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FORCA NA AREIA
Morris L. West
Título original em inglês:
Gallows on the sand
Tradução: 
Jorge de Sampaio
Grupo Amigos da Leitura – venha nos conhecer
http://ar.groups.yahoo.com/group/amigos_de_leitura/
“ Vinte arcas repletas de moedas de ouro estão à bordo do Dona Lucia, um velho galeão espanhol que repousa no fundo do mar desde o século XVIII. Esse foi o terrível engodo que levou Renn Lurdigan, do Departamento de História da Universidade de Sydney, na Austrália, à minúscula ilha Barrier Reef, ao largo da costa daquele país. 
Havia perigo mortal naquela ilha de corais, mas como compensação o amor de uma linda mulher enriquece a vida do jovem professor universitário, enquanto luta contra o tempo para descobrir o tesouro que constitui a fabulosa carga do navio naufragado.”
FORCA NA AREIA, de um dos melhores romancistas atuais, é muito mais do que uma história de aventuras. É um livro cheio das observações psicológicas típicas de Morris L. West, que o colocaram entre os mais lidos escritores de nossos dias.
MORRIS LANGLO WEST, nasceu em Melbourne e serviu nas Forças Armadas Australianas durante a Segunda Guerra Mundial. Foi depois da guerra que iniciou uma carreira literária de grandes sucessos, entre os quais se encontra O ADVOGADO DO DIABO, talvez o romance mais vendido em todo o mundo. Da extensa bibliografia do autor, FORCA NA AREIA é o seu décimo sétimo romance publicado no Brasil.
CAPÍTULO I
A carta foi entregue em meu quarto ao meio-dia e quinze mi​nutos de quarta-feira, 30 de junho. Era dirigida ao Sr. Renn Lun​digan, Departamento de História, Universidade de Sidney, Sidney, Austrália.
No bordo do envelope um sinete extravagante e um endereço em espanhol no canto inferior esquerdo. O carimbo dos correios estava ligeiramente inclinado e a letra era fina e legível.
Lembro-me perfeitamente de todas estas coisas, porque, antes de me decidir a abrir o envelope, o contemplei durante muito tempo.
Por fim, peguei na faca para papel, cortei cuidadosamente o en​velope, tirei a folha dobrada e sentei-me. Acendi um cigarro e iniciei a leitura.
O homem que escrevera a carta era o Arquivista-Chefe da cidade de Acapulco, no México.
Falava-me, com verborréia latina, do interesse que minha pes​quisa havia despertado em seu departamento. Referia-se a sua ânsia de estabelecer de uma vez para sempre um vínculo entre os nave​gadores espanhóis do século dezoito e o novo continente - Terra Australis Incognita. Dizia-me que estava muito grato por colaborar com uma personalidade tão sábia num assunto tão importante de in​vestigação histórica.
Contava-me que, em outubro de 1732, o Dona Lucia deixara Acapulco com vinte arcas de moedas de ouro para as colônias de Sua Majestade Católica, nas Ilhas Filipinas. Que o Dona Lucia nunca chegara a Manila e que se presumia que tivesse naufragado numa tempestade ou sido vitima dos piratas nos mares da China. Que a moeda de ouro, da qual eu lhe mandara um excelente molde, era de cunhagem da época do Dona Lucia e podia, de fato, ter feito parte de sua carga. Dizia-me...
Mas o resto eram frases de cortesia em que eu não estava muito interessado. Pensava numa minúscula ilha da costa de Queensland, numa das cem ilhas e recifes alinhados como fragmentos de jade e es​meralda ao longo da fila de corais do Great Barrier Reef.
Uma ilha bicorne, a pique sobre o mar por um lado, com um es​treito crescente de praia branca pelo outro. Uma ilha onde os turistas não vão no inverno, porque os mapas do Governo de Queensland dizem que não há ali água, nem passagem através dos recifes, nem abrigos para barcos de pesca ou cruzeiros de luxo.
Mas eu sabia da existência de um canal. Jeannette e eu tínhamos corrido um total de dez metros de um a outro extremo do recife e dado à praia sem um arranhão no casco de cobre. Havíamos acampado durante alguns dias no meio do pandano e descoberto uma nascente no sopé da ponta ocidental. Tínhamos passado pelo recife, pescado de arpão no preamar, até que um dia Jeannette descobriu uma moeda de ouro, obliterada, com incrustações de coral.
Depois, antes do fim do primeiro mês de nossa lua-de-mel, Jean​nette morreu com uma meningite e eu parti com novos temas para conferências, uma moeda danificada e a lembrança de uma jovem loura numa praia branca, ao sol. E o sonho de um navio-tesouro es​panhol sob os revoltos ramos de coral.
A recordação de Jeannette desvaneceu-se; mas sempre que abria a gaveta de minha mesa, a velha moeda, polida pelo manuseio diário, parecia brilhar como fogo. Minha noiva morrera, tinha-a perdido para sempre, mas o navio-tesouro continuava lá. Tinha de continuar lá, de costados apodrecidos, tombadilhos chanfrados sob o coral e as algas marinhas, enquanto peixes multicores nadavam em torno das arcas do tesouro, no porão.
Tinha de estar lá. Eu era historiador e podia prová-lo. Pelo menos devia provar que era possível que lá estivesse.
Foi o velho Anson quem me deu a chave do mistério - George Baron Anson, não ainda Almirante da Armada nem Primeiro Lorde do Almirantado, cruzando os mares durante meses consecutivos entre as Ilhas dos Ladrões e as Carolinas, à espera dos galeões que todos os anos partiam de Acapulco para Manila. George Anson que amarrava literalmente com cordas o casco avariado do navio, a fim de se agüentar durante meses, enquanto os percevejos penetravam o cos​tado, os barris de água rebentavam e os homens morriam com escor​buto sob o sol dos trópicos.
O velho navio espanhol teria largado de Acapulco em busca dos ventos de nordeste que o levassem para oeste, ao longo do Equador, até chegar a altura de virar de bordo para norte, passando pelas Ladrões, com rumo a Manila... Mas outubro já era demasiado tarde para ele. O verão descaía para Capricórnio e, se se afastasse muito para o sul, os furacões podiam apanhá-lo. E se os furacões o apa​nharam, devem tê-lo arrastado em redemoinho pelo mar, passando pelas ilhas de Bismarque e Salomão, e levado até ao Great Barrier. Ficaria então em apuros, bordejando, talvez fazendo água e sem poder abrir caminho através das ilhas e recifes. E, se a tormenta não o desmantelou, provavelmente as garras de coral acabaram por pe​netrá-lo afundando-o no recife exterior de uma ilha bicorne.
Podia ter sucedido assim e assim deve ter acontecido. Do con​trário, de onde é que provinha meu dobrão, esse estranho olho de ouro que troçava de mim no fundo da gaveta?
	Bateram à porta e a pequena loura da Secretaria entrou com uma bandeja de metal, onde se empilhavam envelopes de pagamento.
Sorriu pestanejando e desviou a bandeja para que eu visse como a blusa lhe realçava os contornos; depois proferiu a gracinha habi​tual, ao entregar-me o envelope:
- Não o gaste todo de uma vez, Sr. Lundigan.
Sorri, agradeci e respondi-lhe à altura:
- Saia comigo uma noite e gastaremos uma parte!
Soltou a risadinha de costume, ergueu mais o busto, pegou na bandeja e saiu, bamboleando os quadris.
Rasguei o envelope e despejei o conteúdo em cima do mata​borrão. Duas notas de cinco, oito de uma e prata sortida, o vencimen​to semanal - fora os descontos - de um jovem assistente de His​tória.
Tirando a pensão, dinheiro para cigarros e transportes e a libra que pedira ao Jenkins, na última terça-feira, ficava que chegasse para uma aposta no Manny's. Mas não o suficiente, nem nada que se aproximasse, para adquirir uma ilha e um barco, o equipamento de mergulho, provisões, ajudantes e tudo o mais que era necessário para iniciar a busca do tesouro afundado e trazê-lo para cima, depois de encontrado.
Mas uma aposta é sempre uma aposta e, na semana anterior, tinha visto um tipo transformar cinco libras em quinhentas, depois em mil e por fim em duas mil. Quando acabou, Manny mandou-o para casa num carro alugado, com um de seus guarda-costas como salvo-conduto. Eupresenciara e podia ser que também conseguisse o mesmo.
Nem sequer precisava de duas mil. Bastavam-me mil. Quinhen​tas para a ilha; o Governo de Queensland vende barato quando não há água, nem canais, nem portos. Cem para o equipamento de mer​gulho novo e duzentos para as despesas acessórias, que seriam multas. Talvez chegasse, se conseguisse ganhar mil libras no Man​ny's.
	Dobrei a carta do Arquivista-Chefe de Acapulco e meti-a no bolso. Tirei a moeda de ouro da gaveta e guardei-a no bolsinho interior para me dar sorte. Contei oito libras e dez xelins e meti-os num envelope. Pelo menos comeria, dormiria sob um teto, iria de bonde para o trabalho e fumaria vinte cigarros por dia, se não ganhasse as mil libras no Manny's.
Como assistente de História não tinha direito a telefone priva​tivo, pelo que tive de descer ao vestíbulo e tatear no bolso à procura de uma moeda, antes de poder telefonar.
Uma voz lacônica respondeu:
- Aqui fala Charlie.
- Aqui, o Comandante. Onde é ?
- No lugar da semana passada. A noite está livre.
- Obrigado.
Desliguei. A noite estava livre. A Polícia tinha sido bem paga e Manny não teria problemas nessa noite. Eu teria a oportunidade de ganhar as mil libras.
E pena que não conheçam Manny Mannix.
	É um rapagão. Irlandês de Brooklyn pelo lado do pai, italiano de Brooklyn pelo lado da mãe. Fora sargento de abastecimentos no Exército dos Estados Unidos, travou uma guerra galante em King's Cross e, quando ela terminou, decidiu ficar em Sidney.
Na opinião de Manny, Sidney era uma Nova York com tamanho bastante para explorar e Manny estava disposto a explorá-la. Ne​gociou em comércio, mercado negro de bebidas, automóveis usados, emigração e, quanto a lucros, também os teve, abrindo uma conta bancária que lhe permitiu adquirir um edifício de apartamentos, sociedade num cabaré e uma lista variada de mulheres que ostentava para efeitos decorativos. Nunca foi homem para deixar o amor inter​ferir em seus negócios. Corrompeu uma parte dos fiscais de jogo - o bastante para lhe garantir uma chamada telefônica antes que os carros da Polícia chegassem a sua rua .
Para Manny, isso era mais do que suficiente. Considerava a vida demasiado boa para se prender a convicções religiosas. Vestia-se bem, comia melhor e conduzia um Cadillac tão comprido como a frente de uma casa. Todavia, vestisse o que vestisse ou onde quer que jantasse, levava sempre consigo o odor da cidade, o perfume barato das mulheres estafadas e as fumaças do dinheiro ilícito.
