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AULA 2 FUNÇÕES NEUROPSICOPEDAGÓGICAS COGNITIVAS – COGNIÇÃO E APRENDIZAGEM Profª Michele Müller 2 TEMA 1 – CONTEXTO SOCIAL E CULTURAL NO DESENVOLVIMENTO DA COGNIÇÃO Nas próximas aulas, você entenderá que não podemos desassociar o desenvolvimento cognitivo das interações humanas. Vamos abordar a importância das teorias de Vygotsky para a compreensão do papel social na cognição humana e alguns dos conceitos criados por ele, como a zona de desenvolvimento proximal. Somos uma espécie fundamentalmente social e isso possivelmente é, ao mesmo tempo, a causa e a consequência dos diferenciais anatômicos do nosso cérebro, como maior volume do neocórtex com relação ao tamanho do corpo e maior volume de massa branca. Isso quer dizer que, ao mesmo tempo em que o desenvolvimento e a maior conectividade entre determinadas áreas do cérebro nos permitiram viver em sociedade, a convivência social nos permite alcançar capacidades cognitivas superiores. Piaget, como já vimos, defendia que a aprendizagem é um processo que envolve sistemas biológicos pré-programados e a interação com o ambiente. O psicólogo russo Vygotsky adiciona mais um elemento fundamental a essa fórmula ao dar ênfase ao papel do contexto social e cultural no desenvolvimento da cognição. Isso não significa que Piaget tivesse ignorado esses fatores, afinal, ele defendia que as reflexões lógicas seriam originadas das interações entre as crianças, mas, diferentemente de Vygotsky, não foi o ponto central de sua obra. Para Piaget, a criança torna-se um ser social progressivamente e com base nas interações com colegas vai gradualmente abandonando o egocentrismo infantil e construindo capacidade de julgamento moral, da qual falaremos um pouco mais para frente. Já para o psicológico russo, nascemos dependentes das relações para nos desenvolvermos. Todo o raciocínio se forma a partir das relações com outros. Para ele, todo o ganho cognitivo acontece em dois estágios: primeiramente em nível social, entre as pessoas (interpsicológico), para somente depois ocorrer em nível individual (intrapsicológico). Segundo Vygotsky (1989, p. 64), isso se aplica para a atenção voluntária, para a memória lógica e para a formação de conceitos: “Todas as funções mentais superiores originam-se das relações entre indivíduos”. 3 Vygotsky enfatiza a importância da mediação na aprendizagem, em que, com a assistência de outra pessoa, a cognição se desenvolve dentro do que chama de zona de desenvolvimento proximal (ZDP). É aquele espaço entre o conhecimento que a criança consegue aprender independentemente e o que ela pode ganhar com a assistência de um mediador. Em suas palavras: A zona de desenvolvimento proximal define aquelas funções que ainda não foram amadurecidas, mas estão no processo de amadurecimento, em estado embrionário. Essas funções podem ser definidas como os botões ou as flores do desenvolvimento ao invés dos frutos do desenvolvimento” (Vygotsky, 1988). A ZDP seria um desafio que pode ser cumprido com um empurrãozinho, como chegar a uma próxima etapa de um jogo, com um nível de dificuldade um pouco acima do confortável. Pelo fato de este campo de desenvolvimento necessitar do auxílio de alguém mais experiente, muito se fala do papel do mediador ou do adulto no ganho cognitivo da criança quando se abordam as teorias de Vygostky. No entanto, ele aborda a brincadeira entre crianças como uma prática essencial para a aprendizagem por criar a zona de desenvolvimento proximal. Isso porque, segundo ele, em uma brincadeira, a criança sempre atua como se fosse mais velha, age como se fosse mais velha, imita os adultos em vários aspectos. De acordo com Vygotsky (1967), “No foco de uma lente de aumento, a brincadeira contém todas as tendências de desenvolvimento de uma forma condensada. Como se a criança sempre quisesse pular acima de seu comportamento normal” A ênfase ao papel das interações não significa que Vygotsky tenha ignorado os processos neurológicos de amadurecimento. Ele defendia que o processo de socialização da criança acontece de maneira integrada ao processo de maturação. Segundo ele, ambas as linhas – cultural e biológica – penetram-se uma na outra no desenvolvimento cognitivo. 