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SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 127 • ANGLO VESTIBULARES IINNTTRROODDUUÇÇÃÃOO UUmm ppooeettaa ccaammppeeããoo ddee aauuddiiêênncciiaa Imagine-se um ginásio de esportes com sua quadra e suas arquibancadas tomadas por jovens. Não estão ali para torcer por nenhum time. É noite, e eles assistem a um espetáculo musical. Envoltos pela escuridão, são atraídos pelo único foco de luz do ambiente: um homem, quase solitário em um palco, lê poesias. O público ouve em silêncio. Essa cena, que hoje pode nos parecer pouco verossímil, acontecia de fato na década de 1970. Mas há uma informação fundamental para que ela não seja ape- nas imaginária: o solitário leitor é o poeta Vinicius de Moraes. Sua ligação com o mundo dos espetáculos não era recente. No final dos anos 1950, ao lado de Tom Jobim e João Gilberto, participara da criação da Bossa Nova, movimento musical de grande importân- cia para a história da canção brasileira. Desde os princípios da década de 1960, suas letras tinham feito parte da trilha sonora da vida brasileira, veiculadas por emissoras de rádio e televisão. Embora os jo- vens da época o associassem, acima de tudo, à composição musical, Vinicius jamais renegara a poesia, razão pela qual o vemos naquele ginásio dos anos 1970, lendo seus versos para um público silencioso e fazendo-se acompanhar, por vezes, pelos acordes do violão de Toquinho, seu parceiro mais constan- te no período. A leitura harmonizava perfeitamente com a melodia do violão — até porque quem lia era alguém que um dia escreveu: “eu creio na música das palavras”. Passados trinta anos de sua morte, ainda hoje é possível ler Vinicius de Moraes como quem assiste a um espetáculo musical. Basta se deixar levar pela música de sua poesia. Façamos silêncio. MMaarrccuuss VVIINNIICCIIUUSS ddaa CCrruuzz DDEE MMeelllloo MMOORRAAEESS ((RRiioo ddee JJaanneeiirroo,, 11991133--11998800)) O cronista carioca Sérgio Porto usou o humor para registrar um dos traços mais marcantes da personalidade do poeta: segundo ele, o poeta jamais poderia ter sido batizado no singular — “Vinicio de Moral” — porque era muitos — daí, Vinicius de Moraes… De fato, a pluralidade de Vinicius fez com que ele lutasse a vida inteira contra quaisquer rótulos que lhe tentassem impor. Os pais de Vinicius tinham a arte nas veias: eram músicos amadores. Mas, como determinava o bom senso da época, ele optou por seguir uma carreira mais convencional, formando-se em Direito aos 20 anos. Conse- guiu uma bolsa de estudos em Oxford (Inglaterra), em 1938, mas pouco usufruiu dela, já que retornou ao Brasil no ano seguinte, em função da guerra. Depois de algumas atividades no serviço público, ingressou na carreira diplomática em 1943. Durante vinte anos, serviu em lugares como Paris, Los Angeles e Montevidéu. Em 1964, retornou ao Brasil, assistindo ao triste cenário que se seguiu ao golpe civil-militar de março daquele ano. AANNTTOOLLOOGGIIAA PPOOÉÉTTIICCAA Vinícius de Moraes ANALISE DA OBRA FERNANDO MARCÍLIO LOPES COUTO Vinicius de Moraes © F o lh a Im ag em ´ Paralelamente a essa faceta pública, Vinicius não descuidou da herança artística familiar. No mesmo ano em que se formou em Direito (1933), lançou seu pri- meiro livro, O caminho para a distância. Na década de 1930, surgiriam outros três, sempre marcados pelo tom espiritualista. No entanto, o diplomata habituado a conviver com mudanças, tanto de cidades quanto de circunstâncias políticas, também experimentou trans- formações em sua carreira poética. O último dos livros da década, Novos poemas, publicado em 1938, trazia novidades que operariam uma reorientação artística de proporções consideráveis, que fariam com que o misticismo intimista do poeta se abrisse cada vez mais para a sensualidade, para a coletividade, para o seu pró- prio tempo — elementos presentes nos livros seguin- tes, de Cinco elegias (1943) à Antologia poética (1954). Pode-se dizer que, como poeta, Vinicius continua- va diplomata. Assim como conseguiu unir o clássico ao popular na peça Orfeu da Conceição (1956), na qual ambienta o mito de Orfeu em uma favela carioca, foi capaz de reunir em torno de si gerações de artistas com interesses variados. Manteve a amizade com o sisudo poeta Octávio de Faria, de quem foi discípulo na juventude, ao mesmo tempo em que se tornava mestre dos jovens músicos da Bossa Nova — Baden Powell, Edu Lobo, Carlos Lyra, entre outros. No en- tanto, aos olhos do poder militar, seu trabalho artísti- co destoava do decoro exigido por suas funções pú- blicas. Por isso, depois de sofrer perseguições explíci- tas e veladas, recebeu a aposentadoria compulsória em 1968. Desde então, dedicou-se quase que exclusi- vamente à carreira musical, interrompida com sua morte, em 1980. Durante os anos 1960 e 1970, Vinicius parecia ter duas faces: os mais velhos o viam como poeta, en- quanto os jovens o associavam principalmente às canções populares — e, na verdade, ele nunca deixou de ser nenhuma das duas coisas. Porque soube, como poucos, conviver com a dicotomia: boêmio e diplo- mata; erudito e popular; apaixonado e indignado; ca- rioca de nascimento e baiano por adoção — uma plu- ralidade de seres que faziam dele Vinicius de Moraes. AA AANNTTOOLLOOGGIIAA PPOOÉÉTTIICCAA Capa do disco Antologia poética, Philips, 1977 Vinicius de Moraes forneceu algumas provas da atenção permanente que mantinha sobre a própria obra. Ao participar da edição de sua