            Ao estudarmos a Teosofia compreendemos que os mundos físico, astral e mental, que entram em nossa constituição invisível, são caracterizados por modificações constantes, não havendo no Universo visível e invisível coisa alguma fixa e imutável, tudo se apresentando num dinamismo contínuo cujas transformações ligam-se entre si umas às outras por uma relação íntima da causa e efeito que é a lei, que é o karma.
            O homem modifica essas energias ao seu sabor criando o seu próprio karma. Devemos pois, compreender que o karma nada mais é que a ação e a reação agindo ativa​mente em todos os planos da natureza; e que a reação é da mesma natureza que a ação.
            Compreender o karma é compreender que o nosso futuro está em nossas mãos. Se não temos energia para vencer as resistências que o passado nos impõe, devemos ter arbítrio para modificar a nossa conduta atual. E assim podemos fazer alegre o caminho da existência, rodeados de amigos que nos ajudem, longe das misérias e sofrimento que assaltam a pobre humanidade.
            Jinarajadasa, estudando o karma, apresenta um peque no quadro onde resume admiravelmente estes fatores que concorrem para a sua formação:
 
DA VIDA PASSADA                                           DA VIDA PRESENTE
Atos serviçais                                 determinam                   Bom ambiente 
Atos maléficosdeterminam                   Mau ambiente 
Aspirações e desejos                    determinam                   Capacidade 
Pensamentos constantes             determinam                   Caráter
Sucessos                                          determinam                   Entusiasmo
Experiência dolorosa                     determinam                   Consciência
Experiência repetida                      determinam                   Conhecimento
Desejo de servir                              determinam                   Espiritualidade
            Estudemos o caso de uma pessoa que comete uma falta, com boa intenção. Esta ação manifesta-se em três planos: físico, astral e mental. Portanto vão se manifestar três reações correspondentes.
            A reação mental agirá sobre o seu corpo mental, sobre o seu caráter, que progride graças à boa impulsão recebida. A reação astral despertará uma boa emoção e sentimentos que lhe fornecerão ocasião de exercer mais tarde o desejo de fazer o bem. A reação física será dolorosa, e despertará um sofrimento que o corrigirá da inadvertência cometida. É assim que o karma age, cada reação seguindo invariavelmente sua respectiva ação em cada plano correspondente.
            Não há, pois, nem castigo, nem recompensa, vindos de qualquer poder exterior; há apenas o resultado lógico daquilo que o homem fez, disse e pensou na vida terrena.
            O conhecimento do modo pelo qual o karma age no homem, arma-o de poderes que vão auxiliar a nossa evolução. Se para descer de uma altura nos jogarmos inconscientemente, o nosso corpo despedaçar-se-á no solo, mostrando a ignorância de uma lei natural. Mas se nos munirmos de uma pára-quedas, saberemos evitar a ação da gravidade.
            Assim também podemos neutralizar a ação do karma com o conhecimento de que a Sabedoria Divina nos arma.
            Considera-se o karma como uma coisa que reage sobre nós, e isto é verdade; mas, é preciso compreender que se não trata de uma massa inerte que vem cegamente chocar-se contra o homem, esmagando-o, paralisando-o, aniquilando-o. Não. O homem pode modificar esta ação kármica porque o esforço vale mais do que o destino, como disse Bhisma no Bhagavad Gita.
            Examinemos, pois, os três poderes da consciência humana que vão pouco a pouco criando o karma individual.
            Diziam os Gregos que três fadas misteriosas fiavam o cordão da vida, o cordão do destino de cada homem.
            O simbolismo admirável da mitologia grega assim representa os três poderes da consciência humana: o pensamento, o desejo e a ação.
            É muito comum ouvir-se falar na Parca quando nos referimos à morte.
            As três fadas são as três Parcas que, inexoráveis na sua faina, não poupavam a ninguém. As Parcas, eram, segundo a Mitologia, as divindades dos infernos, senhoras da vida do homem do qual elas teciam sinistramente a trama. Chamavam-se Clothos, Lachesis e Atropos. Clothos, que presidia ao nascimento, trazia na mão uma roca, Lachesis que trazia o fuso distribuía o destino e Atropos, a tenebrosa, que cortava, o fio da vida. Uma fiava, outra distribuía e a última cortava o fio do destino humano.
            São estas as filhas da Noite, as filhas do Destino, as três irmãs fiandeiras, como as denominou poeticamente La Fontaine.
            Estas três fadas representam, simbolicamente, os três poderes da consciência: o pensamento, o desejo e ação.
            A mais importante, a primeira das fadas, a fiandeira sutil que vai girando a roca do nosso destino, a mente, esta criadora do mal, tecedeira das ilusões, matriz da separatividade, a mente que, não sendo dirigida pelo discernimento nos conduz ao precipício, eis a primeira fonte do karma. Por isso a Teosofia nos ensina “O pensamento cria o caráter.”
            O homem é criação do seu pensamento; converte-se naquilo em que pensa. Por que? Porque quando a mente é dirigida continuamente para o mesmo objeto ou pensamento e com ele se identifica, uma determinada vibração de matéria mental se agrega formando certa forma mental; e, quanto mais reproduzirmos este pensamento, mais vibrante e mais nítida esta forma se torna, acabando por formar o hábito e tornar-se automática, isto é, independente da nossa vontade.
            Por isso se diz “no que o homem pensa, nisto se torna”. Nascemos com o caráter que edificamos pelo pensamento em nossas vidas anteriores. É uma limitação. Admitamos que tenhamos nascido sem gosto pela matemática, mas com grande propensão para a música. Isto quer dizer que em vidas anteriores, formamos o nosso gosto musical, educamos a mente no estudo dos sons e da harmonia, mas que o raciocínio lógico, o hábito de deduzir e calcular, que a matemática desenvolve, ainda não conseguimos despertar. Eis o karma. Enquanto certa pessoa, com a simples leitura de um teorema de Geometria, acha-se disposta a reproduzir a demonstração, outra só depois de um aturado labor de muitas horas, consegue reproduzir a dedução.
            Para compensar essa falta de aptidão devemos procurar fazer tudo sempre da melhor maneira possível, vencendo as resistências criadas pelo karma.
            O Gênio é a Paciência dizia Buffon.
            Alguém perguntou a Newton como foi que ele conseguiu descobrir a grande lei da gravidade universal. “Pensando sempre”, respondeu o filósofo.
            Assim o pensamento é o mais importante fator na criação do Karma. O que pensamos, o que sentimos vive dentro de nós, é o substractum da nossa mente. Eis porque lemos nos Upanishads: “O homem é uma criatura de reflexão; naquilo em que medita ou pensa nesta vida, ele se torna nas vidas seguintes”.
            Pascal, o grande pensador francês, em seus conhecidos “Pensamentos” nos diz que “a grandeza do Universo e todos os seus esplendores nada valem em comparação com as maravilhas da mente humana e sua capacidade para compreender as coisas admiráveis que contêm os espaços siderais. Mas, acrescenta o pensador, apesar de seu significado e valor evolutivo, a mente humana, com todas as suas perfeições, é de pouca importância comparada com a beleza espiritual de um coração que verdadeiramente ama”. Assim, a mais importante das fadas é a mente, é o pensamento. E o primeiro passo para vencermos o karma do passado, é o domínio da mente, a fiandeira da ilusão.
            Todo pensamento que emitimos, qualquer ato nosso, altera de certo modo e equilíbrio do Universo e esta perturbação se restabelece pelas reações que o homem recebe conto recompensa.
            Ninguém pode avaliar com precisão, as conseqüências, que resultam dos seus menores atos e desejos, dos seus pensamento mais íntimos. São energias que a nossa vontade põe em movimento, e que vão despertar repercussões salutares ou não no meio ambiente.
            Não pagamos o mal praticado por outrem; mas sofremos as conseqüências dos atos por nós mesmos exercidos em vidas há longos anos decorridas.
            Devemos pois, guardar esta profunda verdade que “toda causa tem seu efeito; todo o efeito teve sua causa; tudo acontece de acordo com a Lei”. O acaso não existe. Acaso é o nome com que a presunção encobre a sua ignorância.
