Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
1 2 IVANI TEIXEIRA MENDES O APARELHO PSÍQUICO Capa por Rodrigo Rivera. Apostila elaborada com o objetivo de apresentar informações sobre o aparelho psíquico com fins de organizar o material discutido durante grupo de estudo. 3 SUMÁRIO INTRODUÇÃO 04 OS IMPULSOS 06 O APARELHO PSÍQUICO 09 PSICOPATOLOGIA 17 PERVERSÃO 19 ESTUDO DE CASO 23 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 34 4 INTRODUÇÃO Este trabalho apresenta anotações discutidas em grupo de estudo sobre os princípios básicos da psicanálise. Enfatiza o funcionamento do aparelho psíquico proposto por Freud e apresenta no final um estudo de caso sobre perversão. A teoria psicanalítica é um corpo de hipóteses a respeito do funcionamento e do desenvolvimento da mente do homem, quer seja em seu funcionamento normal quer seja patológico. Duas hipóteses são fundamentais: o princípio do determinismo psíquico e a proposição de que a consciência é um atributo excepcional dos processos psíquicos. A primeira hipótese prevê que cada evento é determinado por aqueles que o precedem, isto é, não existe descontinuidade na vida mental. Assim as casualidades são provocadas por um desejo ou intenção da pessoa envolvida, em estrita conformidade com o princípio do funcionamento mental. Os sonhos, assim como os sintomas neuróticos seguem este mesmo princípio. Cada sonho e mesmo cada imagem em cada sonho, é a conseqüência de outros eventos psíquicos e mantém uma relação coerente e significativa com o restante da vida psíquica da pessoa que sonha. A relação entre as duas hipóteses fundamentais é tão íntima que dificilmente se pode examinar uma sem suscitar a outra. Quando um pensamento, um sentimento, um esquecimento acidental, um sonho ou sintoma parecem não se relacionar com algo que aconteceu antes na mente, isso significa que sua conexão causal se apresenta em algum processo mental inconsciente em vez de um processo consciente. Descobrindo a causa ou causas inconscientes, então todas as descontinuidades desaparecem e a seqüência torna-se clara. Os métodos para estudar tais fenômenos são indiretos. O mais eficiente e de maior confiança de que dispomos é a psicanálise. Freud citado por Brenner (1975) começou sua carreira médica como neuroanatomista. Teve que tratar pacientes que hoje chamamos de neuróticos ou psicóticos. No tempo em que começou a clinicar não havia uma forma de tratamento psiquiátrico. Em 1885 foi a Paris onde estudou na Clínica de Charcot. Familiarizou-se com a hipnose. Freud procurou banir os sintomas de seus pacientes pela sugestão hipnótica. Breuer apud Brenner (1975) comunicou a Freud que, vários anos antes, tratara de uma mulher histérica por hipnose e verificara que seus sintomas desapareceram quando ela foi capaz, em estado hipnótico, de recordar a experiência e a emoção associada que conduzira ao sintoma em questão. 5 Cada vez mais Freud prosseguia na experiência hipnótica e verificou que ela não era uniformemente fácil de induzir, que os bons resultados tendiam a ser transitórios e que pelo menos algumas de suas pacientes tornaram-se sexualmente apegadas a ele durante o tratamento hipnótico. Bernheim apud Brenner (1975) demonstrara que a amnésia de um paciente, durante as experiências hipnóticas, podia ser removida sem voltar a hipnotizar o paciente. Freud deduziu que poderia ser capaz também de remover a amnésia histérica sem hipnose e começou a fazê-lo. A partir desse início, desenvolveu a técnica psicanalítica, cuja essência consiste em que o paciente empreende a comunicação ao psicanalista de quaisquer pensamentos, sem exceção, que lhe venham à mente abstendo-se de exercer sobre eles uma orientação consciente ou uma censura. (BRENNER 1975) Assim, Freud ouvindo as associações livres do paciente – que eram afinal livres apenas do controle consciente – era capaz de formar uma imagem, por inferência, do que conscientemente estava ocorrendo na mente do paciente. No estudo dos fenômenos mentais inconscientes, Freud descobriu que estes poderiam ser divididos em dois grupos: o primeiro grupo compreendia pensamentos, lembranças etc., que poderia facilmente se tornar conscientes por esforço da atenção. Freud os chamou de pré-conscientes. O grupo dos fenômenos inconscientes são aqueles que poderiam se tornar conscientes a custo de considerável esforço. É o que encontramos na amnésia histérica. Por meio da técnica psicanalítica, Freud apud Brenner (1975) pôde demonstrar que por trás de todo sonho existem pensamentos e desejos inconscientes ativos, e assim estabelecer, como regra geral, que, quando se produzem sonhos, estes são provocados por uma atividade mental que é inconsciente para a pessoa que sonha, e que assim permaneceria a menos que se empregue a técnica psicanalítica. Para Freud a maior parte do funcionamento mental se passa fora da consciência. A consciência e o funcionamento mental são sinônimos. Ela não precisa participar e freqüentemente não participa das atividades mentais, que são decisivas na determinação do comportamento do indivíduo. (BRENNER 1975) 6 OS IMPULSOS De acordo com Freud citado por Brenner (1975) sabe-se que o autor acreditou que algum dia os fenômenos mentais poderiam ser descritos em termos de funcionamento cerebral. Um impulso é um constituinte psíquico, geneticamente determinado, que, quando em ação, produz um estado de excitação psíquica ou, de tensão. Essa excitação ou tensão impele o indivíduo para a atividade, que é geneticamente determinada de um modo geral, mas que pode ser consideravelmente alterada pela experiência individual. Essa atividade deve levar a algo que podemos chamar ora de cessação da excitação ou tensão, ou de gratificação. Os impulsos impelem os indivíduos para a atividade, assim como a energia física produz a capacidade de produzir trabalho. Freud presumiu que há uma energia psíquica que constitui uma parte dos impulsos, ou que de certa forma deriva deles. A analogia entre energia psíquica com física tem por intenção servir ao propósito de simplificar e facilitar nossa compreensão dos fatos da vida mental. Freud utilizou esta analogia falar do quantum de energia psíquica com o qual um objeto ou determinada pessoa estão investidos. Para esse conceito, ele usou a palavra Catexia. A rigor catexia é a quantidade de energia psíquica que se dirige ou se liga à representação mental de uma pessoa ou uma coisa. (BRENNER 1975) O impulso e sua energia são fenômenos puramente intrapsíquicos. A energia não pode fluir através do espaço e catexizar ou se ligar a um objeto externo diretamente. Quanto maior a catexia, mais importante é o objeto psicologicamente falando e vice - versa. As hipóteses de Freudsobre a classificação dos impulsos se modificaram no transcurso de três décadas (1890 – 1920): 1- Freud dividiu os impulsos em sexual e de auto-conservação; 2 – considerou as manifestações instintivas como parte ou derivadas do impulso sexual; 3 – em 1920 ele formulou a teoria dos impulsos que de modo geral é aceita pelos analistas. (BRENNER 1975) Nessa última formulação ele propôs que, os aspectos instintivos de nossa vida mental, pressupõem a existência de dois impulsos: o sexual e o agressivo. O primeiro impulso dá origem ao componente erótico das atividades mentais, enquanto que o outro gera o componente puramente destrutivo. Assim, em todas as manifestações instintivas que podemos observar, sejam normais ou patológicas, participam ambos o impulso sexual e o agressivo. Para empregar a terminologia de Freud, os dois impulsos se encontram regularmente fundidos embora não necessariamente em quantidades iguais. O impulso agressivo é sinônimo daquilo que chamamos comumente de agressividade. O sexual é o desejo de uma relação sexual. A distinção refere-se à existência de duas espécies de energia psíquica: aquela que é associada ao impulso sexual e a que se associa ao impulso 7 agressivo. A primeira tem o nome específico de “libido”. A segunda não possui nome específico, embora em certa época tenha sugerido chamá-la “destrudo” por analogia a “destruir”. Em sua formulação original Freud apud Brenner (1975) procurou relacionar a teoria psicológica dos impulsos com conceitos biológicos mais fundamentais, e propôs que os impulsos se denominassem, respectivamente impulsos de vida e de morte. Estes impulsos corresponderiam aproximadamente aos processos do anabolismo e catabolismo, e teriam um significado mais que psicológico. Seriam características instintivas de toda a matéria viva. Há analistas que aceitam a existência de um impulso de morte e outros não. O impulso sexual ou erótico já está em atividade no bebê, influenciando o comportamento e clamando por gratificação, que mais tarde produz os desejos sexuais do adulto, com todo o seu sofrimento e êxtase. Existem evidências de desejos e comportamentos sexuais em crianças pequenas, que se tornam parte do comportamento sexual do adulto e que se subordina e contribui para a excitação e gratificação genitais. Em casos de desenvolvimento anormal um dos interesses ou ações torna-se a principal fonte de gratificação sexual adulta. Em seu trabalho intitulado “três ensaios sobre a teoria da sexualidade” publicado em 1905, Freud descreve os componentes da