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Esttudos sobre desapareciimenttos,, morte,, morrer e lutto

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RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 11, n. 33, dez. 2012 - Resenha 
 
 
 
ARAÚJO LIMA, Anna Georgea Feitosa Mayer de. “Estudos sobre desapare-
cimentos, morte, morrer e luto”. RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emo-
ção, v. 11, n. 33, pp. 986-989, Dezembro de 2012. ISSN 1676-8965 
RESENHA 
http://www.cchla.ufpb.br/rbse/Index.html 
 
EEssttuuddooss ssoobbrree ddeessaappaarreecciimmeennttooss,, mmoorrttee,, mmoorrrreerr ee lluuttoo 
HIDALGO, Cecília. Etnografias de la muerte: rituales, desapariciones, VIH-SIDA y resignificación 
de la vida. Buenos Aires: Fundación Centro de Integración, Comunicación, Cultura y Socie-
dad – CICCUS, 2010, 224 p. 
 
A morte, como evento, fenômeno, 
permite que se construa sobre ela um discur-
so. Ela é permeável e enseja representações. 
Pode ser apropriada, simbolicamente, pela 
coletividade. O morrer não. Esta é uma ex-
periência individual e, até o momento, in-
comunicável. Não se sabe como é morrer 
até que isso venha a acontecer. Todavia, as 
sociedades têm, em certo sentido, a sua or-
ganização pautada pela morte e pelo morrer. 
Cecília Hidalgo compilou seis textos 
sobre a morte e os editou sob o título de 
Etnografias de La Muerte. Os trabalhos foram 
organizados em três partes subordinadas a 
três temáticas muito precisas: a) desaparição 
e morte; b) rituais da morte e mudança so-
cial; e c) ressignificação da vida. Trata-se de 
estudos elaborados por quatro licenciadas 
em antropologia sociocultural, uma profes-
sora de antropologia e um sociólogo. Os 
artigos são antecedidos por rápidos comen-
tários críticos. 
A primeira parte, que trata da desa-
parição de opositores da ditadura que se 
instalou na Argentina no período de 1976 a 
1983 e seus efeitos sobre as famílias, tem 
início com um artigo de Laura Panizo sobre 
a situação ritual da morte não assistida: Cu-
erpos desaparecidos. la ubicación ritual de la muerte 
desatendida. A autora chama a atenção para a 
forma singular que as sociedades ocidentais 
têm de encarar a morte. Nesse sentido, dife-
renciam-se das sociedades africanas, por 
exemplo, que não só aceitam o evento mor-
te como o integram às suas respectivas cul-
turas. O objeto de reflexão consiste em 
buscar entender de que forma um grupo 
particular de indivíduos, no caso os familia-
res dos desaparecidos, reage à morte em um 
contexto social e histórico particular. 
O estudo parte da constatação e-
nunciada por Robert Hertz de que a morte 
constitui um objeto privilegiado das repre-
sentações coletivas. Assim, o ritual fúnebre 
organizaria, segundo esse autor, as emoções 
individuais em dois momentos: a desagregação 
e a reinstalação. No primeiro momento, a 
presença do corpo é essencial. No segundo, 
a coletividade, pelo sepultamento, emerge 
vencedora. A vida segue seu curso. A autora 
agrega, ainda, a contribuição de Arnold Van 
Gennep, que vislumbra no ritual mortuário 
três fases, a saber: rituais de separação (ritos 
pré-liminares), rituais de transição (ritos limi-
nares) e rituais de agregação (ritos pós-
liminares). Agregando a esses conceitos a 
noção de liminaridade elaborada por Victor 
Turner. 
Os ritos fúnebres na sociedade oci-
dental, máxime na sociedade argentina, con-
templam o luto socialmente estabelecido, o 
velório e o enterro. No caso dos desapare-
cidos, a inexistência do corpo impede que 
se realizem o velório e o enterro. Ademais, 
sequer se tem a certeza da morte. Apenas, a 
suposição. A presença do corpo, pois, é 
essencial para a realização dos rituais fúne-
bres. Sua ausência implica uma situação a 
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que a autora denominou de morte desassis-
tida, que impede a realização desses rituais. 