É pena que não conheçam Manny Mannix.
	Detestá-lo-iam tanto como eu; mas não detestariam tanto como eu me detesto por beber sua bebida, por lhe escutar a verborréia e sorrir até de seus gracejos a fim de conseguir manter o privilégio de perder meu dinheiro na roleta dele; por consentir que me desse pan​cadinhas nas costas, desejando-me melhor sorte da próxima vez. Se eu ganhasse esta noite, não haveria próxima vez. Trocaria as fichas e pôr-me-ia a andar: iria para uma ilha verde e uma praia branca com um tesouro oculto, lá onde o recife mergulha nas águas profundas.
Assim, às nove horas da noite de quarta-feira, 30 de junho, tomei um táxi, saí da cidade passando pela base aérea de Rose Bay e fui até um crescente discreto, perto de Vaucluse. Na curva do crescente er​guia-se um alto muro, interrompido por dois portões de ferro.
Os portões estavam fechados à chave, mas havia uma campainha no pilar e, quando apertei o botão, surgiu um homem da casa de guarda. Disse-lhe que a noite estava livre. Não respondeu e abriu, deixando-me entrar.
Segui a pé até à casa, pela alameda coberta de areia. As cortinas estavam corridas e as persianas fechadas; mas a porta da frente estava aberta, deixando ver homens e mulheres, que poderiam muito bem ser convidados para um coquetel, e um garçom de casaco branco que atravessava o vestíbulo atapetado.
Acenei com a cabeça ao polaco de olhos tristes que guardava a porta, entreguei-lhe o sobretudo e subi para a sala grande, onde havia um bar de vidro negro e grandes janelas que permitiriam ver as luzes do porto se estivessem abertas. Mas nunca estavam..
Para bem dirigir um negócio como o de Manny, é preciso evitar a lua, as estrelas e a brisa que sopra do mar imenso. É necessário correr as cortinas e afastar o cantar dos grilos e o marulho sedoso da maré. O que é indispensável é a música e os risos, o clique da roleta e o claque das fichas, que ora se amontoam ora desaparecem no pano verde. São necessárias bebidas fortes, fumo rançoso e a ilusão mes​quinha da amizade e da comunidade.
Para dirigir um negócio como o de Manny, calçam-se sapatos reluzentes, calças pretas bem vincadas e veste-se smoking cinzento​-prateado com gravata lilás, além de um cravo vermelho na lapela. Retira-se o cotovelo de cima do balcão quando entra um cliente, dá-se uma piscadela ao modelo postado no banco do canto e diz-se:
- Viva, Comandante! Há muito que não o via.
- Olá, Manny! Há muito que andava limpo!
	Acompanhei a resposta com um sorriso e Manny gargalhou, en​gasgando-se com o charuto. Agarrou-me pelo cotovelo e conduziu-me para o banco junto ao do modelo. Tamborilou no balcão e gritou ao garçom: 
- Um para o Comandante, Frank. Gim rosa. Comandante, permita que lhe apresente uma amiga minha, Miss June Dolan. June, o Comandante Lundigan. Cuidado com ele, querida. Sabe bem como são os rapazes da Marinha.
Manny tossiu, fez uma careta e o modelo lançou-me um breve sorriso profissional e um longo olhar também profissional, compa​rando minha estatura de 1,82m à de Manny e concluindo a meu des​favor. Era isso exatamente o que Manny sabia que ela faria, de outra forma nunca me teria apresentado.
	Manny inquiriu:	
- Sente-se com sorte esta noite, Comandante?
	Encolhi os ombros, estendi as mãos e fiz um trejeito de pesar com a boca. Era uma atitude um pouco teatral que me costuma sair muito bem. Jeannette tinha por hábito dizer que fazia parte de meu encanto infantil. Mas desta vez fiquei envergonhado. Achei que se pareceu muito com o sorriso lânguido do modelo de Manny.
- O costume, Manny. Mas saberei gastá-lo, se ganhar.
- Suponho que todos sabemos - disse Manny. - Diga lá o que pensa disto, Comandante?
Fechou a mão em torno dos dedos frágeis do modelo, erguendo​lhe o antebraço para mostrar um pesado bracelete de ouro com moedas pendentes.	
- Comprei-lhe isto hoje. É o aniversário da pequena e pensei: É para minha queridinha. Então, comprei-o. Foi muito caro, mas creio. que ela o merece. O que acha, Comandante?
	- Acho que vai bem com a personalidade da senhora.
	- Repare que tem espaço para mais moedas. Disse-lhe que, se for boa moça e me der sorte, lhe irei enchendo todos os elos.
- Manny, estou a seco - queixou-se o modelo numa voz in​sípida e enfadada.
Manny franziu o sobrolho, bateu no balcão e o garçom apro​ximou-se para encher o copo da moça. As moedas tiniram langui​damente quando ela retirou a mão da de Manny e se pôs a remexer na carteira. Foi então que tive uma idéia louca.
	Tirei a moeda de ouro do bolso, atirei-a ao ar e, a seguir, co​loquei-a em cima do balcão.
	- Por falar em moedas, Manny, já viu alguma como esta?
	Um fulgor de interesse brilhou nos olhos manhosos de Manny. Pegou na moeda, examinou-a e fez um pequeno corte no bordo com o diamante de seu anel.
- É ouro?
- Ouro puro. Trago-a como talismã.
Voltei a guardá-la no bolso e vi com agrado o brilho dos olhos de Manny.
- Que espécie de moeda é essa, Comandante?
- Espanhola. Século dezoito. Tem uma história.
- Gostaria de ouvi-la.	
Era esta a deixa por que eu esperava. Cheirava-lhe a ouro e Man​ny poderia estar dispósto a desembolsar notas de papel para o apa​nhar. Disse-lhe o mais desinteressadamente possível:
- O fato é que, por trás desta moeda de ouro, há uma proposta, Manny. Talvez lhe interesse.
	Os olhos de Manny toldaram-se e sua voz tomou o tom monótono e indiferente do negociante.
- Você já me conhece, Comandante. Estou sempre interessado em qualquer proposta, desde que sejarendosa e segura. Quer falar já?
Acenei negativamente com a cabeça.
- Mais tarde, Manny.
Mais tarde poderia ter mil libras e não precisar, portanto, de discutir qualquer proposta com Manny. Nem teria de voltar a falar com Manny. Nunca mais.
- Fica então para mais tarde, Comandante - anuiu Manny, voltando-se para o bar e para o modelo lânguido de seio redondo, voz insípida e astutos olhos profissionais.
Uma hora e sete minutos depois, voltei para o bar, sem um cen​tavo e completamente arrasado.		
CAPITULO II
- Um drinque, Comandante? - perguntou Manny.
Recusei, aborrecido.
- Desculpe, Manny, mas não posso pagá-lo. Estou limpo. Manny deu um estalido com a língua e esboçou um gesto de con​solação.
	- Pouca sorte, Comandante, pouca sorte! Vai e vem. Parece-me que a casa deve uma bebida aos que perdem. Sente-se.
	- Não. Obrigado pela gentileza, mas vou-me embora.
	Dirigi-me para a porta, mas Manny seguiu-me. Nunca o vi tão relutante em deixar sair um cliente arruinado.
- Comandante!
- Diga, Manny.
- Referiu-se a uma proposta. Quer falar agora, em meu es​critório?
Afinal, sempre o tinha pescado. O coração pulsava-me e tinha a boca seca. Fechei os punhos, para evitar o tremor dos dedos. Tentei, todavia, fazer com que minha resposta parecesse indiferente.
	- Como queira. Não há pressa.
	- Por aqui, Comandante - disse Manny guiando-me, através de uma porta com maçaneta de couro, para um recinto atapetado na cor de cogumelo, sob um candelabro de cristal Murano.
Havia cortinados cor de cogumelo com cordões dourados; uma mesa com gavetas embutidas e uma cadeira de espaldar alto, de nogueira italiana; e ainda um sofá fantástico de brocado dourado, diante de uma lareira Adam. As bebidas estavam num armário dis​farçado por baixo de um painel pintado. As fadas de Cross tinham tomado Manny orgulhoso. Tudo era genuíno, tudo era dispendioso e o efeito resultava tanto como o vestíbulo das Nações Unidas: de igual modo deprimente.
Manny olhou-me de soslaio ao inclinar-se para as bebidas.
- Gosta, Comandante?
Dei um estalido com a língua e respondi:
- Deve-lhe ter custado uma fortuna, Manny!
Tomou isto por um cumprimento, riu e comentou:
- Até a mim me assusta. Mas trabalho aqui e creio que tenho direito ao conforto. Além disso, impressiona os clientes.
- Julguei que os clientes nunca entravam aqui, Manny! 
Pisquei-lhe e sorri por cima do copo, um sorriso de camara​dagem que faz com que um homem como Manny inche o peito e se es​queça de que tem de comprar aquilo que os outros adquirem por amor.
Manny piscou por seu turno, levantando o copo. 
- Às mulheres... Que Deus as abençoe.
Bebemos. Então, Manny indicou-me o sofá, enquanto ele ficava de pé, encostado à lareira Adam, com os cotovelos em cima da chaminé de mármore. Percebi a manobra. É difícil vender seja o que for a alguém que está de pé. Experimente-se. Decidi pôr-me o mais à vontade possível. Recôstei-me contra o brocado dourado, cruzei as pernas e tentei descontrair-me, à espera de que Manny iniciasse a conversa.
Os olhos de Manny voltaram a toldar-se, cobrindo-se de uma película semelhante à dos pássaros. Não havia neles luz nem brilho. Quando falou, a voz era suave, quase acariciadora.
- Em que trabalha, Comandante?
- O que interessa isso?
Manny beliscou a ponta de um charuto caro e acendeu-o com lentidão. Depois aspirou profundamente, soprou uma nuvem de fumaça e acenou com o charuto na direção da porta.	
- Lá fora, nas mesas, é claro que não interessa. As pessoas pagam o que bebem. Se perdem, pagam as fichas; se ganham, não fazem questão. E é tudo o que me importa. Você também é desses, Comandante, e gosto de o ver por aqui. Mas agora é diferente. Trata​se de negócios. Em negócios é preciso trabalhar em conjunto e, por is​so, quero saber.
Voltou a meter o charuto na boca, chupou-o e aguardou. 
Ri, um riso franco e amigo, sem malícia, e perguntei-lhe: 
- Só por curiosidade, Manny: o que julga que faço?