Poesia Completa e Prosa, lançada pela Editora Aguilar em 1968, o poe- ta reorganizou parte de sua produção, chegando mes- mo a mudar o título de um de seus livros: Poemas, so- netos e baladas virou O encontro do cotidiano. Antes dessa experiência, já havia dado um exemplo da ten- dência em rever os próprios poemas: colaborou na organização da sua Antologia Poética, publicada em 1954. É este último livro (em sua 2ª- edição, revisada e aumentada por ele) que nos interessa mais diretamen- te aqui. Na Antologia, para além de mera seleção de poe- mas, Vinicius adotou uma perspectiva crítica, explici- tada no “Prefácio” que escreveu para o livro. Nele, identifica duas fases em sua obra. A primeira delas, denominada por ele de “transcendental, frequente- mente mística”, corresponde aos livros iniciais — O caminho para a distância (1933), Forma e exegese (1935) e Ariana, a mulher (1936) e alguns textos de No- vos poemas (1938). A superação das tendências poéti- cas dessa fase se dá ao longo de um período de tran- sição, constituído pelo livro Cinco elegias (1943) — ao qual podem ser acrescentados poemas esparsos pu- blicados em jornais e revistas. É o momento em que começam a se manifestar os elementos que definiriam uma postura poética distinta da anterior. Essa nova tendência se consubstancia nos livros daquela que o poeta considera ser a segunda fase de sua carreira — a maior parte de Novos poemas (1938), além das obras Poemas, sonetos e baladas (1946), Pátria minha (1949), Antologia Poética (1954, que trazia alguns poe- mas publicados esparsamente, acrescidos de outros a partir de 1960), Livro de Sonetos (1957) e Novos poe- mas II (1959). Segundo o autor, nessas obras sua poe- sia abandona “o idealismo dos primeiros anos”, pro- movendo uma “aproximação do mundo material”. As duas fases estão representadas na Antologia — o que significa que o poeta não desprezava nenhu- ma delas. Mas não aparecem ali de maneira equili- brada, já que a segunda fase merece atenção maior. Essa preferência mostra que o poeta possuía uma vi- são evolutiva de sua obra, entendendo como avanços artísticos tanto a passagem de poemas de versos mais longos para aqueles de métrica mais curta, quanto o abandono da espiritualidade, em nome da aproxi- mação do mundo concreto. De fato, as modificações formais e temáticas apro- ximam o poeta das propostas artísticas formuladas pela primeira geração modernista brasileira — surgi- da a partirda Semana de Arte Moderna de 1922 e con- tando com nomes como Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Manuel Bandeira, entre outros. Porém, mais do que uma tentativa de dar maior contempora- neidade a sua obra, o que se percebe é um desligamen- to de expectativas pré-estabelecidas, de rigores con- ceituais e comportamentais. SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 128 • ANGLO VESTIBULARES Note-se, nesse sentido, que Vinicius usou, logo em seus primeiros poemas, um recurso próprio dos modernistas de 22, o verso livre (sem métrica regu- lar); no entanto, ele o usou em uma linguagem algo hermética e que fazia lembrar, em alguns momentos, os mesmos parnasianos e simbolistas combatidos jus- tamente por aqueles modernistas. Da mesma forma, quando transforma o cotidiano em matéria de poesia, segue outra lição das vanguardas; mas o faz inserindo a temática em formas poéticas tradicionais — como o soneto, por exemplo. Pode-se concluir daí que, assim como em sua vida pessoal, também na poesia Vinicius de Moraes não teve rigor na observação de regras e limitações de qualquer ordem. Pois é justamente a disposição do poeta para a quebra de expectativas que recomenda o abandono de uma postura excessivamente mecânica na divisão de sua obra em duas fases. Na verdade, a primeira delas já apresentava elementos antecipadores da se- guinte. Atente-se, por exemplo, para a epígrafe de seu segundo livro, Forma e exegese, de 1935: “Je ne vois clair qu’au contact de la vie” (“Eu não vejo claramente a não ser em contato com a vida”). São palavras do poeta francês Jacques Rivière (1866-1925), cuja reto- mada por Vinicius sugere um interesse pela realidade — uma das marcas da segunda fase. Da mesma for- ma, a referência religiosa e mística, que o próprio poeta associou a sua primeira fase, não desaparece por completo na segunda. Um livro como Poemas, sonetos e baladas (1946), supostamente incluído nesta, mostra, nas palavras de Antonio Candido, o “Vinicius inteiro”, isto é, expondo aos leitores tanto a dimensão da transcendência (própria da fase inicial) quanto a experiência do cotidiano (expressa posteriormente). Com essas ressalvas, é possível seguir o sentido didático adotado pelo poeta na organização de sua obra. É o que se fará aqui, levando em conta a divisão proposta no “Prefácio” da Antologia. PPRRIIMMEEIIRRAA FFAASSEE AA EEXXPPEERRIIÊÊNNCCIIAA MMÍÍSSTTIICCAA OO tteerrrroorr ddoo ppeeccaaddoo O período que Vinicius de Moraes considera a primeira fase de sua carreira poética corresponde à produção inicial, notadamente aquela que foi publica- da ao longo dos anos de 1930 (segundo o autor, o últi- mo poema da Antologia a representar essa fase seria “Ariana, a mulher” — mas alguns poemas que se ali- nhariam com ela já apresentam dados novos, como veremos adiante). Acertadamente, o poeta a conside- rou uma fase “transcendental” e “mística”. De fato, a concepção espiritualizada e cristã da existência deixou marcas profundas em sua arte. Certamente, a formação católica