Não havendo o reconhecimento real da 
morte não se torna possível sequer o luto. A 
noção de desaparecido implica a de suspen-
são. O desaparecido é aquele que está para 
ser, porém não é. É algo irresoluto. Está 
suspenso. Está fixado no tempo sem poder 
resolver-se. É a situação dos desaparecidos. 
Não estando vivos nem mortos, estão, na 
realidade, vivos e mortos. Sua situação ca-
racteriza-se pelo que Victor Turner deno-
minou de liminaridade. Somente seu aparecer 
na forma de cadáver é capaz de por fim a 
essa indefinição. 
Além do que significa o corpo para 
o reconhecimento público da morte pela 
possibilidade de que se realizem os rituais 
prescritos, o desaparecimento implica ou-
tras consequências. Agora, no que tange às 
famílias. De que forma repercutiu, simboli-
camente, o desaparecimento no âmbito 
familiar e que consequências teve na vida 
das famílias. É do que trata o segundo arti-
go de Sabina Regueiro sobre o efeito simbóli-
co que a desaparição exerce sobre a família: 
Familia y desaparición. Implicancias simbólicas de 
la desaparición en la família. O cerne da desa-
parição é eminentemente político e repousa 
sobre a noção de militância, entendida co-
mo a capacidade de ação política e de resis-
tência ao sistema estabelecido. 
O problema é complexo. Em pri-
meiro lugar, por implicar a tomada de co-
nhecimento do fato. Como se deu? Onde? 
Quando? Como? Por quem? São muitas as 
indagações. De resto, fica somente a lem-
brança da última vez em que foi visto. O desa-
parecimento tem outra implicação. Esta 
mais perversa. Transforma os familiares do 
militante sequestrado em “familiares do 
desaparecido”, o que, nas condições políti-
cas da Argentina de então levava à discrimi-
nação. 
É certo que a militância e a clandes-
tinidade de muitos dos opositores da dita-
dura argentina implicou transformações no 
seio familiar. No caso do desaparecimento, 
essas transformações são mais profundas. 
Em muitos casos, as famílias tiveram que 
“desaparecer” para não desaparecer. Isto é, 
tiveram que buscar a invisibilidade social, 
mudando de residência, até de cidade, a fim 
de que o aparato repressivo do Estado não 
as alcançasse. Nesse movimento, o segredo 
e a mentira tornam-se medidas imperiosas. 
O primeiro, para que não estivessem expos-
tos à curiosidade pública e, a segunda, para 
preservar o primeiro. Nesse sentido, as fa-
mílias vivem uma situação trágica: sofrem, 
mas não podem exteriorizar a sua dor. Um 
manto de silêncio é construído em torno do 
desaparecido. Já não se pode falar sobre ele. 
É como se tivesse deixado de existir. Ele 
desaparece duplamente: física e simbolica-
mente. 
Por outro lado, no caso de desapa-
recidos que tinham filhos, as famílias so-
frem um rearranjo. Os filhos ficam em 
companhia dos avós. Todavia, não podem 
assumir essa condição para preservar o se-
gredo da família. Eles passam a ser filhos 
dos avós. Seus tios e tias tornam-se irmãos 
e irmãs. Essa situação perdura quase que 
permanentemente. Essas famílias, por força 
do exílio interno a que são forçadas para 
fugir à delação, à perseguição e à discrimi-
nação passam a ter uma nova estrutura. 
Assim, a desaparição implica uma liminari-
dade, uma situação em que a realidade fica 
suspensa à espera de um desenlace que po-
de, ou não ocorrer. 
A segunda parte trata de rituais fú-
nebres em situação de mudança social. O 
primeiro artigo da segunda parte, de Nárba-
ra Martinez, busca estudar os Rituales de muer-
te em El sector sur de los Valles Calchaquíes. O 
texto fundamenta-se na noção maussiana de 
dom e, por via de consequência, das formas 
de intercâmbio e reciprocidade. 