            Somente nós lançamos a semente do bem ou do mal. Somente nós forjamos, no passado, os grilhões que agora nos oprimem. Somente nós fomos os criadores de toda a beleza, de toda a nobreza que atualmente florescem em nossos corações.
            E quando, nos momentos sombrios da existência, sentirmos a mão da adversidade pesar fortemente sobre nossos ombros, não injuriemos a Divindade, não condenemos a ninguém, senão a nós mesmos, nos lembrando que uma lei de inalterável justiça governa o mundo, dando a cada um segundo as suas obras.
 
 
A LEI DO KARMA
II
            Quem estuda a história greco-romana não pode deixar de estranhar como povos de uma superior cultura em todos os domínios da inteligência se contentassem com um amontoado de mitos inverossímeis, de legendas grandiosas umas, outras imorais que constituama doutrina religiosa oficial das duas nações que mais se excederam na antiguidade clássica.
            Se a multidão ignorante se contentava com essas narrações mitológicas onde deuses e deusas se rebaixavam às condições da mais grosseira animalidade, a parte culta dos cidadãos sabia ver através do mito a feição simbólica com que o sacerdócio ilustrado interpretava uma verdade filosófica muitas vezes acima de compreensão popular. Todos os homens de mediana cultura intelectual e moral dedicavam-se ao estudo da filosofia e eram quase todos iniciados aos mistérios sagrados onde se bebia a água viva da verdade. Aí o hierofante explicava os panoramas do mundo invisível, os fenômenos da vida e da morte, e dava aos iniciados a significação oculta das parábolas e mitos populares. Assim, a legenda de Proserpina (Perséfone) é evidentemente uma parábola oculta, figurando a descida da alma à matéria, símbolo que mais tarde a tradição mosaica consubstanciou na alegoria de Adão e Eva. Vamos resumir o mito grego, Plutão, deus dos infernos por mais diligências que fizesse não conseguira achar mulher, tal era a sua fealdade.
            Quando Proserpina, despreocupadamente, colhia a flor de Narciso, foi raptada pelo violento deus infernal. Narciso, conta a fábula, era um moço de extrema beleza que se enamorara da própria imagem ao vê-la refletida na água de um ribeiro; e tão grande foi a sua paixão que se afogou, sendo em seguida transformado pelos deuses em uma bela flor.
            Proserpina é o símbolo poético da alma humana desterrada no mundo da ilusão e vítima do Desejo.
            Interpretando sabemos, que o Ego não era, a princípio, ligado à matéria, e se não fora a atração que ele sente por sua imagem nos estados inferiores da matéria, simbolizada pela água, não poderia haver encarnação. Iludida por este enganador reflexo, ela se identifica com sua personalidade inferior, com seus corpos de matéria transitória, e fica por algum tempo mergulhada na matéria. O gérmen divino aí habita e em breve desprende-se como uma flor que se abre.
            Ora, observemos que é quando Proserpina se baixa para Narciso que ela é empolgada pelo Desejo (Plutão) o rei dos mundos inferiores. E é com esforços e sacrifícios inauditos que sua mãe Ceres consegue finalmente arrancá-la ao cativeiro, embora a filha seja obrigada a passar metade de sua vida nos mundos inferiores, e a outra metade nos mundos superiores, isto é, parte nas encarnações sucessivas e parte fora delas, pois só assim consegue o homem libertar-se dos liames do Desejo.
            Vemos que o homem, em sua peregrinação pela matéria, identifica-se com seus corpos, obedecendo às suas necessidades inferiores e esquecido da sua origem divina. É, pois, o desejo, libido, a qualidade passional que prende o homem à terra. Somos deuses exilados; e como Proserpina, a meiga e divina Proserpina prisioneira do rei tenebroso, aqui estamos desterrados em provação, recordando, em meio das misérias e provações, o tempo feliz, em que perlustramos outras regiões mais belas. Estas provações e experiências amargas que vão despertar a consciência de um Ser que dormita em nós, são os frutos da árvore do Bem e do Mal que a serpente simbólica do conhecimento nos outorga para podermos esgotar a vida ilusória, mas indispensável, dos planos inferiores.
            Para isso, o homem possui a liberdade de ação, pondo em movimento os seus poderes da inteligência, da força, dos sentimentos, enfim todas as qualidades que o caracterizam para criar a vida. Mas para atingir este objetivo ele põe em foco também os seus defeitos, o seu egoísmo, a sua ambição e assim luta, esforça-se, odeia, prejudica, sobe, calcando aos pés os direitos dos seus semelhantes. E assim geramos o karma.
            O homem é o eterno peregrino, tem que caminhar para a frente impulsionado pela lei fatal da Evolução. É o Ashaverus da lenda, sempre a caminhar, sempre a seguir.
            Mas, além da força da Evolução, mais duas forças componentes incidem sobre o homem: o seu karma, gerado em vidas anteriores, e o seu livre arbítrio: a sua vontade que a cada instante atua torcendo-lhe a orientação dos seus destinos.
            O destino é a resultante de todas as forças que o homem põe em movimento até o momento atual. Mas a vontade ou livre arbítrio, em geral, sendo uma componente muito fraca, quase não modifica a direção do destino, ou quando a modifica é para o mal.
            Da combinação destas três forças: a evolução, o karma das vidas anteriores e o livre arbítrio atual surgem os três gêneros de karma: karma atual ou maduro, karma acumulado e o karma nascente.
            Karma atual ou maduro é aquele que está prestes a ser esgotado, o que pagamos nas nossas ações diárias, a dívida do passado que devemos saldar no momento presente.
            De todo o karma do passado, apenas uma porção pode ser esgotada no decurso de uma existência. Os senhores do karma escolhem, de tudo que amontoamos de bom e de mau no passado, uma pequena porção. Do karma acumulado, eles retiram o karma atual, também chamado ativo ou maduro, ficando em reserva certa quantidade que se esgotará em vidas posteriores.
            Mas, por que os Senhores do karma escolhem apenas certa parte do karma acumulado? Porque há certas modalidades de karma de tal forma incompatíveis entre si, e às vezes em tão grande número que exigem vários corpos de tipos diferentes para a mesma individualidade. E também há dívidas contraídas para com muitas almas, e todas estas almas nem sempre se encontram na mesma encarnação.
            Finalmente há ainda o karma novo, o karma nascente formado das nossas diversas atividades, gerado pelo nosso livre arbítrio, na vida atual. É a componente modificadora do Destino.
            Vivemos, portanto, sob a influência de uma dupla ação kármica: ação oculta que espreita na sombra a ocasião propícia para manifestar-se; e a ação produzindo atualmente seus efeitos.
            Vemos que o estudo do karma é de grande complexidade pois, temos que atender a forças várias que se manifestam em planos diferentes, forças estas que devem atender momentos propícios para que se possa manifestar, tudo isto se passando em encarnações diferentes.
            É óbvio que karma preside à Reencarnação. É para resgatar faltas passadas e gerar causas futuras que o homem nasce e renasce, na ânsia eterna de aperfeiçoamento. A Evolução impele-o de vida em vida, despertando-lhe sentimentos e pensamentos cada vez mais perfeitos, fornecendo​lhe oportunidades onde ele poderá concorrer com sua ação modificadora e assim venha a compreender o objetivo da vida.
            Devemos também nos compenetrar que o karma não se esgota somente no plano físico. Em geral o estudante de Teosofia julga que o mundo físico é o grande campo de batalha do karma, onde campeia o Erro e onde se chocam os interesses que geram os crimes. Não!
            Vamos contar uma pequena história para mostrar que, após a vida física, em pleno mundo astral podemos esgotar o nosso karma às vezes bem pesadamente.
            As nossas faltas devem ser resgatadas; a lei é inexorável. E, os senhores do Karma predispõem os fatos de tal maneira para que o homem possa compreender este resgate.
            Dois amigos viviam juntos, atraídos por sincera amizade. Eram ambos membros de uma tribo árabe, valentes, destemidos, sempre prontos às arrancadas guerreiras e às tropelias pelo deserto, em busca de aventuras.
            Intimamente ligados um ao outro quando, desgraçadamente, ambos se apaixonam pela mesma moça.