do poeta contribuiu para isso; mas, para além do dado particular, convém considerar que se trata de uma tendência muito forte na literatura brasileira do período — lembremos, por exemplo, nomes como Augusto Frederico Schmidt, Cecília Meireles, Murilo Mendes, Jorge de Lima etc. — que recebeu influxo da poesia simbolista, que também transparece em Vinicius. Para incluí-lo nessa tendência literária, basta observar títulos de poemas da Antologia, como “A música das almas”, “Três respostas em face de Deus” e “Poema nº- três em busca da essência”, ou ainda a fre- qüência com que aparecem em seus versos expres- sões como “céu”, “pecado” e “alma”. No entanto, sua poesia não transmite a idéia de estabilidade e confiança que se poderia associar ao exercício pleno da religiosidade. Ao contrário, o que se nota é uma espiritualidade que se manifesta sob o signo da busca de Deus, do desejo de alcançar uma transcendência que teima em não se realizar por completo. Leia-se, por exemplo, o poema “A música das almas”: Na manhã infinita as nuvens surgiram como a loucura numa alma E o vento como o instinto desceu os braços das árvores que estrangularam a terra... Depois veio a claridade, os grandes céus, a paz dos cam- pos... Mas nos caminhos todos choravam com os rostos levados para o alto Porque a vida tinha misteriosamente passado na tormenta. Nesses versos, o poeta retrata o estado inicial de uma alma como uma “manhã infinita”, perturbada pe- lo “vento”, associado ao “instinto”, que conduz à “lou- cura”. Ora, a loucura a que a alma é conduzida pelo ins- tinto representa o pecado que ronda a pureza original. Embora a “claridade, os grandes céus, a paz dos cam- pos” sejam vislumbrados, isso se dá após o transe do pecado (“Depois”), o que faz com que a “manhã infinita” jamais volte a ser a mesma. Os pecadores se voltam para os céus (“rostos levados para o alto”), buscando ali o consolo para a sua própria dor (“todos chora- vam”), em um estado de desespero acentuado pela cer- teza de que a ocorrência que lhes varrera a tranqüili- dade não passara de ser a inescapável experiência da vi- da humana, assolada constantemente pela impureza. A tentativa de alcançar a purificação espiritual so- fre permanentemente ameaça das tentações. No poema “A Legião dos Úrias”, esse perigo é represen- tado pela imagem de cavaleiros (os “Úrias” do título) que passam pelas casas espalhando o terror do peca- do, figurado em imagens fortes: E vão pelas fazendas arrancando o sexo das meninas e das mães sozinhas […] E acendem fogueiras brancas de onde se erguem chamas desconhecidas e fumos Que vão ferir as narinas trêmulas dos adolescentes adormecidos Que acordam inquietos nas cidades sentindo náuseas e convulsões mornas SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 129 • ANGLO VESTIBULARES Assim, os poemas dessa fase inicial indicam não uma religiosidade afirmativa, mas dúvidas e questio- namentos – expressões da angústia mística que o poeta experimenta. Daí o destaque que essa poesia dá ao choque entre a pureza desejada e o pecado inevitável. Em “Balada feroz”, o eu lírico incita um poeta a transformar seu canto em um instrumento purificador: Transforma-te por um segundo num mosquito gigante e passeia de noite sobre as grandes cidades Espalhando o terror por onde quer que pousem tuas antenas impalpáveis Suga aos cínicos o cinismo, aos covardes o medo, aos avaros o ouro E para que apodreçam como porcos, injeta-os de pureza! Como se pode perceber, a purificação assume uma postura ativa e até mesmo bélica, para combater os pecados do “cinismo”, da covardia e da avareza. Essa luta não se dá sem percalços, já que a insistência do ser humano em pecar conduz à impossibilidade da remissão da culpa. Na visão do poeta, o homem é um “escravo” (vocábulo usado constantemente, para figurar o homem que não consegue resistir às exigências da carne) que sofre a “miséria” (outra pala- vra usada com frequência, para simbolizar a degrada- ção provocada pelo pecado) à qual é inapelavelmente conduzido por seus próprios sentidos. A despeito dessa perspectiva universalizante, o elemento subjetivo deixa suas marcas, já que o poeta particulariza a dor humana, descrevendo sucessivas vezes a experiência trágica do pecado vivida por ele. Pense-se em versos como: “Eu fiquei imóvel e no escuro tu vieste” (“A mulher na noite”) e “No teu gran- de corpo branco depois eu fiquei” (“Agonia”). Ou ainda, no trecho a seguir, do poema “Alba”, no qual a imagem da “flor” funciona como metáfora erótica do corpo feminino do qual o eu lírico se apossa com mãos que são “nervosas” pela volúpia e pela certeza do teor impuro de seu ato: Como poderias me perdoar, minha amiga, se soubesses que me aproximei da flor como um perdido E a tive desfolhada entre minhas mãos nervosas e senti escorrer de mim o sêmen da minha volúpia? Para destacar aindamais o caráter intimista que a transgressão moral assume em Vinicius, veja-se a perda da inocência relatada em “Ilha do Governa- dor” (região do Rio de Janeiro onde Vinicius morou na adolescência e onde teria vivido suas primeiras experiências sexuais). No poema, a relação do eu líri- co com seus amigos é perturbada pela presença da mulher (“Os olhos de Susana eram doces mas Eli tinha seios bonitos”), que faz com que ele se entregue à experiência amorosa (“Depois, eu e Eli fomos an- dando... — ela tremia no meu braço / Eu tremia no braço dela, os seios dela tremiam”). Há uma discreta celebração no resgate do