sexualidade, assim como suas fases. As fases não são tão distintas umas das outras. Na prática tendem a se confundir e se superpor. (BRENNER, 1975) No primeiro ano e meio de vida a boca, língua, lábio são os principais órgãos sexuais da criança. O que permite dizer que os desejos primeiramente são orais. No ano e meio seguintes o torna-se ânus o local mais importante. A criança apresenta interesse pela expulsão e retenção das fezes em si. Já no terceiro ano de vida os órgãos sexuais começam a assumir papel principal. Nesta fase denominada fálica o pênis é o principal objeto de interesse para criança de qualquer sexo. Na menina pequena o clitóris é o órgão de satisfação e excitação e corresponde embriologicamente ao feminino do pênis. Isso pode continuar embora a vagina em geral substitua o clitóris. As três fases citadas acima: oral, anal, fálica penetra na organização sexual adulta na puberdade. A fase adulta é conhecida como genital. Existe uma distinção substancial entre a fase Fálica e Genital instituída pela capacidade de se chegar ao orgasmo na puberdade. Freud apresenta nesse trabalho outras manifestações do impulso sexual como: desejo de olhar; desejo de se exibir; erotismo uretral; sensações cutâneas, audição e olfato. Para ele as variações sexuais dentre os indivíduos ocorrem em função das diferenças constitucionais e da influência do ambiente. (BRENNER, 1975) 8 A catexia libidinal de um objeto de uma fase anterior diminui à medida que se alcança a fase seguinte. Porém, mesmo diminuída ela persiste depois de se tornar estabelecida. Existe um percurso, ou uma versão para a libido, perante um objeto ou para uma modalidade de gratificação, ou seja a energia que se desprende de um objeto gradualmente e catexiza-se no objeto de gratificação ou modalidade da fase seguinte. Nenhuma catexia libidinal é completamente abandonada. Certa quantia permanece ligada ao objeto original. A persistência da catexia libidinal da infância na vida posterior chama-se “fixação da libido”. O termo “fixação” indica comumente uma psicopatologia. A fixação tanto quanto a um objeto quanto a uma modalidade é em geral inconsciente. É exato dizer que as lembranças dos interesses libidinais infantis são energeticamente barrados de se tornarem conscientes, logo, existe um fluxo progressivo da libido. Deve-se pontuar que pode haver também uma “regressão”. No inicio do desenvolvimento a criança é extremamente depende o auto-erotismo, definido como a capacidade de gratificar suas próprias necessidades sexuais, dá a criança, uma “certa”, independência em relação ao ambiente. O impulso agressivo foi menos estudado e apenas em 1920, Freud considerou esse impulso um componente instintivo independente na vida mental. Suas manifestações mostram a mesma capacidade de fixação e regressão e a mesma transição: oral, anal e fálica. No bebê são passíveis de serem descarregados por um tipo de atividade oral como morder. Mais tarde esse impulso se encontra no ato de evacuar ou reter as fezes. Na criança maior o pênis e sua atividade são empregados ou concebidos como uma arma ou meio de destruição. O relacionamento entre o impulso agressivo e as diversas partes do corpo que acabamos de mencionar não se encontra tão próximos como no impulso sexual. A relação do impulso agressivo com prazer é ainda duvidosa. Fato é que os dois estão conectados: A satisfação do impulso agressivo traria em si prazer? Em 1920 Freud pensava que não, porém autores mais recentes como Hartmann, Kris ou Loewenstein apud Brenner (1975) todos de 1949 pensam que sim. O termo libido é usado freqüentemente para incluir a energia sexual e agressiva. 9 O APARELHO PSÍQUICO Conforme o que foi descrito anteriormente é possível perceber que as hipóteses fundamentais da psicanálise são descritivas, porém a teoria sobre os impulsos é dinâmica. É característica da teoria psicanalítica uma abordagem da mente em movimento, dinâmica. Assim, mesmo a divisão da mente em várias partes, estabelecida pela psicanálise, assenta-se em uma base dinâmica. O primeiro modelo do aparelho psíquico, no qual há uma hipótese telescópica, ou seja, Freud (1900) descreveu-o como semelhante a um instrumento constituído de muitos elementos óticos dispostos de maneira consecutiva. Mesmo neste esquema primitivo da mente, vemos que as divisões já eram funcionais. Parte do aparelho reagia aos estímulos sensoriais; outra intimamente relacionada à primeira produzia, quando ativada, o fenômeno da consciência. Outras armazenavam os traços da memória e os reproduziam e assim por diante. Era concebida como análoga ao impulso nervoso. Este primeiro modelo não tornou a ser elaborado. (BRENNER, 1975) Em 1913 Freud fez uma nova tentativa de descrever o aparelho através da teoria topográfica. Neste modelo a divisão dos conteúdos da mente tinham como base o fato de serem ou não conscientes. Denominou Ics o inconsciente; Pcs o pré-conscientee Cs o consciente. Esta divisão parecia ter uma base estática e qualitativa. Porém é essencialmente funcional. Existem, neste modelo, conteúdos que poderiam ser facilmente acessados – os pré- conscientes e elementos que só poderiam ser acessados a partir da análise. (BRENNER, 1975) A hipótese estrutural foi elaborada em 1923. Este modelo procura agrupar e distinguir os processos e conteúdos mentais funcionalmente. Assim, cada uma das estruturas mentais é na realidade um grupo de conteúdos relacionados entre si funcionalmente. Os três grupos ou estruturas são denominados de: ego; id; e superego. O id é constituído pelas representações psíquicas dos impulsos. O ego consiste nas funções ligadas às relações do indivíduo com seu ambiente e o superego abrange os preceitos morais da mente. Os impulsos estão presentes desde o nascimento O ego e o superego se desenvolvem algum tempo depois do nascimento. Para Freud apud Brenner (1975) a diferenciação do superego só se inicia por volta dos cinco ou seis anos. Só estará firmemente estabelecido por volta dos dez ou onze anos. A diferenciação do ego começa por volta dos primeiros seis a oito meses de vida estabelecendo-se de modo completo aos dois ou três anos. A criança busca gratificação e evita o sofrimento e a aflição. O auto- erotismo permite que o próprio corpo proporcione um meio fácil e sempre ao alcance de gratificação do id. Como, por exemplo, chupar o dedo. Ambas as partes a sugada e a que suga vem a ter grande importância psíquica e 10 suas representações passam a ocupar lugar nos conteúdos do ego. Acrescenta-se o fato de que algumas partes do corpo produzem sensações dolorosas e o efeito acumulativo desses fatores desenvolve o ego em sua mais tenra idade. Outro processo que tem enorme significação no desenvolvimento do ego é a identificação. A identificação é o ato ou processo de se tornar semelhante a algo ou a alguém. Pode ocorrer com pessoas com grande investimento de catexia; por perda do objeto; ou ainda pelo agressor. Ela sempre enriquece o ego quer seja para melhor ou para pior. Existem dois processos pelos quais funcionam a mente o primário e o secundário. O primeiro refere-se ao funcionamento do id por toda a vida. O segundo desenvolve-se gradativa e progressivamente durante os primeiros anos de vida. É característico das atividades do ego relativamente maduro. No processo primário as catexias do impulso são extremamente móveis. Ele apresenta duas características fundamentais: necessidade de gratificação imediata e deslocamento fácil de um objeto para outro. O deslocamento refere-se à substituição de uma idéia ou imagem por outra a ela ligada por associação. O que se desloca é a catexia. O processo primário é característico da infância e apresenta ainda as seguintes características: ausência de quaisquer conjunções negativas: assim podem aparecer posições antagônicas uma após a outra. Podem coexistir, pacificamente, idéias, mutuamente, contraditórias. É freqüente a representação por alusão ou analogia. Parte de um objeto, lembrança, ou idéia, pode ser usada para representar o todo. Apresenta, também, como característica a condensação, na qual vários pensamentos ou imagens podem ser representados por um só pensamento ou imagem. As impressões visuais, ou dos outros sentidos, podem substituir uma palavra. É atemporal, ou seja, o presente o passado e o futuro são a mesma coisa. Ocorre uma representação simbólica. O predomínio do processo primário ou sua atividade exclusiva constituem uma anormalidade quando ocorre na vida adulta. O processo secundário é o do pensamento comum, consciente, ou seja, primariamente verbal e obedece às leis habituais de sintaxe e lógica. Desenvolve–se gradualmente a partir da neutralização do impulso. Como resultado da neutralização a energia do impulso ao invés de pressionar para descarga imediata torna-se acessível ao ego e fica a sua disposição para executar tarefas de acordo com o processo secundário. A energia neutralizada é a que foi consideravelmente alterada em seu caráter original, sexual ou agressivo. (BRENNER, 1975) Freud referiu-se a este processo inicialmente como dessexualização. Posteriormente foi introduzida a palavra desagressificação, mas por questão de simplicidade é preferível falar em neutralização. Se a energia do impulso não