            Quando chegaram a descobrir esta dolorosa verdade, um deles, dominado por terrível ciúme, por uma incontida raiva, formulou o horrível projeto de se desembaraçar do amigo de qualquer maneira.
            Não o matou imediatamente; mas por uma infame traição e por falsas informações, conduziu o amigo a uma tribo inimiga, onde este encontrou morte certa.
            Pouco tempo depois, a moça, que jamais gostara tanto de um como dooutro, deu sua mão a um terceiro guerreiro, e o assassino, esmagado pelo crime inutilmente praticado, dominado pelo remorso, suicida-se.
            Foram ambos lançados no plano astral no vigor da idade.
            Agora vamos estudar esta complicação interessante de karma. Os dois amigos, jogados em plena mocidade, no vigor das suas vibrações astrais nos sub-planos inferiores do plano astral, ligados karmicamente, atraem-se. É a lei.
            O que fora vítima morrera com os melhores sentimentos, julgando que o seu amigo o defendera até o último instante, mas que conseguira salvar-se, enquanto que ele fora morto pelo seu mau destino. O assassino, ao contrário, de natureza mais grosseira, trabalhado pelo peso do crime, julgava que o amigo morrera certo da sua infâmia.
            Desta combinação de circunstâncias que aparentemente quase nada apresenta, surge entretanto um sofrimento pavoroso, como o estigma de u’a maldição, que veio ferir o autor do crime. A vítima morrera sem ter conhecimento da perfídia do amigo, conservando toda sua afeição por ele e inconsciente do seu novo estado de vida, levado pela força de uma grande afeição, procurava todos os momentos para estar em contato com o amigo. Este, o assassino, dominado pelo terror e num desespero inexprimível, fugia de presença da sua vítima e, para se ocultar dele precipitava-se nas cenas mais odiosas, procurando os lugares e as pessoas que pudessem favorecer a sua fuga. Mas, quando mais se julgava em segurança, a forma astral inconsciente do amigo aparecia de repente, trazendo nos lábios um sorriso de bondade e de sincera afeição. Sua perfeita inconsciência e o bom sentimento que o levava para junto do amigo ainda mais aumentava o terror que a sua presença despertava. Procuremos conceber esta extraordinária cena; do amigo animado de amor e bondade, o assassino dominado pelo terror do remorso, fugindo espavorido pelos meandros mais obscuros e tenebrosos do mundo astral.
            Assim, os Senhores do karma, colocando-os em presença um do outro, fizeram com que a infeliz vítima tirasse, sem querer, a mais espantosa vingança de um crime do qual ela ignorava completamente a sua perpetração. E durante muitos anos esta fuga e essa perseguição inconsciente se executaram nos sub-planos do astral.
            Há, pois, uma grande variedade de karmas, mas lembremo-nos sempre que os nossos atos cotidianos geram as nossas vidas futuras. Somos como os prisioneiros que forjam as próprias cadeias, ou como os escultores que talham a própria estátua. À semelhança da aranha que tece a própria teia, assim tecemos nós o nosso destino. Cada ato contém a sua própria conseqüência; cada pensamento ou sentimento gera uma série interminável de efeitos dos quais nem sempre podemos conceber o fim. Já vimos que o homem é um pensamento em ação, o caniço pensante de Pascal; mas podemos acrescentar que “qualquer que seja o grau de nossa consciência esse é o justo salário do nosso trabalho evolutivo”. Estas limitações à nossa consciência são impostas pelo karma.
            Vamos estudar outro exemplo onde se vê como o karma opera na vida cotidiana: tal é o caso da criança que morre deixando os pais inconsoláveis.
            Pais ricos perguntaram à Annie Besant:
            “Como se admitir que o karma deixe crianças infelizes a pais pobres que muita vezes não os amam, e que dificilmente os podem alimentar, ao passo que a nós nos tira o filho único e adorado, filho que tudo possuía e o qual rodeávamos com todos os cuidados possíveis?”
            Tais perguntas, diz Annie Besant, nos são feitas constantemente; e para responder a esta, fui obrigada a ler uma vida passada dos pais, e aí procurar como e porque o karma os feriu assim de maneira tão dolorosa. É que, na encarnação precedente este mesmo casal possuía três ou quatro filhos, e um irmão, suponho que do Pai vindo a falecer, deixou um pequenino órfão que não tinha outros parentes senão seu tio e sua tia. Estes tomaram conta da criança, embora profundamente contrariados; mas longe de se mostrarem bons para com ela, fizeram-lhe passar por duras privações, mal alimentando, mal tratando e finalmente transformando-a em criado da família. Foi de tal ordem o tratamento que o pobre órfão morreu na idade de 17 anos, possuindo embora um coração afetuoso.
            Ora, foi esta mesma criança que na atual encarnação lhes voltou como filho único. Sobre sua cabeça os pais desvelados colocaram todas as suas esperanças, cercando-o de todo o seu amor. Mas, o karma inexorável, precisamente, matematicamente, na idade de 17 anos - a mesma da encarnação precedente - arrebatou-o dos braços paternos; e o lar tornou-se um deserto.
            A morte das crianças constitui uma das questões mais perturbadoras que a vida nos apresenta. O sentimento causado pela perda destes pequeninos seres traz a desolação a muitos corações; e mais de uma voz tem exclamado: “Para que serve uma vida assim ceifada tão cedo?”
             A teoria católica, procurando consolar aos que perdem seus filhos amados, afirma que a criança que foi batizada e que morreu antes de ter conhecido o pecado, vai diretamente para o céu, para a eterna beatitude, e assim por uma morte prematura pode obter grande privilégio sobre os que, por terem vivido longos anos, arriscam-se a irem para as chamas eternas do inferno. Mas, para nós estudantes de Teosofia esta explicação não satisfaz. Sabendo que a Divindade tudo prevê e tudo pode - por ser onisciente e onipotente - como admitir-se que Deus faça as almas, destinando umas ao inferno e outras ao paraíso? Vamos estudar, com outro exemplo, interessante caso de morte prematura.
            Dois irmãos nasceram na Grécia Antiga, contemporâneos de Péricles e Platão.
            Ambos eram estudantes da filosofia de Pitágoras, e procuravam pautar sua conduta numa linha severa, sempre ligados um ao outro por extrema afeição.
            Para o mais velho esta filosofia pitagórica que outra não era senão a nossa atual Teosofia, constituía a sua maior preocupação, a única razão da sua vida, O mais velho passava seu tempo no estudo destes problemas espirituais e consagrava-se inteiramente aos mistérios onde era iniciado. Para o mais moço esta filosofia era o ponto importante da sua vida, mas acrescentava outra grande preocupação: a posse de uma faculdade artística, porque, ele foi um dos principais escultores da sua época na Grécia. Naturalmente a prática da sua arte reclamava grande parte do seu tempo, deixando-lhe poucos vagares para os estudos espiritualistas. A vida dos dois irmãos era das mais felizes, e assim sempre unidos viveram até avançada idade.
            Intimamente ligados, e tendo exercido grande influência um sobre o outro, eles contraíram profundos laços kármicos que os obrigaram a encontrar-se em vidas seguintes. O grande ódio, como o grande amor, une indissoluvelmente. Mas, surgiu uma grande dificuldade, porque o mais moço não podendo ter uma vida no plano mental de tão grande duração quanto a de seu irmão, deveria voltar à terra muito antes dele.
            Com efeito, o mais moço voltou à terra no começo do século XVI, no período da Renascença das artes; e seu irmão tinha na sua frente três séculos de vida celeste tal a soma de energias espirituais, por ele acumuladas, em suas existência na Grécia.
            A dificuldade foi resolvida da maneira mais simples: o mais moço foi autorizado a reencarnar-se na Europa. Seu temperamento artístico manifestou-se na mais tenra infância, embora desta vez em direção diferente. Em vez de escultura foi a arte da gravura que adotou, como fizera seu pai antes dele. Desenvolveu esta arte com grande habilidade e gênio, quando de repente uma epidemia, muito comum na Idade Média, levou-o do plano físico ainda não tendo completado 20 anos.
            Sua morte despertou profundo sentimento de tristeza lamentada por todos que o conheceram. A morte o arrebatou à arte, no momento que sua carreira prometia ser tão brilhante.
