Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
ORGANIZAÇÃO DO SERVIÇO DE SAÚDE E A LINHA DE CUIDADO: CONSTRUINDO A INTEGRALIDADE Marcos Schaper Raquel Pacagnella Patrícia Rech 2 A ORGANIZAÇÃO DO SERVIÇO DE SAÚDE E A LINHA DE CUIDADO: CONSTRUINDO A INTEGRALIDADE “Apenas quando somos instruídos pela realidade é que podemos mudá-la”. Bertolt Brecht. Objetivo do tema Discutir a organização do serviço local, tendo a epidemiologia e a linha de cuidado integral como ei- xos centrais e ferramentas para a melhor construir um modelo assistencial. Diante da necessidade de repensar o modelo de atenção à saúde indígena e a construção de novos caminhos, propomos a reorientação do modelo assistencial para uma mudança na produção do cuida- do, a partir da reorganização do serviço local de saúde e do processo de trabalho. Para tanto, faz-se necessário deslocar a atenção centrada no médico e na doença, para as necessidades em saúde das pessoas e das família e comunidade, e que tais conhecimentos sejam utilizados na produção de pro- jetos terapêuticos singulares e na construção de linhas de cuidado que respondam às necessidades locais.. Desta maneira, busca-se um modelo de atenção continuado, que assegure a integralidade em todos os níveis da assistência através da rede de cuidado. Para a construção da linha de cuidado integral é primordial acolher, construir vínculo e responsabili- zar-se pelo atendimento das necessidades dos usuários onde quer que estejam na rede de serviços saúde, coordenando e compartilhando o cuidado. A organização do serviço local: a epidemiologia como eixo estruturante Indo ao encontro do fortalecimento da Atenção Básica, trazemos para a nossa discussão a impor- tância do uso da epidemiologia na organização dos serviços de saúde, pois esta permite ampliar o conhecimento a respeito dos problemas de saúde , seus determinantes e condicionantes de uma determinada população, permitindo elaborar, possibilitando a elaboração de estratégias para seu enfrentamento. Além disso, fornece subsídios para melhor entender e trabalhar em diversas frentes, seja na área da promoção da saúde e/ou prevenção de doenças, seja na assistência à saúde. A epi- demiologia fornece ferramentas para o planejamento e avaliação das ações de saúde e seu uso pode transformar serviços, práticas, realidades e a vida das pessoas (Drummond, 2004). O conhecimento da situação de saúde da população (principais fatores de risco e seus determinantes, características demográficas e informações sobre os serviços) é essencial para o planejamento, orga- nização e avaliação das ações e serviços de saúde. Portanto, para a tomada de decisões, a informação é fundamental, pois orienta nossas práticas cotidianas e auxilia na avaliação do impacto das ações que desenvolvemos. Logo, ela é a base para o atendimento individual e para a abordagem dos proble- mas coletivos (Projeto Xingu, 2005). A sensibilização e apropriação pelas equipes da atenção básica dos instrumentos de coleta de da- dos são condições fundamentais para a formulação de um sistema de informação local que forneça 3 subsídio para ações transformadoras da realidade. Para isto, é necessária a avaliação crítica dos instru- mentos de registro de informação usados nos serviços. É importante que a coleta e registro de dados deixem de ser considerados pela equipe como obrigação, como um simples ato mecânico que deva fazer parte do relatório mensal, e passe a ser incorporado como instrumento fundamental para o conhecimento da situação de saúde das pessoas sob o seu cuidado. Por fim, é essencial que as informações sejam devolvidas às equipes, o que dá sentido às informações coletadas e pode gerar um processo de en- volvimento e compromisso dessas equipes com a qualidade do trabalho (Donalísio, 1993; Fialho Jr, 2004). Fialho Jr (2004), destaca as seguintes possibilidades para a utilização das informações em saúde no nível local: A primeira seria uso das informações e indicadores tradicionais a partir dos sistemas de informação de base epidemiológica, que servem em geral para diagnósticos da situação de saúde e são utilizados pela gestão em espaços maiores (país, estado, municípios e distritos). A outra possibilidade surge a partir de uma readequação das informações e indicadores tradicionais conhecidos com um recorte a partir do olhar local, que permite a personalização e inclusão de informações até então inexistentes nos sistemas oficiais. Com isso nosso sistema de informação aproxima-se do cotidiano, com possibilidade de exerci- tarmos a criação de pequenos bancos de dados e construção de indicadores ¨caseiros¨ (Fialho Jr, 2004). Como avaliar o nosso trabalho? Uma possibilidade é a avaliação qualitativa através da participação social, por meio dos espaços formais do controle social e reuniões nas comunidades. Outra estratégia, é a avaliação por meio das informações obtidas no dia a dia do trabalho, a partir de uma matriz de indicadores de saúde construída pela equipe de saúde local. Para tanto, é necessário que cada serviço de saúde tenha estabelecido quais são os indicadores tra- dicionais e específicos que serão usados localmente, de