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Febre Reumática

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FEBRE REUMÁTICA 
 
Charles Albuquerque 
 
Doença inflamatória autoimune sistêmica aguda que ocorre como sequela de uma infecção das vias aéreas superiores 
(orofaringe) pelo Streptococcus pyogenes cuja caracterização clínica baseia-se no comprometimento do coração, 
articulações, tecido subcutâneo, pele e sistema nervoso. 
 
EPIDEMIOLOGIA 
Em Pernambuco, cerca de 50% das crianças não referem infecção prévia, devido a falta de assistência médica. Acomete 
níveis socioeconômicos mais baixos, crianças de 5 a 15 anos, sexo feminino e raça negra. A probabilidade de um indivíduo 
com faringoamigdalite por S. pyogenes desenvolver a FR é de 1-5%, dependendo do sorotipo do agente. Episódios prévios 
de miocardite reumática e altos níveis de anticorpos antiestreptolisina (ASLO) são fatores predisponentes para a FR, além 
da intensidade da faringoamigdalite. 
 
PATOGÊNESE 
Não é uma doença infecciosa, mas a reação autoimune decorrente desta. Os anticorpos produzidos contra certos antígenos 
bacterianos possuem mimetismo com moléculas dos tecidos dos órgãos atingidos. A reação inflamatória depende da 
interação entre linfócitos T e B, de forma que a cada nova infecção, o processo se intensifica. 
 
MANIFESTAÇÃO CLÍNICA 
O período entre a faringoamigdalite e as manifestações inflamatórias da FR é de 2 a 4 semanas. O quadro clássico é 
representado por febre, sintomas gerais e poliatrite. Ainda podem estar presentes a cardite, o eritema marginatum, 
nódulos subcutâneos e a coreia. Enquanto a poliartrite é mais comum em crianças maiores, a cardite acomete mais os pré-
escolares. 
 POLIARTRITE 
É a manifestação mais precoce e comum. É poliarticular, migratória e assimétrica. Acomete principalmente as grandes 
articulações periféricas. 
 CARDITE 
É o principal determinante do prognóstico, ocorrendo com maior frequência nas crianças mais novas e nas recidivas. O 
comprometimento pode atingir os três folhetos do tecido cardíaco, caracterizando a pancardite reumática. A atividade 
inflamatória pode durar até 2 meses. O sinal mais comum é o sopro cardíaco orgânico, presente no foco mitral, decorrente 
de uma valvulite. 
 Leve – taquicardia, alargamento de PR (diminuição na condução do impulso pelo processo inflamatório, edema e 
citocinas, que alteram o potencial de membrana), hipofonese de B1 (novamente edema, inflamação do pericárdio), sopros 
discretos no foco mitral (válvula mitral em pré-insuficiência: a inflamação deixa o tecido valvar friável, menos consistente e 
mais sujeito ao refluxo sanguíneo) 
 Moderada – sinais de pericardite aguda, sopros exuberantes, aumento moderado da área cardíaca no Rx, sinais de 
sobrecarga ou derrame pericárdico ao ECG. Pode estar presente aumento do intervalo QT 
 Grave – sinais e sintomas de insuficiência cardíaca (astenia, palidez, anorexia, hepatomegalia, estase jugular, 
edema) 
ENDOCARDITE 
Causam os sopros cardíacos, presentes em mais de 80% dos casos. São decorrentes de uma valvulite, causada por edema e 
amolecimento do endocárdio, provocando regurgitação valvar. Com o passar das semanas, a valva pode se espessar e 
desenvolver pequenas vegetações, devido ao processo inflamatório. Os sopros podem ser de difícil identificação pois 
podem estar presentes em conjunto com pericardite (causa som de atrito pericárdico e abafamento de bulhas), taquicardia 
ou IC grave. 
As lesões valvares, e consequentemente os sopros mais comuns são: 
 Insuficiência mitral – sopro holossistólico apical (mais comum). Mais audível na ponta, de grande intensidade 
(>3+), com irradiação para esquerda. 
 Estenose mitral-símile – sopro de Carey-Coombs. Ruflar mesodiastólico, audível na ponta. Diferencia-se do sopro 
estenótico real por não ter o clique clássico nem a hiperfonese de B1. É decorrente do hiperfluxo sanguíneo através de uma 
válvula inflamada 
 Insuficiência aórtica – sopro protodiastólico aórtico, mais audível no foco aórtico acessório, tende a ser de leve a 
moderada repercussão hemodinâmica, mas eventualmente pode ser grave 
Importante: apesar de refluxos e pequenas vegetações poderem ser identificados no ecocardiograma, esse exame não 
pode ser considerado um critério maior ou determinante no diagnóstico da doença, devido a presença destes mesmos 
sinais em muitos indivíduos saudáveis 
 