            Mas, examinemos estamorte à luz da Teosofia.
            Em sua curta vida, o jovem não pôde desenvolver se​não uma soma de energias espirituais comparativamente limitada, sendo, por isso sua vida no plano mental muito curta; e foi assim que ele veio a reencarnar-se no meado do século passado três anos depois do nascimento daquele que foi seu irmão mais velho na Grécia Antiga. Assim, novamente reunidos, vieram aumentar as fileiras dos soldados pacíficos da Teosofia.
            Este exemplo nos mostra que o Karma sabe o que faz, e que a morte prematura, dolorosamente inexplicável para quem ignora a Teosofia, pode trazer grandes benefícios para a evolução da alma. Admitamos que uma criança meiga, cheia de afeição, de natureza profundamente amorosa, venha a nascer no seio de uma família cujos pais dentro de pouco tempo se encaminham pela senda do vício. Esta criança, não podendo encontrar ambiente favorável ao desenvolvimento das suas qualidades espirituais é como a semente valiosa perdida em terreno sáfaro e agreste e que não pode medrar. Os Senhores do Karma cortam-lhe o fio da existência.
            Assim, o mistério da morte das crianças, este karma tão pesado para os pais, tem explicação razoável em Teosofia
            Ainda há um caso interessante estudado por Leadbeater: 
            “Trata-se de um jovem teósofo que nasceu duas vezes na mesma família. Sua primeira vida apenas durou algumas semanas, tendo ele se reencarnado alguns anos mais tarde com os mesmos pais.
            Naturalmente os investigadores dos anais akhásicos procuraram a explicação deste fato: Dizíamos todos: “Que diferença estes poucos anos de intervalo podem trazer para as novas condições de um Ego?”
            Mas, ao observarem com mais atenção, um fato veio mostrar que os Senhores do karma não se haviam enganado. É que os pais da criança, antes de terem conhecimento da Teosofia, eram livres pensadores, mas este conhecimento aos lhes ser apresentado, eles e toda a família o adotaram imediatamente e assim o meio tornou-se favorável para que novamente se manifestasse o menino que veio a ser um dos grandes batalhadores da causa teosófica.
            Já disse que um grande ódio, como um grande amor, gera grandes causas kármicas.
            Vamos contar a formação de laços kármicos entre dois grandes seres muito conhecidos na Sociedade Teosófica.
            Há muito tempo, neste antigo continente que se chamou Atlântida e que jaz no fundo do oceano Atlântico, na imponente cidade das Portas de Ouro, reinava poderoso Rei. Certo dia apresentou-se diante dele um soldado que voltava vitorioso de uma expedição longínqua dirigida contra turbulenta tribo nos confins deste vasto império.
            O Rei para recompensá-lo nomeou-o capitão das guardas do Palácio, confiando-lhe a guarda de seu filho único e herdeiro da coroa.
            Pouco tempo depois da sua nomeação a este cargo, o novo capitão teve ocasião de provar sua fidelidade para com aquele que nele depositava tanta confiança. Um dia, enquanto o capitão passeava com o jovem príncipe nos jardins do palácio, um grupo de conspiradores precipita-se sobre eles e tenta assassinar o príncipe.
            O capitão, embora só contra forças tão superiores, luta com bravura e, mortalmente ferido, consegue salvar o príncipe que perdera os sentidos. Ambos socorridos foram conduzidos diante do Rei que, voltando-se para o capitão moribundo disse: “Que posso fazer por vós que destes vossa vida por mim?”
            O capitão ainda teve forças para dizer: “Concedei-me a graça de sempre vos servir, a vós e ao vosso filho, em todas as vidas porvindouras, pois que agora já existe um laço de sangue entre nós". E num esforço derradeiro, tendo molhado seus dedos no sangue que corria das suas feridas, ele tocou os pés do soberano e a fronte do jovem príncipe ainda sem sentidos.
            O Rei elevou a mão abençoando-o e respondeu: “Pelo sangue que foi derramado para mim e para meu filho, eu faço o juramento sagrado que ambos vós me servireis até o fim”. Assim formou-se pelo sacrifício o primeiro laço kármico entre três grandes egos destinados a conduzir os homens. O Rei é hoje o Mestre Morya, dirigente da Sociedade Teosófica nos mundos invisíveis; o príncipe seu filho foi Helena Petrovna Blavatsky e o capitão das guardas, o Coronel H. S. Olcott.
            Assim a lei do sacrifício é o serviço, é a abnegação, é a dedicação sem preocupação de recompensa, sem que o vil interesse subalterno venha tisnar a grandeza do ato.
            Vamos dar outro exemplo para mostrar, que o auxílio pode vir também dos mundos invisíveis. Todo o estudante de Teosofia sabe que o primeiro passo que devemos dar para progredir é a dedicação ao trabalho astral como auxiliar invisível.
            O mundo invisível nos cerca. Aqui em torno de nós estão os que sofrem, os que deixaram a vida de maneira violenta, os desesperados de salvação, os que penetraram no mundo invisível iludidos por falsas informações de sacerdotes ignorantes, os suicidas, as vítimas de acidentes, tão comuns na vida moderna.
            Grande é o número dos que lá vivem sofrendo, por desconhecerem o novo meio em que foram lançados, a sua natureza, os seus habitantes e os seus recursos. Assim, os Mestres que nos dirigem, pedem aos estudantes de Teosofia que se preparem para o trabalho astral. Quando dormimos, enquanto o nosso corpo físico repousa no leito, reconstituindo as células gastas no trabalho diário, o espírito paira livre, embalado em sonhos mais ou menos vagos, seguindo a cor​rentes etéreas que nos atravessam. Se soubéssemos dar direção ao nosso corpo astral, poderíamos cerrar fileiras em torno dos trabalhadores que vão consolar, que vão guiar e iluminar os que vivem aflitos nos mundos invisíveis.
            Dois desses auxiliares passavam em corpo atrai a caminho do trabalho, quando ouviram lancinante grito que vinha da terra. Baixaram e puderam descobrir um menino de onze a doze anos que caíra de um penhasco solitário e estava gravemente ferido.
            A pobre criança quebrara o braço e a perna, mas o pior era um golpe profundo na coxa de onde o sangue jorrava fortemente.
            Cyril, o mais moço dos auxiliares, compadecido grita:
            “Auxiliemo-lo, ou ele morrerá”.
            Mas, para este trabalho era necessário um corpo físico, e ambos estavam em corpo astral. Houve necessidade do mais velho materializar o mais novo para poderem agir com mãos físicas a fim de apertar as ataduras e estancar o sangue que corria.
            Cyril amarrou a gravata do menino com pedaços da camisa, e o sangue parou. O ferido tendo recobrado os sentidos, levantou os olhos e viu aquela pequena forma luminosa curvada para ele, deixando escapar dos seus lábios encantador sorriso. E o menino deslumbrado perguntou: “Sois um anjo?” - "Não; sou apenas um rapaz que vem em teu socorro."
            O outro auxiliar partiu em seu corpo invisível para avisar a mãe do menino. Procurou impressionar a mente dela até que a mulher, de natureza grosseira e pouco impressionável exclamou: “Não sei o que sinto, mas acho que devo ir procurar meu filho”. Partiu dirigida inconscientemente pelo auxiliar invisível, e quando se aproximava do menino, Cyril desapareceu subitamente.
            O filho contou a sua mãe o acidente, a intervenção do anjo, as ataduras.., etc. Somente, dizia ele, não podia compreender como o anjo não possuía asas. E o médico que atendeu asseverou que, se não fossem as ataduras, o menino não se teria salvo.
            Leadbeater, que narra este caso interessante em suas investigações feitas nos anais akásicos, procurando a causa desta intervenção, descobriu que o menino que caiu do penhasco fora há uns mil anos, escravo do pequeno auxiliar que era então um príncipe poderoso. Este príncipe, no momento de um grande perigo para sua vida, conseguiu salvar-se pelo sacrifício de um simples escravo, cujo ato de dedicação foi objeto então de grande louvor para o humilde servidor de tão poderoso senhor.
            Assimo karma, na sua marcha aparentemente lenta, executa-se integralmente; e ninguém fica sem a sua recompensa.