se tornar suficientemente neutralizada, ou se, mais tarde a neutralização 11 for anulada a energia neutra disponível se re-instintiviza. A desneutralização é um aspecto do fenômeno de regressão. (BRENNER, 1975) O ego apresenta as seguintes funções: capacidade de domínio sobre o ambiente e controle sobre o id. A primeira função refere-se à luta com o meio externo e a segunda com o próprio id. O domínio sobre o ambiente externo se dá a partir das percepções sensoriais; da capacidade de lembrar e das habilidades motoras. Estas funções são inter-relacionadas e existe uma, especial, denominado prova ou teste de realidade. O teste de realidade refere-se à capacidade do ego de distinguir entre os estímulos ou percepções que surgem do mundo externo dos estímulos dos impulsos do id. Ela desenvolve-se gradativamente um pouco em conseqüência da maturação do sistema nervoso e seus órgãos sensoriais, um pouco pelos fatores experenciais. Freud considerava as experiências de frustração como fator mais significativo no desenvolvimento do sentido de realidade, já que, o bebê aprende que certas coisas do mundo estão fora dele por mais que as deseje e que algumas coisas estão nele por mais que as deseje fora dele. Assim algumas coisas não estão fora do eu, mas são o eu. A partir destas experiências o ego infantil desenvolve a capacidade de analisar a realidade. A dependência física do bebê é muito grande e prolongada, o que parece refletir a sua dependência psicológica. O bebê depende dos pais para obter gratificação. Assim, diante de um conflito entre uma exigência materna e o impulso do id o ego toma partido da primeira contra o segundo. O desenvolvimento do ego diminui a energia do id sendo que a identificação é em grande parte responsável pelo desvio da energia psíquica do id para o ego. A gratificação fantasiosa e a ansiedade são fatores que contribuem para que o ego consiga “dominar” o id. Existe uma função fundamental da ansiedade neste processo. A teoria original de Freud sobre a ansiedade revelava que esta resultava de uma descarga, de um represamento inadequado de libido. A ansiedade era concebida como temor patológico. Em 1926, Freud publica uma monografia que propunha uma nova teoria da ansiedade baseada na hipótese estrutural e na teoria dualista dos impulsos. A publicação dos trabalhos denominados: “além do princípio do prazer” e „o ego e o id”; mudaram a teoria sobre a ansiedade. Freud procurou explicar o lugar da ansiedade na teoria estrutural e sua importância na vida psíquica do homem. 12 Ele renunciou totalmente a idéia inicial de que a libido não descarregada se transforma em ansiedade. Em sua nova teoria relacionou o aparecimento da ansiedade com o que denominou situações traumáticas ou situações de perigo. A primeira refere-se a uma situação na qual a psique é engolfada por uma afluência de estímulos demasiado grande para que os possa dominar ou descarregar. Quando isto acontece à ansiedade automaticamente se desenvolve. As situações traumáticas são mais freqüentes no início da vida e seu protótipoé o nascimento. Na primeira parte da nova teoria da ansiedade Freud apresenta as seguintes idéias: a ansiedade desenvolve-se quando a psique é assaltada por uma grande quantidade de impulsos e não pode dominá-la ou descarregá- la; estes estímulos podem ser de origem interna ou externa; quando a ansiedade se desenvolve a situação é traumática; o protótipo desta situação é o nascimento e finalmente a ansiedade é característica da infância devido a imaturidade do ego. A segunda parte da nova teoria da ansiedade prevê que no decorrer do crescimento, a criança pequena aprende a antecipar o advento de uma situação traumática e a reagir à mesma com ansiedade antes que se torne traumática. A este tipo de ansiedade Freud chamou ansiedade de alarme. Ela é função do ego e serve para mobilizar suas forças para enfrentar ou para evitar a situação traumática iminente. Através da ação do princípio do prazer essa ansiedade de alarme permite ao ego controlar ou inibir os impulsos do id, em uma situação de perigo. Existe um conjunto ou uma seqüência característica de situações de perigo na primeira e na última infância, que sobrevive como tal, inconscientemente, em maior ou menor grau, por toda a vida. A ansiedade de alarme é uma forma atenuada de ansiedade, que tem grande influência no desenvolvimento normal e é característica das psiconeuroses. A análise da ansiedade pressupõe que quando o ego se opõe à emergência daquele impulso do id, o faz por achá-lo perigoso. O ego produz ansiedade como sinal de perigo, conquista assim a ajuda do princípio do prazer e se defende do id. A questão é: qual defesa pode o ego oferecer contra o id? (BRENNER, 1975) Os principais mecanismos de defesa apresentados por Freud são apresentados a seguir. É preciso considerar que as identificações e as fantasias são utilizadas pelos mecanismos de defesa juntas ou separadamente ou em qualquer combinação. 13 O primeiro mecanismo de defesa reconhecido foi repressão, que consiste em barrar da consciência os impulsos indesejáveis sejam eles: desejos, lembranças, emoções. O ato da repressão estabelece na mente uma oposição entre o ego e o id. Traduzido em catexia do id contracatexia do ego. Sobre a repressão é preciso considerar que é um processo que se desenvolve inconscientemente. O reprimido torna-se funcionalmente separado do ego e passa a fazer parte do id. Isto não quer dizer que a repressão transforma um impulso do id em uma parte do mesmo. Quando ocorre a repressão o todo é que foi reprimido e em conseqüência, foi realmente subtraído algo da organização do ego e acrescentado ao id. Cada repressão reduz a eficiência ou a força do ego. A Formação reativa é um, outro, mecanismo de defesa por meio do qual uma de duas atitudes ambivalentes torna-se inconsciente, e assim permanece por uma superacentuação de outra. Exemplo: o prazer da sujeira é substituído pela ordem e a limpeza. O isolamento, das emoções e de pensamentos, constitui um mecanismo de defesa típico de neuroses obsessivas. A anulação consiste em uma ação que tem por finalidade contestar ou anular o dano que, inconscientemente, o indivíduo imagina que seus desejos podem causar. A negação de uma parte da realidade externa desagradável ou indesejável quer por uma fantasia de satisfação de desejos, quer pelo comportamento, é denominado como mecanismo de defesa negação. A projeção é um, outro, mecanismo de defesa pelo qual o indivíduo atribui um desejo ou impulso seu a alguma outra pessoa, ou mesmo, a algum objeto não pessoal do mundo externo. A regressão frente a graves conflitos, na qual os desejos podem ser abandonados e o indivíduo pode retornar às aspirações e aos desejos da fase prévia também constitui um importante mecanismo de defesa. (BRENNER, 1975) Alguns aspectos fundamentais da hipótese estrutural será retomado rumo a conclusão desta proposta. Em primeiro lugar é importante esclarecer que, na literatura psicanalítica o termo objeto é empregado para designar pessoas ou coisas do ambiente externo que são psicologicamente significativas para a vida psíquica do indivíduo. Do mesmo modo que, relações de objeto referem-se à atitude e ao comportamento do indivíduo para com estes objetos. 14 Em segundo lugar é importante lembrar que, nos estágios iniciais da vida, a criança não percebe os objetos como tais e, só gradativamente, ao longo dos primeiros meses de seu desenvolvimento ela aprende a distinguir sua própria pessoa dos objetos. O próprio corpo da criança, isto é, seus dedos, artelhos e boca são extremamente importantes como fonte de gratificação, razão pela qual são altamente catexizados pela libido. A este estado de libido auto dirigida Freud, em 1914 denominou narcisismo segundo a lenda grega do jovem Narciso que se enamorou de si mesmo.Em geral emprega-se o termo para indicar pelo menos três coisas diferentes, embora relacionadas: 1- uma hipercatexia do eu; 2 – uma hipercatexia dos objetos do ambiente; 3- uma relação patologicamente imatura com estes objetos. A libido do objeto deriva da libido narcísica e a ela pode retornar se, posteriormente, por qualquer razão o objeto for abandonado. A atitude da criança para com os primeiros objetos é uma atitude egocêntrica. A princípio a criança só se interessa pelas gratificações que o objeto proporciona, isto é, o realizador de suas necessidades. Os primeiros objetos são os que chamamos de parciais. Uma das características dessas primeiras relações é a ambivalência. Os sentimentos conscientes pelo objeto refletem muitas vezes, metade da ambivalência, enquanto a outra metade permanece inconsciente. Outra característica é o fenômeno da identificação com o objeto. A tendência à identificação persiste inconscientemente em todos nós. Se a identificação continua a desempenhar um papel dominante na vida adulta ela revela um desenvolvimento defeituoso do ego. Os primeiros exemplos desse desenvolvimento defeituoso foram denominados de personalidades “como se”. Trata-se de pessoas cujas personalidades variavam tal um camaleão de acordo com suas relações de objeto. Acrescenta-se á definição de objeto e ao narcisismo o fato de que as primeiras relações de objeto que até aqui foram caracterizadas