A disfunção valvar AGUDA mais comum da FR é a insuficiência mitral, enquanto na CRÔNICA é a estenose mitral 
 
MIOCARDITE 
É comum, porém na maioria das vezes é subclínica, sendo identificada através de 
aumento da área cardíaca no Rx e redução da fração de ejeção no Eco. Quando 
expressiva, apresenta-se através de dispneia aos esforços. Quadros floridos de ICC 
também podem ocorrer. 
Deve ser suspeitada em pacientes jovens, com episódios agudos de ICC a esclarecer. A 
cintilografia com gálio tem bastante especificidade diagnóstica. 
Ao histopatológico, são identificados os nódulos de Aschoff, que são patognomônicos 
de FR, mas não são indicadores de atividade da doença, pois podem estar presentes em 
até 50% dos casos crônicos. São caracterizados por necrose fibrinoide central, rodeada 
por histiócitos gigantes, além de linfócitos e plasmócitos 
 
PERICARDITE 
Ocorre em até 10% dos casos, também apresentando-se assintomática, descoberta através de derrame pericárdico no eco 
ou atrito pericárdico no exame físico. O ECG apresenta as alterações características: supradesnivelamento de ST côncavo, e 
infradesnivelamento do PR. 
Quando sintomática, apresenta-se como uma pericardite clássica: dor retroesternal de caráter pleurítico, que melhora com 
a flexão do tronco. 
 
ALTERAÇÕES NO SISTEMA DE CONDUÇÃO 
Pode haver BAV’s que respondem à atropina rapidamente, indicando distúrbios funcionais e não mecânicos. 
Taquiarritimias são decorrentes da miocardite atrial ou da sobrecarga ventricular 
 
ERITEMA MARGINATUM 
Rash eritematoso maculopapular, com bordas nítidas avermelhadas, serpiginosas, com centro 
claro, que se estende de forma centrífuga. Não é pruriginoso nem doloroso. É a manifestação 
menos comum da doença. Enquanto cada lesão pode durar de minutos a horas, o quadro pode 
permanecer por semanas. 
 
 
NÓDULOS SUBCUTÂNEOS 
Semelhantes a Artrite reumatoide e Lupus, são pequenos, endurecidos, indolores, sem sinais 
flogísticos e localizam-se sobre superfícies extensoras. Geralmente aparecem em associação 
com a cardite, que tende a ser mais grave. Duram 1-2 semanas. 
 
COREIA 
Instala-se meses (1-6) após os sintomas maiores terem regredido. Cerca de 20% dos pacientes com FR terão essa 
manifestação, que decorre da ligação dos autoanticorpos a neurônios dos gânglios da base, desencadeando sintomas 
extrapiramidais. Os movimentos involuntários começam nas mãos, pés e seguem para a face, podendo ser simétricos ou 
não. Várias alterações estão presentes: na fala, labilidade emocional, instabilidade postural. É autolimitado. 
 
LABORATÓRIO 
 
MARCADORES DE FASE AGUDA 
PCR – não é específica, mas bastante sensível. É o primeiro marcador inflamatório a se elevar, e também o primeiro a 
normalizar 
VHS – é o segundo marcador a se elevar, e na FR atinge valores mais altos do que em outras afecções. Costuma diminuir 
antes do fim da atividade inflamatória devido aos medicamentos 
Mucoproteínas – são os reagentes de fase aguda mais confiáveis para o acompanhamento da atividade da FR. Normalizam-
se apenas com o fim da atividade inflamatória e não sofrem ação de medicações. São o último marcador a se elevar 
Eletroforese de proteínas – alfa-2 elevada 
 
PROVAS IMUNOLÓGICAS 
ASLO – eleva-se em até 80% dos casos. É o principal marcador de infecção por Estreptococos e seu pico ocorre em até 2 
semanas após a infecção, coincidindo com o início das manifestações da FR. Pode permanecer elevado por até 6 meses 
após o fim da atividade inflamatória. 
Se dosadojuntamente com anti-DNAase B, a sensibilidade aumenta e pode chegar até 95% se dosado o anti-hialuronidase 
também. 
 