            Consideremos agora o karma agindo sobre um grupo de pessoas. É o karma coletivo.
            Já observamos que os sofrimentos de uma guerra atingem a todos os habitantes de um país. O imposto de sangue estende-se aos cidadãos válidos, e por isso todas as famílias sofrem igualmente.
            O karma coletivo é a soma integral dos karmas individuais. Assim um homem é atraído por seu karma individual a uma certa família, em conseqüência de ligações feitas em vidas passadas com esta família. Diz Annie Besant que o indivíduo pode não ter o seu karma maduro isto é, prestes a manifestar-se uma dívida terrível a pagar. Mas, os Senhores do Karma aproveitam uma catástrofe, e o conduzem ali para que ele possa libertar-se deste compromisso com o passado.
            Suponhamos, por exemplo, que está prestes a dar-se um desastre de trem, e muitos indivíduos devem contribuir com seu contingente de sofrimentos neste desastre porque no passado, cometeram juntos um grande ato criminoso comum. Um outro indivíduo vai neste trem e nada tem com o fato cometido no passado por estes criminosos. Mas este indivíduo possui no seu karma acumulado uma dívida igual. Oferece-se o momento da expiação, e ele esgota inesperadamente o mal feito. Se neste trem vão pessoas que não devem passar por esta provação por não possuírem tal karma, estas pessoas salvam-se milagrosamente, ou ficam num vagão que não acompanha o resto da composição no desastre.
            Entre os inúmeros fatos registrados, um conhecemos interessante.
            Um grande navio de passageiros o Líbano, soçobrou nas proximidades do porto de Marselha em 1903. Quase toda a tripulação pereceu, desaparecendo com o navio. Entre os poucos que se salvaram figurou uma criancinha de poucos meses, misteriosamente mantida à tona d’água durante horas, até que chegassem os socorros ao passo que sua mãe foi arrastada pelo sorvedouro no momento que o navio desaparecia.
            Quando não temos que passar por determinada provação, qualquer coisa surge que nos desvia do precipício. No caso citado é provável que um auxiliar invisível tomasse a si salvar a criança, cumprindo assim os ditames dos Senhores do Karma.
            Certas espécies de ações geram karma excepcionalmente terrível. A crueldade, qualquer que ela seja, para com os homens ou para com os animais, acarreta resultados kármicos atrozes. As moléstias crônicas acompanhadas de sofrimentos agudos; a loucura, são em geral conseqüências da crueldade. Conta Leadbeater que a população ignorante que torturou Hipátia nas ruas de Alexandria reencarnou-se quase toda na Armênia onde os Turcos exerceram contra ela toda a sorte de crueldades. Todos os que morrem sob terríveis sofrimentos, em conseqüência de queimaduras, aparentemente devidas ao acaso, foram os queimadores de homens da Idade Média, os autores dos autos de fé, e todos os que com prazer assistiram a estas cenas hediondas.
            O karma coletivo pode comprometer o indivíduo nas desgraças de uma guerra, de uma revolução. Ainda aqui pode o indivíduo saldar certas dívidas do seu passado que não fazem parte do karma maduro e assim apressam a própria evolução.
            Em caso nenhum o homem pode sofrer pelo que não praticou; e muito menos os filhos pagarem pelo que os pais fizeram. Não nos parecemos com os nossos pais porque somos seus filhos; mas sim, porque as necessidades kármicas, as semelhanças de destino, as aptidões que os pais possuem em fornecer um corpo físico ao ser reencarnante, tudo isto facilita as aproximações entre os indivíduos. Perguntaram ao Senhor Buddha, se ele não poderia resgatar as faltas dos seus discípulos; ao que ele respondeu: “Nunca; nenhum. homem pode ser salvo por outro.
            “Nenhum Deus, nenhum santo pode salvar um homem das conseqüências das suas más ações. Cada um deve libertar-se por si mesmo. E acrescenta o sábio: “Nem nas profundezas do espaço incomensurável, nem no meio do oceano imenso, nem nas gargantas sombrias das montanhas, encontrarás asilo onde possas escapar às conseqüências das tuas más ações”.
            O homem é seu único legislador, seu próprio juiz, o único senhor do seu destino. Ele se pune, e a si mesmo se recompensa. Exerce, no círculo de sua própria vida, uma realeza sem limites. O que o prende à roda dos renascimentos é o desejo; e o domínio do mental; eis o segredo da redenção humana. Porque é tanto menos governado aquele que mais se governa.
            Imagem verdadeira do Deus de quem descende, o homem dele recebe os mais altos dons os poderes mais divinos, tais como a liberdade, a vontade, a faculdade criadora. Ele mesmo forma, peça por peça o pequeno universo onde se escoa sua existência. Ele mesmo edifica, na hora presente, o futuro palácio encantado, ou a choupana maldita da qual a morte lhe abrirá as portas.
            Indispensável é, pois, o estudo da Teosofia. O homem liberta-se pelo conhecimento e pelo domínio de si mesmo. E o acaso, ou melhor, a fatalidade diminui, à medida que o conhecimento aumenta.
 
 
CESSÃO DO KARMA
III
            Estava, um dia, certo Brâmane sentado no alto de uma colina, em meditação, quando viu passar o rei com sua numerosa escolta de cavaleiros e soldados esplendidamente vestidos. Depois de contemplar toda esta magnificência, o Brâmane, deslumbrado curvou a cabeça e pensou: “Quanto este príncipe é feliz e poderoso. Vive cercado de felicidade e grandeza! Quando poderei eu alcançar tanta felicidade também?”
             E a tristeza da sua condição pesou-lhe fortemente no espírito.
            Guardou este desejo no íntimo do coração embora nunca, em sua longa vida, se afastasse do caminho da justiça. Envelheceu e morreu. Ora, após a morte, tornou-se glorioso monarca, senhor de vastos territórios, recebendo embaixadas, dirigindo numerosos exércitos, soberano absoluto de milhares de súditos, construindo fortalezas e cidades. Entretanto este imenso império estava encerrado inteiramente nos limites da imaginação astral do Brâmane ambicioso.
            Os nossos desejos, as nossas aspirações criam forma, vivem dentro de nós porque o nosso mental é o criador da ilusão. Tudo que o homem sonhou possuir na Terra, ele o possui em plano astral. O que nos prende é o desejo. A alma é atraída para qualquer objeto, e assim forma-se uma imagem mental que é reforçada pelas vibrações astrais. A tendência é a sua realização na terra. Todos os nossos pensamentos tendem a realizar-se. A ação tem como causa geradora o desejo, que é o elemento principal na formação do karma.
            Quando o homem trabalha, não pensa senão nos resultados práticos do seu trabalho, no lucro material que pode auferir em bens materiais, em dinheiro...
            Trabalhamos com o fito de adquirir alguma coisa.
            O homem cava a terra, planta, semeia colhe para transformar todo esse esforço em metal sonante.
            Ele está auxiliando inconscientemente a evolução, cooperando no plano divino; mas vai movido por pensamentos egoístas, apenas pensando na sua pessoa.
            “Em torno de nós vemos todos trabalhar para alguma coisa, movidos pelo interesse e pelo desejo, impelidos pela ambição”.
            Olhemos para as multidões que enchem os templos. É o temor do inferno, é a ânsia de ganharem indulgência, é o desejo de salvação, é a ambição do céu. Cantam, dão esmolas, cumprem as cerimônias, ouvem missa pensando no seu eu, no futuro que os aguarda no paraíso cercado de anjinhos, ouvindo e cantando louvores a Maria Santíssima. O católico não tem outro pensamento. Ele tem em mira gozar no céu os frutos da sua ação na terra.
            Mas, porque tem havido grandes seres que se destacam da multidão ambiciosa, os santos tais como São Francisco de Assis e Santa Tereza de Jesus? Porque estes não são movidos pelo interesse, nem desejam coisa alguma!
            Ouçamos Santa Tereza:
No me mueve, mi Dios, para quererteEl cielo que me tienes prometido,
Ni me mueve el infierno tan temido
Para dejar por eso de ofenderte.