episódio pela memória, mas o eu lírico se refere a ele como sua “primeira angús- tia”, isto é, o amor já surge em sua vida trazendo uma bagagem de sofrimento e separação (“Um dia eu li Alexandre Dumas e esqueci os meus amigos” — lem- brando que Alexandre Dumas, autor de Os três mos- queteiros, foi um dos grandes nomes do Romantismo francês). AA tteennttaaççããoo ddaa ccaarrnnee Do universo do pecado de que trata o poeta nessa fase de sua carreira (e isso persistiria depois), avulta a figura feminina. A descrição da “branca mulher” em “O poeta”1 é uma demonstração da presença des- sa temática: Era como um canto ou como uma flor brotando ou como um cisne Tinha um sorriso de praia em madrugada e um olhar esvanecente E uma cabeleira de luz como uma cachoeira em plenilúnio. Como se vê, trata-se de uma imagem idealizada. Contudo, a mulher é, acima de tudo, representação da carne, do pecado, da tentação — enfim, uma súmula de todos os perigos que colocam o homem sob a ameaça do pecado e o risco da punição divina. Não por outro motivo o eu lírico de “A volta da mu- lher morena” apela: Meus amigos, meus irmãos, cegai os olhos da mulher morena Que os olhos da mulher morena estão me envolvendo E estão me despertando de noite. Meus amigos, meus irmãos, cortai os lábios da mulher morena Eles são maduros e úmidos e inquietos E sabem tirar a volúpia de todos os frios. Meus amigos, meus irmãos, e vós que amais a poesia da minha alma Cortai os peitos da mulher morena Que os peitos da mulher morena sufocam o meu sono E trazem cores tristes para os meus olhos. Note-se como, aqui, a já referida luta contra o pecado se realiza através de uma recusa do corpo feminino. A mulher é colocada, dessa forma, como uma instância geradora da culpa. No poema em prosa “Viagem à sombra”, lê-se: És, de qualquer modo, a Mulher. Há teu ventre que se cobre, invisível, de odor marítimo dos brigues selvagens que eu não tive; há teus olhos mansos de louca, oh, lou- ca! e há tua face obscura, dolorosa, talhada na pedra que quis falar. Nos teus seios de juventude, o ruído miste- rioso dos duendes ordenhando o leite pálido da tristeza do desejo. SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 130 • ANGLO VESTIBULARES 1 Na edição da Antologia poética, publicada pela Editora Com- panhia das Letras em 2009, das três partes de que se compõe o poema “O poeta”, as duas últimas são agrupadas separada- mente, constituindo um poema independente, “O nascimen- to do homem”. Essa opção recupera a forma original que o poeta dera ao texto, quando o publicara pela primeira vez, no livro Forma e exegese (1935) — obra em que “O poeta” apa- rece titulado como “Os malditos (A aparição do poeta)”. O “leite pálido” que vem da mulher provoca um “desejo” que é associado à “tristeza” por representar a queda moral e espiritual do homem. Atraído pela sen- sualidade a que não consegue resistir, o homem se deixa conduzir pelo pecado, para depois terminar proclamando seu arrependimento. Em alguns versos, pode-se entrever uma alterna- tiva à tendência pecaminosa. Uma estrofe de “O poeta”2 oferece uma pista nesse sentido: Tinha nascido o poeta. Sua face é bela, seu coração é trágico Seu destino é atroz; ao triste materno beijo mudo e ausente Ele parte! Busca ainda as viagens eternas da origem Sonha ainda a música um dia ouvida em sua essência. As “viagens eternas da origem” e a “essência” on- de o poeta um dia ouviu “a música” são recuperadas em um ambiente onírico (“Sonha”), o que pode ser interpretado como uma remissão à imagem platônica da memória espiritual (a reminiscência), num esforço de preservar a alma da atração magnética da matéria. Com isso, sugere-se que a salvação do corpo poderia estar na experiência amorosa apenas espiritualizada — o amor platônico. A mulher ideal para o poeta parecia ser aquela que conseguisse representar o desejo sem incorrer no pecado de satisfazê-lo… UUmmaa lliinngguuaaggeemm bbííbblliiccaa Do ponto de vista formal, a primeira fase da obra de Vinicius de Moraes é marcada pelo predomínio absoluto do verso livre (sem métrica regular). Quan- do Vinicius iniciou sua carreira, o Modernismo brasi- leiro completava uma década, e a prática da irregular- idade métrica começava a se consolidar, diminuindo o potencial de escândalo e ineditismo que já tivera. No entanto, entre os poemas dessa fase representa- dos na Antologia, chama a atenção não apenas o uso do verso livre, mas do verso longo (ou bárbaro — nome dado a versos que ultrapassam a medida do alexandrino, de doze sílabas), que desrespeita mar- gens e limites. Embora tal recurso possa, com acerto, ser associado a um exercício de liberdade estética, na obra do poeta carioca essa pretensa liberalização vem associada a uma linguagem retórica convencional, de certo sabor parnasiano — o que, como já foi dito, parecia contradizer os próprios princípios moder- nistas. O traço mais saliente dessa linguagem é o voca- bulário religioso — intimamente relacionado à atmos- fera mística dos textos. Já o primeiro poema da An- tologia, “O olhar para trás”, introduz o leitor nesse universo vocabular: “piedade”, “círio”, “céu”, “orató- rio”, “homem prostrado”, “óleo santo” etc. Ainda desse mesmo poema pode-se recolher outro recurso comum na primeira fase: trata-se do polissíndeto, ou seja, a re- petição da conjunção aditiva (“e”) na seguinte estrofe: E o olhar estaria ansioso esperando E a cabeça ao sabor da mágoa balançando E o coração fugindo e o coração voltando E