DIAGNÓSTICO 
São baseados nos critérios de Jones, e são úteis para o diagnóstico do primeiro episódio de FR. 
É confirmado com 2 critérios maiores ou 1 critério maior e 2 menores 
 
CRITÉRIOS MAIORES CRITÉRIOS MENORES 
- Poliartrite - Artralgia* 
- Cardite - Febre 
- Coreia de Sydenham - Aumento dos reagentes de fase aguda 
- Nódulos subcutâneos - Alargamento do intervalo PR 
- Eritema marginatum 
 
A evidência de infecção recente pelo estreptococo beta-hemolítico do grupo A é considerada critério obrigatório 
Obs.: a erisipela (infecção cutânea pelo estreptococo) não apresenta relação com a FR, apenas a faringoamigdalite. No 
entanto, alguns autores consideram que a erisipela pode ser considerada evidência de infecção recente. 
Para recorrência em pacientes sem sequelas cardíacas, os critérios são os mesmos. No caso de portadores de cardiopatia 
reumática crônica, a recorrência pode ser diagnosticada apenas com 2 critérios menores + o obrigatório 
Pacientes com diagnóstico isolado de coreia sem outras etiologias pode receber o diagnóstico de FR mesmo na ausência de 
outros critérios, inclusive o obrigatório 
* A artralgia só pode ser considerada na ausência de artrite 
 
TRATAMENTO 
Baseia-se na erradicação do S. pyogenes e no controle da atividade inflamatória 
ATB – Penicilina G benzatina, via IM, dose única. 1.200.000 U para adultos e 6.000.000 U para crianças. 
 O objetivo é prevenir recorrências e impedir a transmissão. Não interfere no curso da FR nem diminui o risco de cardite!!! 
Tratamento da poliartrite, febre e sintomas gerais – AAS em dose plena até que todos os sintomas e sinais inflamatórios 
cessem, incluindo a febre 
Tratamento da cardite – Prednisona na cardite moderada ou grave. Acelera a resolução dos sinais e sintomas. O 
corticoesteroide deve ser mantido por 2-3 meses, com desmame se a resposta clínica for adequada, associando o AAS. 
A cardite leve é abordada apenas com salicilatos (AAS). 
Casos mais graves devem ser tratados com drogas de ação cardiovascular (dobutamina, digoxina, diuréticos). Também deve 
ser considerada a pulsoterapia com metilprednisolona. O tratamento não afeta o curso da doença reumática, nem a 
evolução para lesão valvar crônica. 
Tratamento da FR recorrente – o mesmo do episódio inicial. É mais grave pois o paciente já apresenta lesão valvar, que 
torna-se descompensada. Se necessária, a cirurgia de troca valvar deve ser postergada até a completa recuperação da 
inflamação reumática, pois o tecido cardíaco encontra-se friável 
 
PROFILAXIA PRIMÁRIA 
Tratar a faringoamigdalite precocemente. O início da antibioticoterapia até o 9º de infecção ainda apresenta efeitos, mas 
ela deve ser iniciada o mais cedo possível. Essa abordagem objetiva a menor exposição do corpo ao Estreptococo, a fim de 
reduzir a produção dos anticorpos. Novamente, não irá interferir no curso da doença reumática 
 
PROFILAXIA SECUNDÁRIA 
Após o primeiro episódio de FRA, em qualquer uma de suas formas, iniciar ATB crônico (penicilina G benzatina), 15/15 dias 
nos 2 primeiros anos a fim de evitar recorrências 
A duração depende da exposição do paciente a fatores de risco e da gravidade das sequelas cardíacas, mas dura no mínimo 
5 anos, podendo chegar a 10 em cardites leves a moderadas e para a vida toda em cardites graves ou profissionais/adultos 
em contato constante com crianças 
 
PROGNÓSTICO 
O prognóstico da doença é determinado pela cardite: quanto mais grave, maiores as chances de complicações e morte. As 
valvas inflamadas, antes insuficientes, progridem com a inflamação sofrendo um processo fibrodegenerativo, que a 
espessa, retrai as cúspides e evolui para calcificação. A disfunção valvar crônica mais comum é a estenose mitral pura, 
seguida da dupla lesão mitral (estenose + regurgitação), regurgitação mitral e por último, dupla lesão aórtica. As lesões 
aórticas são mais comuns em homens, enquanto as mitrais prevalecem em mulheres. A valva pulmonar é muito raramente 
acometida. 
 
O fator mais importante para a degeneração valvar é a recorrência da FR!

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