4 Figura 1 – Esquema da zona de desenvolvimento proximal TEMA 2 – VYGOTSKY SOB A PERSPECTIVA NEUROCIENTÍFICA Assim como muitas das teorias de Piaget, o pensamento de Vygotsky acerca do papel das relações do desenvolvimento encontra amparo na neurociência. É sobre isso que você irá aprender e refletir nesta aula. Estudos recentes confirmam a relação do “cérebro social” com o desenvolvimento cognitivo. Em um desses estudos (Dávid-Barrett; Dunbar, 2013) foi utilizada uma tecnologia chamada Agent Based Modeling, que permite a simulação de situações com muitas variáveis, como ocorre nas interrelações. Com isso foi possível fazer uma avaliação da demanda cognitiva no meio social. A conclusão foi que quanto maior o grupo com a qual uma espécie interage, mais desenvolvido é o seu cérebro. Isso porque a convivência com muitas outras mentes, com reações e comportamentos diferentes do nosso e muitas vezes imprevisíveis, requer o uso de recursos mentais considerados superiores, como o raciocínio lógico e a linguagem. Os pesquisadores chegaram à conclusão de que a formação de grandes grupos depende de recursos cognitivos mais sofisticados, que em grupos pequenos são desvantajosos, uma vez que essas capacidades necessitam de um cérebro volumoso e que consome muita energia, ou seja, que depende de uma ingestão bem maior de calorias. Nesse aspecto, fomos muito beneficiados pela prática do cozimento de alimentos, o que os torna mais fáceis de serem mastigados, possibilitando refeições mais calóricas e menos dispendiosas, o que 5 fez sobrar mais tempo para a convivência em grupo e que, dessa forma, o cérebro humano continuar ganhando diferenciais cognitivos. Outros estudos com neuroimagem de macacos e humanos mostram que existe uma correlação do tamanho de regiões do cérebro (especialmente a área temporal e lobo pré-frontal, envolvidos no processamento da linguagem) com o tamanho do grupo ao qual o indivíduo pertence. Isso sugere que a necessidade de comunicação, gerada pela nossa interdependência social, impulsionou de forma muito significativa a evolução da espécie humana. Para o sucesso da convivência em grupos, fundamental tanto para a sobrevivência quanto para a prosperidade da nossa espécie, é requerida uma série de habilidades cognitivas que tivemos que desenvolver: de processamento de informações visuais e memória para rostos, de memorização de informações sobre as relações entre membros do grupo, de processamento das emoções e de manipulação de informações sobre uma série de relacionamentos. 2.1 A rejeição no cérebro Outra evidência neurobiológica da importância do convívio social para a sobrevivência da nossa espécie é o fato de o cérebro humano utilizar o mesmo circuito para processar a dor física e a dor da rejeição. O neurocientista Matthew Lieberman, da Universidade da Califórnia, pesquisou durante mais de duas décadas o cérebro social. Concluiu que o fato de não haver demarcação biológica entre os tipos de dor é uma evidência de que a conexão o social é uma necessidade para o ser humano, tal como água e sono. Isso possivelmente se desenvolveu para garantir que as crianças se mantenham próximas de seus pais e protegidas. Segundo esse autor, As pesquisasque eu e outros cientistas fizemos utilizando ressonância magnética funcional mostram que a forma como experimentamos a dor social é conflitante com a percepção que temos dela. Intuitivamente, acreditamos que a dor física e a social são experiências radicalmente diferentes, embora nosso cérebro sugere que são mais similares que imaginamos. (Liberman, 2013) O neurocientista chegou a três grandes adaptações que o cérebro humano desenvolveu para que pudéssemos formar sociedades e navegar no mundo social: 6 • Conexão: já nascemos com uma profunda necessidade de conexão, que se mantém ao longo de toda a vida. A falta de conexão ou de vínculo leva a vários problemas mentais e de saúde e reduz a expectativa de vida; • Leitura de mente: a habilidade de entender as ações e intenções do outro é fundamental para que possamos manter a conexão com os outros e interagir estrategicamente, levando em consideração as necessidades daqueles com quem convivemos. Começa a se desenvolver muito cedo, ainda em bebês (conforme você poderá conferir na próxima aula); • Harmonização: esse elemento deriva da autoconsciência, uma das capacidades mais recentes da linha evolutiva. É um mecanismo que, ao mesmo tempo em que nos distingue dos outros, nos permite criar coesão social. Apesar de ser normalmente estudado isoladamente, o cérebro humano funciona em conjunto com outros. Como