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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Rio de Janeiro, RJ – 4 a 7/9/2015 1 O Espectro da Ideologia: Uma Leitura Atualizada do Sintoma Capitalista na Contemporaneidade1 Renata Cabral Cuch2 Pontifícia Universidade Católica De São Paulo – PUC-SP RESUMO O presente artigo propõe uma articulação entre as ideias centrais que compõem o livro Um Mapa da Ideologia, organizado pelo psicanalista Slavoj Žižek sobre as vicissitudes que montam o conceito de ideologia, para a formulação da proposta da existência de um paradigma que estrutura uma cadeia de significações ideológicas, na tentativa de explicar que não há maneira de fugir do pressuposto ideológico senão quando da criação ou assujeição de uma outra roupagem, um novo paradigma amparado por crenças e aparelhos ideológicos que mantêm uma ligação entre o Real da psicanálise lacaniana frente à Coisa do pressuposto Marxista. PALAVRAS-CHAVE: ideologia; comunicação; psicanálise; semiótica; sintoma. Introdução Na contemporaneidade, nos deparamos com diversos sintomas sociais que chamam a atenção para estudos que refletem a condição do sujeito no aprisionamento ideológico frente às ofertas da mídia. Não obstante, torna-se fundamental recorrer ao pressuposto ideológico como tentativa de explicar o sofrimento psíquico exposto nos novos modelos socioculturais que excluem e escravizam os indivíduos. Sendo assim, a partir do pressuposto da psicanálise lacaniana, Žižek propõe que a ideologia permeia tudo que fazemos: (...) “Ideologia” pode designar qualquer coisa, desde uma atitude contemplativa que desconhece sua dependência em relação à realidade social, até um conjunto de crenças voltado para a ação; desde o meio essencial em que os indivíduos vivenciam suas relações com uma estrutura social até as ideias falsas que legitimam um poder político dominante. Ela parece surgir exatamente quando tentamos evitá-la e deixa de aparecer onde claramente se esperaria que existisse. “Quando um processo é denunciado como ideológico por excelência”. (ŽIŽEK, 1996, p.9). 1Trabalho apresentado no GP Teorias do Jornalismo do XV Encontro dos Grupos de Pesquisa em Comunicação, evento componente do XXXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. 2 Mestranda do Curso de Comunicação e Semiótica-PUC SP, email: renataccuch@superig.com.br Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Rio de Janeiro, RJ – 4 a 7/9/2015 2 Por isso, o autor parte da desconstrução do conceito de ideologia propriamente dita para propor a existência de um paradigma que monta uma cadeia de significações ideológicas, na tentativa de explicar que não há maneira de se fugir do pressuposto ideológico senão da criação ou assujeição de uma outra roupagem, um novo paradigma - mas que, ainda assim, tratar-se-ia meramente de formulações ideológicas para sustentar a fantasia humana de uma existência plena, seja do ponto de vista político, social ou religioso. É fundamental observar que, do ponto de vista da psicanálise, a ideologia assemelha-se ao mecanismo inconsciente, pois o sujeito adota crenças/ideais de caráter desconhecido à consciência, que ainda assim atuam sobre seu comportamento. (...) o paradoxo é que a saída daquilo que vivenciamos como ideologia é a própria forma de nossa civilização a ela. (...) ela expõe um momento em que ideologia toma a si mesma em sentido literal e deixa de funcionar como uma legitimação “objetivamente cínica” (ŽIŽEK, 1996, p.12). Até aqui, as concepções de Žižek ressaltam substancial envolvimento do eu com a esfera social. É preciso considerar que a ideologia não é algo que simplesmente age de forma mágica sobre os sujeitos, dando-lhes identificações e papéis sociais na forma de reprodução, que responde por sua vez a um universo sobre um pressuposto específico de compromissos impulsivos. De acordo com o autor, toda estrutura se dá mediada por identificações fantasísticas a partir da psique humana - identificações que põem o inconsciente em cena. A função da ideologia não é nos oferecer um ponto de fuga da nossa realidade mas oferecer-se a própria realidade social como fuga de algum núcleo traumático, real (ŽIŽEK, 1996, p. 147). Neste trabalho, serão utilizados os conceitos do autor esloveno Slavoj Žižek para fazer um passeio pelo pensamento filosófico da construção política marxista e de teóricos como Kant, Althusser e Hegel, entre outros, passando por pressupostos teóricos no campo da linguagem pelo viés da psicanálise Freud–lacaniana. O intento é formular reflexões sobre o mecanismo que sustenta as concepções ideológicas, bem como a forma que o sujeito as experiencia, com ênfase nas relações de alienação e assujeição dos indivíduos às classes dominantes. Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Rio de Janeiro, RJ – 4 a 7/9/2015 3 Este artigo propõe uma revisão bibliográfica à luz dos textos O Espectro da Ideologia; e Como Marx inventou o sintoma? Em contraponto ao conceito psicanalítico de o estádio do espelho como formador da função do Eu, por Jacques Lacan, que faz parte do livro Um Mapa da Ideologia, organizado por Slavoj Žižek, para enfatizar a importância das contingências que perpassam o conceito de ideologia. Como objetivo geral, este artigo propõe fazer uma análise dos textos em contraponto com os fenômenos sociais. No que se refere aos objetivos específicos, pretende-se evidenciar as expressões sintomáticas sociais a partir das construções ideológicas e também analisar o conceito de ideologia a partir do pressuposto apresentado por Žižek; e, por fim, apresentar considerações do tocante ao embate dos fenômenos midiáticos frente à perspectiva psicanalítica. Como metodologia de pesquisa, será utilizada revisão bibliográfica de autores contemporâneos para viabilizar um melhor entendimento acerca da problemática que enlaça as questões da ideologia com o conceito de sintoma. Para melhor instanciar o pressuposto teórico, foram revisitados os escritos freudianos oitocentistas que montam a teoria do sintoma e, ainda, será feita uma alusão ao conceito de ideologia pela filósofa Marilena Chauí com o intuito de promover uma melhor compreensão do conceito em questão. 1. Um Mapa da Ideologia: Uma Análise Textual Segundo Slavoj Žižek, o conceito de ideologia divide-se em três esferas diferentes de expressão, principalmente no que se refere ao julgamento do ato ideológico que trata da forma de não recair sobre a crítica da ideologia propriamente dita. De acordo com as concepções žižekianas, deve-se destacar a ideologia em três modos conceituais; o primeiro refere-se à ideologia como um conjunto de crenças voltadas para ação: (...) o que se deve ter em mente, aqui, é que o fetichismo é um termo religioso para designar a idolatria “falsa” (anterior), em contraste à crença verdadeira (atual), (...) em Marx, o universo da mercadoria proporciona o suplemento necessário à espiritualidade “oficial”: é bem possível que a ideologia oficial de nossa sociedade seja o espiritualismo cristão, mas sua base real não é outra senão a idolatriado Bezerro de Ouro, o dinheiro (ŽIŽEK, 1996, p. 25). Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Rio de Janeiro, RJ – 4 a 7/9/2015 4 No segundo, destaca-se sua existência material, considerando o lugar dos aparelhos ideológicos de estado conforme encontramos em Althusser, que refere-se à forma de disseminar a ideologia por meio de instrumentos institucionais: (...) a ideologia não brota da “vida em si”, mas só passa a existir na medida em que a sociedade é regulada pelo Estado. (Mais precisamente, o paradoxo e o interesse teórico de Althusser residem na conjugação que fez das duas linhas: em seu próprio caráter de relação imediatamente vivenciada com o universo, a ideologia é sempre já regulada pela exterioridade do estado e de seus aparelhos ideológicos) (ŽIŽEK, 1996, p. 24-25). Quanto ao terceiro, o autor nomeou como autodispersão, que consiste na relativização do alcance da ideologia. (...) A ideologia deixa de ser concebida como um mecanismo homogêneo que garante a reprodução social, como o "cimento" da sociedade, e se transforma numa “família" wittgensteiniana de processos vagamente interligados e heterogêneos, cujo alcance é estritamente localizado. Dentro dessa linha, as críticas da chamada Tese da Ideologia Dominante (TID) empenham-se em demonstrar que, ou uma ideologia exerce uma influência crucial, mas restrita a uma camada social estreita, ou seu papel na reprodução social é marginal. Nos primórdios do capitalismo, por exemplo, o papel da ética protestante do trabalho árduo como um fim em si limitou-se à camada dos capitalistas emergentes, ao passo que os operários e camponeses, bem como as classes superiores, continuaram a obedecer a outras atitudes éticas mais tradicionais; logo, não se pode atribuir à ética protestante o papel de "cimento" de todo o edifício social (ŽIŽEK, 1996, p. 19-20). Nesse sentido, a ideologia poderá influenciar de forma determinante alguns grupos pequenos de pessoas ou mesmo grandes contingentes, mas