O estudo parte da constatação de 
que os habitantes dos Valles de Calchaquíes 
creem na possibilidade de intercâmbio com 
os mortos. Nesse sentido, o contato com os 
mortos obedece a dois momentos cruciais: 
a morte do indivíduo e os dias de Todos os 
Santos e de Finados. A região em estudo, 
San Antonio, organiza seu ciclo ritual em 
torno de momentos fortesque se que se 
iniciam no começo do ano com rituais pro-
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piciatórios e termina nos dias 1o e 2 de no-
vembro, Todos os Santos e Finados, res-
pectivamente. 
Os laços sociais se organizam em 
torno do dar-receber-voltar a dar. Por outro 
lado, os mortos estão comprometidos com 
o processo produtivo e, segundo a crença 
geral, têm o poder de interferir nas condi-
ções que propiciam a produção. Os mortos 
são classificados em três categorias: os anti-
gos, os consagrados e os condenados. As 
cerimônias fúnebres e as celebradas nos 
dias de Todos os Santos e de Finados têm o 
fito de reafirmar os vínculos dos moradores 
entre si e destes com seus mortos. Nesses 
momentos, os vínculos de reciprocidade 
entre eles se intensificam. Os mortos rece-
bem os dons e orações que lhes são dedica-
das pelos humanos e partem levando consi-
go os pedidos que lhes foram feitos. 
O segundo artigo dessa parte, é da 
lavra da compiladora da coletânea Cecília 
Hidalgo e busca determinar as consequências 
teóricas da abordagem que Clifford Geertz 
faz de dois funerais: Ritual y cambio social: dos 
funerales estudiados por Clifford Geertz. O estu-
do busca sublinhar as restrições que Geertz 
faz ao funcionalismo, que deixa de levar em 
conta criticamente os aspectos culturais e 
sociais da vida humana. 
A terceira parte inicia-se com um ar-
tigo de Pablo Stropparo sobre a ressiginifica-
ção da vida de intelectuais mortos à luz de 
problemas que afligem as sociedades atuais: 
Grandes Intelectuales muertos. La figura y la obra 
de Raúl Prebisch como arena de discusión del pre-
sente. Trata-se de reavaliar a contribuição do 
criador do estruturalismo econômico lati-
noamericano para o conhecimento da reali-
dade da América Latina. Em suma, o autor 
postula que a ressignificação da vida e da 
contribuição desses intelectuais subsume-se 
no presente e que as orientações teórico-
políticas dos intérpretes é que assumem o 
protagonismo. Dos seis artigos da coletâ-
nea, esse é o único escrito sem o selo da 
antropologia. Entretanto, não destoa muito 
dos demais. 
O último artigo, de autoria de Nata-
lia Rodriguez problematiza a ressiginificação 
da vida a partir do diagnóstico de AIDS: 
Procesos de resignificación a partir del diagnóstico de 
VIH/SIDA. O texto chama a atenção para 
as implicações sociais e econômicas da pan-
demia. 
Em primeiro lugar, o artigo sublinha 
o fato de que o surgimento da AIDS, que 
está ligado, inicialmente aos estratos mais 
altos e instruídos da sociedade ocidental, 
traz em si o estigma de sua vinculação às 
minorias. No caso, especificamente, os ho-
mens que praticam sexo com homens. Por 
outro lado, demonstra que o discurso médi-
co ao individualizar o corpo, tornando-o a-
histórico e desentranhado da sociedade, 
implica a construção de um conceito de 
doença que não leva em consideração as 
condições em que surge e prolifera. 
Ao longo das últimas décadas, per-
cebe-se um avanço na forma pela qual a 
epidemia é enfrentada. O que a expansão da 
doença tem demonstrado é que ela está 
vinculada a condições sociais e econômicas 
desiguais, que submete as populações dos 
países e regiões mais pobres aos riscos de 
contaminação. Isto leva à necessidade, hoje 
já contemplada pelos ativistas, de vincular a 
discussão da AIDS aos Direitos Humanos. 
Como a AIDS atinge sobremaneira 
os estratos mais pobres da população e a 
infecção tem como primeira consequência, 
em muitos casos, a deterioração das condi-
ções de vida das famílias, o problema torna-
se um círculo vicioso: a AIDS atinge, prin-
cipalmente, aos mais pobres e estes, em 
função da doença, tornam-se mais pobres. 