salienta o neurocientista Eagleman (2017), somos criaturas fundamentalmente sociais, e essa característica está refletida em diferentes circuitos do cérebro. “São networks espalhados que monitoram outras pessoas, comunicam-se com elas, sentem sua dor, julgam suas intenções e leem suas emoções”. O filósofo alemão Heiddeger escreveu sobre a questão ao abordar a teoria de “estar no mundo”. Segundo Heidegger (1988), o mundo faz parte de quem eu sou. Não há como compreender um ser humano isoladamente. Nossa identidade é construída em conjunto, no mundo, com os outros que fazem parte dele e, assim, fazem parte de quem somos. TEMA 3 – COGNIÇÃO SOCIAL Para que a cultura, com base no meio social, possa atuar sobre o desenvolvimento intelectual da criança, ensinando-a sobre o que pensar e como pensar, é preciso se construir, por meio de interações, habilidades básicas que podem ser chamadas de cognição social. Nesta aula, vamos entender um pouco mais sobre como ela se desenvolve e se diferencia nos seres humanos. Veremos alguns conceitos, como raciocínio psicológico, intencionalidade e teoria da mente. Podemos dividir esse a cognição social entre raciocínio psicológico e raciocínio sociomoral. 7 3.1 O raciocínio psicológico O raciocínio psicológico é relacionado ao que se espera do comportamento dos outros e muitas vezes ocorre de forma inconsciente. É quando, por exemplo, uma criança vê outra criança correndo em direção a um vendedor de algodão doces: ela infere que o outro quer pegar o doce. Se esse objetivo for interrompido por um tombo, a criança observadora espera que a outra chore. Nesse faixa de cognição social está a intencionalidade. A criança imagina, ou infere, com base em pistas, o que a outra quer, como a direção em que ela está indo, sua expressão e seus gestos. A intencionalidade pode se desenvolver em vários graus. Por exemplo: antes de correr em direção aos doces, a criança olhou para a que estava observando e apontou para onde estava o vendedor. Assim, a observadora sabe da intenção do colega e também que ele sabe que ela sabe dessa intenção. Também pode saber que ele não sabe que ela não divide com ele o interesse pelos doces. 3.2 Teoria da mente As relações sociais são fundamentalmente movidas pelos princípios da intencionalidade, que fazem parte de uma teoria que conhecemos como teoria da mente, ou seja, a capacidade de inferir o que o outro está querendo, pensando e sentindo. Não é uma capacidade diretamente relacionada às habilidades e que possa ser medida em testes padrão de inteligência, mas pode pertencer ao âmbito do que chamamos de inteligência social ou cognição social. A teoria da mente é, em grande parte, relacionada com nossa capacidade de percepção das expressões – uma das habilidades visuais mais desenvolvidas em seres humanos e essencial para as interações sociais. Bebês logo mostram mais interesse pelos rostos que por objetos e ainda muito cedo começam a ganhar a habilidade de identificar diferentes expressões. Esse sistema, no cérebro, ocorre em uma via diferente da que utilizamos para reconhecer as pessoas e nos garante uma série de informações que a linguagem, por ser um processo consciente, deixa de fora. Bebês com menos de um ano já demonstram entender quando um adulto não quer lhes dar algo e quando não pode (por estar, vamos supor, longe de seu alcance). A partir dos 15 meses já apresentam uma capacidade refinada de 8 interpretar as expressões dos outros e supor suas intenções e, mesmo agindo de forma egocêntrica, começam a entender a perspectiva dos outros. O desenvolvimento da teoria da mente coincide com a mielinização (ou amadurecimento) dos lobos frontais. Vários estudos fazem a relação dessa região do cérebro com interações em que há tentativa de entender o estado mental do outro. A cognição social envolve processos altamente sofisticados e em outras espécies pode ser observada apenas em nível mais básico. Alguns estudos baseados em observação do comportamento de macacos concluíram que estes apresentam intencionalidade de segunda ordem: eles sabem, por exemplo, que outro macaco não sabe que há uma comida guardada em determinado local. Não apenas crianças pequenas têm a capacidade de ir além (eu sei que minha mãe não sabe onde escondi a bola, mas que sabe que eu sei), como a partir dos quatro anos, aproximadamente, ganham uma capacidade que podemos afirmar ser exclusivamente humana: da