poderá ter pouca importância e influência em outros modelos de grupos. Os três conceitos destacados pelo autor têm a função de organizar e nomear os diversos tipos de organizações sociais que são sustentadas a partir dos princípios ideológicos. O livro propõe diálogos contemporâneos que perpassam as concepções do sujeito e apresenta uma crítica sobre o que aponta realmente para o lugar da ideologia e como esta pode afetar as relações sociais do indivíduo. Žižek ressalta o termo filosófico “razão Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Rio de Janeiro, RJ – 4 a 7/9/2015 5 instrumental” 3 para criticar a impotência da crítica à ideologia. De acordo com o autor, a perspectiva designa uma atitude que não é simplesmente funcional no tocante à dominação social, mas serve, antes, como a própria base da relação de dominação (Žižek, 1996, p.14). Essa afirmativa propõe que a ideologia não é necessariamente falsa em sua essência, ela pode responder a conteúdos verdadeiros. O que de fato se sobressai é a forma como tal conteúdo relaciona-se com a dinâmica subjetiva do processo de enunciação. Pode-se observar na proposta do texto que toda ideologia detém por si o poder da dominação de caráter social, poder versus exploração. Essa perspectiva atesta que essa dominação ou esse poder permanecem velados. “O ponto de partida da crítica da ideologia tem que ser o pleno reconhecimento do fato de que é muito fácil mentir sob o disfarce da verdade” (Žižek, 1996, p. 14). Como exemplo, o autor refere-se aos conflitos vivenciados por alguns países quando determinada potência mundial os invade, alegando que o interesse está em defesa dos direitos humanos. Esse comportamento, todavia, confunde-se com o conceito de cinismo ideológico apresentado por Marx, pois o que se encontra incutido nessa atuação é da ordem do poder econômico - como será destacado a seguir na seção acerca das concepções de sintoma. 1.1 No Tocante ao Texto “Como Marx inventou o Sintoma?”O autor traz à luz o conceito Lacaniano sobre a formação do sintoma para explicar sua relação com as construções ideológicas acerca da relação que a sociedade mantém com a forma- mercadoria. Nessa perspectiva, o texto tem a intenção de explicar o caráter funcional da construção sintomática que responde às demandas sociais. Ou seja, refere-se à leitura feita por Marx do movimento e dos fenômenos que emergem frente ao caos da evolução e experiências do homem em sua relação com o dinheiro, pois esta parece transcender o caráter de sua forma original de objeto. Sendo assim, a perspectiva Marxista remete-nos às formulações psicanalíticas sobre as expressões sintomáticas que são da ordem do inconsciente, tal qual funciona nas expressões dos sonhos conforme descreve o pressuposto da psicanálise, “Lacan fornece uma resposta precisa a essa questão: o que vivenciamos como realidade não é a “própria coisa” é, sempre já simbolizada constituída e estruturada por mecanismos simbólicos (Žižek, 1996, p.26)”. 3 O termo filosófico Razão Instrumental foi criado por Max Horkheimer para designar a razão nascida dos ideais iluministas para explicar o mecanismo psíquico de tomada de decisão para controlar e dominar a Natureza e os seres humanos com a proposta de transformar a própria realidade e o homem. Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Rio de Janeiro, RJ – 4 a 7/9/2015 6 Nesse sentido, a lógica utilizada por Žižek para remontar as proposições marxistas são voltadas para a dinâmica da cadeia de significações que Freud formulou a respeito da construção dos conteúdos dos sonhos. O que se pode entender a partir dessa analogia é que, para a psicanálise, o sonho não deve ser visto meramente como uma sequência de informações descontextualizadas, desorganizadas ou sem nenhum sentido; ou seja, o sonho responde a um apelo inconsciente por uma interpretação, mas que, acima de tudo, responde a um sintoma que aponta para algo que não vai bem no real. Diante disso, o texto reflete sobre os conceitos de fetichismo, cinismo, fantasia, mercadoria, crença e lei na tentativa de se aproximar das roupagens que o sintoma se utiliza para ganhar nome, formular modelos de identidades sociais e tomar as rédeas da psique humana na atualidade - o que parece evidenciar que vivemos em plena sociedade do espetáculo e que estamos passivos e assujeitados frente aos diversos tipos de sintomas sociais. Não por acaso, o autor recorre ao conceito marxista de mais valia para amparar a lógica do mais gozar que está expressa nas exigências