Tu me mueves, mi Dios, mueve ei verte
Clavado en asa Cruz y escarnecido;
Mueveme ei ver tu cuerpo tan herido;
Mueveme el ver tua afrontas y tu muerte.
Mueveme, en fim, tu amor, y en tal manera
Que, aunque no hubiera cielo yo te amara
Y, aunque no hubiera infierno te temiera.
No me tienes que dar por que te quiera
Porque, aunque lo que espero no esperara,
Lo mismo que te quiero te quisiera.
            Como vemos, não é o temor do inferno, nem a ambição do céu que impelem Santa Tereza na sua ação terrestre. Ela nada deseja, nem na terra nem nos céus. É o amor altruísta a verdadeira renúncia, o desprendimento completo das preocupações de recompensa além da morte.
            Bossuet, falando de São Luiz diz: “O amor de Deus animava todas as suas ações e ele louvava muito o dito de uma mulher que fora achada na Terra Santa, tendo um facho aceso em uma das mãos, e na outra um vaso cheio d’água; a qual, sendo interrogada sobre o que ela pretendia fazer com isso, respondeu que queria pôr fogo no paraíso e apagar o fogo do inferno, a fim de que, dizia ela, de ora avante os homens sirvam a Deus somente pelo amor”. Isto recorda o pensamento de uma outra santa católica - “Meu Deus, se eu te adoro pelo temor do inferno, faze-me queimar nesse inferno: se te adoro na esperança de ir para o céu, exclui-me deste céu; mas se te adoro só por ti mesmo, não me ocultes tua eterna beleza”.
            Isto é a verdadeira santidade.
            O desejo dos frutos das ações, a recompensa que esperamos por tudo o que fazemos, desperta a alma a cada instante à atividade, embora forjando novas cadeias kármicas.
            No início da nossa evolução o desejo e a ambição representam o papel de aguilhões que nos conduzem à atividade.
            Todos nós sabemos a história de Fernão Dias Paes Leme, o heróico paulista, o destemido bandeirante que, abandonando família, conforto, tranqüilidade, penetrou pelo interior do Brasil heroicamente em busca das sonhadas esmeraldas. Anos, muitos anos, levou desbravando sertões incultos, florestas virgens, lutando com o índio bravio, vadeando rios caudalosos, dominando sedições da própria gente, vendo dia a dia seus companheiros dizimados pelas febres, devorados pelas feras, mas sempre embalado pelo sonho verde das esmeraldas.
            Nada conseguiu depois de muitos anos; mas uma coisa ficou de sua louca ambição: o conhecimento do nosso sertão. Foi ele o semeador de cidades, o grande povoador dos nossos sertões. Assim, impelido por um móvel egoísta e subalterno, ele cooperou no entanto na grande obra da civilização brasileira.
            Podemos conceder o papel preponderante que o aguilhão do desejo representa na evolução das qualidades mentais. A luta, estimulada pelo desejo e pela ambição, desenvolve a perseverança, a destreza, a calma, o golpe de vista. Mas, quando o homem já atingiu certo degrau da evolução, o desejo deve ser vencido, embora aquelas qualidades já tenham se incorporado ao corpo causal.
            Por isso, quando o homem aspira libertar-se dos liames do desejo, e procura elevar seu pensamento a mais nobres ideais, sente necessidade da renúncia aos frutos da ação, e assim muda sua atitude mental, modifica as intenções que o conduzem à ação.
            Mas, esta atitude não impede que continuemos a trabalhar, despendendo o mesmo esforço anterior. Todo o teosofista tem o dever de conhecer o célebre aforismo da “Luz no Caminho”:
            "Mata a ambição, mas trabalha como trabalham os que são ambiciosos”.
            Há somente uma diferença entre as duas atitudes: o homem vulgar trabalha pensando em si; o homem evoluído esquece-se de si, trabalhando por amor da própria obra sem pensar nos resultados finais.
            Admitamos dois oficiais de uma repartição de Estado. Ambos trabalham ativamente. Um faz salientar seu esforço, mostra a todos seus trabalhos, visando o elogio dos chefes; o outro, ativo mas circunspeto trabalhador silencioso, produz igualmente como o primeiro, mas não fala, não procura se pôr em evidência, indiferente à crítica, ao elogio, à promoção por merecimento. Um cria karma, o outro não.
            O melhor comentário é o Bhagavad Gita que nos diz: “Para o homem que se deleita no Ego, e está contente no seu Ego, este não tem mais nada a fazer neste mundo”. “Nem a ação, nem a inação, o prendem, nem depende de criatura alguma deste mundo. Portanto, cumpre a tua ação sem apego ao resultado, pois o homem, que cumpre o seu dever sem apego, alcança o Supremo. Procura agir lembrando-te que o teu fim é o serviço do Mundo".
            Para terminar estas considerações sobre o karma, vamos apresentar aos nossos leitores um conto budista da velha Índia, há muitos anos por nós traduzido e que admiravelmente nos expõe a verdade sobre esta lei fundamental da Teosofia. 
 
 
KARMA
 
CONTO BUDISTA - VELHA LENDA INDIANA
PREFÁCIO
            O leitor, pouco afeito aos estudos teosóficos ou ao das religiões do Extremo Oriente, que ler este conto, talvez não apreenda bem o sentido da palavra Karma.
            Para estes são estas linhas.
            Os sectários das religiões asiáticas fundadas sobre as doutrinas de Buddha e outros grandes condutores de povos, crêem numa sucessão de vidas, nas quais a alma humana guarda sua individualidade e adquire em cada nova encarnação, mais poder, inteligência, experiência, saber e devotamento.
            Cada existência nova depende de alguma sorte das precedentes.
            Nada se perde e tudo se encontra.
            Cada esforço é pago pela aquisição duma faculdade no ramo em que se produz. Assim se explica que tal criança nasce com a faculdade da música, outra com a do desenho, e que uma terceira tenha o gênio das matemáticas. Os budistas nos diriam que tais dons não são obra do acaso, nada é devido ao acaso; que eles são a justa recompensa de trabalhos assíduos feitos em vidas anteriores à atual. Igualmente crêem que as más como as boas ações são entidades vivas como o nosso pensamento; que essas ações engendram outras, e que tudo se paga nesta ou nas outras vidas seguintes.
            É esta dívida inelutável que eles qualificam com o nome de karma.
            Segundo eles, nós mesmo tecemos cada uma das nossas vidas, boas ou más.
            Se esta concepção fosse admitida entre nós, ressaltaria da vida um sentimento de justiça que não nos dá a concepção cristã em que somente a graça influi.
            Por que este é inteligente, belo, rico, enquanto aquele sem motivo aparente, é ignorante, feio, pobre e fraco?... Os asiáticos, discípulos de Buddha, nos diriam que os karmas são diferentes, porque eles os teceram diferentemente nas precedentes encarnações. Consideram que são senhores de suas vidas futuras, e têm, nesta a recompensa ou a punição das que viveram anteriormente.
            Eis ai, caro leitor, o que é o karma. 
 
 
A CARROÇA DE ARROZ DE DEVALA
            Foi há muito tempo numa era muito remota. Foi nos primeiros tempos da fundação da religião de Buddha.
            A Índia já era civilizada. Os habitantes desse belo país os Árias, tinham fundado grandes cidades muito prósperas, que se tornaram importantes centros de indústria, comércio e ciência.
            Foi nessa época remota que um joalheiro chamado Pandu, viajava de carruagem na estrada de Baranasi, posteriormente chamada Benares; tinha sido feliz nos negócios e importante era a sua fortuna, mas econômico, viajava, acompanhado apenas de um escravo, que lhe servia de cocheiro e tratava dos cavalos.            
            Pela marcha dos animais, via-se que ele tinha pressa de chegar ao seu destino; os cavalos alargavam o passo e corriam, apesar da beleza da paisagem aumentada pela doçura do ar, que uma tempestade tinha refrescado.
            Seguindo a estrada, os viajantes depararam com um Samana (monge budista) e notando o aspecto venerável do santo homem, Pandudisse consigo: o exterior deste Samana é nobre e piedoso, a sociedade das boas pessoas sempre é desejável, traz consigo muitas vezes a felicidade. Se ele vai a Baranasi convidá-lo-ei subir para o meu carro.