Manny soprou mais fumaça, comprimiu os lábios e respondeu:
- Muitas vezes tentei adivinhar, Comandante. Não está na ativa, embora o pareça. Aliás, é característico dos marinheiros. Podia negociar em lãs, mas não gasta para isso. Joga com cautela e, quando não tem mais fichas, desiste. Talvez agente de vendas, posto que não tenha aspecto de vendedor. Médico, dentista talvez. Como lhe disse, nunca consegui adivinhar.
- Sou historiador.
O charuto quase lhe caiu da boca.
- O quê?
- Historiador. Assistente de História na Universidade de Sid​ney.
Manny estava embaraçado. Notava-se na sombra de seus olhos. Eu tinha ganho terreno. Se o conseguisse defender, haveria proba​bilidades. Manny deixou passar algum tempo para se recompor, an​tes de me desfechar a pergunta.
- Quanto ganha?
- Mil e cem por ano; mil e duzentas com as lições particulares. 
- Uma miséria - disse Manny, concisamente. - Para um tipo com miolos, é uma ninharia.
- Por isso mesmo é que estou interessado em negócios.
Manny meneou a cabeça.
- Para negociar é preciso capital. O que você tem? 
Levantei-me e tornei a passar-lhe a moeda pelo nariz.
- Tenho isto.
- Quanto vale?
- Cerca de seis libras australianas, ao câmbio do ouro. Como antiguidade, cerca de trinta. Mandei-a avaliar.
- Talvez dê para começar a vender milho assado, Comandante! Mas não é para Manny Mannix.
Chegara o momento crítico. Se dissesse algo errado, estava per​dido, assim como meu tesouro naufragado. Não disse palavra. Sorri e fui até junto do armário das bebidas, para me servir de novo. Manny voltou a ficar embaraçado; e interessado também. Trouxe a bebida para junto da lareira e bebi à saúde dele. Então, desfechei-lhe:
	- O mal das pessoas como você, Manny, é julgarem que sabem tudo. Mas nunca se sabe!
	Manny corou, mas manteve-se calmo.
- Ora, diga logo, Comandante. Tenho tudo o que quero e pago​-o com a massa de sobra que tenho no banco. O que me vai dizer que eu não saiba?
	- De onde veio esta moeda, por exemplo?
	- Pois bem, despeje o saco! De onde veio?
	- De um galeão espanhol que saiu de Acapulco para Manila em outubro de 1732 e se perdeu com toda a tripulação.
	Manny descontraiu-se e riu cepticamente.
- Histórias de tesouros, hein? Essa é a burla trais vulgar. Tam​bém traz um mapa? O mapa de um antigo pirata, talvez? Vendem-se a cinco dólares em qualquer parte das Caraíbas. Os indígenas fazem​-nos e constroem proas afundadas para os turistas.
Meneei a cabeça.
- Não tenho nenhum mapa.
- Então prossiga. O que tem?
Retirei a carta do bolso e mostrei-a a ele. Leu-a a custo, pro​curando fatos por trás das frases de cortesia e do inglês pomposo. Depois olhou para mim, batendo com o polegar na carta.
- É autêntica?
- Claro! Ninguém forja um documento desses. Basta um te​legrama para verificar se é falsa ou verdadeira.
Manny anuiu com a cabeça. Até ali, ele entendia.
- Sim, sim. Suponhamos que está certo. Mas não diz o sufi​ciente. Houve um navio-tesouro e essa moeda talvez provenha dele. Mas não é certeza.
- Aí é que entro eu. Sou historiador, como já lhe disse. Meu ofício é reunir, pesar e determinar o valor das provas históricas. Recolhi provas suficientes para demonstrar que o galeão perdido poderia ter naufragado perto do local onde descobri a moeda.
- Onde foi?
Sentia-se seguro, pois já não brandia o charuto. A sombra de​saparecera-lhe dos olhos e vi a cobiça, o interesse e os cálculos do comerciante que pesa as despesas e as receitas para determinar a margem de lucro. Agora, podia manejá-lo com mais firmeza, como a um peixe cansado da corrida. Disse-lhe sem rodeios:
- O local é segredo meu. Sei onde é. Eu próprio descobri lá a moeda, mas não estou disposto a revelá-lo antes de fazermos um acordo legal e de assinarmos.
- Quanto quer?
- Se for a meias, mil libras e despesas pagas.
Estava dito. Os dados estavam lançados e nada mais havia a fazer ou a dizer. A jogada seguinte pertencia a Manny Mannix.Mas este não estava disposto a ficar por ali. Tinha outras perguntas a fazer.
	- Suponha que encontremos o navio onde diz que deve estar. Quanto poderíamos arrecadar?
	- A carta fala de vinte arcas de ouro. Não posso calcular quanto valerá, vinte, trinta mil, mais ou menos. Claro que pode ser muito mais.
	- Pode. E também pode ser que o local já tenha sido limpo e, então, não apanharemos nada.
	- Naturalmente - concordei. - Mas não foi. Eu e minha mulher descobrimos a moeda.
Manny lançou-me um olhar rápido e inquiridor.
- Não me tinha dito que era casado!
- Minha mulher morreu um mês depois do casamento. Manny pigarreou compungido.
- Pouca sorte! - Depois, fez outra pergunta: - Disse que precisava de mil para você e as despesas pagas. Que despesas tem em mente, Comandante?
	- Duas mil libras, mais ou menos. Podia fazer-se com menos, mas seria mais difícil.
	- Que gênero de despesas incluiria?
Manny estava tão interessado, tínhamos progredido tanto desde a discussão especulativa até à prática, que me esqueci de ser cau​teloso. Dei-lhe uma resposta simples e clara:
- Quinhentas para comprar a ilha, a fim de termos direito sobre a terra e a água e podermos iludir a lei relativa a descobertas de te​souros. Depois, há o barco, o criado de bordo, o equipamento sub​marino, provisões e talvez um mergulhador profissional para a última fase. Posso dar-lhe uma lista das despesas assim que chegarmos a acordo.
Tinha aberto minha própria sepultura e caminhava muito satis​feito para dentro dela. Nessa altura, porém, ainda não o sabia. Só o descobri muito mais tarde. Nem sequer percebi por que motivo Man​ny sorria. Quando se afastou para preparar um terceiro drinque, pen​sei que o fazia para selarmos nosso contrato, o que prova que eu não conhecia Manny. O que prova também que eu era o que Manny pen​sava: um historiador ingênuo que nada sabia das lições mais elemen​tares da História, tais como a vaidade dos desejos humanos, a incons​tância das mulheres e o fato de que um trouxa nunca consegue duas oportunidades iguais porque não as merece.
Manny voltou com as bebidas. Levantamos os copos e sorrimos por cima dos bordos. Depois, Manny disse com gentileza:
- Desculpe, Comandante; mas não há dados concretos.
Era o fim, como um beijo na boca.
Manny não cessava de sorrir.
	Eu não sorria; sentia-me doente, cansado e, humilhado, e tinha vontade de ir para casa. Foi então que Manny avançou para o golpe final.
- Olhe, Comandante! Para lhe provar que não tenho má von​tade, compro-lhe a moeda ao preço do mercado: trinta libras. Ficará bem no bracelete da pequena.
Ri. Não sei por que, mas ri. Atirei a moeda ao ar, apanhei-a e disse a Manny:
- Dê-me também a noite de graça no bar e é negócio fechado.
Manny olhou-me com frio desprezo. Em seguida, foi até à mesa com gavetas embutidas e tirou trinta notas novinhas, enroladas. Pôs​-lhes um elástico em volta e depositou-as em minha mão estendida. Depois, disse:
- Se é prudente, Comandante, deixe as bancas em paz e deixe​-se ficar pelo bar. As bebidas da casa estão a seu dispor.
- Obrigado, Manny - respondi. - Obrigado e boa noite!
- Boa noite - correspondeu ele. - Boa noite, trouxa. 
Lembro-me de ter seguido para o bar e pedido um uísque duplo. A partir daí, nada mais.
Às nove do dia seguinte, o Reitor encontrou-me a ressonar no meio dos arbustos, diante de sua janela.
Às quatro horas da tarde, a Faculdade aceitou meu pedido de demissão e pagou-me um mês de vencimento em vez de aviso prévio. Isto deixou-me numa ridícula situação: sem trabalho, sem projetos e com pouco mais de cem libras em dinheiro. É que Manny tinha sido bondoso para comigo. Quando me despejou na rua, pregou-me as trinta libras no bolsinho com um alfinete e a seguinte nota:
"Pouca sorte, Comandante! Foi jogo franco."
Manny é assim. Um tipo amável e com sentido de humor.
CAPÍTULO III
Na sexta-feira de manhã saí para cobrar uma dívida.
Apanhei o primeiro trem para Camden, uma povoação asseada, construída com a riqueza das primeiras pessoas desembarcadas no país mais novo do mundo. As pastagens verdes estendem-se até às soleiras das portas e a estrada de betume preto serpenteia por acres e mais acres de ricos e férteis pastos, listrada pelas sombras de eucalip​tos enormes e dos salgueiros que orlam as grandes fazendas. As casas, de um cinzento desmaiado, surgem ao fundo, nas pregas da terra, e seus proprietários remontam à Primeira Armada e aos duros e bu​lhentos dias de uma colônia penal.
É uma zona limpa: região de laticínios, de gado merino, terras amenas de criadores de gado, onde nunca há seca, onde os vales são sempre verdejantes e as raízes mergulham fundo. Terra onde eu, homem da cidade desenraizado, não tinha lugar.
Em Camden tomei um táxi e percorri oito quilômetros de estrada até chegar a um portão com cadeados de ferro, por cima do qual se erguia, em forma de pérgula, a legenda seguinte: McAndrew Stud. A grande casa fica longe do portão, pelo que o motorista ficou-me ob​servando quando lhe paguei e disse que voltasse daí a uma hora. Não podia adivinhar que eu sentia vergonha de mim mesmo e precisava de caminhar por entre as árvores em flor, a fim de ganhar coragem para meu encontro com Alistair McAndrew.
O caminho subia um pouco e descia depois até à casa, um edifício baixo e comprido, abrigado pelos arbustos e rodeado de barrancos brancos e sebes que delimitavam os estábulos.
À esquerda havia um enorme prado, de onde provinha parte da produção de ferro de McAndrew; à direita, um telheiro de madeira onde um grupo de homens observava um potro sendo submetido à sela.
McAndrew encontrava-se no grupo - um celta moreno e atar​racado, em camisa cáqui e calça de montar. Estava encostado à cer​ca, na atitude descontraída de um lavrador, mas os olhos semife​chados não perdiam um pormenor do treino. De vez em quando, dava um breve conselho ao domador.
	Voltou-se ao ouvir meus passos, hesitou um momento e depois veio a meu encontro com um sorriso aberto e de mão estendida.
	- Lundigan! Até me custa acreditar! Que prazer em tornar a vê​-lo, homem!