do consumo excessivo experienciado na atualidade. O marxismo, portanto, não conseguiu levar em conta ou chegar a um acordo com o objeto-a-mais, com o resto do Real que escapa à simbolização – fato que é ainda mais surpreendente ao lembrarmos que Lacan pautou sua noção de mais-gozar na ideia marxista da mais-valia. A prova de que a mais-valia marxista efetivamente anuncia a lógica do objeto pequeno a lacaniano, como encarnação do mais-gozar, já e fornecida pela fórmula decisiva que Marx utilizou, no terceiro volume de O capital, para designaro limite lógico-histórico do capitalismo: “O limite do capital é o próprio capital, isto é, o modo de produção capitalista” (ŽIŽEK, 1996, p.328). De forma extremamente interessante o autor faz uma leitura do conceito de mais valia, utilizado para exemplificar a exploração da força de trabalho humana em beneficio daquele que lhe provê trabalho – relação que gera lucro financeiro para o explorador – com o conceito de mais gozar da teoria lacaniana, que aponta para busca de caráter inconsciente pelo gozo pleno. Esse mecanismo instaura um outro modelo de gozo, ainda que o indivíduo precise recorrer ao grotesco, ao esdrúxulo que nomeia, mas que possa promover a sensação de completude. 2. O Sintoma e os Fenômenos Sociais Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Rio de Janeiro, RJ – 4 a 7/9/2015 7 Desde as explicações freudianas acerca das concepções de sujeito, a psicanálise afirma que não existe sujeito sem o laço social. Essa perspectiva liga o pressuposto psicanalítico com as ciências sociais, pois o convívio em sociedade exige do humano renúncia, flexibilidade e afeto. Todo esse investimento se dá na busca de uma paz plena - todavia, esse modelo de convívio só existe nas idealizações humanas. Em seu artigo O Mal-estar na civilização (1930/2010), Freud ressalta que a principal fonte de sofrimento dos indivíduos são as relações humanas. A partir dessa perspectiva, e apoiados na teoria lacaniana revisitada nos textos acima citados, percebe-se que o homem vive em uma eterna busca pela produção de sentido, uma explicação para a angústia de existir e pela falta que sobrepuja e provoca sensação de impotência desse sujeito no mundo. Na psicanálise lacaniana a busca pela verdade relaciona-se com a saga do indivíduo na procura pelo objeto perdido para sempre e para sempre procurado (Objeto a). Tal qual se dá nas formulações do ponto de vista das organizações sociais, o homem precisa de uma verdade para estruturar seu padrão social, seu perfil e, só através de uma ideologia o sujeito sente-se amparado, identificado e tem um norte para onde e como seguir. Toda essa discussão abre nosso entendimento para a articulação entre a proposta dos três textos destacados anteriormente. A proposta é fazer uma análise da problemática que tem suscitado os grandes sintomas sociais e que, ao mesmo tempo, nos remete à lógica do surgimento desses fenômenos, ainda que, possa responder a algo da ordem do inconsciente proposto pela psicanálise: O sintoma seria o significante de significações recalcadas da consciência do sujeito. Baseado na cisão entre o que se diz e o que se quer dizer, o teórico visava a este segundo em sua escuta, o nível da enunciação, supondo que existe na fala um sentido aprisionado que pode ser mobilizado. Pode-se dizer que o sintoma é palavra dirigida ao Outro, indo na direção do reconhecimento do desejo, ao mesmo tempo em que este desejo permanece excluído, recalcado (LACAN, 1998, p.79).O percurso trilhado por Žižek em sua escrita aponta exatamente para essa dinâmica do inconsciente na produção do sintoma e expressa que as contingências do convívio social operam nessa mesma ordem, gerando então as expressões sintomáticas. Quando postulado por Lacan que a invenção do sintoma seria Marxista, de certo há um implicado de verdade. Todavia, Marx não se dedicou a entender a que tais sintomas respondem, sua preocupação era evidenciar que as exigências sociais Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Rio de Janeiro, RJ – 4 a 7/9/2015 8 colocavam o sujeito em conflito. Somente as investigações Freud-lacanianas dedicaram-se a compreender os fenômenos sintomáticos da psique humana. A "verdade" dessa ideologia, tal como no sintoma neurótico, não está nem na revelação nem no ocultamento, tão somente, mas na unidade contraditória que eles compõem. Não se trata apenas de despir um disfarce externo para expor a verdade, assim como o auto engodo de um indivíduo não é apenas um "disfarce" que ele