os minutos passando e os minutos passando... Não é casual a exploração dessa figura nos poe- mas do período. De fato, o polissíndeto, associado ao ritmo pausado do verso longo e ao conteúdo místico, contribui para dar ao texto um aspecto que evoca o versículo bíblico, tal como também se observa na poesia cristã de Augusto Frederico Schmidt ou de Octávio de Faria, cuja influência a de Vinicius absor- vera, sobretudo na primeira fase. É curioso notar que, a despeito da irregularidade métrica, alguns poemas apresentam regularidade estrófica (isto é, estrofes com o mesmo número de versos). Textos como “O olhar para trás”, “O incria- do”, “A Legião dos Úrias”, “O poeta”, “Balada feroz”, “A máscara da noite”, por exemplo, são compostos por estrofes de quatro versos. Talvez esse choque en- tre o derramamento dos versos longos e os limites das estrofes regulares funcione como uma tradução formal do drama que o poeta vive e de que já se tra- tou aqui: o impasse entre o desejo de alcançar a sub- limidade da vida espiritual e a prisão ao mundo ma- terial que o pecado representa. TTRRAANNSSIIÇÇÃÃOO OO CCAAMMIINNHHOO PPAARRAA AA RREENNOOVVAAÇÇÃÃOO OO ppeeccaaddoo mmoorraa aaoo llaaddoo No “Prefácio” que escreveu para Antologia Poé- tica, Vinicius reconhece em sua obra um “período de transição entre aquelas duas tendências”. Para ele, apenas um livro, Cinco elegias, publicado em 1943, re- presentaria essa transição. No entanto, é possível per- ceber sinais de mudança em obras anteriores a essa data, como o poema-livro Ariana, a mulher (1936) e em alguns textos de Novos poemas (1938). Assim, para efeito didático e sem nenhuma pretensão de es- tabelecer limites rigorosos, pode-se considerar que, no que diz respeito aos poemas listadosna Antologia, esse período de transição iria de “A invocação da mu- lher única” até “A última elegia”. Seja como for, o poeta reconhece um momento de sua carreira em que as duas fases de sua produção poética “se encontraram e fundiram em busca de uma sintaxe própria”. De fato, em alguns poemas dos livros em questão, o que se percebe é a convivência de elementos antigos, isto é, da primeira fase, com novas informações poéticas. A luta contra a carne, que marcara a fase inicial, persiste, por exemplo, em “Solilóquio”, em que o eu lírico propõe “Caminhar SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 131 • ANGLO VESTIBULARES 2 Na edição da Companhia das Letras publicada em 2009, essa estrofe pertence ao poema “O nascimento do homem” (ver nota 1). ciliciando a carne / Sobre o corpo macerado da vida” — recorde-se que ciliciar (castigar o corpo como sinal de penitência) é um termo de forte carga religiosa. Mas o teor de angústia verificado anteriormente vai cedendo terreno à aceitação maior do próprio desejo, como se vê em “Invocação à mulher única”, poema no qual a relativa misoginia (= aversão à mu- lher) que despontara na primeira fase, em função da associação entre a figura feminina e o pecado, agora aparece diminuída: “Criatura, mais que nenhuma outra, porque nasceste fecundada pelos astros (...) / (...) / Mulher que eu amo, criança que eu amo, ser igno- rado, essência perdida num ar de inverno...” O poeta continua aqui as suas incansáveis buscas. Antes, elas eram definidas pela tentativa de se alcan- çar o sublime, a transcendência espiritual — pode-se dizer, o amor de Deus. Agora, o amor está preserva- do; isto é, o poeta continua a buscá-lo (“O que é o meu Amor? senão o meu desejo iluminado / O meu infinito desejo de ser o que sou acima de mim mesmo” — versos de “A vida vivida”). No entanto, a busca do amor se traduz como procura da mulher amada (“Oh, a mulher amada é como a onda sozinha correndo distante das praias / Pousada no fundo estará a estrela, e mais além.” — trecho de “A brusca poesia da mulher amada”). Não é outro o assunto de “Ariana, a mulher”, que mostra um eu lírico em busca do objeto de seu de- sejo. Há um verso desse poema que representa bem esse momento em que a espiritualidade divina e a materialidade feminina se encontram sem cho- que: “E compreendi que só onde cabia Deus cabia Ariana”. Assim, partir em busca dessa mulher signifi- ca aceitar a matéria, o desejo, a transgressão — sem sofrer mais o medo da punição divina: “Onde estão os teus olhos — onde estão? — Oh, milagre de amor que escorres dos meus olhos! / Na água iluminada dos rios da lua eu os vi descendo e passando e fugindo / Iam como as estrelas da manhã. Vem, eu quero os teus olhos, meu amor!” (“Sonata do amor perdido”). Os aspectos que estão sendo levantados aqui, típicos da transição poética de Vinicius, estão reuni- dos em um trecho bastante significativo de “A vida vivida”: O que é a mulher em mim senão o Túmulo O branco marco da minha rota peregrina Aquela em cujos braços vou caminhando para a morte Mas em cujos braços somente tenho vida? A mulher ainda se associa à perdição e à morte (“Túmulo”, “vou caminhando para a morte”), mas também contém seu teor de vitalidade e de renovação (“em cujos braços somente tenho vida”). Nesses ver- sos, é possível verificar a persistência da vertente reli- giosa que predominara na primeira fase. Mas pres- sente-se que essa busca da mulher acabará por pro- vocar o nascimento do homem — isto é, a aceitação da sua dimensão erótica. AAss CCiinnccoo eelleeggiiaass A transição experimentada pelo poeta está regis- trada nas Cinco elegias, o livro que, para Vinicius, fun- ciona como síntese das duas fases. Por isso, interessa