Por outro lado, os dados epidemio-
lógicos demonstram que a doença atinge, 
principalmente, os estratos mais vulneráveis 
da sociedade: as mulheres, os negros, os 
pobres. Ademais, o fato de que, no discurso 
médico, desde o início, a transmissão da 
doença foi vinculada às práticas sexuais, 
implica o agravamento do estigma a ela 
vinculado. 
O avanço dos conhecimentos médi-
cos e das pesquisas de medicamentos que 
controlam a infecção tem, por um lado, 
contribuído para aumentar a perspectiva de 
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vida dos infectados e, por outro, tornado 
mais difícil o acesso das populações pobres 
ao tratamento. É que os grandes laborató-
rios detentores das patentes recusam-se e 
baratear os custos do tratamento. 
O avanço da pesquisa permite, hoje, 
tratar a AIDS como uma doença crônica. 
Seu diagnóstico já não representa uma sen-
tença de morte. Entretanto, os soropositi-
vos estão expostos à discriminação e ao 
preconceito. Sobretudo, em virtude do dis-
curso moralista dos fundamentalistas religi-
osos, que vinculam a AIDS a práticas mo-
ralmente reprováveis. 
A casuística abordada pela autora 
contempla um homem (Martin) e uma mu-
lher (Marta). O primeiro, um dos primeiros 
infectados na Argentina, fundou uma ONG 
dedicada à luta pela cidadania dos infecta-
dos. Ele faleceu após 10 anos do diagnósti-
co. Contava então com pouco mais de trin-
ta anos. A segunda é uma jornalista que 
ainda está viva. A descoberta de novos tra-
tamentos permitiu que sua expectativa de 
vida fosse aumentada. Sua militância é exer-
cida pela manutenção de uma coluna perió-
dica em um jornal de Buenos Aires, onde 
ela expõe as vicissitudes de viver com o 
vírus. Em ambos os casos, a exposição en-
sejou uma inserção social que permitiu um 
plus, que não é conseguido pela maioria das 
pessoas. 
Viver com o HIV implica um re-
pensar e redimensionar a vida e, last but not 
last, a morte. Afinal, pensar a vida, portanto 
o futuro, quando se é portador de uma do-
ença incurável e fatal é tornar presente o 
pensar a morte. A sociedade ocidental, sob 
o pálio do capitalismo, que transforma o 
mercado na categoria fundamental para o 
planejamento da vida, torna a morte uma 
hipótese, permanentemente, distante. O 
HIV torna a morte presente, o que implica 
uma contradição. De resto, como ganhar a 
vida se se está condenado à morte. 
O fato de que no corpo está a sede 
da doença torna mais doloroso o ser porta-
dor do vírus. O corpo é o signo da indivi-
dualidade. Para o corpo e pelo corpo somos 
chamados ao consumo. Mas, se o corpo 
está deteriorado e não se pode contar com 
ele vive-se, ou morre-se, a cada dia. Anote-
se ainda a precariedade com que se enfrenta 
o tempo: já não se pode planejar a longo 
prazo. A doença é imprevisível. A qualquer 
momento pode evoluir para formas mais 
graves. Tem-se que viver o momento, o 
presente, o hoje. Afinal, viver com AIDS 
não é a mesma coisa de morrer de AIDS. A 
vida há que ser ressignificada. 
A coletânea reveste-se de grande 
importância como norte para os pesquisa-
dores que se iniciam nas práticas antropoló-
gicas. Os dois primeiros artigos, sobretudo, 
trazem uma contribuição relevante como 
guias metodológicos para a realização de 
etnografias sobre um tema particularmente 
delicado: a morte. Por outro lado, convém 
assinalar a forma precisa com que conceitos 
elaborados por autores clássicos, como 
Turner, Hertz e van Gennep, são utilizados. 
Para finalizar, gostaria de ressaltar a 
importância desta coletânea para os estudos 
e pesquisas sobre a morte e o morrer no 
ocidente e, especificamente, para o caso 
argentino, principalmente na relação morte, 
morrer, e formas públicas do luto, nunca 
completamente realizados, dos corpos de-
saparecidos. 
Anna Georgea Franco Feitosa Mayer de Araújo Lima 
 
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