são chamadas de relações de objeto pré-genitais. As relações de objeto, da fase fálica, que abrangem o complexo edipiano são da maior importância tanto para o desenvolvimento mental normal quanto para o patológico. (BRENNER, 1975) Freud cedo descobriu que seus clientes apresentavam fantasias incestuosas com o genitor do sexo oposto, aliadas a ciúme e à raiva homicida contra o genitor do mesmo sexo. A existência de tais desejos na infância e os conflitos originados por eles são uma experiência comum a toda a humanidade. Assim, o complexo edipiano é uma atitude dupla em relação aos dois genitores. O fato mais importante do complexo é a intensidade dos sentimentos envolvidos. No começo do período edipiano a criança, menina ou menino, mantém com a mãe sua relação de objeto mais forte. Paralelamente aos anelos sexuais pela mãe e ao desejo de ser o único objeto de seu amor, existem os desejos pelo aniquilamento ou desaparecimento de 15 quaisquer rivais, geralmente pai e irmãos. Esses desejos despertam conflitos graves como o medo do revide, isto é retaliação e perda de amor. A retaliação que o menino mais temeé a perda do pênis, ou seja, da castração. O menino também odeia a mãe por ter rejeitado seu “amor” e também deseja matá-la e ser desejado pelo pai. Assim tanto o desejo masculino como feminino despertam ansiedade e este conflito só poderá ser resolvido pela renuncia ou pelo controle através de vários mecanismos de defesa. No caso da menina a situação é um pouco mais complicada. Ao desejar ser como o pai perante a mãe sente-se fracassada e inveja o pênis. A raiva direciona-se para mãe e ela volta-se para o pai como objeto de desejo. A frustração deste desejo faz com que ela reprima e renuncie ao pai. O medo da castração corresponde na menina em primeiro lugar ao ciúme “inveja do pênis” e em segundo lugar ao medo da lesão genital ocasionada pelo desejo de ser penetrada pelo pai. O complexo edipiano tem uma conseqüência específica, que é a formação do superego. Ele corresponde às formações morais da personalidade que incluem: aprovação ou desaprovação de ações e desejos; auto observação e crítica; autopunição; exigência de reparação ou arrependimento; auto elogia ou auto estima como recompensa. As funções do superego são em grande parte inconscientes. Os precursores do superego existem na fase pré-fálica. Nesta fase a criança trata as exigências morais com parte do seu ambiente. No decorrer desta fase as coisas começam a mudar e por volta dos cinco ou seis anos a moralidade passa a ser mais íntima. À medida que a criança repudia e reprime os desejos incestuosos e homicidas as relações com os objetos desses desejos transformam-se em identificações com os mesmos. Assim, o superego consiste originalmente nas imagens internalizadas dos aspectos morais dos pais na fase fálica ou edipiana. Como em grande parte as imagens introjetadas são as do superego dos pais, a identificação faz com que o que era catexia do objeto passe a ser catexia narcísica. Assim, o superego é herdeiro das relações edipianas e tem raízes profundas no id. Acrescenta-se a estes conceitos o fato de que os impulsos diretamente incestuosos e homicidas da criança para com os pais não são totalmente abandonados. A intensidade dos próprios impulsos hostis da criança é o fator determinante da severidade do superego. Desta maneira, a criança cujas fantasias foram particularmente violentas e destrutivas terá tendência a sentir maior culpa do que aquela cujas fantasias tenham sido menos destrutivas. Depois da fase edipiana o superego determina as atividades defensivas do ego contra os impulsos do id. A desaprovação do superego assume assim o seu lugar como a última de uma série de situações de perigo às quais o ego reage com ansiedade. 16 As situações de perigo podem ser resumidas em: perda do objeto; perda do amor; medo da castração ou lesão genital; e desaprovação do superego. A desaprovação ou aprovação do superego tem algumas conseqüências conscientes e outras inconscientes: culpa; sentimento de inferioridade (na prática são os mesmos); felicidade; auto-satisfação. A atividade do superego possui duas características geralmente inconscientes na vida adulta que revelam muito claramente sua relação com os processos mentais infantis. A primeira é a necessidade de expiação ou auto-punição e a segunda a falta de discriminação entre o desejo e a ação. O superego surge em conseqüência da introjeção das proibições e exortações paternas na fase edipiana e, pelo resto da vida, sua essência inconsciente continua sendo a proibição dos desejos sexuais e agressivos do complexo edipiano, apesar dos numerosos acréscimos e alterações que sofre mais tarde, na infância, na adolescência e mesmo na idade adulta. (BRENNER, 1975) O sonho tem uma grande importância para a psicanálise, não só em termos históricos, mas porque é como um caminho para o inconsciente. Ele apresenta com clareza o modo do funcionamento psíquico no modelo estrutural. Quando alguém sonha o que aparece á consciência é apenas o resultado final de uma atividade mental inconsciente durante o processo fisiológico que por sua natureza ou intensidade ameaça interferir com o próprio sono. O conteúdo consciente é conhecido como manifesto. Trata-se de uma imagem e é uma fantasia que simboliza o desejo ou o impulso. Ele é uma formação de compromisso do ego entre o id e o superego. O conteúdo inconsciente é denominado de latente e refere-se a um desejo ou impulso. No processo de elaboração dos sonhos existem dois fatores principais. A tradução para a linguagem do processo primário por meio da condensação e do deslocamento e as atividades defensivas do ego, denominada de censor onírico. O processo secundário torna o sonho inteligível. Desvendando o sonho contado pode-se compreender a psicodinâmica individual. (BRENNER, 1975) 17 PSICOPATOLOGIA As teorias psicanalíticas referentes às perturbações mentais modificaram-se e desenvolveram-se desde o início da psicanálise até os dias atuais. No início foi introduzido o termo demência precoce para alguns casos que hoje conhecemos como psicose. A Neurastenia foi a denominação favorita para a maioria das enfermidades. Charcot havia demonstrado que os sintomas histéricos poderiam ser eliminados ou introduzidos pela hipnose. Nesta época considerava-se que a constituição neuropática era a principal causa de toda enfermidade mental. É neste contexto que Freud concluiu que os sintomas histéricos eram causados por lembranças inconscientes de acontecimentos acompanhados de intensas emoções que por uma ou outra razão não puderam ser adequadamente expressas ou descarregadas no momento do acontecimento real. Enquanto as emoções permanecessem impedidas de se manifestarem de maneira normal, persistiriam os sintomas histéricos. Assim a histeria era causada por traumas psíquicos. A etiologia para os neurastênicos era totalmente diferente da histeria, já que Freud inicialmente considerou que ela era devido às práticas sexuais anti- higiênicas. Tais práticas eram de duas espécies: a masturbação excessiva ou poluções noturnas e a excitação sexual excessiva sem uma descarga ou vazão adequada. Para ele estas práticas produziam estados de ansiedade e foram chamados de portadores de neurose de angústia. A neurastenia e as neuroses de angústia foram agrupadas como neuroses atuais. Em contraste com a histeria e a neurose obsessiva. As classificações sugeridas por Freud baseavam-se na etiologia e não na sintomatologia. Assim, Freud procurava aperfeiçoar a classificação descritiva, agrupando as neuroses por causa comum, ou pelo menos ao mesmo mecanismo subjacente. As categorias das psiconeuroses foram ampliadas e modificadas. A primeira alteração foi devido ao reconhecimento do conflito psíquico na produção dos sintomas psiconeuróticos. Na histeria e nas neuroses obsessivas os sintomas eram causados por um acontecimento esquecido do passado. Assim, uma experiência ou acontecimento psíquico deve ter repugnado o ego a tal ponto que este buscou se defender. Freud considerava esta formulação válida para a histeria, para as neuroses obsessivas e para as fobias e propôs o agrupamento em “neuropsicoses de defesa”. Outra contribuição da psicanálise resultou do fato de que em busca do acontecimento patogênico esquecido ele iria parar inevitavelmente na infância. Freud sugeriu que se o paciente tivesse tomado parte da sedução 18 infantil ele teria como resultado sintomas obsessivos e se fosse a criança tivesse sido passiva à sedução o indivíduo teria sintomas histéricos.A idéia de que as psiconeuroses da vida adulta tiveram uma raiz na infância tornou-se a pedra angular da psicanálise. Posteriormente, Freud descobre que as vivências traumáticas eram muitas vezes fantasias dos pacientes. Porém a descoberta da sexualidade infantil tornou-se fundamental para a compreensão do desenvolvimento humano. Desta maneira ele pode propor no desenvolvimento humano, certos componentes da sexualidade são reprimidos, enquanto outros são integrados a sexualidade após a puberdade. No desenvolvimento dos psiconeuróticos a repressão era excessiva, na vida adulta ela falhava, deixando escapar, pelo menos em parte os impulsos sexuais infantis, que determinavam os