modo que, além de fornecer informações ne- cessárias para a avaliação e planejamento das ações, também promovam reflexões sobre o trabalho e estimulem a iniciativa da equipe, no sentido de pensar coletivamente estratégias para enfrentamento dos velhos e novos problemas de saúde. A apropriação do espaço local e da informação gerada no serviço é fundamental, pois propicia aos profissionais de saúde e a população condições de desencadearem processos de mudança das prá- ticas de saúde, tornando-as mais adequadas aos problemas dentro da realidade local. Portanto, a elaboração e utilização do sistema de informação pela equipe de atenção básica, a incorporação do uso crítico da informação gerada e da epidemiologia no nível local, são ferramentas importantes para conhecer os problemas específicos das comunidades, orientar as práticas cotidianas e auxiliar na ava- liação e planejamento das ações de enfrentamento. A Linha do Cuidado reforça a ideia da integralidade na assistência à saúde, ou seja, de articular as ações preventivas, curativas e de reabilitação, além de proporcionar o acesso a todos os recursos tecnológicos que o usuário necessite, desde os dispositivos da atenção básica até os de alta complexidade hospitalar. Esta concepção pressupõe um conceito simples, mas ainda distante da prática cotidiana na maioria das realidades: a responsabilização do profissional e do sistema pela saúde do usuário. O que se busca é potencializar o papel de cuidador do pro- fissional, através do ato acolhedor, do estabelecimento de vínculo, da responsabilização diante do problema de saúde, da criação de projetos terapêuticos singulares a cada necessidade, do estímulo a autonomia dos sujeitos e da busca de soluções intersetoriais para o enfrentamento dos problemas (Franco e Magalhães Jr.; 2004, Malta e Merhy, 2010). 4 O espaço de trabalho da atenção básica na saúde indígena sob a ótica da Linha de Cuidado O espaço da atenção básica é um local privilegiado para a produção do cuidado, pois é a porta de entrada do sistema de saúde e onde ocorre o encontro entre os sujeitos, o paciente, sua família e os profissionais de saúde. Local do encontro da epidemiologia com a clínica, uma clínica ampliada, uma clínica que encontramos no nosso primeiro texto, que desloca o modelo centrado na doença e no médico para uma clínica acolhedora, que cria vínculos, que coordena e responsabiliza-se pelo cuidado das pessoas. Para Malta e Merhy (2010): “torna-se necessário ainda repensar o processo saúde-doença, quanto aos seus determinantes e condicionantes, e a intervenção em toda a cadeia de produção de saúde, desde a promoção, prevenção, vigilância, assistência e reabilitação. Neste sentido, a linha do cuidado passa a ser desenhada também nocampo da gestão, articulando intervenção nos determinantes sociais, em medidas de regulação e legislação, equacionando se tecnologias, instrumentos, dentre outros, capazes de impacta- rem o processo saúde-doença, porém partindo do lugar do singular no ato do cuidado, que só o trabalho vivo pode dar conta” (Malta e Merhy, 2010). O acolhimento demanda uma organização do serviço e uma disposição da equipe para ouvir o usuá- rio, criar vínculos e resolver os seus problemas de saúde, avaliando os riscos e traçando um caminho dentro da rede de cuidado através de um Projeto Terapêutico Singular. O risco não é apenas clínico, é também social, econômico, ambiental e cultural e requer um olhar integral sobre os problemas de saúde (Franco e Magalhães Jr., 2004; Malta e Merhy, 2010). Atuar sobre os determinantes sociais exige uma ação intersetorial e incentivos à busca da autonomia pelos usuários, fornecendo informações necessárias para decisões e escolhas conscientes, inclusive as deliberações sobre os seus problemas de saúde, seu corpo e sua vida. No âmbito da saúde indígena, para a reorganização do processo de trabalho e do modelo assistencial é necessário estimular e organizar, em cada DSEI, as atividades de saúde em torno da integralidade,, a partir da articulação entre o modelo biomédico com as práticas tradicionais do cuidado, tendo como referência o contexto epidemiológico, sociocultural e ambiental dos diferentes povos indíge- nas. Para isso, é fundamental que os profissionais de saúde indígena estejam sensibilizados e instru- mentalizados para promover a articulação entre as ações de saúde dos DSEI e as linhas de cuidados tradicionais em saúde, que podem diferir de acordo com a realidade de cada povo indígena. O Ministério da Saúde (2009) destaca que informação é o conhecimento obtido a partir dos dados, dado trabalhado, ou “o resultado da análise e combinação de vários dados” (...). É um instrumento essencial para a tomada de decisão e fator desencadeador do processo informa- ção-decisão-ação. Em relação ao termo dado, destaca que é um valor quantitativo referente a um fato ou circunstância, o número bruto que ainda não sofreu qualquer espécie de tratamen- to estatístico, ou ainda, a matéria-prima da produção da informação (Brasil, 2009). 