acompanhar resumidamente o desenrolar desses tex- tos. Convém lembrar que o próprio poeta declarou (em texto de abertura do livro Cinco elegias) que idea- lizou as quatro primeiras de uma só vez, em certa jor- nada de 1937. A primeira, “Elegia quase uma ode”, já traz um verso que consubstancia as transformações que então se operavam na vida e na obra do escritor: “Meu sonho, eu te perdi; tornei-me em homem”. O “so- nho” corresponde ao “idealismo dos primeiros anos” a que se refere o autor no “Prefácio”. Perder esse so- nho significa abandonar a atmosfera onírica e trans- cendente dos primeiros poemas. Tornar-se homem, por outro lado, representa o contato com a vida, com a realidade, com a imanência. A reafirmação da própria humanidade também transparece na elegia seguinte, a “Elegia lírica”, na qual o poeta trata do sentimento amoroso, voltando-o especialmente para a amada diretamente referida (“A minha amada é tão bonita, tem olhos como besourin- hos do céu”). A dilaceração íntima provocada pelo embate entre carne e espírito aciona um tom auto- piedoso: “Oh / Crucificado estou / Na ânsia deste amor / Que o pranto me transporta sobre o mar”. Escapando um pouco do intimismo das duas pri- meiras elegias, o poeta coletiviza seu canto, ao referir- se ao “homem vazio” que “se atira para o esforço des- conhecido” na “Elegia desesperada”. A confirma- ção dessa dispersão se dá no trecho que traz como título “O desespero da piedade”, uma longa prece pela qual desfilam figuras humanas as mais variadas (“músicos de café e casas de chá”, “pequenas famílias suburbanas”, “vendedores de passarinhos” etc.), por quem o poeta pede piedade. O ponto culminante é re- servado ao “longo capítulo das mulheres”, que tam- bém comporta referências múltiplas (“moças peque- nas das ruas transversais”, a “mulher no instante do parto”, “mulheres chamadas desquitadas” etc.). O pedido inclui o próprio eu lírico — mas apenas no úl- timo verso, um espaço menos destacado do que aque- le, central, das elegias anteriores —: “E se piedade vos sobrar, Senhor, tende piedade de mim!” Da multidão anônima que figura na “Elegia de- sesperada”, o poeta passa para um tom afetivo mais próximo, na “Elegia ao primeiro amigo”. Concla- ma o destinatário a refletir sobre os desdobramentos do sentimento amoroso ao qual ele está prestes a se entregar e lamenta essa decisão, a partir de suas pró- prias experiências. Assim, mesmo tratando do drama do amigo, o parâmetro é a vivência íntima do poeta. No entanto, isso não significa perda da perspectiva mais ampla, já que o texto trata do sofrimento ineren- te à condição de apaixonado. SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 132 • ANGLO VESTIBULARES Finalmente, “A última elegia” é a expressão de um apaixonado (“Da alta e irreal paixão subindo as veias / Com que chegar ao coração da amiga”). Mes- mo com uma impressionante pluralidade de refe- rências — em que se incluem trechos retirados de poemas da língua inglesa —, não perde seu caráter de evocação da amada, embora realizado quase que com agressividade e um pouco distante do lirismo das elegias anteriores. É como se a experiência mun- dana, o contato com o outro de “Elegia desesperada” e “Elegia ao primeiro amigo” fizesse o poeta intimista da “Elegia quase uma ode” e da “Elegia lírica” ampliar seu universo expressivo. Curioso é notar que isso, de fato, ocorreria na obra de Vinicius, dali em diante. PPrriimmeeiirraass oouussaaddiiaass ffoorrmmaaiiss A convivência de traços da primeira fase com no- vas informações estéticas manifesta-se igualmente no terreno formal. Persiste, por exemplo, a exploração ocasional da regularidade estrófica. O poeta não abandona por completo o vocabulário litúrgico, como a evidenciar a persistência das angústias reli- giosas dos primeiros livros. No entanto, já ocorrem algumas transgressões significativas. Algumas das mais importantes aparecem nessas mesmas Cin- co elegias, indicadas pelo próprio poeta como o ponto de clivagem das duas fases de sua carreira. Assim, a desobediência às restrições de gê- nero, como a inserção de trechos em prosa no corpo do poema (já ensaiada antes com “Viagem à som- bra”), é reafirmadapor duas vezes, em “Elegia quase uma ode” e “Elegia lírica”. Neste último poema, temos ainda uma demonstração das primeiras tentativas de Vinicius no caminho que, mais tarde, representaria uma transformação poética relevante: a adoção de uma linguagem mais coloquial, como se lê no tre- cho em prosa de “Elegia lírica”: Meu benzinho adorado minha triste irmãzinha eu te peço por tudo o que há de mais sagrado que você me escreva uma cartinha sim dizendo como é que você vai que eu não sei eu ando tão zaranza por causa do teu abandono eu choro e um dia pego tomo um porre danado que você vai ver (...) Na “Elegia desesperada”, aparecem elementos que seriam constantes na obra, a partir desse momento. Vejamos o exemplo a seguir: Tende piedade dos homens úteis como os dentistas Que sofrem de utilidade e vivem para fazer sofrer Mas tende mais piedade dos veterinários e práticos de farmácia Que muito eles gostariam de ser médicos, Senhor. Verifica-se, no trecho, o tom religioso que ca- racterizava a poesia do autor (“Tende piedade”, “Se- nhor”), mas que, agora, faz-se acompanhar por claras referências ao cotidiano (“dentistas”, “veterinários e práticos de farmácia”), temperadas com algum hu- mor. Na “Elegia ao primeiro amigo”, pode-se entre- ver o cômico no tom dolorosamente irônico