sintomas neuróticos. Assim a repressão e os mecanismos de defesa assumem características fundamentais tanto no desenvolvimento normal como no neurótico. (BRENNER, 1975) Resumidamente: o impulso reprimido escapa da repressão para formar um sintoma. O sintoma fica semelhante à formulação do escape do impulso no sonho. O sintoma assim como os sonhos manifestos são formações de compromisso entre um ou mais impulsos reprimidos e as forças do ego para impedir sua entrada na consciência. Finalmente pode-se concluir que os sintomas e os sonhos manifestos possuem um significado. A diferença entre o normal e o patológico é quantitativa e não qualitativa. Tais considerações foram ampliadas e modificadas e atualmente pode- se dizer que as perturbações mentais podem ser mais bem compreendidas e formuladas como evidência do mau funcionamento do aparelho psíquico em grau e maneira diversos. Freud concluiu que na histeria e nas neuropsicoses de defesa ocorre um conflito entre o ego e o id durante a primeira infância de maneira muito característica, durante a fase edipiana ou pré-edipiana. O conflito é resolvido pelo ego no sentido de que este é capaz de instruir algum método estável e eficaz de dominar os perigosos derivativos dos impulsos em questão. Este método implica em defesas e alterações do ego, como identificações, restrições, sublimações e talvez, regressão. Este equilíbrio pode ser alterado e o ego se torna incapaz de prosseguir controlando os impulsos. O ego torna-se enfraquecido. A falha nas defesas do ego pode levar a formação de compromisso. Este compromisso inconscientemente expressa tanto o derivativo do impulso como a reação de defesa, de medo ou de culpa do ego contra o perigo representado pela brecha parcial aberta pelos impulsos. Esta formação de compromisso é chamada de sintoma neurótico ou psiconeurótico e é grandemente em parte similar ao sonho manifesto. O sintoma tem assim um ganho primário. Uma vez formado o sintoma o ego pode descobrir vantagens que o sintoma pode trazer, ou seja, um ganho secundário. (BRENNER, 1975) Existem formações de compromisso oriundas de um malogro em estabelecer um controle sobre os impulsos, que decorre de uma fragilidade do ego que não são nem inconscientes nem desagradáveis. As mais graves correspondem às perversões sexuais e as toxicomanias. Freud afirmava, por isso que as perversões eram o inverso das neuroses. 19 PERVERSÃO Conforme descrito por Mendes 1996 para compreender a perversão de forma mais ampla é preciso retomar a estória de Édipo. Assim a autora descreve: “A lenda grega do rei Édipo conta que um herói, sem proceder intencionalmente, mata seu pai e toma a mãe como esposa. Édipo conhecia a lei que proibia esta ação e o vaticínio de quem a transgredia. Abandonou Tebas, para não fazê-lo. Porém, uma maldição familiar obrigou-o a transgredir, embora não fizesse conscientemente. Isso o tornou um símbolo do desejo da transgressão. Quando Édipo conscientiza-se do que fez, culpa-se e recorre à auto-punição. Assim, Édipo, sem saber, apaixonado pela mãe e odiando o pai, representa nossos desejos inconscientes de amor e ódio, que tornam-se, posteriormente, pilares desconhecidos de nossa conduta. A obra de arte dramatiza, assim, os limites culturais impostos aos humanos, como foi apresentado em Totem e tabu (Freud, 1913). Em O mal estar da civilização (1930), Freud supõe que, quando o homem abre mão dos desejos incestuosos, constrói a civilização, existindo um antagonismo entre as exigências pulsionais e as restrições da civilização. Os primórdios da religião, da moral e da sociedade estão associados ao complexo de Édipo “conjunto organizador de desejos amorosos e hostis que a criança sente em relação aos pais.” (Laplanche e Pontalis, 1991 citado por Mendes). “a ausência da satisfação esperada, a negação continuada do bebê desejado, devem, ao final, levar o pequeno amante a voltar as costas ao seu anseio sem esperança. Assim, o complexo de Édipo se encaminharia para a destruição por sua falta de sucesso, pelos efeitos de sua impossibilidade” (Freud, 1924, p.217). Esta é, contudo, uma das maneiras levantadas por Freud para a dissolução do complexo, pois ele afirma que o fundamental é a compreensão de que o desenvolvimento sexual da criança evolui até uma fase em que o único órgão genital é o masculino. Este é o tema discutido em A organização genital infantil: uma interpolação na teoriada sexualidade (1923), pois é durante o desenvolvimento infantil que ocorre uma organização da sexualidade para assumir sua forma definitiva no adulto. Assim, na fase pré-genital, em princípio, não existe a questão de masculino e feminino, posteriormente existe a masculinidade e apenas após a puberdade é que ocorre uma escolha entre o masculino e o feminino. 20 Destas considerações sobre as diferenças que o Édipo feminino apresenta em relação ao complexo de castração, Freud (1931) apresenta o estudo A sexualidade feminina. Assim, ele considera que o primeiro objeto de desejo da menina, assim como o do menino, é a mãe. Frente ao complexo de Édipo, ela se afasta da mãe e aproxima-se do pai, que se transforma em seu objeto de amor. Posteriormente, ela deverá livrar-se do pai e encontrar sua escolha final de objeto de desejo. Quando se depara com a castração, a menina rebela-se, nascendo desta atitude três possíveis linhas de desenvolvimento. Na primeira, ocorre um afastamento da sexualidade; na segunda, uma auto afirmação de sua masculinidade na terceira linha, é que a mulher atingirá a atitude feminina. Em 1933, Freud considera que a constituição física feminina não se submete a esta função sem luta. Na fase fálica, o clitóris constitui a principal zona erógena das meninas e deve ceder, posteriormente, sua importância e sensibilidade à vagina. Assim, na situação de Édipo, a menina se afasta da mãe em busca do pai, objeto de amor que deverá ser substituído caso atinja um percurso normal de desenvolvimento. A identificação com a mãe apresenta duas fases: a que consiste no apego a esta figura, tomando-a como modelo e, aquela em que deseja livrar-se da mãe, para tomar seu lugar junto ao pai. A representação do núcleo organizador da personalidade humana apresenta, em ambos os casos, um aspecto fundamental relacionado aos mecanismos mobilizados frente a fantasia de castração. A maneira como o Édipo se instala em cada um dos sexos difere, porém, como organizador da personalidade em termos de escolha e identificações, não apresenta diferenças, quer seja no menino, quer seja na menina. Na obra Freud: a trama dos conceitos, Mezan (1982) descreve estes fatos através da existência de tortuosas vias, nas quais o Édipo se instala em cada um dos dois sexos. No menino, surge em um jogo de identificação e escolha de objeto, para, depois, ser dissolvido pela castração imaginada; na menina, a castração introduz o Édipo e confunde as identificações e escolhasde objeto, invertendo estas e fazendo surgir aquelas. Nos dois casos, o Édipo é um núcleo decisivo para a constituição da personalidade do sujeito, pois, segundo este autor, ele funciona como princípio transcendental independente dos conteúdos empíricos válidos para o homem e para a mulher. Após ser dissolvido o complexo de Édipo, tal princípio sobrevive no superego. Na versão edípica inserem-se, desta maneira, a interdição e a transgressão. A interdição relaciona-se com a identidade sexual e a transgressão, com as perversões. A interdição da escolha incestuosa obriga os humanos a optarem por 21 uma sexualidade, masculina ou feminina, com acesso à genitalidade pela via da identificação. O desvio do alvo original não significa apenas uma outra via de direção que conduz ao prazer, mas também várias formas de deslocamentos que podem levar a satisfações parciais. Na prática, a perversão indica necessidades de ordem vital de complexos mecanismos psicológicos, que, em muitos casos, apresentam-se com finalidades aparentemente deslocadas do campo da sexualidade. O conceito de pulsão é essencial para a compreensão da vida mental em seus aspectos relacionados com a perversão. Nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), Freud conceitua perversão como relacionada às atividades sexuais, ou seja “o conjunto do comportamento psicossexual que acompanha atipias na obtenção do prazer sexual.” (Laplanche & Pontalis, 1991). O estudo sobre a perversão levou à formulação do conceito de pulsão parcial e de todo um desenvolvimento psicossexual a partir da sexualidade infantil. Os componentes pulsionais sexuais durante o desenvolvimento, em princípio autônomos, organizam-se, secundariamente, em torno da primazia dos genitais. As pulsões parciais podem ainda persistir como tendências perversas no ato sexual normal, sob a forma do prazer preliminar. Para Dor (1991), a familiaridade do processo sexual perverso com o processo sexual normal, descrita neste estudo, permite um distanciamento das concepções clássicas sobre perversão. Assim, o conceito anterior de desvio a uma norma existente insere-se, para Freud, na própria norma. Em concordância com este autor, o artigo de Minerbo (1994) ressalta que o conceito de pulsão é essencial para a compreensão da vida mental em seus aspectos relacionados com a perversão, pois permite a compreensão de que a sexualidade, apesar de ancorada no biológico, é também uma aquisição cultural. Desta maneira, objeto e objetivo são construídos na subjetividade. Tais considerações implicam a concepção de que a sexualidade é um desvio e “a realidade é sempre construída pelo desejo e não apenas na perversão.” (Minerbo, A perversão como modo de vida, 1994, p.25). 