	Fiz uma careta, apertei-lhe a mão e saudei-o com um "Olá, Mac!" muito desajeitado.
- O que o traz por estas bandas de Camden?
- Eu... Preciso falar-lhe, Mac. Isto é, se tiver tempo.
A voz ou os olhos traíram-me porque me fitou atentamente e res​pondeu:
	- Claro que tenho, homem. Todo o tempo que quiser. Descul​pe-me por um instante, enquanto falo aos rapazes.
Vi-o afastar-se para dar ordens aos homens que rodeavam o campo de treino. Caminhava com segurança e falava com autoridade, à vontade do meio de seus homens, dos cavalos e das terras mati​zadas. Lembrei-me então do dia em que o arrastei ao longo de uma praia, nas Trobrians; era um esqueleto amarelo e raquítico, o único sobrevivente de um grupo invasor que os japoneses haviam destroçado logo dois dias após o desembarque. A tremer com malária, atacado de disenteria, tinha aberto caminho até ao local de encontro e conse​guimos safá-lo do fogo da patrulha que se ocultava no meio das pal​meiras. E, agora, ali estava eu pedindo a recompensa..
McAndrew voltou e dirigimo-nos, lado a lado, para a casa.
- Quanto tempo, Renn!
- Onze, doze anos... É muito tempo, Mac!
- Minha mulher está na cidade, mas gostaria de o ver. Você fi​ca aqui, evidentemente. Tenho muito para lhe mostrar.
Acenei negativamente com a cabeça.
- Desculpe, Mac. Tenho de partir dentro de uma hora.
Ficou perplexo e um pouco sentido. Insistiu:
- Não pode chegar e partir com essa pressa toda! Tem de ficar.
- Talvez seja melhor começar por lhe dizer o motivo de minha visita.
Era uma resposta infeliz e mastigada para um homem que não se vê há doze anos; mas que fazer? Sentia-me desajeitado e grosseiro e arrependido de minha visita.
Agarrou-me pelo braço e conduziu-me pela varanda para a sala de estar. Era um grande aposento com o soalho encerado, belos tapetes, bons quadros e cadeirasde couro agrupadas em volta de uma enorme lareira de pedra.
- Esteja à vontade, Renn! Vou preparar uma bebida. Uísque?
- Obrigado.
A poltrona era funda e confortável, mas não conseguia descon​trair-me. Tinha os músculos faciais tensos e a boca seca. As mãos tremiam-me e agarrei-as com força aos braços da poltrona para as manter serenas. McAndrew chegou com os drinques, passou-me um e sentou-se do outro lado da lareira, em minha frente.
- Saúde, Renn! E bons encontros!
- A sua, Mac!
O uísque desceu lentamente, como acontece sempre que é bom, e assentou-me no estômago como uma brasa. McAndrewobservava-me preocupado.
- Anda doente, Renn?
- Doente? - Tentei rir, mas da garganta apenas me saiu um som rouco e seco: - Não, não ando. Pelo menos, ao ponto de um médico o descobrir.
- Mas descobre-o um amigo.
Sua gentileza e perplexidade, assim como sua bondade leal, in​dispuseram-me comigo mesmo. Levantei-me da cadeira e fiquei de pé, junto à lareira, encarando-o. As palavras saíam-me com dificul​dade e sentia-as arranhar-me a garganta.	
- Olhe, Mac, como amigo sou um perigo. Não vim aqui só pelo prazer de visitar você. Vim porque preciso de mil libras e você é o único que me pode ajudar a consegui-las.
McAndrew não se mostrou surpreendido. Fitou o copo e respon​deu-me:
- Neste caso, estou satisfeito por me ter procurado, Renn. Pedir mil libras a um homem a quem salvou a vida é pouco. Terá um cheque antes de partir. Agora, descanse e beba.
Foi tão simples, tão calmo e casual que me cortou a respiração. Mas, mesmo assim, não tive a elegância de aceitar e acabar de vez com aquilo. Continuei a falar louca e impetuosamente.
- Mas eu não quero isso!
- O que quer, então?
- Em primeiro lugar, quero que saiba para que preciso delas. 
- Não tem de dar satisfações.
- Mas quero que saiba!
E contei-lhe tudo. Falei-lhe de Jeannette e de mim, de nossa ilha ao sol. Da moeda antiga e do velho navio de onde eu supunha que ele viera. Falei-lhe de Manny Mannix e de meu azar nas mesas de jogo no
Manny's. Contei-lhe minha demissão vergonhosa da Universidade. Despejei tudo numa orgia de autoflagelação e, quando terminei, sen​tia-me vazio e cansado. 
McAndrew não disse palavra. Levantou-se, voltou a encher-me o copo e entregou-me.
- Beba, rapaz, que lhe faz bem!
Ri com azedume.
- É um velho truque que já experimentei, mas não deu resul​tado.
McAndrew sorriu e tocou-me amigavelmente no ombro.
- Isso é porque tem bebido em má companhia. Se tivesse o bom senso de vir aqui imediatamente...
	Bebemos. Pousei o copo com cuidado e, com o mesmo cuidado, tentei explicar-lhe:
- Mac, é verdade que preciso de dinheiro. Mais do que possa imaginar. Preciso por inúmeras razões que não lhe posso explicar, mas não quero seu dinheiro.
- Digamos então que é um empréstimo que pagará quando des​cobrir o navio-tesouro.
- Não, Mac. Também não quero um empréstimo. É preciso que o dinheiro seja meu. Se encontrar o que procuro, quero que seja apenas meu... Não sei se me entende. Quero qualquer coisa no gênero do que você possui: a terra, os cavalos, sua vida. É isso que preten​do extrair de meu navio-tesouro. Um lugar que seja meu, uma vida que me pertença.
- E seria feliz, sem ela?
- Não sei dizer. Mas já que não posso ter Jeannette, quero o resto. Quero tudo o que esperava compartilhar com ela, entende?
- Entendo, mas não percebo quanto ao dinheiro.
- Eu explico. Chame-me tolo, se quiser. Pretendo arranjá-lo da seguinte maneira: você tem cavalos de corrida e alguns campeões. Quando vir que há um bem cotado, a dez ou mais, avise-me. Quero que me dê uma oportunidade para colocar nele meu dinheiro. Apenas cem libras. Não prejudicará o negócio... E, se ganhar, receberei minha aposta e tirarei uma vingançazinha dos apostadores. É tudo o que quero.
McAndrew olhou-me perplexo.
	- Renn, está doido! Todas as corridas são um jogo. Todos os cavalos são um jogo. O melhor cavalo do mundo pode perder. E depois?
- Depois irei para Queensland cortar cana ou cozinhar para um tosquiador. Só lhe peço que me dê a oportunidade de apostar, Mac. A mesma possibilidade que dá aos tratadores, num bom cavalo que se esforce por ganhar.
- Mas se perde, você fica sem nada.
- Apenas cem libras, o que não é tudo.
- É tudo o que tem. Como lhe digo, pode ter o dinheiro sem ris​cos e sem qualquer compromisso.
- Era a maneira de perder o que ainda conservo: minha in​dependência.
McAndrew quedou-se pensando na proposta. Era evidente que não lhe agradava. Eu estava sendo um grande tolo. Além disso, não consentia que um homem simples e bom pagasse generosamente sua dívida. Se nessa altura soubesse o que sei hoje, teria aceito o cheque e beijado a mão que me dava. Mas eu era um historiador intratável que se recusava a aprender as lições da História e, por isso, deixei que fos​se McAndrew a dar a resposta. Fê-lo calmamente e sem constran​gimento.
- Está bem, Renn. Se me deixasse oferecer-lhe ou mesmo em​prestar-lhe o dinheiro, ficaria muito contente. Não quer e parece que compreendo o motivo. O Black Bowman corre amanhã em Randwick, na terceira corrida. Abrirá com doze e terminará mais ou menos a três; portanto, aposte cedo. É possível que ganhe. Se assim não acon​tecer, não é culpa dele nem nossa. Desejo-lhe boa sorte!
	Estendi-lhe a mão, que ele apertou nas suas. Antes de a largar, disse-me: 
	- Passou um mau pedaço que ainda não acabou, Renn. Não se esqueça de que a casa de McAndrew está as suas ordens.
- Não o esquecerei e não calcula como lhe agradeço. Mas é preciso que eu siga o meu caminho e, se não chegar a bom porto, a culpa será minha e de mais ninguém.
Despedi-me e desci o longo caminho até à estrada. Num recinto ao lado, um garanhão levantou os cascos e pôs-se a galopar em redor do perímetro. Num fugaz momento, pensei que fosse o Black Bow​man, mas depois lembrei-me de que, àquela hora, devia estar descan​sando no estábulo, poupando forças para a terceira corrida de Rand​wick.
Cheguei ao hipódromo a meio da segunda corrida. A multidão ululava porque o favorito estava sendo batido no meio da reta por um magnífico desconhecido. O recinto das apostas estava deserto, como calculava, e tomei lugar junto dos postigos, onde os homens impor​tantes apostavam muito dinheiro, de modo que minhas cem libras não iriam alterar o mercado.
 É tremendo quando determinada cavalariça se lança na luta. Há milhares de libras a investir antes que as apostas desçam para três ou menos, e todos os apostadores são avisados para fazerem as apostas antes que estas se fechem. Há uma dúzia de comissários no recinto, cada um deles com o dinheiro da respectiva cavalariça no bolso; os apostadores entretêm-se a avaliar os riscos e os corredores, de olhos salientes, observam os rostos familiares daqueles homens cujo tra​balho é fazer apostas para os proprietários, os treinadores e os gran​des sindicatos de jogo. Eu tinha de bater os apostadores e os comis​sários. Tinha de apostar logo que surgisse a oportunidade. Tomei lugar junto do estrado de Bennie Armstrong, o maior apostador das corridas e esperei.
Ergueu-se um enorme clamor quando o cavalo desconhecido ganhou com apreciável vantagem. Dois minutos depois, começaram as apostas para a terceira corrida.	
Nos hipódromos australianos, cada agente de apostas tem seu quadro e as mudanças são indicadas em marcadores semelhantes aos dos salões de bilhar. Bennie apresentava doze por um contra o Black Bowman. Alguns metros adiante, um seu colega oferecia quatorze. Calculei o tempo que me levaria a atravessar a multidão para lá chegar. Não valia a pena correr o risco. Os intermediários já deviam estar colocando seu dinheiro e as apostas desceriam em trinta segun​dos. Voltei-me para Bennie com um maço de notas de cinco libras na mão erguida e gritei-lhe minha aposta:
- Mil e duzentas contra cem no Black Bowman...
	Bennie lançou-me um rápido olhar. O ajudante agarrou o di​nheiro, contou-o e meteu-o na pasta. Em seguida,acenou para Ben​nie que escreveu um bilhete e me entregou.