consciência das suposições falsas. E o que seria isso? Imagine a seguinte situação: Sally coloca um biscoito em um pote na frente de Ana. Há outro pote idêntico na cena. A criança não vê em qual pote foi colocado o doce, mas assiste à Ana marcar um dos potes. Nesta etapa do texto, tanto crianças quanto macacos pegam o pote que foi marcado, acreditando que Ana sabe onde estava o doce. Então, em uma segunda etapa, Sally novamente coloca o biscoito no pote na frente de Ana, mas sem que a criança consiga ver em qual foi. A criança então vê Ana sair do ambiente e Sally trocar os potes de lugar. Nisso, chega Ana e marca o pote onde viu o biscoito ser colocado, que naturalmente era o pote errado. Crianças de até três anos e macacos pegam o pote marcado. Mas, perto dos quatro anos, as crianças ganham consciência de que as pessoas podem fazer falsas suposições, de que podem ser enganadas. O que acontece é que, nessa fase, começam a desenvolver uma habilidade cognitiva altamente relacionada a outras habilidades comportamentais, sociais e emocionais, que é o controle do impulso. Imagine que o cérebro é como um aparelho bastante eficaz de fazer previsões. A experiência lhe ensina o que faz sentido, o que é mais provável de acontecer. E, com base nessas previsões inconscientes, guiamos boa parte do nosso comportamento e de nossas escolhas, de forma automática e sem 9 considerar os possíveis erros de previsão. A aprendizagem ocorre, geralmente, quando essa previsão é violada. O comportamento de crianças pequenas é guiado por esse sistema automático, inclusive em tarefas psicossociais. Por isso, nas fases iniciais de desenvolvimento, um teste como esse pode ser desafiador, pois envolve uma habilidade que se desenvolve um pouco mais tarde:o questionamento de um padrão de pensamento, que, nesse caso, é o fato de que as pessoas geralmente estão corretas em suas suposições. É preciso segurar o impulso de ir direto ao pote marcado e, antes de pegar o biscoito, considerar outras possibilidades, usando a memória para recompor a cena e concluir que a pessoa estava enganada. O controle do impulso, também chamado de controle inibitório, faz parte de um conjunto de habilidades mais sofisticadas conhecidas como funções executivas. Sobre o desenvolvimento dessas funções falaremos em outra aula. Alguns testes mais simples constataram que crianças já no segundo ano de vida têm a compreensão de falsas suposições. Nessa fase, elas apontam para o pote correto, pressupondo que a personagem não sabe que foram trocados. O raciocínio psicológico é construído com base em outros princípios mais básicos. Crianças ainda muito novas já esperam que uma pessoa aja de forma coerente e consistente e também eficiente. Por exemplo, se há dois objetos iguais em uma estante, elas esperam que a pessoa pegue o que está mais acessível. TEMA 4 – RACIOCÍNIO SOCIOMORAL Nesta aula você aprenderá sobre o raciocínio sociomoral e a teoria do desenvolvimento moral, do psicológico americano Lawrence Kohlberg. O raciocínio sociomoral (socialmoral reasoning) é voltado à capacidade de fazer julgamentos dos atos alheios como certo e errado, justo ou injusto, em favor ou em desacordo com os interesses de um grupo. Isso inclui competências de colaboração, respeito e compreensão de regras. Crianças a partir dos dez meses já mostram preferência por agentes que produzem ações positivas. Testes sugerem que, a partir de um ano e meio, elas têm noção de injustiça. Esses estudos geralmente são feitos pela observação do tempo em que elas olham para determinadas cenas e objetos em representações de situações sociais. Quando assistem a uma cena em que a distribuição de 10 alguma gratificação é feita injustamente, elas tendem a olhar por mais tempo que em cenas em que a distribuição é feita de forma igualitária. Muito cedo também elas parecem entender o princípio da reciprocidade. O neurocientista Gazzaniga (2008) explica que uma série de emoções relacionadas à reciprocidade permite que as sociedades operem de forma predominantemente honesta, sendo os negativos a culpa (por trapacear), a vergonha (tanto por ser trapaceado e como por quebrar a confiança) e os positivos, a gratidão (pela atitude altruísta) e a empatia. Para ele, muitas das virtudes humanas surgem da nossa rejeição natural à violência, ao incesto e ao sofrimento alheio – uma tendência que pode ser exercitada pelo convívio social, mas que, conforme sugerem vários estudos, também são resultados de nossa neurobiologia. Apesar de sermos surpreendidos diariamente por notícias que nos mostram o contrário, somos programados a rejeitar atos prejudiciais à nossa própria espécie. Pessoas com problemas no córtex pré-frontal, a região envolvida na teoria da mente, mostram acentuadas dificuldades no raciocínio social e moral e não demonstram sentir culpa, remorso ou pena, o que levou pesquisadores a acreditar que nossa capacidade moral se encontra no lobo pré-frontal, embora outras regiões estejam envolvidas no julgamento moral, sobretudo a amígdala e a ínsula. 