22 Assim, o estudo do inconsciente da perversão não pode ser afastado da realidade que é produzida por este inconsciente. É nesta medida que os mecanismos psicológicos associados à perversão podem ser identificados na maneira como se constrói a realidade para cada um de nós. Um conceito fundamental para o entendimento das perversões, enquanto processo psíquico, insere-se na questão do complexo de castração. A disposição diante deste complexo, dentro do âmbito da perversão, é descrita por Freud (1940) em seu estudo Clivagem do ego no processo de defesa, onde ele relata um caso de fetichismo em que uma divisão do ego surge como uma defesa. Ele relata uma situação em que existia uma forte exigência pulsional, que freqüentemente era satisfeita, acrescentando-se, então, uma necessidade de abandonar tal satisfação pela existência de um perigo real. Com isso, o ego precisa decidir-se entre reconhecer o perigo e renunciar a satisfação pulsional ou ignorar a realidade, convencendo-se de que não há o que temer e manter a satisfação. Diante deste conflito, o ego assume duas reações contraditórias, pois, com o auxílio de alguns mecanismos, consegue por um lado manter a satisfação e simultaneamente reconhecer o perigo da realidade e tentar escapar do medo. Assim é que, para Minerbo (1994), a recusa frente a castração constitui um mecanismo psíquico como o recalque, porém, diferencia-se deste por incidir sobre a realidade externa, ou seja, na ordem cultural e não sobre a realidade da vida de fantasia do sujeito. A autora entende, ainda, que a ordem cultural se fundamenta sobre a proibição ao incesto, pela ameaça da castração, enfim, pela Lei, universo que é recusado pelo perverso. Ela constata que a recusa é a do universo genital, que implica em diferenciação entre os sexos que se alia à necessidade de provar a superioridade através da produção de um mundo próprio. Em termos teóricos, o desenvolvimento psicológico revela movimentos em espiral mesclados por evoluções e involuções. Trata-se, porém, em termos lineares, de uma longa batalha do confronto entre desejo e realidade, entre desejo e limite. A lenda sobre o rei Édipo surge, então, como uma dramatização do percurso em que, para Freud, ocorrem escolhas, tanto com relação ao desejo como com relação à identificação. Este não é, portanto, um percurso tranqüilo, pois, para cada um de nós, a trama é vivida e revivida a cada momento. Um caminho marcado por, transgressões e impulsos destrutivos e amorosos” ( MENDES 1996) 23 ESTUDO DE CASO O caso descrito neste capítulo foi retirado do trabalho apresentado por Mendes 1996 “Flávio é o primeiro de dois filhos. Mora com a mãe e o irmão, um ano mais novo que ele. Seus pais são separados, desde que Flávio tinha dois anos. A partir desta separação, Flávio teve pouquíssimos contatos com o pai, que está gravemente doente, em conseqüência do uso abusivo de bebidas alcoólicas. Atualmente, Flávio tem vinte e um anos, é solteiro e relatou um namoro que mantém há oito meses. Esta é uma situação nova para ele, pois seus namoros foram sempre muito efêmeros e normalmente com mulheres de idade muito superior. Trabalha na mesma empresa, desde os quinze anos, disse não estar satisfeito com seu salário e que seu trabalho não é financeiramente reconhecido. De acordo com o prontuário do DETRAN, sua carteira de habilitação foi apreendida por homicídio culposo, isto é, por ter provocado um acidente grave, no qual uma pessoa veio a falecer. Flávio informou que o processo criminal ainda está em andamento e que está sem a carteira há alguns meses, pretendendo recuperá-la quando o processo terminar. Flávio foi convidado a participar deste estudo diante da sugestão do policial que se encontrava na sala de aula do curso de Reciclagem. Após esta sugestão, que foi feita em sua presença, Flávio levantou os olhos em nossa direção e disse em tom de brincadeira: “eu já sabia”. Formalizamos o convite e Flávio forneceu-nos seu telefone. O policial informou, posteriormente, que havia sugerido o nome de Flávio por considerá-lo bem educado e comentou que ele ficava bastante quieto durante toda a aula. Flávio é um jovem de físico frágil. O seu modo de vestir e o corte de cabelo contrastam com sua fragilidade, conferindo-lhe uma aparência mais fortalecida. As entrevistas foram marcadas por telefone e Flávio pediu-nos para ir em seu local de trabalho no horário de almoço, pois, assim, poderíamos realizar a entrevista em uma sala de reunião, sem sermos incomodados. Chegamos no horário que havíamos marcado e Flávio estava nos esperando para poder autorizar nossa entrada no prédio. Em geral, Flávio falava pausado e procurando manter sempre o mesmo tom de voz, o que acentuava sua formalidade. Esta atitude não se modificou durante as entrevistas, sendo apenas possível perceber uma falaem tom mais baixo, quando relatou sobre o acidente e a pessoa que faleceu, porém, logo aumentava o tom de voz, parecendo que queria esconder seus sentimentos e mostrar-se indiferente. Flávio inicia a entrevista, dizendo que ele é calmo e, em seguida, fala sobre seu estudo e seu trabalho. Ele procurava descrever seu trabalho 24 detalhadamente, como se falar sobre o que ele faz fosse mais fácil do que falar como ele é. Em vários momentos da entrevista, ficava em silêncio e, depois, comentava que era difícil falar sobre si mesmo. Descrevia suas atividades em ordem cronológica e, quando falou do horário de almoço, disse que normalmente não tinha tempo para almoçar, porque estudava neste horário e, também, pelo curso de Reciclagem. Ele procurava responsabilizar o estudo e o DETRAN por ficar sem almoçar. Primeiro, ele diz que não iria almoçar e, em seguida, diz que irá depois e convida a entrevistadora para ir com ele. Assim, parecia mostrar que estava procurando uma maneira de se aproximar da nossa pessoa. “Eu sou calmo, estudando na FAAP. (...) Trabalho das nove até seis e meia. Fico fora o dia inteiro. (...) Almoço... não tenho horário de almoço, não tem dado tempo, um pouco por causa do DETRAN, por ter apreendido minha carteira, um pouco, porque eu estudo na hora do almoço. (...) Você fica trabalhando desde as nove horas da manhã até meio dia e meia e sai para almoçar, mas hoje eu não vou almoçar... porque eu vou depois, aliás eu te convido, se você quiser ir almoçar depois a gente vai”. Após descrever objetivamente seu trabalho, Flávio depara-se com o falar sobre si mesmo. Desvia de assunto, falando sobre o jeito de olhar da entrevistadora, como se este fosse uma ameaça, pois, para ele, nosso olhar era “terrível”. Esta, porém, é uma projeção de ameaça que ele utiliza em suas relações, pois relata uma situação em que deixou uma pessoa nervosa e sem jeito por utilizar um olhar que ele imagina ser “igual ao nosso”. Assim, ele parece se considerar “terrível”, ou melhor, com um olhar terrível, com o qual procura desviar o nosso interesse sobre aquilo que ele imagina que queremos saber sobre ele. Como se ele tivesse algo terrível para esconder. Ele descreve uma situação em que disse para uma pessoa que era estudante de psicologia e que olhava para ela com o mesmo olhar “terrível”. Na relação de olhares perigosos, ele introduz um terceiro elemento, que, no caso da entrevista, é um roteiro. Assim, ele nos pergunta se não existe um roteiro de perguntas para ele responder. “Este olhar de psicóloga... é terrível.- Terrível? - Não. É que para algumas pessoas deixa encabulado. - E, para você? - Não, para mim não. Porque outro dia eu fiz esta experiência com uma menina que eu conheci: eu falei que estava fazendo psicologia e a gente estava conversando e eu olhava para ela com este olhar aí. Ela falava para eu parar de olhar para ela daquele jeito. Ela ficou meio nervosa e as pessoas ficam meio sem jeito. Para mim, não faz diferença. Você não segue um roteiro? - Não.” 25 Ele procura saber qual é o roteiro da entrevista, para saber sobre o que queremos saber sobre ele. Diante do desconforto que parecia sentir com o fato da entrevista não ter um roteiro pré-estabelecido, ele procura inverter de posição conosco, passando de entrevistado para entrevistador. A pergunta que nos faz nesta posição é sobre o casamento da pesquisadora. Assim, perguntava de uma forma invasiva sobre a vida pessoal da pesquisadora. Quando procuro mostrar esta inversão, Flávio reage dizendo que não vai mais falar e vai anular suas perguntas, como se esperando uma reação da nossa parte. Ele dava a impressão que, na entrevista, deveria ter uma troca, ou seja, para saber sobre ele, deveríamos falar sobre a entrevistadora, caso contrário, ele não falaria mais. Esta era, porém, uma ameaça infantil, como em um jogo, que, quando a criança não consegue obter o que deseja, diz que não vai mais brincar, mas isto é apenas uma tentativa de manipular a situação a seu favor, pois, na verdade, continua participando