- Pronto! Mil e duzentas contra cem.
	Fez girar o marcador do quadro e as apostas baixaram para dez. Olhei para o outro quadro. Oito! Tivera sorte. O dinheiro dos inter​mediários já estava correndo... Antes de a barreira se erguer, Black Bowman não oferecia vantagem. Guardei o bilhete e fui para a grande arquibancada, à procura de um lugar. Tinha a boca seca e o estô​mago apertado devido à excitação. Necessitava de uma bebida, mas só de pensar na gritaria e no cheiro de álcool do bar senti-me enjoado. Engoli em seco, passei a língua pelos lábios e limpei as mãos úmidas de suor. Depois subi os degraus até junto do camarote do rádio, na arquibancada principal.
O dia estava claro, mas o sol pouco aquecia. Nos gramados, as mulheres pareciam matizadas por tons castanhos outonais. Os can​teiros eram incolores e a multidão inferior à habitual. Mas a pista es​tava em condições e a atmosfera calma, o que para mim bastava. Vi os piquetes conduzirem os cavalos para o paddock. Vi os jóqueis ves​tidos de cetim levarem as celas para as balanças. Vi as cores púrpura e ouro de McAndrew e o coração pulsou-me mais fortemente. McAn​drew escolhera Minsky para montar e, se Deus quisesse que um cavalo ganhasse os dois mil e quatrocentos metros, também teria es​colhido Minsky.
Agora, selavam os cavalos. Minsky, McAndrew e o tratador con​versavam. Evidenciavam a descontração daqueles que sabem o que fazem, que fizeram tudo o que era possível e que, a partir daí, ficam na dependência do cavalo, do jóquei e do Todo-Poderoso.
O tratador ajudou Minsky a montar, experimentou a cilha e ajustou as rédeas. Em seguida, Minsky baixou-se e McAndrew er​gueu-se para apertarem-se as mãos por cima do dorso lustroso e on​dulado de Black Bowman. Era um pequeno ritual íntimo em que eu não tomava parte. Meu dinheiro e meu futuro estavam em Black Bowman, mas eu nada tinha a ver com ele nem ele comigo. Se ga​nhasse, seria porque McAndrew o criara e seus homens o treinaram para isso e porque levava na garupa um anão com as cores de McAn​drew. Eu limitava-me a apostar e, como tal, era um parasita na pele de um cavalo de corrida.
Agora, o piquete levava-os para a pista, montado nunl pesado cavalo de caça que contrastava ridiculamente com as linhas anas e nervosas dos puros-sangues. Minsky conduzia o cavalo a trote curto e o negro garanhão avançava com a elegância de uma bailarina. Assus​tou-se e desviou-se um pouco quando um enorme baio passou por ele a meio galope, mas Minsky soube acalmá-lo, apertando um pouco as rédeas. Era sempre o mesmo Minsky, um jóquei velho e experiente. Sentia-me contente por ter apostado em sua montada.
Black Bowman ocupou o décimo lugar na barreira. Ficava no meio da pista. Não poderiam atirá-lo contra as grades nem atropelá​-lo nas curvas, e, se Minsky conseguisse um avanço, poderia correr àvontade até às últimas centenas de metros que põem à prova os mús​culos e o fôlego do cavalo, assim como a perícia e a astúcia do jóquei.
Um zumbido metálico propagava-se na atmosfera quando o locutor anunciou as posições, tentando relatar à invisível audiência a pequena confusão da barreira. Não consegui entender-lhe as pala​vras, mas peguei no binóculo e vi Black Bowman firme em seu posto, enquanto o juiz da partida alinhava os últimos três cavalos. Um já es​tava sobre a linha, mas os outros continuavam distanciados. Os jó​queis fizeram-nos voltar e ocupar suas posições. A barreira subiu e a multidão gritou. A corrida começara...
Vi o brilho purpúreo e dourado quando Minsky se distanciou do grupo. Depois perdi-o no meio dos cavalos que regularam o passo para os primeiros 800 metros.
Um ruão castrado e um pardo enorme seguiam à frente. Houve alguns que erradamente se destacaram logo de início, mas o vencedor estava no meio do grupo e ninguém poderia adivinhar qual seria, an​tes de se dispersarem depois dos 1.200 metros e de os melhores es​colherem suas posições.
Ao fim dos 1.600 metros, o mão abrandou e o pardo seguia na dianteira, mas perdendo já terreno. Nos 800 metros finais, o grupo dividiu-se em dois e vi Minsky no Black Bowman, a passo largo na cauda dos primeiros oito cavalos. Quando faltavam 400 metros, os oito continuavam juntos, mas dois já se atrasavam, continuando o Black Bowman, na cauda da primeira meia dúzia. Minsky fez uma corrida sem nada de especial até à última reta. Então, senti cair-me o coração aos pés. O favorito passou para o lado das grades e três cavalos seguiam juntos. Black Bowman ia logo atrás do quarto. Ten​tei focá-lo, mas o cavalo da frente não me permitia. Vi o jóquei do favorito servir-se do chicote. Os três primeiros cavalos alargaram o passo quando os jóqueis se debruçaram para a frente, equilibrando-se nos estribos. Se Black Bowman não arrancasse agora, estaria li​quidado e eu com ele. Foi então que eu vi, e a multidão também. Tudo de pé numa gritaria! Minsky chegara Black Bowman para o lado de fora e seguia a quatro corpos do primeiro. Estava fora da sela, comprimindo com os joelhos o pescoço do animal. Tinha a cabeça baixa, escondida atrás do cavalo, e dava-lhe toda a rédea que ele queria. O grande garanhão esticava-se. Três corpos, dois e ei-lo ao lado do da frente. Então Minsky tocou de leve com o chicote no flanco do cavalo, e este, maio sentira, arrancou num salto que lhe permitiu ganhar por um corpo e meio.
Esperei a colocação dos resultados e a verificação do peso. Apal​pei o bolso para me certificar de que o bilhete da aposta continuava lá, e saí para apanhar um táxi. Tinha agora mais mil e duzentas li​bras, mas nem por isso me sentia muito entusiasmado.
Na segunda-feira de manhã fui fazer contas no Tattersalls Club. Bennie Armstrong, como de costume, pagou com um sorriso e con​vidou-me para voltar e apostar com ele.
Estava contando as notas novinhas e colocando-as na carteira, quando Manny Mannix me bateu no ombro.
- Parece que teve um dia feliz, Comandante!
Fiz um pequeno aceno e respondi:
- Sim, não foi nada mau.
- Mais de mil, nesse pacotinho! - observou Manny.
Guardei a última nota na carteira e mordi a isca.
- Exatamente, Manny. Mais de mil.
Manny sorriu astutamente.
- Quer dizer que teve sua oportunidade, hem, Comandante? 
- De fato, Manny! Tive minha oportunidade.
Sorriu, naquele seu jeito amável e bonachão, e estendeu-me a mão.
- Creio que sim, Comandante. Boa sorte.
Ignorei a mão que me estendia e fitei-o nos olhos.
- Não passa de um vigarista, Manny! - disse-lhe calmamente. Em seguida, guardei a carteira e saí do clube.
Foi o segundo erro que cometi. Chame-se alguém de vigarista e ficar-se-á com o nariz esmurrado. Mas um homem como Manny prefere mostrar como pode realmente ser vigarista.
CAPÍTULO IV
Meu dinheiro estava depositado no banco e a passagem de avião reservada. Uma carta seguira pelo correio para o Departamento de Terras do Governo de Queensland, avisando de minha chegada para comprar ou arrendar uma ilha rochosa, descrita desta e daquela maneira nos mapas. Minhas coisas estavam emaladas e o aluguel pago. Dirigi-me de barco a Lane Cove para falar com Nino Ferrari.
Nino é genovês, magro, nervoso e com pequenas rugas no canto dos olhos. Fora homem-rã na Marinha de Mussolini e ajudara a afun​dar no Mediterrâneo algumas toneladas de navios aliados. Depois emigrara, e tinha agora uma oficina de artigos submarinos. Fabricava escafandros para a Marinha, arpões para os pescadores e para os rapazes que se tinham apaixonado pelas águas profundas. Seu trabalho era meticuloso e de confiança; seus conhecimentos na arte de mergulhar quase enciclopédicos.
Disse-lhe que precisava de equipamento de mergulho e dois cilindros de ar.
Interrogou-me com gravidade:
- E para esporte, Sr. Lundigan, ou para trabalho?
- Faz diferença, Nino?
- Si, si... Muita diferença.
- Por quê?
Nino torceu o pescoço e estendeu as mãos. 
- Por quê? Já lhe explico. Se comprar isto para esporte, procure uma lagoa de setemetros de profundidade e pode distrair-se durante horas sem grande perigo. Passa umas férias ao sol, mergulha, admira o coral talvez um peixe-espada... e é tudo. Acautelando-se dos tu​barões e observando algumas regras simples, não corre perigo. Mas se for para trabalho...
Calou-se. Aguardei um momento e depois incitei-o a que prosseguisse.
- Se for para trabalho, Nino?
- Nesse caso, precisa de treinos, meu amigo. 
- Não tenho tempo para isso.
- Então é provável que se mate, e depressa.
Fiquei pensativo. Nino não estava brincando. Era um profis​sional e nada tinha a perder em dizer-me a verdade. Perguntei a mim próprio se deveria contar a Nino. Seus olhos frios e honestos ani​maram-me, pelo que nada lhe ocultei.
- Vou tentar descobrir um navio, Nino.
Para ele, aquilo não passava de um lugar-comum. Assentiu com ar sério.
- Salvamento?
- Tesouro.
O rosto prudente de Nino abriu-se num sorriso.
- Sabe onde está?
- Sei onde deve estar. Mas preciso descobri-lo.
- Onde espera descobri-lo?
Contei-lhe. Disse-lhe o que pensava que devia ter acontecido ao Dona Lucia. Tracei a rota e mostrei-lhe como havia imaginado seu fim... afundado no recife exterior na Ilha Bicorne.
	Nino escutou atentamente, concordou com minha lógica de his​toriador e, quando terminei, muniu-se de lápis e papel e pôs-se a in​terrogar-me:
	- Primeiro, diga-me que gênero de ilha é. Uma ilhota de coral?
	- Não. É uma ilha de terra firme. Um conjunto de terra e pedra, com rochedos de um lado e uma tira de praia do outro. O coral desenvolveu-se à sua volta.
	- A toda a volta?
	- É o que o mapa indica. Mas existe um canal que descobri há anos.
Nino traçou um desenho rápido. Representava a elevação de uma ilha, um pequeno monte que se erguia acima do nível do mar. Re​presentava também um extenso banco de areia, rodeado de coral recortado. Para lá deste, um banco menor e, a seguir, uma falésia que entrava pela água. Colocou-me o esboço diante dos olhos.