4.1 A teoria do desenvolvimento moral O psicológico americano Kohlberg (1992), autor da teoria do desenvolvimento moral, dividiu a competência moral em estágios que, assim como na teoria de Piaget, seriam universais e hierárquicos. Para chegar a tais estágios, ele fez uma série de experimentos em que apresentou a crianças alguns dilemas morais básicos e investigou a razão por trás de suas respostas. Por exemplo, elas foram questionadas sobre a atitude de um homem que, por não ter dinheiro, roubou remédios para salvar sua mulher doente. Com base nas respostas a situações como esta, ele classificou o raciocínio moral nas seguintes fases: • Nível pré-convencional: as respostas são formuladas com base no interesse próprio e possíveis recompensas. No caso acima, uma resposta possível seria: “deveria roubar, porque assim ele teria o remédio”. 11 • Nível convencional: nesse estágio, a criança está preocupada com a desaprovação do outro e segue regras e leis. Diria algo como: “Roubar é errado e se ele fizer isso, as pessoas vão achar que ele é mau”. • Nível pós-convencional: nesse estágio, as respostas tendem a ser mais complexas, com princípios mais abstratos e capacidade de enxergar a situação de uma forma ampla. Seria dito algo como: “Em algumas situações as pessoas encontram razões para quebrar a lei. Nesse caso, foi errado o que ele fez, mas também é errado cobrar muito caro por um remédio”. Críticas a esse modelo alegam que foi construído no julgamento cognitivo por ter sido baseado em respostas elaboradas, sem levar em consideração escolhas baseadas nas emoções. Assim, o raciocínio moral nem sempre estaria de acordo com o comportamento moral. Uma coisa é o que sabemos, outra é como nos sentimos e nos comportamos. TEMA 5 – INTERAÇÕES SOCIAIS E DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM A linguagem é um fenômeno social. É, sem dúvida, uma das habilidades que nos faz humanos e que, tal como ensina a raposa do Pequeno Príncipe, causa muitos desentendimentos, mas pode nos conectar de forma profunda, mesmo sem a presença física, permitindo-nos expressar não apenas as necessidades, mas a nossa singular visão de mundo. Nesta aula apreenderemos de que forma essa habilidade se relaciona com o mundo social, de acordo com Vygotsky e outros teóricos. O psicólogo suíço Jean Piaget defendia uma gradual socialização dos estados mentais. Assim, a verbalização do pensamento, ou o que ele chama de discurso social, aparece como uma evolução do que seria o discurso egocêntrico – uma espécie de monólogo que não teria a intenção de comunicar. Já Vygotsky (1979), em sua obra Pensamento e Linguagem, apresenta um contraponto à teoria do psicólogo suíço e propõe uma trajetória inversa. Para ele, a função primordial da linguagem é a comunicação e, dessa forma, a fala surge inicialmente como uma ferramenta de socialização. Mais tarde é que surgiriam as distinções entre o discurso comunicativo e o egocêntrico. Para ele, a linguagem obedece ao mesmo princípio do raciocínio lógico, surgindo das relações sociais e cooperativas para, somente depois, ocorrer de forma intrapsicológica. 12 Quando falamos em comunicação, estamos falando em expor necessidades e também em agir sobre o comportamento e o pensamento do outro. O poder da linguagem está na transformação da forma como as pessoas agem, o que pensam, no que acreditam e o que sentem. É a ferramenta de persuasão sobre a qual temos mais domínio. Há linguistas, como Steven Pinker e Noam Chomsky, que defendem que o uso da linguagem é instintivo ao ser humano. Pinker (2012) afirma que a linguagem está programada de tal forma na espécie que não se pode suprimir seu uso da mesma forma como não se suprime o instinto de retirar a mão de uma superfície quente. Já a linguista americana Gleason (2016) acredita