assume. Trata-se, antes, de que o revelado se dá em termos do ocultado, e vice-versa (ŽIŽEK, 1996, p. 209). Assim, o sintoma pode se mostrar como uma autêntica metáfora, substituindo o antigo significante por um novo significante. Dessa maneira, tem a função de proteger o sujeito do insuportável que o recalque suplanta, o novo significante (o sintoma) possui uma ligação de similaridade com outros significantes. E é exatamente dentro desta perspectiva que Žižek articula o texto O Espectro da Ideologia, na tentativa de explicar o caráter essencial dos mecanismos ideológicos. Não por acaso, o autor faz alusão ao princípio de deslocamento substitutivo do conceito de ideologia, pois toda vez que descontruímos um pressuposto ideológico fazemos nascer outro - e, sem essa dinâmica, não há instituição de sujeito nas relações. Para a psicanálise Freud - lacaniana, o sujeito enxerga e vive no mundo a partir de identificações com o Outro. Obviamente, isso nada mais é que identificar-se com uma proposta ideológica. Esse Outro que a psicanálise postula pode responder a qualquer referencial ideológico que suscite um ideal de Eu para o sujeito. Como vimos, no texto o Estádio do Espelho como formador da função do EU, esse lugar pode ser ocupado por uma fantasia, uma falta, ou substituído por instituições tais como casamento, trabalho, religião, classe social e padrão ideal de família. A função da ideologia, assim como a formação do eu, é garantir uma identidade para o indivíduo em suas relações. Parece intrigante a noção do conceito de espectro utilizada por Žižek em seu texto sobre ideologia, pois, segundo a psicanálise lacaniana, o sujeito é assolado pelos fantasmas desde seus primeiros meses de vida, mas somente após experienciar todos os medos e angústias das fases de seu desenvolvimento é que, enfim, poderá emergir enquanto sujeito. Como não sermos atropelados pelo sintoma? O que seria da humanidade sem essa via de expressão que aponta para o que não vai bem ao desconhecido que há em nós? Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Rio de Janeiro, RJ – 4 a 7/9/2015 9 Diversas teorias têm se proposto a investigar o homem e como ele se comporta no mundo. Assim como Marx, a medicina também propôs-se a dar seu parecer a respeito do conceito de sintoma. Todavia, para a psicanálise freudiana o homem não é senhor em sua própria casa. Sendo assim, fica clara a proposta genial do autor ao articular os textos para explicar a relação entre ideologia e sintoma a partir da psique humana. Pois o sintoma trata de uma denúncia, uma reclamação, ou seja, um apelo para alguém que possa ouvi-lo e dar-lhe uma interpretação. 2.1. Marx e os Fenômenos Sociais Quando tratamos da construção de uma ideologia, torna-se evidente que não há separação entre a ideologia e a realidade, muito embora o caráter ideológico esteja agindo mascaradamente em nossas relações como realidade, percebe-se que há uma tensão dialética que legitima uma crítica ao universo da ideologia. A partir disso, é preciso levar em consideração que o pensamento de Žižek sustenta- se sob o viés marxista que trata aideologia como um mecanismo que distorce a realidade de fora para dentro, interferindo na forma como experienciamos nossas vidas. Sendo assim, a ideologia só produz sentido quando as ideias distorcidas perdem seu caráter original e passam a ser atualizadas e expressas por via orgânica ou de modo intelectualizado. Toda essa construção serve de legitimação para dar forma às relações de dominação e exploração existentes. Como, por exemplo, pode-se fazer um contraponto com as explicações de Marilena Chauí, em seu livro Ideologia, que para responder a um padrão ideal de família o sujeito precisará ceder do desejo: (...) se pudesse mostrar que a família burguesa é um contrato econômico entre duas outras famílias para conservar e transmitir o capital sob a forma de capital e patrimônio familiar e herança (mantendo a classe), teria de mostrar que é por isso que nessa família o adultério feminino é uma falta grave, pois faz surgirem herdeiros ilegítimos que dispersariam o capital familiar, e que, por esse motivo, o adultério feminino é convertido, para a sociedade inteira numa falta moral e num crime penal (Chauí, 2012, p.134). Por consequência, a moral popular é, em parte, resíduo de uma história pregressa anterior a inúmeras inovações evolutivas e criativas. Essa perspectiva diferencia as normas Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Rio de Janeiro, RJ – 4 a 7/9/2015 10 da moral da sociedade