5 A definição de linhas de cuidado integral deve ter como principal referência às necessidades de saúde dos indí- genas e suas famílias, e considerar os fluxos assistenciais e itinerários terapêuticos a partir do ambiente social de cada aldeia. O acolhimento, responsabilização, constru- ção do vínculo dos profissionais de saúde com os usuá- rios e atenção cuidadosa às suas necessidades, onde quer que estejam na rede de serviços saúde, são aspectos importantes a serem trabalhados pelas Equipes Multidis- ciplinares de Atenção Básica à Saúde Indígena (EMSI). As linhas do cuidado integral e contínuas em cada DSEI deverão ser definidas de acordo com a realidade local e necessitam, para a sua construção, de articulação com as diferentes instâncias do SUS. Para isso é necessário que equipes multidisciplinares, Conselhos de Saúde, equi- pes dos Núcleos de Assistência à Saúde (NASI) dos DSEI, agora autônomos, articulem entre si e com os gestores municipais e estaduais, serviços de apoio diagnósticos e hospitalares, buscando estratégias de enfrentamento dos problemas e mantendo um fluxo de assistência dentro da rede, coordenado pela equipe da atenção básica. Além dis- to, a abordagem de problemas que necessitam de ações fora do setor saúde exige uma articulação entre gestores de diferentes esferas dos governos e instituições, buscan- do a intersetorialidade, fundamental para atuação sobre determinantes sociais e ambientais dos fatores de risco e das vulnerabilidades individuais e coletivas. A EMSI, como responsável pela atenção básica, além de organizar a li- nha do cuidado, do ponto de vista dos fluxos assistenciais, tem responsabilidades sobre o cuidado e deve ser gestora do projeto terapêutico singular, além de acompanhar o usuário, garantindo o acesso aos outros níveis de assistência e a integralidade do cui- dado. Portanto a “linha de produção do cuidado” não se encerra no momento em que é estabelecido o projeto terapêutico (Franco e Magalhães Jr., 2004, Malta e Merhy, 2010). Considerações Finais Conhecer a realidade e alimentar-se deste conhecimento é fundamental para a construção de estra- tégias de enfretamento e reorientação de modelos de atenção. A linha de cuidado deve ter como fio condutor a necessidade dos sujeitos e a epidemiologia, e para isso, é fundamental uma boa organi- zação do serviço local e interpretação das informações, ferramentas importantes de planejamento, avaliação e aproximação com a realidade das pessoas que cuidamos. Fundamental também é construir um serviço acessível, acolhedor, com uma escuta apurada para formação de vínculo, com um projeto desenhado para a singularidade de cada sujeito e com uma equipe que se sinta responsável pelo usuário mesmo quando ele está na rede de referência... além dos nossos horizontes. Mostrando o caminho do dado gerado nas aldeias e polos do DSEIXingu. Ayumã Kamayurá, Auxiliar de Enfermagem Indígena, Ofi- cina de Informação em Saúde, Polo Pavuru, DSEIXingu, 2004. Projeto Terapêutico Singular O usuário, quando entra na Unidade Básica em busca da resolução de um determinado problema de saúde, passa em primeiro lugar por uma avaliação do risco de adoecer ou por uma impressão diagnóstica, para identificar algum processo mórbido qualquer. Após esta definição, o(s) profissional (ais) que o atendeu identifica um conjunto de atos assistenciais que deverão ser praticados com o obje- tivo de resolver o problema de saúde. Este conjunto de atos assistenciais pensados para resolv- er um problema de saúde, é o que chamamos de “projeto terapêutico”. (...) Os projetos terapêuticos são estruturados para produzir o cuidado ao usuário. (...) É importante reg- istrar que o “projeto-terapêutico” é sempre um conjunto de atos pensados. Neste sentido, ele só existe enquanto é idealizado e programado mentalmente pelo(s) profission- al (ais). É neste estágio que ele é “projeto terapêutico”. Ele ganha materialidade se for executado através da ação do trabalho dialogado e proposto ao usuário “portador de problemas de saúde” e isto ocorrendo, deixa de ser “pro- jeto” para se transformar em atos concretos assistenciais. 6 Referências Bibliográficas Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância Epidemio- lógica. Guia de vigilância Epidemiológica / Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Vigilância Epidemiológica. – 7ª edição – Brasília: Ministério da Saúde; 2009. Donalísio MRC. A Informação e o Município. Saúde em Debate, CEBES. 1993; 39: 649. Fialho Jr RB. Informação em saúde e epidemiologia como coadjuvantes das práticas em saúde, na intimidade da área e da microárea – como (o) usar mesmo? Campinas/ SP. Dissertação [Mestrado em ciências]. Universidade Estadual de Campinas: Faculdade de Ciências Médicas; 2004. Franco BT, Magalhães-Jr MH. Integralidade na assistência à saúde: a organização das linhas do cuida- do. In: Merhy et al., (Orgs). O trabalho em saúde: olhando e experienciando o SUS no cotidiano. São Paulo: Hucitec, 2ª edição; 2004. Malta DC, Merhy EE. O percurso da linha do cuidado sob a perspectiva das doenças crônicas não transmissíveis. Interface. 2010; 14(34): 593-605. Projeto Xingu/UNIFESP/SPDM – SisXingu – O Sistema de Informação dos Polos Base Pavuru, Diaua- rum e Wawi. Mimeo, 2005.
Compartilhar