que o poe- ta usa para avisar um amigo dos desastres de amor que ele (o amigo) se dispõe a experimentar. “A última elegia”, por fim, contém as maiores ou- sadias formais de toda a obra de Vinicius. Composta no final da década de 1930, quando o poeta gozava de uma bolsa de estudos na Inglaterra, o poema mistu- ra expressões em inglês e em português, apresen- ta inúmeros exemplos de intertextualidade (com referências a muitos escritores britânicos), além de neologismos e inusitadas disposições gráficas, como as da abertura do texto, reproduzida a seguir: O L O F E S R S H E “O O F C A Greenish, newish roofs of Chelsea Onde, merencórios, toutinegram rouxinóis Forlornando baladas para nunca mais!” Os telhados do bairro londrino de Chelsea, referidos em “A últi- ma elegia” O primeiro verso (“O, roofs of Chelsea” — isto é: “Ó, telhados de Chelsea”) tem suas letras dispostas de forma a imitar os telhados característicos das casas do bairro londrino de Chelsea, utilizando-se de um procedimento que seria bastante explorado posterior- mente, pela Poesia Concreta da década de 1950. O segundo verso apresenta duas expressões em inglês, “greenish” (= esverdeado) e “newish” (algo como “no- vidadeiros”), enquanto o terceiro é escrito em portu- guês, trazendo um neologismo, “toutinegram” (for- mado a partir de toutinegra, espécie de pássaro, e fazendo referência ao canto dos “rouxinóis”, citados a seguir). “Forlornando”, que aparece no quarto verso, é outro neologismo, constituído a partir de uma pala- vra inglesa (forlorn, isto é, triste, desolado, infeliz), acrescida de um sufixo típico da formação do gerún- dio em português. Note-se que o vocábulo forlorn aparece no poema “Ode a um rouxinol” (1819), do poeta inglês John Keats (1795-1821). O poema de Vinicius segue nessa linha, desafiando a capacidade interpretativa do leitor. SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 133 • ANGLO VESTIBULARES AArriiaannaa,, aa mmuullhheerr Para finalizar essas considerações a respeito do período de transição da poética de Vinicius, convém destacar o poema “Ariana, a mulher”. A despeito de ser alinhado junto à primeira fase pelo próprio autor, traz algumas direções particulares. É possível per- ceber o desenvolvimento expositivo do tema da bus- ca da mulher amada, que viria a se constituir em um dos mais marcantes de sua obra. Em um primeiro momento (estrofes 1-3), o poeta descreve a própria solidão, em que tudo rescende a morte. Na quarta es- trofe, ele percebe que a sensação mórbida está nele mesmo. A solução é apontada logo a seguir: sair à procura da amada, em uma busca que, ainda que car- regada de angústia, vem também cheia de esperança. Desesperado me ergui e bradei: Quem és que te devo procurar em toda parte e estás em cada uma? Espírito, carne, vida, sofrimento, serenidade, morte, por que não serias uma? Quando essa mulher é finalmente encontrada, dá-se também o reconhecimento da sua plenitude, como algo que é clamado por todos e ocupa todos os espaços (estrofes 15-18). Um trecho, já citado ante- riormente, sintetiza toda a dimensão (e imensidão) do trajeto existencial do poeta: “E compreendi que só onde cabia Deus cabia Ariana”. Nesse verso, pode-se notar, de um lado, a reafirmação da tendência mística do poeta, e, de outro, o desafio a essa mesma tendên- cia, fazendo pontificar a mulher de carne e osso, à qual confere uma dimensão quase divinizada. Em tais poemas, percebe-se com clareza o esfor- ço do artista na tentativa de elaborar novas formas de expressão. Vinicius levaria adiante essa tendência, mudando corajosamente o rumo de sua obra. SSEEGGUUNNDDAA FFAASSEE AA DDEESSCCOOBBEERRTTAA DDOO MMUUNNDDOO UUmm nnoovvoo cceennáárriioo:: oo ccoottiiddiiaannoo Vinicius definiu “O falso mendigo” (publicado ori- ginalmente no livro Novos poemas, de 1938) como o texto que evidencia a consolidação de novas opções expressivas em sua obra. De fato, a partir dele, na An- tologia, as marcas anunciadas durante o período de transição mostram-se ainda mais salientes. Livros posteriores, como Poemas, sonetos e baladas (1946) e Novos poemas — II (1959), além da própria Antologia (que, como já se disse, publicada originalmente em 1954, trazia alguns poemas inéditos), confirmam a firmeza da direção assumida pelo poeta. Novas linhas temáticas ganham força e consis- tência. Dessas, a mais importante é aquela que trata do cotidiano. A importância desse tema é reconhe- cida pelo próprio poeta, que, na organização de sua Poesia completa e prosa para a Editora Aguilar, em 1968, reuniu parte de sua produção sob o título de “O encontro do cotidiano”. Nesse contexto, ganha desta- que a temática da vida urbana, que aparece, por exemplo, em “O dia da criação” e em muitas das bala- das, algumas das quais tratam de mulheres inseridas na cidade grande. Embora relativamente nova na obra do autor, a temática do cotidiano já gozava de certa tradição em nossa literatura, em virtude da fixação que os moder- nistas de 1922 demonstraram por ela. As paisagens urbanas das multidões pelas ruas, de trens e automó- veis movimentando-se velozmente, do cinema e da cultura, são faces da apologia da cidade grande que se percebe em escritores como Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Antônio de Alcântara Machado, Octávio de Faria, entre outros. Herdeiro da perspecti- va lírica desses poetas, Vinicius promove a integra- ção da realidade à poesia. Esta, todavia, é que deve dominar a expressão; o real deve servir