que a aquisição da linguagem depende das interações sociais, assim como já afirmava Vygotsky, e por isso não pode ser analisada de forma isolada. Ela defende que as estruturas mentais que favorecem a comunicação nascem das relações interpessoais e que a linguagem é um fenômeno cooperativo, que acontece entre crianças e pessoas com as quais elas interagem. Mesmo que nossa estrutura cognitiva que permite a linguagem seja parte da nossa herança biológica, a comunicação verbal necessita da motivação, da base emocionalque nasce das relações sociais. Se a necessidade de comunicação é a função primordial e a grande motivadora do desenvolvimento da linguagem verbal, os discursos internos também seriam derivados das interações sociais, conforme o raciocínio de Vygotsky (1979), para quem o social precede o individual no processo de aprendizagem. Dessa forma, o próprio pensamento e as emoções que são influenciadas por ele não podem ser isolados do contexto social e cultural do indivíduo. Esse pensamento ao qual nos referimos é o raciocínio formado pela linguagem verbal, a que envolve palavras. Para Vygotsky (1979), existem outras formas de pensamento, às quais ele define como não intelectual – como o raciocínio prático, usado no manuseio de utensílios. Assim, o pensamento e a linguagem, na visão do psicólogo, seriam como dois círculos que se intersectam. 13 LEITURA OBRIGATÓRIA Saiba mais VYGOTSKY y su teoría del aprendizaje sociocultural. Rebeca Barradas, 7 mar. 2017. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=orDqEfLBPVc&feature=youtu.be>. Acesso em: 30 ago. 2018. ZONA de Desenvolvimento Proximal – Vygotsky. Ivana Gabriela, 24 out. 2015. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?time_continue=10&v=Ap_YtzMdcK0>. Acesso em: 30 ago. 2018. 14 REFERÊNCIAS BATAGLIA, P. A teoria de Kohlberg sobre o desenvolvimento do raciocínio moral e os instrumentos de avaliação de juízo e competência moral em uso no Brasil. Estudos de Psicologia, v. 15, n. 1, p. 25-32, jan./abr. 2010. DÁVID-BARRETT, T.; DUNBAR, R. I. M. Processing power limits social group size: computational evidence for the cognitive costs of sociality. The Royal Society, 26 jun. 2013. Disponível em: <http://rspb.royalsocietypublishing.org/content/280/1765/20131151.article-info>. Acesso em: 30 ago. 2018. EAGLEMAN, D. O cérebro: a descoberta de quem somos. São Paulo: Lua de Papel, 2017. GAZZANIGA, M. Human: the science Behind what makes us unique. Harper Collins, 2008. GAZZANIGA, M.; MANGUN, G. (Org.). Cognitive neuroscience. Londres: Mit Press, 2014. GLEASON, J. B. Unfolding language, unfolding life. Entrevista a Krista Tippett, On Being, 4 fev. 2016. Disponível em: <https://onbeing.org/programs/jean-berko- gleason-unfolding-language-unfolding-life/>. Acesso em: 30 ago. 2018. HEIDEGGER, M. O ser e o tempo. Petrópolis: Vozes, 1988. KOLHBERG, L. Psicología del desarrollo moral. Bilbao Spain: Desclée de Brouwer, 1992. LIBBERMAN, M. D. Social – Why our brains are wired to connect. New York: Crown Publishers, 2013. PINKER, S. O instinto da linguagem: como a mente cria a linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2012. TUDGE, J.; WINTERHOFF, P. Vygotsky, Piaget and Bandura: perspectives on relations between the social world and cognitive development. University of North Carolina, 1993. VYGOTSKY, L. A formação social da mente. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1967. _____. Pensamento e linguagem. Lisboa: Antídoto, 1979. 15 _____. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1989. _____. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. São Paulo: Ícone, 1988. _____. Play and Its role in the mental development of the child. Soviet Psychology, v. 5, p. 6-18, 1967. A zona de desenvolvimento proximal define aquelas funções que ainda não foram amadurecidas, mas estão no processo de amadurecimento, em estado embrionário. Essas funções podem ser definidas como os botões ou as flores do desenvolvimento ao invés dos f... VYGOTSKY y su teoría del aprendizaje sociocultural. Rebeca Barradas, 7 mar. 2017. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=orDqEfLBPVc&feature=youtu.be>. Acesso em: 30 ago. 2018. ZONA de Desenvolvimento Proximal – Vygotsky. Ivana Gabriela, 24 out. 2015. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?time_continue=10&v=Ap_YtzMdcK0>. Acesso em: 30 ago. 2018.
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