- É mais ou menos isto, não é?
- Muito semelhante.
- Bom!
Voltou a pegar no lápis e fez um desenho que se ia completando à medida que falava.
- Duas coisas podem ter acontecido ao navio: ou seguiu até ao rochedo com tempo moderado, mas abalroou e afundou-se; ou foi ter aqui e deslizou pelo banco de areia para o fundo das águas... Que profundidade disse que tinha?
- Não sei. É a primeira coisa que tenho de descobrir. 
Nino concordou.
- E também a mais perigosa. Mas já falaremos nisso. Se não for muito profundo e o coral não tiver ainda comido o navio, talvez tenha sorte. Mas se, pelo contrário, se afundou com a tempestade, se foi desmantelado pela rebentação das vagas... Então, desde já lhe digo que não tem uma probabilidade num milhão. A madeira teria sido desfeita e com ela as arcas, naturalmente. Mas, mesmo que assim não acontecesse, teriam ido parar no fundo e sido devoradas por duzentos anos de coral... Seria o bastante para nunca mais as encontrar, nunca mais até à consumação dos séculos.
Nino levantou a cabeça do desenho, cravando em mim seus olhos francos.
Disparei-lhe uma pergunta direta:
- Se estivesse em meu lugar, o que faria, Nino?
Sorriu, meneando a cabeça.
- Em seu lugar e com a experiência que tenho, esqueceria o navio-tesouro e guardava o dinheiro. Mas se me encontrasse no estado em que o vejo, com um sonho no coração e algumas libras no bolso, então iria procurá-lo.
Respondi com um esgar. A tensão abrandou. Começamos a falar de coisas práticas.
- Antes de mais - disse Nino, resumidamente - é necessário comprar um mapa marítimo. Anotará a profundidade das águas ao largo desse banco. Não deve ir além de 45 metros. Nesse caso, terá probabilidades. Pode-se treinar, trabalhar confortavelmente a essa profundidade, desde que observe as tabelas de descompressão. Abaixo disso, não: segue-se a zona da embriaguez, onde os mergu​lhadores se embebedam com o nitrogênio do próprio corpo, e todos os movimentos são perigosos, mesmo para os mais experientes. Creio que compreende o que quero dizer.
Acenei que sim. Conhecia os terrores das contorções quando o nitrogênio liberto explode como champanha nas articulações e nas vértebras, obrigando o mergulhador imprudente ou infeliz a rodopiar fantasticamente. Já tinha feito leituras acerca da embriaguez es​tranha e mortal que ataca os homens na zona azul, que os faz falar aos peixes, arrancar as máscaras e dançar estranhas sarabandas com a morte à espreita no profundo crepúsculo das águas.
Nino prosseguiu no interrogatório:
- Sabe que não pode fazer isso sozinho? 
- Não irei só. Levo um amigo.
- Um mergulhador equipado?
- Não, só com máscara. Um velho perito em lugares baca​lhoeiros. É um ilhéu de Gilbert. Trabalhou com os japoneses e está habituado às águas profundas.
- Bem... - disse Nino, comprimindo os lábios. - Mergulhará com você, mas não poderá ajudá-lo.
- É isso que eu quero, Nino. Trabalharei só.
Encolheu os ombros.
- A vida é sua. Estou simplesmente mostrando-lhe os riscos que corre.
- Quero conhecê-los.
- Então, volto a repetir-lhe que tem de treinar.
- Posso fazê-lo sozinho?
- Pode. Dar-Ihe-ei um conjunto de regras e exercícios. Executá-​los-á diariamente, aumentando de dia para dia os mergulhos e obser​vando as tabelas de descompressão. Não deixe de seguir os exercícios e as instruções. Entendido? Sua vida depende deles. Vai entrar num novo mundo. Ou se adapta... ou morre.
Sei que fui louco em não aceitar a oferta de Nino para um curso de treinamento, antes de partir para a ilha. Mas os maus demônios aguilhoavam-me. Tinha de aproveitar antes que o sonho se desfizesse e o sabor amargo da desilusão me invadisse. Creio que Nino com​preendeu, embora não aprovasse minha loucura.
	Mostrou-me o equipamento e explicou-me como funcionava. Colocou-me o mesmo e fez-me descer no lago próximo da fábrica, a fim de tentar alguns mergulhos.
	Depois de vestido e enquanto bebíamos um copo de Chianti, sen​tados em sua oficina, Nino elaborou uma lista dos artigos que teria de me oferecer: tubos respiratórios, óculos de vidro inquebrável, um cin​to com pesos, barbatanas e cilindros de ar comprimido.
- Diabos me levem! - praguejou Nino. - Estou doido varrido! Já me esquecia!
- De que, Nino?
- A ilha de que fala fica perto ou longe do continente? 
- A cerca de quinze milhas. Por quê?	
- Há alguma cidade próxima?
- Há. Mas, depois de me abastecer, não quero lá voltar. É uma cidade pequena. Os visitantes são uma curiosidade e os turistas tema de conversa dos naturais, o que não me convém. Mas por quê?
Batendo com a mão na garrafa metálica de ar comprimido, Nino disse:
- Por causa disto. Duas chegam-lhe para hora e meia debaixo dágua. Mas depois tem que as encher de novo e, para isso, necessita de um compressor de três mudanças, que é pesadíssimo. Talvez nem nessa cidadezinha encontre tal máquina.
Foi a minha vez de praguejar e fi-lo com competência. 
- Qual é a alternativa?
- Nenhuma. Vendo-lhe vinte garrafas, que são quase todas as que tenho. Terá de as transportar para a ilha. Darão para quinze horas debaixo dágua. Depois, será obrigado a mandá-las encher em Brisbane.
Vinte garrafas a sete libras cada uma eram cento e quarenta libras, sem contar com o frete aéreo. Quando me despedisse de Nino, teria duzentas e oitenta libras a menos e apenas quinze horas para descobrir o tesouro. Por outro lado, se não o descobrisse nessas quin​ze horas, nunca mais o conseguiria.
Só me restava pagar de bom grado e esperar que o dinheiro se transformasse em ouro reluzente, cunhado com a efígie de Sua Majestade Católica da Espanha.
Fechamos o negócio e falamos de coisas técnicas. Quando o vinho acabou, levantei-me para me despedir e Nino Ferrari pôs-me a mão no ombro. Havia vestígios de ironia em seu sorriso; mas não sei dizer se essa ironia era dirigida a mim ou a ele mesmo.
- Signor Lundigan - disse - vou-lhe contar uma coisa. Quando comecei a mergulhar no Mediterrâneo, assim queentrava num bar aparecia logo meia dúzia de indivíduos que sabiam de navios-tesouros à espera de serem recuperados. Em toda minha vida, não encontrei um único que tivesse conseguido. mais do que alguns cacos ou uma peça de mármore, ou mesmo uma estatueta de bronze. E, no entanto, sabe tão bem como eu que os tesouros da Grécia, de Roma e de Bizâncio jazem no mar continental. Se me perguntar por que lhe digo isto, é porque desejo que vá e mergulhe à procura do navio-tesouro. Descubra-o, se for capaz. Mas se não conseguir, terá feito o que o coração lhe pedia, e isso é mais importante do que todo o ouro do rei da Espanha.
Nino Ferrari é de Gênova, uma linda e esplendorosa cidade aventureira, com uma estátua de Cristóvão Colombo na praça pú​blica. O grande e velho visionário teria sentido orgulho de Nino Ferrari. Sei que, por breves instantes, Nino Ferrari também me fez sentir orgulhoso.
O funcionário do Departamento de Terras era simpático e de​licado, e estava plenamente convencido de que eu era um lunático. Informou-me de que o Governo de Queensland não estava disposto a alienar mais ilhas ao largo da costa, mas.teria prazer em me arrendar a que eu pretendia por dez, vinte ou noventa e nove anos, se a quisesse por todo esse tempo. Esclareceu que ninguém, em seu perfeito juízo, permaneceria num lugar daqueles mais de dez minutos. Não tinha água, nem canal para atravessar o recife. Quando lhe disse que não só havia água como também um canal, soltou uma risadinha e pediu-me que informasse disso o Chefe Superintendente, no caso de teimar em ser arrendatário da Coroa.
Claro que eu teimava, e muito mais ainda quando soube que o arrendamento não iria além de vinte libras por ano e que podia man​ter minha base de operações sem escamotear demasiado o capital que tanto me custara a ganhar.
O arrendamento foi feito, assinado, selado e depositado no Registro Geral. Renn Lundigan tornara-se arrendatário do Governo de Sua Majestade, com direitos à posse exclusiva de uma ilha verde com uma praia branca e um recife de coral, a quinze milhas da costa de Queensland.
A transação foi tão simples, tão trivial, que me esqueci por com​pleto de um fato importante. Assinar, selar e registrar um documento é um ato legal, irrefutável como um disco gravado, mas é também terrivelmente público. Nem de leve pensei nisso ao meter as cópias no bolso, juntamente com minha nota de crédito e os documentos de consignação de Nino Ferrari, enquanto caminhava, sob o sol ardente, para o edifício dos transportes aéreos.
O equipamento esperava-me, embalado em três caixotes de madeira. Logo se levantou o problema do transporte para minha ilha. Podia seguir por avião até à costa e depois por trem até à pequena cidade próxima da ilha, para onde o levaria numa lancha. A hipótese não me agradou. Havia o risco de demoras e estragos. Havia o risco ainda maior do falatório e do perigoso interesse que volumes tão grandes poderiam suscitar quando fossem embarcados para uma ilha onde nem sequer os turistas podiam ir para seus piqueniques e pas​seios de barco em redor do Barrier Reef.
Discuti calmamente o assunto com o funcionário dos despachos. Disse-me que havia um hidroavião duas vezes por semana para servir as ilhas turísticas de Whitsunday Passage. Meus volumes poderiam ficar numa delas, onde os iria depois buscar com uma lancha. Supôs que eu tivesse uma lancha e não o contradisse, se bem que estivesse longe da verdade. É evidente que tencionava ter uma, mas primeiro teria de a descobrir e comprá-la. Paguei a enorme conta do despacho, assinei os papéis do seguro e aceitei a garantia de que os pacotes me
seriam entregues a partir de quinta-feira, contanto que o tempo se mantivesse bom e o aparelho não se desviasse do velho Catalina.
	Em seguida, comprei uma passagem de avião para o norte, para a tarde seguinte, e fui até ao Hotel Lennon beber qualquer coisa.
Julho é a época turística de Brisbane. O sol deslocou-se para nor​te, de Capricórnio para Câncer, as chuvas terminaram, o céu apresenta-se azul e o ar tão seco que vale uma fortuna para os tu​barões da terra: taberneiros, donos de pensões e ainda os que alugam apartamentos mobiliados, desde Southport até Caloundra.