do jogo. Ele procura, desta maneira, fazer da entrevista uma conversa, alterando, assim, a regra da entrevista, em que a proposta é saber sobre ele, para uma outra regra, imposta por ele, em que haja uma troca de informações entre as pessoas, ou seja, em uma conversa. “Se você tiver alguma pergunta... Vamos passar de entrevistado para entrevistador: Casada a quanto tempo? - Você tem perguntas. - Curiosidades. Por que o curso de psicologia? - Pelo jeito você tem um roteiro. - (...) Eu não costumo fazer roteiro. - A impressão que você me dá é que como a proposta é te conhecer, você quer... - Quero te conhecer um pouco também. - É como se você quisesse... - Não é em troca. É... é só uma curiosidade, curiosidade de conhecer outras pessoas. (...) Só curiosidade mesmo eu não vou fazer um roteiro de perguntas. Eu vou anular as minhas perguntas. Pronto, não falo mais... não faço mais nenhuma.” Para Flávio, as relações interpessoais parecem estar baseadas em trocas. A entrevista, assim como a vida, é um jogo igual o xadrez. Para vencer, ele precisa conhecer o desejo do outro e a sua estratégia, provavelmente, para poder controlar a situação, caso contrário, ele se sente perdido. Assim, ele não sabe mais falar, quando sabe que o assunto é ele. A 26 sensação é de que as relações devam ser transformadas em algo que não pode ser levado a sério e que não exista nem sentimentos, nem compromissos. “Se você tiver alguma coisa para perguntar... Assim, eu fico meio perdido, eu não sei que rumo você quer tomar na sua entrevista. - Sua entrevista, pois é sobre você. - É sobre mim. Muito bom. Interessante. Não sei o que falar mais.” Diante da constatação de que não existe um roteiro para entrevista, Flávio assume a posição de nosso porta voz, dizendo o que queremos saber sobre ele. Desta maneira, ele diz que queremos saber sobre sua vida escolar, sobre o acidente etc. Ele afirma que nós queremos obter com a entrevista algum material para o curso de mestrado. Demonstrava, assim, que diante da falta de conhecimento sobre o que queríamos, ele se apodera de um saber que parecia ter como função tranqüilizá-lo. A regra é a troca e inteirar-se sobre nossos objetivos com a entrevista lhe traz alívio, ou seja, ele não precisa mais ficar tão perseguido. “O que você quer mais que eu fale. (...) Bom, você quer que eu fale dos colégios. (...) Você está me entrevistando, mas qual é a troca que você vai ter. Você, ah... o mestrado”. No final da segunda entrevista, Flávio diz que, em seus relacionamentos amorosos, prefere mulheres com idade bem superior à sua. Em seguida, diz que isto não está relacionado ao fato de ter nos convidado para almoçar. Assim, fazia uma relação pela negativa. A impressão que ele nos dava é a de que aceitava participar da entrevista, desde que se submetesse a sua maneira de jogar, ou seja, a troca de uma proposta de conhecimento que ele sente como perigosa, pois não sabe aonde irá levá-lo, por um jogo de sedução, em que ele pensa ter o domínio da situação. Neste jogo, o que ele teria em troca seria uma relação fantasiada com uma mulher com idade superior à sua. “queda por mulheres mais velhas (...) eu não vou negar que com uma mulher bem mais velha é uma experiência... uma experiência super nova, super interessante, eu gostei bastante (...) Nada a ver sobre o almoço... excluindo isto... problema profissional...” O pai aparece, em seu relato, através do discurso materno, transformando-se em um conteúdomental dela e não concebido como pessoa. É pela mãe que Flávio sabe que o pai bebia e era agressivo, motivo pelo qual sua mãe quis separar-se. Flávio diz não ter recordações da agressividade do pai, mas sabe, pela mãe, que ele nunca bateu nos filhos. A 27 única lembrança que Flávio relatou ter desta época apresenta características agressivas, em que o pai, fragilizado pela bebida, acaba por se machucar. O pai é, assim, concebido como agressivo e lembrado como fraco. Flávio parece só encontrar aspectos negativos relacionados à figura paterna. Porém, devido à proteção materna, esta agressividade não o atinge. O pai é, então, uma responsabilidade da mãe, criação mental sua e, portanto, ele o deixa de lado. “Eles se separaram, porque ele bebia, ele era alcoólatra e... isto a minha mãe que contou que quase todo dia ele chegava bêbado em casa. Eu não tenho recordações disto a não ser de um lance que... ele chegou a cair da escada, porque estava bêbado. Ele caiu da escada, estava bêbado e... ele costumava bater na minha mãe. Na gente, ele nunca bateu, porque ela nunca deixou”. Flávio só sabe do pai aquilo que é dito pela mãe, pois, na verdade, para ele, é um desconhecido, uma figura ausente. O fato dele ser alcoolista parece resumir tudo o que ele sabe sobre o pai. Assim, o relato sobre o encontro que ele tem com o pai fica restrito ao estar ou não alcoolizado. Flávio distancia-se do pai tanto objetiva como afetivamente. Assim, ele não se importa com o pai, uma figura que, para ele, está morta e que assume proporções não humanas, pois o pai “grunhe”. “eu cheguei a encontrar no dia dos pais. A minha mãe perguntou: vocês querem ver o seu pai? A gente falou: queremos. Queremos ver como é que ele é, a gente não conhecia, depois que já tinha uma certa idade. Então... Ah... A gente encontrou ele no dia dos pais e ele estava bem, não tinha bebido nada... mas a gente sabia que ele continuava bebendo. (...) Ele está em uma cama. Ele não consegue falar. Ele gesticula, ele fala... grunhe, fica grunhindo o tempo todo. (...) Está na cama, praticamente morto, quase uma vida vegetal. (...) Eu nunca me importei muito com o meu pai. Eu não sei porquê, sempre deixei de lado”. A mãe possui, para Flávio, a função de saber sobre o seu desejo e saber como ele é. Assim, ele é quieto, porque sua mãe diz, ele quer conhecer o pai, porque sua mãe diz que ele quer, ele sabe do seu pai, porque sua mãe lhe conta. Isto remete a dois aspectos. O primeiro é que Flávio só sabe de si, através da figura feminina. O segundo é que a mãe não existe, enquanto pessoa, mas, sim, como um espelho que ele necessita para poder ver a si mesmo, seus desejos e a figura do pai. “Desde criança eu sou quieto, ainda não fiz uma avaliação a respeito disto. A minha mãe fala que... (...) 28 Ah... eu era muito calmo, sempre fui. (...) (minha mãe) Pediu o divórcio e acabou. O que aconteceu, depois de uns anos, eu cheguei a encontrar no dia dos pais. A minha mãe perguntou: vocês querem ver o seu pai? A gente falou: queremos. Queremos ver como é que ele é, a gente não conhecia depois que já tinha uma certa idade. (...) Ele era alcoólatra e... isto a minha mãe que contou.” Para Flávio, a figura materna é protetora e capaz de prover a ausência paterna. Enfim, a figura materna parece existir apenas em sua função: como uma criança pequena que possui a ilusão de que a mãe sabe de todas as suas necessidades e que é capaz de supri-las. “Na gente ele nunca bateu, porque ela (a mãe) nunca deixou. (...) De lá para cá, a figura paterna tem ficado ausente, quem tem feito este trabalho é a minha mãe”. O irmão é percebido por Flávio de uma maneira ambivalente, pois diz que gosta do irmão, com quem se relaciona bem, mas agradece a Deus por ter só um irmão. Flávio relata uma relação prazerosa com o irmão, até o momento em que este começa a namorar. Assim, a relação com o irmão parece necessitar de uma certa exclusividade. A ausência do pai é sentida pelo irmão e Flávio diz que consegue perceber isto. Quando perguntamos como ele percebe isto, Flávio não consegue responder, apenas diz que como uma figura paterna masculina. Flávio parece falar sobre o sentimento do irmão sem ter argumentos para isto. Desta forma, é como se ele conhecesse o sentimento do irmão a partir de um referencial interno que fica deslocado. Seu irmão surge, assim, como uma via de acesso para falar sobre a falta do pai. “Ele é um ano e quinze dias mais novo. Então, a gente se dá bem, estamos na mesma faixa de idade. Eu sou o primeiro filho e são só dois, graças a Deus. (...) A gente sai bastante, eu saio bastante com meu irmão. Agora não, porque ele está namorando. (...) Eu nunca me importei muito com o meu pai. Eu não sei porquê, sempre deixei de lado. Meu irmão sente muito mais falta e isto dá para perceber. - Como você sabe que ele sente? - Como uma figura paterna masculina”. Uma das poucas lembranças de infância relatadas por Flávio refere-se ao seu irmão. Ele lembra que esconde o irmão dentro de uma máquina de lavar roupa e parecia se divertir enquanto sua mãe o procurava. 