burguesa e, por isso, os intelectuais orgânicos têm a função de mascarar os laços entre a ideologia e a teoria - fundindo as experiências das classes burguesas frente à classe proletária. Sendo assim, não se trata apenas de ratificar o princípio da consciência popular, mas elaborar um novo modelo empírico, um novo paradigma cultural filosófico que sustente a consciência popular com a mesma força dos dogmas tradicionais. O processo pelo o qual a sociedade cria seus paradigmas e dogmas parece estar justificado sem embasamento crítico à luz de outras perspectivas sociais e teóricas que se propõem a um questionamento das reais intenções que estão por trás de uma ideologia determinista. Toda essa discussão remete-nos ao pressuposto Marxista acerca das concepções: O conceito de ideologia para Marx sempre pretendeu respeitar, repetir e exercitar o paradoxo da mera semi-autonomia do conceito ideológico (como, por exemplo, as ideologias de mercado) com respeito à coisa em si - ou, neste caso, os problemas do mercado e do planejamento no capitalismo tardio, assim como nos países socialistas de hoje. Mas o conceito marxista clássico (inclusive a própria palavra ideologia, que em si e uma espécie de ideologia da coisa, em contraste com sua realidade) desmoronou, muitas vezes, precisamente nesse aspecto, tornando-se puramente autônomo e, em seguida, vagando como um simples "epifenômeno" para o mundo das superestruturas, enquanto a realidade continuava mais abaixo (...) (ŽIŽEK, 1996, p. 280). Como encontramos em Marx, a ideologia é um conglomerado de ideias que tem por finalidade influenciar sujeitos com concepções pré-estabelecidas, visando direcionar ou alienar os indivíduos que fazem parte de determinados modelos de sociedade. Para melhor situar a proposta de ideologia de acordo com a teoria marxista, pode-se partir do pressuposto de que os indivíduos se assujeitam ou podem se assujeitar em determinados contextos. Todavia, a desconstrução de uma ideologia torna-se, consecutivamente, uma ideologia. Assim sendo, os sujeitos que tomam a ideologia como verdade, pode estabelecer uma relação de dominação como, por exemplo, a do senhor e do escravo. Aqui parece haver um contrato de ordem inconsciente que não apenas promove, mas sustenta essas relações: O que é um senhor? Um não-escravo. Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Rio de Janeiro, RJ – 4 a 7/9/2015 11 O que é um escravo? Um não-senhor. Para haver um senhor é necessário haver um escravo; para haver um escravo é necessário haver um senhor. Ambos só existem como relação. Mas onde está a contradição? Que é, verdadeiramente, um senhor? Aquele que sobrevive graças ao trabalho do escravo, portanto um senhor é aquele cujo ser depende da ação de um outro que é sua negação. Que é verdadeiramente, um escravo? Aquele que julga o senhor como único ser humano existente e vê a si mesmo como não-humano porque é não-senhor (CHAUI, 2012 p. 45). Até agora, abordamos o conceito de sintoma e sua relação com os fenômenos sociais frente às propostas ideológicas com o intuito de abarcar todos os conceitos propostos nos textos de Slavoj Žižek em contrapartida ao pressuposto lacaniano. Para melhor situar o debate, será apresentado no capitulo a seguir o conceito de ideologia segundo a teoria marxista à luz das concepções žižekianas. 3. Ideologia de Marx à Žižek O termo ideologia aparece, pela primeira vez, na França após a revolução francesa em 1789 por Destutt de Tracy, que pretendia elaborar uma ciência da gênese das ideias. Seu intuito era descrever os fenômenos naturais como um mecanismo que apresenta uma relação do corpo humano como organismo vivo e ativo no meio ambiente. Para tanto, Tracy institui uma teoria sobre as faculdades sensíveis como sendo responsáveis por todas nossas ideias: querer (vontade), julgar (razão), sentir (percepção) e recordar (memória) (Chauí, 2012). Relacionando o conceito de ideologia a partir do pensamento de Chauí, podemos contribuir com o conceito proposto por Marx que dá ênfase ao materialismo dialético que responde ao modelo de sociedade burguesa, representando os interesses coletivos dessa classe. Esse conceito visa manter a ordem social a partir das classes dominantes, como forma de controlar e manipular as relações políticas e, principalmente, no contexto de trabalho. Todavia, esse discurso mantém-se entre lacunas do dito em relação ao não dito, que dissemina instrumentos de sustentação do status e de instituição da própria sociedade. Althusser sugere a utilização