Os ricos saem de Melbourne e Sidney para o norte. Os estróinas ostentam maços de notas e as moças vendem seus encantos. Os se​manários elegantes enviam seus repórteres atrevidos e os fotógrafos andam numa roda-viva com os manequins das casas de modas. Não se consegue um quarto por amor; mas consegue-se por dinheiro, muito dinheiro. As ilhas turísticas estão superlotadas e os roteiros reproduzem páginas a cores e suplementos especiais sobre a Riviera do Pacífico Sul e o Waikiki do norte próximo.
Os sagazes homens de negócios, de roupa tropical, sorriem, pachorrentos, por cima das bebidas, no bar do Lennon, e elevam para mais mil o preço de trinta metros de dunas na zona inundada.
Era um estranho no meio deles. Seriam simpáticos para comigo como sempre o são para com os do sul, mão não deixaria de ser um forasteiro.
Saí do bar para o vestíbulo, entretido com uma caneca de cer​veja, ao mesmo tempo que observava os turistas que se dirigiam para as ilhas rochosas do norte ou para as paradas de biquínis do sul.
Invejei-lhes a despreocupação e a maior ou menor opulência. Era verdade que não possuíam ilhas; que não esperavam nem pensavam em arcas de ouro agarradas ao coral. Mas também não eram per​seguidos por maus demônios; nem tinham maléficos diabinhos a em​purrá-los para rotas solitárias, para quedas-d'água desertas que o luar frio inundava. Não eram obrigados a mergulhar nas águas profundas e a fazer companhia a monstros da floresta como os que aparecem nas gravuras. Invejei-os, se bem que a inveja seja um de​feito terrível e a autocompaixão mais perigosa ainda. Tinha arriscado e perdido muito; minha aposta custara-me muito a ganhar para que me deixasse agora invadir pelo desânimo.	
Havia decidido acabar com a bebida e ir ao teatro quando a des​cobri. 
Um garçom de camisa de seda e faixa escarlate conduzia-a para uma mesa sob as palmeiras. Tratava-a como a uma hóspede habitual estimada. Acrescentou mais qualquer coisa por sua própria conta, pois era jovem e ela formosa e interessada também em mostrar que a beleza lhe rebentava as costuras.
 Ele chegou-se demasiado ao puxar a cadeira e ela sorriu-lhe por cima do ombro nu, dando suas ordens com maneiras afetadas de manequim. Quando ergueu a mão, ouvi o tilintar do bracelete e vi o brilho dourado de minha moeda espanhola.
Era a garota de Manny Mannix, o modelo de olhos astutos e boca descaída, a moça que assistira a minha ruína nas mesas de jogo e me vira depois sendo posto na rua a pontapé, bêbado demais para me defender.
Senti uma mão gelada apertar-me a garganta. Se a moça estava ali, também Manny deveria estar: era como um abutre que nunca lar​ga a vítima.	
Acendi um cigarro e considerei-me tolo. A moça estava só. Já não pertencia a Manny. Fora despedida como as anteriores e viera para o norte, para a costa do ouro, investir seu capital em outro homem com uma prometedora conta bancária.
O garçom voltou com uma bebida, que ela pagou. Era bom sinal. Moças de sua espécie nunca pagam bebidas quando há alguém que o faça por elas. Senti tinir as moedas quando levou o copo aos lábios, com gestos de afetada delicadeza, como um animal bem treinado. Então surgiu-me uma idéia louca, que me restituiu a autoconfiança e o bom humor, como se fora uma droga.
Joguei fora o cigarro e dirigi-me para o tranqüilo recanto, sob as palmeiras. Ela seguiu-me nos últimos dez passos, mas seus olhos per​maneceram frios e os lábios não me desejaram as boas-vindas. 
Inclinei-me para a mesa, afivelei meu sorriso infeliz e inquiri: 
- Lembra-se de mim?
- Sim.
A voz condizia com a atitude. Era parada, monótona, roufenha e desagradável.
- Importa-se que me sente?
- Não.
- Obrigado.
Sentei-me. Acabou de beber e empurrou o copo para junto de mim. Era um insulto evidente.- Pode mandar vir outra, se quiser.
- Se a puder pagar, quer você dizer!
- Oh! Eu sei que pode. Manny disse-me que você tinha di​nheiro.
	De novo senti na garganta os dedos gelados. No entanto, con​segui sorrir e dar à voz um tom indiferente.
	- Fie-se em Manny! É muito esperto.
- Não gosta muito de você, Comandante.
- O sentimento é mútuo.
Soprou uma baforada de fumaça na minha cara e queixou-se laconicamente:
- Nesse caso somos três, Comandante.
- O que quer dizer?
- Que também não gosto de Manny.
- Julguei que ele a tivesse acompanhado.
- Não. Manny agora tem outros interesses. Arranjou uma morena.
Disse-lhe que lamentava e ia acrescentar que os homens que tratam as mulheres à maneira de Manny não são homens, mas ela in​terrompeu minha pequena filípica com um gesto.
- Não diga mais nada, Comandante. Não gosta de mim nem eu gosto de você. Deixemo-nos de frases bonitas. Sabe que Manny me ofereceu sua moeda?
	Estendeu o pulso, de modo que a velha moeda ficou balançando provocadoramente diante de meu nariz.
	- Já sabia. Ele me disse que era para você. 
Vi-a sorrir pela primeira vez. Umedeceu os lábios com a pequena língua ágil e os olhos brilhavam-lhe de malícia.
- Você a quer de volta?
- Quero.
- Quanto dá?
- Trinta libras. Foi quanto Manny me pagou por ela.
- Cinqüenta, Comandante. E pode levar o resto também.
Tirei a carteira e contei dez notas de cinco libras que coloquei na mesa, sem dizer palavra. Ela desapertou a pulseira e chegou-a para mim, ao mesmo tempo que guardava as notas na bolsa.
- Obrigada - disse em sua voz insípida. - Estava sem tostão.	Agora, pode pagar-me uma bebida.
	Meti uma nota de dez xelins debaixo da bandeja e levantei-me.
	- Desculpe, mas tenho de ir. É melhor caçar turistas que an​dem passeando. Eu tenho de trabalhar.
A frase soou-me como uma grosseria que era. Nem Manny Man​nix conseguiria ser tão baixo. Tentei gracejar e descobrir palavras que me desculpassem.
- Perdoe... Não devia ter dito o que disse.
Encolheu os ombros e pegou na caixa de pó-de-arroz.
- Já estou habituada. Uma coisa apenas, Comandante...
- Diga.
- Pagou-me generosamente a pulseira e, para o compensar, vou-lhe dar uma informação.
- Qual?
- Manny disse-me que você tem qualquer coisa que ele preten​de.
- É disso que ele vive, pretendendo o que os outros têm.
- Mas jurou que, desta vez, havia de o conseguir.
- Em primeiro lugar, terá de me descobrir, o que lhe levará muito tempo. E quando me encontrar...
	Começava a afastar-me quando ela me obrigou a parar.
- Quando ele o encontrar, Comandante... quando o encontrar, mata-o!
 
CAPÍTULO V
O avião subiu a 2.600 metros e, pela portinhola de estibordo, vi sua sombra, semelhante à de um pássaro, correr pelo tapete verde de terra que ia ficando para trás.
A leste, estava o mar, o recife e as ilhas de jade. A oeste, até per​der de vista, as planícies retalhadas por pastagens castanhas. Por baixo de nós, o fresco cinto da costa, onde as monções regam as pequenas colinas e inundam os pântanos, onde os bandos de íbis executam no lodo seus misteriosos bailados.
Ora se descobriam canaviais e plantações de abacaxis, bosques de papaias e frondosas mangueiras, ora, verdejantes pastagens com rebanhos de ovídeos. De um lado, os homens magros e de poucas falas, do norte; os cortadores de cana, os operários, os criadores de gado que passeavam com os inúmeros e ociosos tratadores. Do outro, pessoas tristes e desorientadas, uma mistura da velha e da nova raça, de sangue chinês e nipônico, das Ilhas Gilbert e de Spice.
Ora se viam casas construídas sobre estacas para que o vento as areje, soprando-lhes em volta, depois dos entorpecedores dias de canícula, ora as pujantes bungavílias que se enroscam nas colunas e nos telhados galvanizados. Aqui, os homens são ricos porque têm muito tempo a sua disposição. Seriam pobres de verdade se não tives​sem amigos entre a generosa gente de Queen. Não faltava trabalho para quem quisesse realizá-lo. E se não quisesse fazer mais nada a não ser morder hastes de erva nos degraus da varanda, pois bem, também o poderia e mandar para o inferno o resto.
A mim, Renn Lundigan, que voava bem alto entre o céu azul e a terra verde, aquilo encheu-me de uma paz estranha, uma sensação de alivio, como se me cortassem o cordão umbilical e eu nascesse para um mundo novo e livre, longe do perigo, sem recordações, para lá da angústia do desejo e do sofrimento da perda.
Meu destino era Bowen, um pequeno porto onde a vegetação luxuriante disfarça as cicatrizes dos ciclones e das súbitas tempes​tades. De Bowen teria de seguir para o sul, retrocedendo oitenta quilômetros. Talvez, à primeira vista, pareça uma loucura, visto que o avião me podia deixar em meu destino, sem o incômodo de três horas num trem velho. Mas isso de modo algum me convinha.
A cidade para onde me dirigia era ainda menor do que Bowen. Um estranho que lá chegue de avião ou é turista ou caixeiro-viajante. Como tal, é objeto de interesse cortês, mas excessivo. Todos os seus passos são comentados na fraternidade da taberna ou das calçadas por baixo das varandas.
Se, porém, chega de trem, coberto de pó, amarrotado e colérico, aceitam-no por aquilo que lhe convier: inspetor, vendedor, armador ou operário das usinas de açúcar. Se paga a conta, não fala muito, gasta pouco e mostra que sabe alguma coisa da terra, deixam-no em paz e esquecem as perguntas que tencionavam fazer, porque está demasiado calor para se lembrarem.
Meus conhecimentos da terra eram reduzidos, mas contava com Johnny para me acudir nas falhas.
Seu nome completo era Johnny Akimoto. Descendia de um mer​gulhador japonês e de uma mulher das Ilhas Gilbert. O sangue materno prevalecia e, se não fora a curiosa tez acinzentada e a fir​meza oriental dos olhos e dos ossos faciais, Johnny poderia passar por um ilhéu genuíno. Desde os tempos da escravatura, quando os ilhéus eram seqüestrados para trabalhar nos canaviais, que se encontram estes curiosos cruzamentos de raças ao longo de toda a costa de Queensland.