            Tendo feito parar os cavalos e saudando o Samana disse-lhe: - Vou a Baranasi, onde me hospedarei por alguns dias na estalagem do Guru Branco.
            - Para aí vou também, respondeu o monge que se apresentou a Pandu, dizendo chamar-se Narada. Imediatamente Pandu ofereceu um lugar ao Samana, pedindo-lhe fazer a viagem com ele.
            - Muito agradeço a vossa bondade, respondeu Narada, porque estou bem cansado da minha longa jornada. Não tenho nenhum bem neste mundo, não vos posso pagar com dinheiro, mas pode acontecer que tenha ocasião de vos ser útil, também, graças ao tesouro espiritual adquirido por mim, seguindo os ensinamentos de Shakyamuni, o Abençoado, o grande Buddha que ilumina os deuses e os homens.
            Viajaram juntos na carruagem, Pandu escutando com prazer as narrações instrutivas de Narada.
            Ao fim de uma hora de viagem, mais ou menos, chegaram a um lugar em que a estrada estava quase intransitável; por causa das chuvas recentes tinha-se formado uma lagoa. Uma carreta de lavrador, pesadamente carregada de arroz, impedia de continuar sua marcha, barrava o caminho. A perda de um parafuso dera causa a cair uma roda, e Devala, o proprietário da carreta, estava ocupado em reparar o acidente.
            Ele também ia a Baranasi, e, para vender seu arroz era urgente que chegasse à cidade no dia seguinte pela manhã. Um dia ou dois de demora causar-lhe-ia o maior prejuízo; os negociantes de arroz podiam deixar a capital, depois de terem comprado todo o arroz de que necessitassem.
            Quando o joalheiro viu que não poderia prosseguir sua viagem senão depois que a carreta de Devala ficasse consertada, impacientou-se e ordenou ao seu escravo Mahaduta empurrasse a carreta para o lado, para que sua carruagem pudesse passar. O lavrador procurou convencer que esse movimento sobre o declive do fosso, na ourela da estrada, descarregaria toda a sua mercadoria; porém o brâmane a nada quis atender e ordenou Mahaduta virar a carreta e empurrá-la para o lado. O escravo, notavelmente forte, era dos que se sentem felizes com a desgraça alheia e obedeceu ao seu Senhor, antes que o Samana pudesse intervir.
            Logo que Pandu pôde continuar sua viagem, o monge saltou da carruagem e lhe disse:
            - Desculpai-me, senhor, se vos deixo aqui, fico muito obrigado pela bondade que tivestes, conduzindo-me convosco durante uma hora no vosso carro. Estava fatigado quando me encontrastes na estrada; agora, graças à vossa cortesia, estou descansado e reconhecendo no lavrador a encarnação de um dos vossos antepassados não posso melhor agradecer a vossa bondade do que vos ajudando nesta emergência.
            O brâmane olhou o Samana com estupefação:
            - Este lavrador é a encarnação de um dos meus antepassados? Não é possível.
            - Sei, replicou o monge, que sois inconsciente das numerosas e importantes relações que ligam vosso destino ao deste lavrador. Um homem cego jamais poderá ver. Lamento o mal que fazeis a vós mesmo, e vou tentar vos proteger contra as feridas e os golpes que vos infligis.
            O rico brâmane, não estava acostumado às reprimendas; e sentindo dura a exprobração do monge embora dita suavemente e com grande bondade, ordenou ao cocheiro tocar os cavalos e partiu.
            O monge saudou o lavrador Devala. Começou por ajudá-lo a consertar a carreta, depois a recarregar o arroz do qual uma parte tinha caído.
            O trabalho ia ligeiro e Devala pensou: este Samana deve ser um santo homem; devas invisíveis parecem ajudá-lo. Se eu lhe perguntasse porque mereci o mau trato desse orgulhoso brâmane?
            - Homem venerável, pode dizer-me porque sofri a injustiça de um homem ao qual nunca fiz mal?
            - Meu amigo, disse o Samana, você não sofre uma injustiça mas recebe, no estado presente desta existência, o mesmo tratamento que infringiu ao brâmane numa existência anterior; Você colhe o que semeou; sua vida atual é o produto das suas ações de outrora. Não é mais do que o karma das suas vidas passadas.
            - Que é karma? perguntou Devala.- O karma do homem, explicou o Samana, é o resultado de todas as suas ações boas ou más, feitas não só na existência atual como também nas precedentes. Nossa vida é um sistema de numerosas atividades que se transferem de geração em geração pela via natural da evolução.
            Eis o que somos: uma acumulação contínua de heranças, de ações que são modificadas por novas experiências e novas ações. Deste modo somos atualmente o que fizemos outrora. Nosso karma constitui nossa natureza porque somos nós os próprios criadores.
            - Na verdade, assim pode ser, replicou Devala; mas que fiz eu para passar pelo dissabor que acabo de sofrer, graças a esse insuportável brâmane.
            - Seu caráter é em tudo semelhante ao do brâmane, e o karma que constitui o seu destino pouco difere do dele. Lendo eu seu pensamento, se me não engano, vejo que hoje mesmo teria agido, como o brâmane, se estivesse no lugar dele, e tendo ao seu serviço um escravo forte e sempre pronto a lhe obedecer.
            O lavrador que, se estivesse em suas mãos, teria sem nenhum remorso, tratado quem lhe impedisse o caminho tal como fora tratado pelo brâmane, começou a meditar na lição que recebeu; e, pensando de agora em diante na retribuição que devia esperar de suas ações, tomou a resolução de prestar mais atenção ao modo de tratar os outros.
            O arroz foi recolocado na carroça e os dois prosseguiam viagem quando subitamente, o cavalo deu um salto para o lado. “Uma serpente!” gritou o lavrador; mas o Samana aproximou-se do objeto que assustara o cavalo, e reconheceu que era uma bolsa comprida, cheia de ouro. Pensou: ninguém, salvo o joalheiro, poderia ter perdido esta bolsa. Tomou-a e entregando-a ao lavrador, disse-lhe: Assim que chegares a Benares vai ao albergue que já te falei e pergunta por Pandu, o brâmane, e entrega-lhe sua bolsa. “Ele se desculpará pela maneira dura com que te tratou. Diz-lhe que o perdoas e que lhe desejas toda a felicidade possível em suas empresas, porque eu posso afirmar, que, quanto mais ele prosperar, mais tu prosperarás também; teu destino depende em muitos pontos do dele.
            Se o brâmane te pedir explicações envia-o ao Vihára (mosteiro budista) onde me encontrará sempre pronto a esclarecê-lo com meus conselhos, se deles sentir necessidade.
 
 
NEGÓCIOS EM BENARES
            O açambarcamento de gêneros no mercado não é uma invenção moderna. O Velho Testamento relata a história de José, o jovem e pobre hebreu que, tornado ministro de Estado, conseguiu por sua inteligência e poucos escrúpulos, monopolizar todo o trigo do Egito, forçando assim o povo esfaimado a vender ao faraó todas as suas propriedades, privilégios e até as próprias vidas.
            Quando o brâmane chegou a Benares, um especulador ousado tinha açambarcado todo o arroz e Malika, um rico banqueiro amigo e sócio nos negócios de Pandu, estava em grande embaraço. Ao ver Pandu, lhe disse: “Sou um homem arruinado e não posso mais fazer nenhum negócio contigo, a menos que eu possa conseguir comprar uma carroça do melhor arroz para fornecer à mesa real. Meu rival, banqueiro como eu em Benares, tendo sabido que eu adquiri, por meio de um contrato com o tesouro real, o fornecimento de arroz amanhã pela manhã, quis aniquilar meu crédito, e comprou todo o arroz de Benares. O tesoureiro real tem o direito de multar-me, e não quer relevar meu contrato, e amanhã serei um homem arruinado, a menos que Krishna não me envie um anjo do céu em meu auxílio".
            Enquanto Malika se lamentava pela situação aflitiva a que seu rival queria reduzi-lo, Pandu notou que sua bolsa desaparecera.
            Procurou no carro sem conseguir achá-lae suspeitou de seu escravo Mahaduta. Mandou chamar a polícia, acusou-o de roubo, fê-lo encarcerar e torturar cruelmente para obrigá-lo a confessar seu crime.