de um discurso lacunar no que se refere às ideologias que Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Rio de Janeiro, RJ – 4 a 7/9/2015 12 ocultam a verdadeira intenção a ser expressa - o que na teoria lacaniana opera como uma autêntica metáfora, que retomaremos adiante. De acordo com Chauí, citando Auguste Comte, o espírito humano evolui e passa por três fases sucessivas. Na primeira fase, o teórico descreve o conceito de fetichismo (teológico), como algo divino; em seguida, ele apresenta a fase metafísica, na qual a realidade é explicada por meios de princípios gerais e abstratos que norteiam o homem; e, por fim, ressalta a fase positivista ou científica, na qual a realidade é observada e analisada pelos fatos de onde emanam as leis gerais e necessárias por via dos fenômenos naturais e humanos, dando vida a uma ciência da sociedade denominada “física social” ou “sociologia”, que fundamenta a ciência positivista ou científica que tem por objetivo analisar a ação individual (moral) em detrimento a ação coletiva (política). Para o filósofo, essa etapa corresponde ao progresso maior dacondição intelectual humana (Chauí, 2012, p. 31-32). Para Žižek, o conceito de ideologia baseia-se em três pontos fundamentais que divergem entre si, essencialmente no que refere-se à crítica da representação de um ato ideológico, de modo a não recair novamente no ato ideológico. Segundo as concepções do autor, o primeiro modo do conceito de ideologia trata-se de um conjunto de crenças voltadas para ação. O segundo aponta para a existência material, que considera a existência de “aparelhos ideológicos de estado”, instrumentos institucionais que disseminam a ideologia. Por fim, Žižek ressalta o conceito de auto-dispersão, que relativiza a extensão de uma ideologia determinante. Em uma passagem do livro Um Mapa da Ideologia que diz “as pessoas não sabem o que estão realmente fazendo”, parece chamar a atenção do sujeito em suas reais ações. Sendo assim, o conceito de ilusão ideológica serviria para os sujeitos apoiarem-se em um valor pré-estabelecido e universal onde o dinheiro parece ter status de valor que vai para além de sua forma de objeto. Podemos dizer que essa valoração transforma o lugar do dinheiro em uma mercadoria fetiche. Essa lógica ignora a real representação do dinheiro. Eis aqui a diferença do marxismo: na perspectiva marxista predominante, o olhar ideológico é um olhar parcial, que deixa escapar a totalidade das relações sociais, ao passo que, na perspectiva lacaniana, a ideologia designa, antes, a totalidade empenhada em apagar os vestígios de sua própria impossibilidade. Essa diferença corresponde à que distingue as noções de fetichismo em Freud e em Marx: no marxismo, o fetiche oculta a rede positiva de relações sociais, ao passo que, em Freud, o fetiche oculta a falta ("castração") em torno da qual se articula a rede simbólica (Žižek, 1996, p. 327). Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Rio de Janeiro, RJ – 4 a 7/9/2015 13 Frente a essa perspectiva, Žižek ressalta que há uma falha na concepção de ideologia segundo Karl Marx. Pois, se de um lado a primeira definição abrange a dimensão do suposto saber, de outro lado despreza a dimensão do fazer. Assim, acontece uma distorção, uma ilusão que opera na dinâmica e na realidade social. Esse mal entendido atua naquilo que os indivíduos fazem e não no que pensam ou sabem estar fazendo. Não por acaso, o autor desmistifica a ideia de que os indivíduos assimilam que a proposta por trás do “objeto dinheiro” carrega uma substancialização da riqueza. Sendo assim, a ilusão fetichista do dinheiro serve para balizar a forma como os indivíduos se relacionam. A maneira mais fácil de detectar a efetividade desse postulado e pensar no modo como nos portamos em relação à materialidade do dinheiro: sabemos perfeitamente que o dinheiro, como todos os outros objetos materiais, sofre os efeitos do uso, que seu corpo material se modifica ao longo do tempo; mas, mesmo assim, na efetividade social do mercado, tratamos as moedas como se elas consistissem "numa substância imutável, uma substância sobre a qual o tempo não exerce nenhum poder, e que se situa num contraste antitético com qualquer material encontrado na natureza". Como é tentador relembrar aqui a fórmula do desmentido fetichista: "Sei muito bem, mas, ainda assim...” (ŽIŽEK, 1996, p.303). Žižek, de forma brilhante, esmiúça o conceito entre o verdadeiro lugar que o objeto ocupa, bem como, da assujeição com que o fetichismo da