Johnny chegara a trabalhar nos lugres. Navegara com os mer​gulhadores de pérolas e descera às grandes profundidades. Mas quando rebentou a guerra e os mergulhadores ficaram desocupados, Johnny fez de tudo um pouco. Foi criado de americanos, maquinista num pesqueiro, motorista de caminhão e de um empreiteiro local. Todos conheciam Johnny. Todos o estimavam e, quando Jeannette e eu encalhamos durante um ciclone, foi Johnny quem remendou as velas, reparou e pintou o casco; era ele também que nos lia belos ser​mões quando estávamos em terra, durante a época fraca.
Foi ainda Johnny quem me ajudou a traçar a rota dos galeões de Acapulco. Quando lhe falei de nossas primeiras e incertas esperanças acerca do Dona Lucia, aprovou com a cabeça e prometeu que um dia mergulharia comigo no recife da Ilha Bicorne. Era um homem prudente e calmo, este Johnny Akimoto. Um homem delicado e leal, solitário e perdido no meio da simpática gente da costa.
À medida que o avião avançava para norte, ia pensando em Johnny. Depois adormeci, sonhei com Manny Mannix e a moça que me voltara a vender a moeda por cinqüenta libras. Acordei com a aeromoça inclinada sobre mim, pedindo-me que apertasse o cinto. O avião picou para a imensidade azul das águas. Fechei os olhos e, quando os reabri, notei um cata-vento de tela enfunada e uma série de barracões com telhados de zinco. Chegávamos a terra.
Sufocava-me na sala de espera, enquanto descarrregavam as bagagens. Era a meio da tarde e a brisa marítima só começaria a soprar daí a uma hora. Achei-me a conversar com um indivíduo gor​ducho, de terno de alpaca. Disse-me que era banqueiro aposentado e que ia ter com a mulher e a filha que veraneavam numa ilha de luxo, ao largo de Bowen. Também me disse quanto lhe custariam aquelas férias, mas que esperava divertir-se um pouco. Confessou-me que o calor lhe provocava irritação na pele e o frio, bronquite. Falou-mede golfe e de seu desejo de cultivar dálias para concurso. Contou-me...
- Sr. Renn Lundigan?
O empregado do aeroporto estava junto de mim.
- Eu mesmo.
- Um telegrama para o senhor. Chegou antes de o avião ater​rar.
Entregou-me um envelope amarelo-claro debruado a vermelho, com a indicação de urgente. Rasguei o envelope e desdobrei o con​teúdo. Provinha de Brisbane e fora enviado havia meia hora. A men​sagem era breve e calorosa como um aperto de mão:
BOA PESCARIA COMANDANTE STOP ATÉ BREVE STOP. 
Assinado MANNY MANNIX.
Amarrotei o papel e meti-o no bolso. O banqueiro gorducho olhava-me com curiosidade. Queria continuar a conversa. Voltei-lhe as costas, deixando-o aparvalhado. De repente, senti-me doente e mais só do que nunca, exceto quando Jeannette se fora. Precisava muito falar com Johnny Akimoto.
A viagem de trem foi um tormento de lentidão. Sentia calor e es​tava coberto de pó, atacado de moscas e farto quase até à loucura por causa de dois meninos que não paravam de choramingar, enquanto a mãe os repreendia em vão, ansiosa por descansar.
Paramos em todas as estações onde o maquinista trocava impres​sões com o pessoal da estrada de ferro. Levaram-nos para um desvio e aí ficamos 45 minutos, até que passasse o trem do norte. A região ver​dejante, que me havia parecido tão rica e desejável, era afinal melan​colicamente pobre, condizendo com minha depressão. A gente sim​pática do norte era de tez escura e demasiado faladora. Os filhos, uns monstros. O serviço de transportes revelava um primitivismo incrível. Passei a considerar os cumprimentos como uma intrusão em minha intimidade; as ofertas de jornais, fruta ou limonada, como uma presunção insuportável. Quando a viagem chegou ao fim, deviam ter​-me classificado como um rústico rabugento. Tenho de concordar com eles.
O telegrama de Manny chocara-me profundamente. Depois do primeiro ímpeto de raiva, apoderou-se de mim o medo. Não acre​ditava que a ameaça de Manny de me matar fosse além de uma fan​farronice para impressionar uma mulher e, no entanto, o medo per​manecia - medo de perder uma coisa que ainda não possuía, mas pela qual havia lutado, feito projetos e corrido riscos.
Além disso, eu não desconhecia o poder de Manny, a possibi​lidade que tinha de comprar um homem aqui e uma informação ali, de planejar as jogadas como no xadrez, de me pôr em xeque, de me ludibriar, de me vencer no jogo em sagacidade, rapidez e eficiência. Pensei nos três caixotes que estavam nos escritórios aéreos de Bris​bane e perguntei a mim próprio se ele não seria capaz de provocar seu extravio.
Lembrei-me de que Manny podia fretar um avião e estar no hotel à minha espera, para me dar as boas-vindas. Não sei o que faria se lá o encontrasse.
Mas não encontrei. Era eu o único hóspede. Isso permitiu-me ocupar o melhor quarto, com cama de rede, um vasto mosquiteiro, um jarro e um lavatório rachados. Podia servir-me à vontade do único banheiro e percorrer os cinqüenta metros até ao lavabo do pátio. Podia beber sozinho na sala, levantar-me às sete e meia e tomar o pequeno almoço às oito. Podia aceitar o asmático convite de meu hos​pedeiro para me juntar aos pescadores e operários no bar, ouvindo suas obscenas histórias. Eram boa gente e receberam-me com sim​patia. Mas nada daquilo me interessava. O que eu queria era um banho de chuveiro, uma bebida e uma refeição, antes de ir ter com Johnny Akimoto.
Encontrei-o no mesmo lugar que da primeira vez: numa pequena cabana de madeira, com a mata por trás e as dunas de areia pela frente. As veredas de coral eram raspadas todos os dias com o an​cinho. Havia uma buganvília rasteira, um malvaísco, um canteiro de belas gardênias e um enorme jasmim vermelho com os ramos des​pidos levantados, como símbolos de um culto fálico.
Um candeeiro a querosene pendia de um prego, do umbral da porta, e Johnny estava sentado num caixote, ajustando anzóis e uma linha de pesca. Tinha uma flor de malvaísco no cabelo encarapinhado e apenas um calção de sarja em cima da pele.
Ergueu os olhos rapidamente, ao ouvir meus passos, e seu rosto logo se abriu num sorriso de surpresa e boas-vindas. Correu para mim de mão estendida.
- Renboss!
- É verdade, Johnnyo, Renboss!
Era o nome dos antigos e felizes tempos. Quase me fez chorar. Johnny sacudia-me a mão e dava-me pancadinhas nas costas. Fez-me sentar em outro caixote, que arrastou para o círculo de luz, rouban​do-o às sombras.
- O que o traz por aqui, Renboss? Vem por muito tempo? Como lhe corre a vida? Está bom? Parece cansado, mas deve ter sido da viagem, hem?
As perguntas sucediam-se no inglês didático da missão e não parava de me observar, procurando descobrir a verdade como uma mãe ansiosa.
Falei-lhe com franqueza.
- Vim para o ver, Johnny.
- A mim? É muito amável, Renboss. Tenho pensado muito em você e... na senhora.
- A senhora morreu, Johnny.
- Oh, não! Quando? - O desgosto lia-se em seus olhos ternos. 
- Há muito tempo, Johnny. Há muito tempo que estou só.
- Não voltou a casar-se?
- Não.
- E veio aqui para ver Johnny Akimoto? É de amigo, Renboss. Agora tenho um barco, um lindo barco. Vamos para o recife, não é? Vai pescar comigo, hem? Faremos uma viagem à Ilha de Thursday... ou talvez a Moresby.
- Claro que faremos uma viagem, Johnny, mas não a Thurs​day... a minha ilha.
- A sua ilha?
Olhou-me com pasmo, mas logo sorriu contente.
- Ah, já me lembro! A ilha do tesouro, não é? Agora é sua?
- Aluguei-a, Johnny. É minha. Vamos mergulhar à procura do Dona Lucia e quero que me acompanhe.
Johnny ficou calado. Voltou para cima as palmas das mãos e dir​-se-ia que lhes estudava as linhas e as pregas. Depois, tirou os cigarros do bolso e ofereceu-me um. Nós os acendemos e ficamos fumando, es​cutando o marulho das águas e o sibilo penetrante do vento.
Quando Johnny falou, fê-lo lentamente, como um profissional:
- Para isso, Renboss, precisa de um barco.
- Tenho dinheiro para um, Johnny.
- Precisa de equipamento e de um mergulhador.
- Mergulharemos nós.
- Já alguma vez mergulhou, Renboss?
- Um pouco... Um ou dois mergulhos para treinar; nada mais.
- Então terá muito de aprender.
- Quero que me ensine, Johnny. Além disso, tenho uma série de exercícios que o fabricante do equipamento me recomendou. Disse que posso preparar-me para mergulhar a 45 metros.
- Quarenta e cinco metros! - exclamou Johnny, chocado. - É muito fundo, Renboss; demasiado fundo para mergulhar sem aparelhos.. .
- Talvez não, Johnny. Não se trata de um simples mergulho. Temos o oxigênio para respirar lá embaixo.
Johnny meneou a cabeça.
- É novidade para mim. Não me cheira nada bem.
- Acompanha-me, Johnny? Ajuda-me a comprar o barco, a arranjar provisões e...
- Não precisa de barco - interrompeu Johnny, calmamente.​ Temos o meu. É como um lugre. Estava velho quando o comprei, mas consertei-o e navegará para onde quisermos. Tem motor novo e desenvolve oito ou dez nós, se for preciso.
	- Neste caso, está bem. Alugo-lhe o barco e receberá um or​denado. Vai trabalhar comigo na ilha. Está de acordo?
	Johnny acenou afirmativamente.
	- Estou, Renboss. Fácil, rápido e sem complicações. Se tentas​se comprar um barco aqui, vender-lhe-iam um mau por um bom preço. Estamos em Reef, Renboss! Ao menor descuido, o teredo car​come-nos os barcos. É então preciso vendê-los a alguém que não saiba da existência do teredo, não lhe parece?
Assim era, com efeito. Eu conhecia o teredo, esse pequeno molus​co que corrói as madeiras nos climas quentes, devorando um barco como as formigas-brancas devoram uma casa. Só há uma defesa: forrar o barco de cobre até à linha-d'água ou pintá-lo freqüentemente com tinta de bronze até ficar impermeabilizado ao verme marinho. Os barqueiros de Queensland são como os negociantes de cavalos de Kerry... Alguns são descendentes diretos desses conhecidos biltres.
Lembrei-me ainda de outra coisa: O barco de Johnny era um lugre, uma embarcação que balouçaria rudemente quando

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