29 O aspecto do risco que seu irmão corria nesta situação não foi sequer mencionado. Ele parecia manter a mesma atitude infantil diante deste episódio, pois não reconhece nem perigos nem a agressividade implícita em seu relato. “Memórias de criança. (...) Fato que eu lembro é... que estava brincando com meu irmão, quando era criança e meu irmão queria olhar dentro da máquina de lavar, queria subir lá. Aí eu fui ajudar ele, aí ele falou: empurra. E eu empurrei e ele caiu dentro da máquina, só que estava vazia e estava desligada. Ele dormiu lá dentro, a minha mãe ficou feito louca, procurando ele dentro de casa e eu falava que eu não sei onde que está, e ele estava dentro da máquina. Aí, uma hora que ela foi por roupa dentro da máquina, ela levantou e viu que ele estava lá”. Flávio diz que para ele a vida é como um jogo. Um jogo como o xadrez, que envolve estratégia e o conhecimento das regras para poder sair vencedor. Esta parece ter sido uma forma que Flávio encontrou para não levar sua vida a sério. Uma maneira de se relacionar que garanta distanciamento dos próprios sentimentos e, acima de tudo, uma maneira de fazer prevalecer a sua forma de ser. Neste jogo a dois, é fundamental conhecer o desejo do adversário, pois é a partir deste conhecimento que ele pode chegar a vencer, mesmo que tenha que perder algumas “peças” importantes. “Falar de xadrez quer dizer falar de você mesmo. Eu acho que é. No começo, como qualquer coisa que você faz, você tem que ter um plano e se a pessoa faz um lance, você tem que analisar este lance e ver o que ela vai querer até o final da partida. Qual vai ser a troca que ela vai querer, existe uma troca em tudo. (...) Você vai trocar peças e vai tentar sair vitorioso no final. A vida é um jogo, eu acho. Depende de você fazer os lances certos e você vai se dar bem e saber a hora de fazer o lance, mesmo que você tenha que perder uma peça grande, uma peça valiosa, mas você vai poder jogar o rei dele no chão, do seu adversário”. Flávio explica que o seu jeito calmo é também uma maneira de lidar com uma situação que o aborrece, pois, quando alguém diz algo que ele considera besteira, ele simplesmente se mantém calmo e não leva em consideração o que a outra pessoa lhe diz. Deste modo, descreve sua reação diante da frustração, fica surdo como se estivesse em uma posição de superioridade e indiferença ao outro que, de alguma maneira, o aborrece. “Eu soucalmo. (...) Meu jeito de ser eu não sou explosivo. (...) Se alguém vier te falar alguma coisa, besteira no seu ouvido, você olha para a cara da pessoa e tudo bem entra por aqui e sai por aqui. É muito mais prático, eu não vou ficar me revoltando por causa disto”. 30 Nas atividades profissionais, Flávio apresenta-se como indispensável. Para conseguir uma promoção, ele ameaça deixar o trabalho. Um trabalho que acredita ser o único capaz de realizar. “Vou ser promovido agora. Porque eu cheguei a... não foi bem uma ameaça, mas eu cheguei a dizer que eu estava procurando outra coisa (...) e a pessoa se espantou dizendo que eu não podia fazer isto, (...) mais ninguém vai conseguir fazer o trabalho que eu faço. Eu sou a única pessoa que vai saber fazer este tipo de trabalho”. Flávio faz uma comparação entre o cumprimento de tarefas no trabalho e suas relações interpessoais dentro da empresa. Ele diz que realiza melhor o primeiro do que o segundo, como se relacionar com as pessoas fosse uma tarefa que ele não desempenha muito bem. “Para ser bem sincero, eu trabalho melhor do que... do que... faço o papel social diante das pessoas. Eu sou quieto e não me dou bem com algumas pessoas, então, no fundo, é mais o trabalho mesmo”. Nos relatos de Flávio, é possível identificar um auto-engrandeci- mento, que se sente através do bom desempenho que disse apresentar no trabalho. Com relação ao descontentamento, ele não fala como o sujeito do discurso, mas, sim, que as pessoas ficam chateadas pela falta de reconhecimento do trabalho. “... eu gosto de trabalhar aqui, me sinto bem, mas não é reconhecido, o trabalho no banco atualmente não é reconhecido. Isto aí deixa as pessoas chateadas, desanimadas, desmotivadas”. Flávio relata o acidente de forma descritiva e detalhada. Ele se apresenta em dúvida com relação a quem teve culpa pelo acidente. Segundo ele, uma pessoa atravessou a rua cambaleando, como se estivesse embriagada, obrigando-o a desviar e perder o controle sobre o veículo. Apesar de falar que passou a noite em um bar com seus amigos, diz que não bebeu nenhuma bebida alcoólica para ficar embriagado. Flávio relata uma obrigação em desviar como se um outro externo a ele o direcionasse, como se não tivesse outra alternativa. Considera-se injustamente acusado de estar alcoolizado pelas pessoas que testemunharam o acidente. Assim, uma pessoa alcoolizada, que não é ele, é a responsável pelo acidente. Durante o relato, Flávio mantinha o mesmo tom de voz e parecia estar contando um acontecimento do qual não participou, como se fosse apenas uma história. A sensação é a de que ele considera a pessoa que faleceu no acidente como uma peça de xadrez que foi tombada. 31 “Ah... de quem que foi a culpa daquele acidente? Eu não sei. (...) A gente foi para um barzinho e eu saí de lá por volta de cinco horas, (...) de repente apareceu uma pessoa na minha frente que (...) estava atravessando a pista correndo, correndo mas cambaleando, parecia que estava bêbado e eu fui obrigado a desviar, quando eu desviei, eu perdi o controle do carro (...) o que aconteceu com o carro desta pessoa que eu bati, quando eu joguei na parede, ele estava sem cinto de segurança, não tinha nada, daí, ele também foi esmagado na parede, ele teve esmagamento... esmagamento do tórax... Ah... quebrou a cabeça e acabou falecendo no caminho do hospital (...) acabaram dizendo que eu estava bêbado. (...) Foi este o depoimento que eles deram na delegacia de polícia e agora (...) tenho certeza de que eu não bebi nenhuma bebida alcoólica para poder estar bêbado na... e isto é que tenha causado o acidente”. Diante dos danos causados pelo acidente, Flávio assume uma postura de quem julga e conhece os sentimentos dos familiares da pessoa que faleceu. Assim, diz que a família não sentiu a morte daquela pessoa e que a reação de choro da viúva era apenas uma encenação. Partindo da certeza de que os familiares da vítima só queriam dinheiro, ele procura posicionar-se na situação. Ele transforma uma situação que apresenta um dano irreparável em uma outra, na qual é possível conceder o que acredita que lhe pedem, ou seja, se os familiares só querem dinheiro, isto ele pode oferecer. Imagina-se pagando uma dívida financeira e liberta-se da responsabilidade. “A família da vítima está inconsolada, mas eu não tive culpa (...) O que eu acho engraçado é que a família, em nenhum momento, ficou sentida com a morte. Eles só pediram uma indenização (...) não deu para sentir que eles... Ah... ficaram magoados por causa, porque aquele senhor morreu (...) queriam é pedir dinheiro. Foi o dinheiro mesmo, não teve nada a ver com a pessoa que faleceu. Apesar da viúva chorar no tribunal e tudo... uma cena, acho que era isto”. Flávio relata que importa-se mais com o fato de ter perdido a carteira de habilitação e de ter que responder um processo do que com o fato de uma pessoa ter falecido no acidente. Ele diz que não teve culpa e que como acredita que os familiares da vítima não sentiram a sua morte, ele não tem motivo para sentir também. Talvez, assim, esteja demonstrando o olhar “terrível” que ele possui da realidade. A relação que Flávio parece fazer entre estes acontecimentos é a de que ele reconhece que houve uma morte, mas não porque ele matou, mas, sim, porque uma outra pessoa provocou isto. Como não tem culpa, não tem, também, sentimentos em relação a esta morte. 32 “Eu estou mais chateado por ter... Ah... ficar sem a carteira, já são oito meses... de ter que responder um processo criminal que... eu acho que eu não sou culpado. Então, é este o ponto. (...) Se a família não está se importando com a pessoa que faleceu, por que você deve se importar?”. Flávio aceita participar da entrevista como se ela fosse um jogo, no qual ele necessita conhecer o roteiro para poder jogar. Isso remete a uma relação, vivenciada na entrevista, na qual ele procura introduzir um terceiro elemento capaz de protegê-lo da ameaça que sente frente a uma situação dual e desconhecida. Diante da constatação de que não existe um roteiro, ele assume uma postura de porta voz do desejo do outro, como se soubesse o que queremos que ele fale, não havendo, portanto, distância psíquica entre nós. Esta dinâmica narcisista remete àquela de uma criança que não é capaz de distinguir entre um eu e um outro (Freud, 1914 APUD MENDES 1996). Esta parece ser uma situação invasiva e assustadora da qual ele se defende, procurando transformá-la em um jogo. É neste enredo que ele insere “olhares terríveis”, para se defender do saber que pensa que o outro pode ter sobre ele, ou seja, a unidade mental. A impressão é a de existir desejos de fusão proibidos na realidade, mas permitidos no jogo e vivenciados em suas relações com as figuras femininas (Freud, 1912 APUD MENDES 1996). Para ele, parece ser fundamental não levar a sua vida a sério, transformando-a em um jogo no qual deve existir uma troca, que parece se traduzir em lucro. Isso sugere uma postura de desconfiança, em que está sempre computando os pontos ganhos e perdidos. Posiciona-se, diante das relações interpessoais, como uma criança pequena, dependente de um adulto, para fornecer-lhe sempre um referencial. As vivências que ele apresenta com a figura materna possuem características semelhantes. Assim, para ele, a mãe ainda é concebida como uma extensão dele mesmo, capaz de conhecer e satisfazer suas necessidades. Ela o livra da agressividade paterna. A percepção é de uma imagem que o protege da ameaça de uma figura masculina, que pode, de
Compartilhar