            No meio de suas dores o escravo gritava: “Estou inocente, deixa-me partir, pois eu não posso suportar tais sofrimentos. Estou inocente pelo menos desse crime e eu sofro agora pelos outros que pratiquei. Oh! que eu possa obter o perdão do lavrador a quem devido ao meu senhor, fiz mal sem razão. Esta tortura deve ser pelo mal que eu lhe fiz”.
            Enquanto o escravo sofria o duro castigo, o lavrador chegou ao albergue do Guru Branco e com espanto geral restituiu a bolsa. Imediatamente o escravo foi posto em liberdade; mas possuindo-se de um profundo ódio ao seu senhor, fugiu secretamente, e juntou-se nas montanhas a um bando de salteadores, que, diante da sua força e coragem, tomaram-no como chefe.
            Quando Malika soube que o lavrador viera vender arroz de primeira qualidade com o qual ele abasteceria a mesa real, comprou toda a carga pagando três vezes o seu valor.
            Pandu, feliz por ter encontrado seu dinheiro, apressou-se em ir até ao Vihára, para receber as explicações prometidas pelo Samana Narada 
            Este lhe disse: - “Eu poderia dar todas as explicações, mas tu és incapaz de compreender uma verdade espiritual e prefiro permanecer calado. Entretanto vou te aconselhar o seguinte: trata todos que tu encontrares como se fossem tu mesmo: serve-os como desejas ser servido, porque assim semearás boas ações e esta é a mais rica seara da qual podes fazer segura colheita”.
            - Dá-me, ó monge, a explicação que tu me recusas, rogou o joalheiro, porque assim ficarei mais disposto a seguir teus conselhos.
            Então escuta: vou te revelar a chave do mistério e se tu não compreenderes, tem fé no que vais ouvir: “O eu é uma ilusão. Aquele cujo espírito está unicamente preocupado consigo mesmo, segue um caminho que o conduzirá à voragem do pecado. A ilusão do Eu é o véu de Maya, que cega os olhos, impedindo de reconheceres as relações que existem entre os diferentes órgãos de um mesmo corpo. Deves aprender que, entre tua alma e a alma daqueles que te cercam há uma perfeita identidade”.
            “A ignorância é a fonte do pecado”.
            “Poucos são os que conhecem a Verdade”. Que esta divisa seja o teu único talismã: “Os que injuriam aos outros injuriam-se a si mesmos. Os que ajudam aos outros servem aos seus próprios interesses”.
            “Deixa a ilusão da separatividade desaparecer de teu espírito e naturalmente tu marcharás no caminho da Verdade. O mundo espiritual parece dividido em inumeráveis partes àquele cuja visão está velada pelo véu de Maya: será portanto muito difícil, compreender sob o ponto de vista da transmigração da vida da Alma, toda a importância, que há em auxiliar, com todas as nossas energias, tudo aquilo que possui uma centelha de vida aqui em baixo”.
            O joalheiro pensativo respondeu: “Estas palavras, homem venerável, têm uma profunda significação e eu as gravarei no meu espírito. O modo como procedi, - e nada me custou - com um pobre Samana, no caminho de Baranasi, produziu inúmeros benefícios. Serei eternamente devedor deste benefício, porque, sem teu auxílio, teria perdido minha bolsa, e também ficaria impedido de fazer em Baranasi negócios que sensivelmente me enriqueceram. Se diferente tivesse sido minha conduta, estaria hoje em um estado vizinho da pobreza. Ainda mais a chegada do lavrador possuidor do arroz salvou a situação do meu amigo Malika. Como o mundo seria mais feliz se todos os homens compreendessem a verdade de tuas máximas. E porque eu desejo que os pensamentos e as palavras de Budhha sejam ensinadas, fundarei um Vihára (mosteiro) no lugar de meu nascimento em Kaushambi, onde te convido a ir me ver. Dedicarei este refúgio aos irmãos discípulos de Budhha”.
 
 
ENTRE OS LADRÕES
            Muitos anos se passaram. O mosteiro fundado por Pandu era afamado como sendo um centro de luz onde Samanas instruídos e sábios vinham residir.
            Por este tempo, o rei de um país vizinho, tendo ouvido gabar a beleza das jóias de Pandu, encomendou, por intermédio de seu tesoureiro, um diadema real, cinzelado em ouro puro e rodeado das mais preciosas pedras da Índia. Quando Pandu terminou o trabalho partiu para a residência do rei e, esperando fazer ainda bons negócios, levou consigo grande contingente de jóias. A caravana que conduzia suas mercadorias era protegida por forte escolta de homens armados; mas, ao penetrar nas montanhas, foi atacada por um bando de salteadores conduzidos por Mahaduta que a venceu e apossou-se de toda a riqueza.
            Pandu conseguiu escapar com grande dificuldade. Este desastre foi um golpe terrível para ele.
            Tendo já experimentado várias perdas importantes, sua fortuna estava muito diminuída. Apesar deste revés suportou tudo sem se queixar dizendo interiormente:
            “Mereci tudo que me aconteceu pelas faltas das minhas existências anteriores. Em minha mocidade fui cruel para com os outros. Estou agora colhendo tudo que semeei por minhas más ações. Não tenho motivos para me queixar”.
            Tendo melhorado o seu trato para com seus semelhantes, seus pesares serviam para purificar seu coração e o único desgosto que ainda experimentava era, com a diminuição de suas riquezas, não poder auxiliar seus amigos do mosteiro, para completa difusão das verdades eternas.
            Muitos anos passaram-se ainda. Aconteceu um dia que Panthaka, jovem Samana, discípulo de Narada, viajando nas montanhas, caiu no meio de um bando de ladrões.
            Nada possuindo, o chefe fê-lo chicotear e mandou-o embora. Na manhã seguinte enquanto seguia a estrada na espessura de um bosque, ouviu barulho de uma disputa e viu homens que lutavam. Ao aproximar-se percebeu numeroso grupo de salteadores que lutavam uns com os outros. No centro deles sobressaia a figura do chefe Mahaduta.
            Ele só enfrentava a todos os demais, como um leão rodeado de cães furiosos. Aos seus golpes formidáveis vários dos agressores foram abatidos mas porque eram numerosos, o chefe por fim sucumbiu e caiu coberto de ferimentos.
            Assim que os bandidos abandonaram o lugar, o Samana aproximou-se, esperando fazer alguma coisa pelos feridos. Mas viu que todos jaziam mortos, à exceção do chefe que ainda respirava. Rápido correu a um pequeno regato de águas claras que murmurava sob as folhas, onde encheu seu cabaz dando de beber a Mahaduta. O desgraçado abriu os olhos e rilhando os dentes perguntou:
            - Onde estão estes cães ingratos a quem eu tantas vezes conduzi à vitória? Privados do seu chefe em breve perecerão como jaguares encurralados por caçadores hábeis.
            - Esquece teus camaradas, companheiros de uma vida de crimes e pecados, disse Panthaka; pensa antes em tua alma e aceita no último momento a felicidade da salvação que eu te ofereço. Eis aí água fresca, bebe e deixa-me pensar tuas feridas, talvez te possa salvar a vida.
            - Ah! suspirou Mahaduta, não és tu o homem a quem eu fiz bater ontem? Vens trazer o socorro da tua assistência para aliciar minhas dores? Trazes água fresca para saciar minha sede e procuras salvar minha vida!... É inútil... sou um homem condenado, os cães me feriram de morte. Ingratos! Miseráveis! Mataram-me com os próprios golpes que eu lhes ensinei!
            - Tu agora recolhes aquilo que semeastes, prosseguiu o Samana: se tu tivesses ensinado a bondade, receberias deles atos de bondade; mas para as lições de assassinato que lhes destes, é natural que sejas assassinado pelas próprias mãos deles. A falta é tua.
            - Na verdade! disse Mahaduta, meu destino é merecido quanto a minha parte é triste! Vou, em existências, futuras, colher o resultado de minhas más ações. Aconselha-me! Que posso eu fazer para aliviar meus pecados? Eles me oprimem como um rochedo colocado sobre o peito, impedindo a respiração de meus

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