mercadoria interpela os sujeitos a partir da inversão entre o universal e o particular. Essa perspectiva remete-nos a refletir sobre o conceito da cadeia de significantes proposta na teoria lacaniana, pois o que parece é que os sujeitos buscam “um outro valor” nas significações que desdobram do objeto em si. Como, por exemplo, nos casos em que ao eleger um objeto para a compra sobressai um investimento financeiro versus o status que este confere. Para melhor situar, daremos como exemplo a aquisição de uma bolsa de uma determinada marca. Seu caráter universal de objeto perde o sentido quando relacionado à sua significação particular. O que sobressai aqui é o caráter simbólico que seu status confere de valoração em deter a marca, pois em poder desse objeto o sujeito ocupa um lugar social do qual lhe confere poder. Ora, se levado em consideração o caráter universal do objeto “bolsa”, qualquer tipo, modelo ou categoria poderia suprir sua necessidade original. Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Rio de Janeiro, RJ – 4 a 7/9/2015 14 Frente a essa discussão, parece clara a ideologia como diretriz do comportamento social humano e da necessidade dessa proposta como norteadora da construção do pensamento e das formas de relações na contemporaneidade. Considerações Finais À luz das propostas oferecidas pelos textos, é de grande relevância articular o conceito de ideologia com o pressuposto psicanalítico que estuda os fenômenos e os comportamentos humanos, na tentativa de diminuir o sofrimento que tem atropelado os sujeitos na contemporaneidade. Slavoj Žižek conseguiu fazer alusão às formas de relações humanas onde o sujeito parece estar alienado e amarrado aos aparelhos ideológicos que causam conflitos psíquicos - e podem até despersonalizar seu lugar de sujeito. Com relação à classe burguesa dominante, por exemplo, mesmo que elas ocupem um lugar de superioridade, parecem estar aprisionados a ideologias que os alienam e os condenam a serviço da mercadoria e do poder de um sistema capitalista. Esse sistema os escraviza e os mantêm assujeitados, passivos, em favor da conquista de um status ilusório de poder - uma tentativa de tamponar a lacuna instaurada por uma falta que é de ordem inconsciente. Essa falta ocupa outro lugar que é de ordem primeira, mas causa sofrimento. É exatamente aí que o mercado midiático se oferece como solução para responder suas necessidades mais ínfimas. Por esta razão, foi de fundamental importância aludir ao conceito de sintoma à luz da psicanálise; mas, principalmente, remeter ao conceito marxista anterior ao da psicanálise, que nos fez entender que é a partir das relações que estabelecemos com os outros no contexto social que constituímos nossa identidade e as lentes com as quais vemos e experienciamos o mundo. Assim, como na célebre frase de Jacques Lacan, o inconsciente é estruturado como linguagem e é a partir daí que colocamos o discurso capitalista no lugar do Outro para responder à proposta de um ideal de Eu. Esse ideal responde a uma demanda da ordem do desejo inconsciente, que atormenta e causa angústia no sujeito. Em linhas gerais, os conceitos que foram relacionados aqui tentam explicar o modo como nos relacionamos com a proposta ideológica - mesmo que tentemos nos desvencilhar dessa ideologia primeira seremos lançados de imediato em um novo modelo de ideologia. Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XXXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Rio de Janeiro, RJ – 4 a 7/9/2015 15 REFERÊNCIAS CHAUÍ, M. O que e ideologia. (Coleção Primeiros Passos). São Paulo: Brasiliense, 2012. FREUD, S. A interpretação de sonhos. (J. Salomão, Trad.). Edição Standard Brasileira das Obras PsicológicasCompletas. (Vol. V, pp. 361 751). Rio de Janeiro: Imago, 1980[1900]. _________ Os caminhos da formação dos sintomas. (J. Salomão, Trad.). Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. (Vol. XVI, pp. 419-440). Rio de Janeiro: Imago, 1980[1917]. _________ O mal estar na civilização, novas conferencias introdutórias `a psicanálise e outros textos. (1930-1936) - (P. C. Souza, Trad.). São Paulo: Companhia das Letras, 2010. LACAN, J. O estádio do espelho como formador da função do Eu. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998[1949]. ZIZEK, S. “O Espectro da Ideologia” in Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996. ________. “Como Marx Inventou o Sintoma?” in Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.
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