ao estético. AA mmuullhheerr ddee ccaarrnnee ee oossssoo O mergulho no cotidiano atualiza uma série de temas da fase anterior. Isso ocorre, por exemplo, com a figura da mulher. A busca pela amada permanece como uma das obsessões do poeta — no entanto, em uma versão que se permite algum erotismo. A mulher, agora, tem “mãos lânguidas, loucas” e seduz o poeta, a ponto de fazê-lo indagar: “Quem te criou tão boa para o ruim / E tão fatal para os meus versos duros?” (“Soneto à lua”). O louvor da beleza atinge a apologia da forma atlética em “Balada das meninas de bicicle- ta”, em que as ciclistas são chamadas de “Centauresas transpiradas”, imagem que remete aos centauros, seres míticos com torso humano e pernas de cavalo, que, no poema, figuram a força física das moças. A mulher assim concebida, ao se distanciar da idealização dos poemas iniciais, passa por um pro- cesso de dessacralização. É bem esse o enfoque do “Soneto de agosto”, que retrata uma mulher despoja-da tanto de suas roupas quanto de qualquer tipo de transcendência: Só assim arrancara a linha inútil Da tua eterna túnica inconsútil... E para a glória do teu ser mais franco Quisera que te vissem como eu via Depois, à luz da lâmpada macia O púbis negro sobre o corpo branco. O despojamento atinge imagens consagradas da mulher, para trazê-la ao seu próprio tempo. Assim ocorre com a moderna personagem da “História pas- sional, Hollywood, Califórnia”, que traz, na boca, “um beijo com batom marca indelével” e um brilho “de dois mil dentes de esmalte” e, no corpo, um “seio de arame”. Em tentativas de sedução sempre frustradas, o eu lírico a vê beber “vinte uísques”, dançar a uma velocidade de “cem rotações de quadris por minuto”, SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 134 • ANGLO VESTIBULARES realizar “um desejo de boliche”, matar a sede com “uma coca gelada” — até que ele, cansado de suas re- cusas, mata-a e a possui “assim, morta e desfigurada”. Como se vê, estamos bem distantes das histórias de amor com finais felizes de muitos dos filmes de Hollywood, Califórnia... Em “Receita de mulher”, a desmontagem fere de morte a própria poesia lírica de evocação e apologia da amada. O título, por si só, já possui uma sugestiva nota culinária. E os versos que se seguem a ele des- crevem a mulher ideal em um plano predominante- mente físico, em termos que parecem dialogar ironi- camente com a obra de Vinicius — e que, até hoje, ainda são capazes de deixar de cabelos em pé as femi- nistas menos complacentes: As muito feias que me perdoem Mas beleza é fundamental [...] Seja leve como um resto de nuvem; mas que seja uma nuvem Com olhos e nádegas. Nádegas é importantíssimo. [...] [...] É preciso que as extremidades sejam magras; que uns ossos Despontem, sobretudo a rótula no cruzar das pernas, e as pontas pélvicas No enlaçar de uma cintura semovente [...] [...] Que a mulher seja, em princípio, alta Ou, caso baixa, que tenha a atitude mental dos altos pín- caros. Destituída de sua condição santificada, a mulher desce do pedestal e ocupa as ruas. Daí a imagem femi- nina incluir não apenas a amada individualizada, mas “A mulher que passa”, capaz de despertar no poeta o mesmo desejo (“Meu Deus, eu quero a mulher que passa”) e mantendo o poder de eternizar o efêmero, já que é aquela que “fica e passa, que pacifica”. Em “Valsa à mulher do povo”, lê-se uma perfeita tradução dessa mulher: ela é a “antideusa”, situando-se fora dos padrões exigidos pela “Receita de mulher” perpe- trada pelo poeta. Despossuída de bens materiais, mis- turando-se diariamente à massa de trabalhadores que se utiliza dos trens, ela é a “Musa central-ferroviária”. Na sua busca entusiasmada por essa mulher (“Te en- contrarei. Te encontrarei nas feiras livres”), percebe- se certa nota de piedade e comiseração — a mesma que ele dedica às infelizes e solitárias funcionárias da “Balada das arquivistas”. Ainda no terreno da condição feminina, desta- cam-se duas imagens fortes e de grande apelo na arte brasileira: a que mostra a prostituição e a que realça o instinto maternal. O ofício das prostitutas de “Balada do Mangue” (zona do meretrício carioca) traz menos perfume que podridão ao jardim amoroso: “Pobres flores gonocócicas / Que à noite despetalais / As vos- sas pétalas tóxicas!”. A prostituição é o tema do quadro acima (“O interior no Mangue”, 1949), do pintor Lasar Segall (1891-1957) e tam- bém de “Balada do Mangue”, de Vinicius de Moraes A mulher de “Balada para Maria” é feita para a maternidade; a ela, o eu lírico proclama: “— Cobrir- te-ei da pomada / Do pólen das flores puras / E te fe- cundarei deitada / Num chão de frutas maduras”. Como se vê, trata-se de um jardim mais propenso à frutificação do que aquele do Mangue. “Mulher com criança” (1936), de Candido Portinari (1903-1962) SSeexxoo sseemm ccuullppaa Contudo, o ponto culminante da vertente erótica é a referência à relação sexual, constantemente abordada. Por vezes, apenas como manifestação de desejo incontido, como em “O assassino”, em que o eu lírico “põe olhos malvados” em inocentes “meni- nas de colégio”. Outras vezes, em poemas de tom memorialista, como a recordação das primeiras ex- periências sexuais em “Rosário” (“E eu que era um menino puro / Não fui perder minha infância / No mangue daquela carne!”), em “Marina” (“E quantas vezes, precoce / Em vão, pela tua posse / Não me saí SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 135 • ANGLO VESTIBULARES tão mal...”) ou em “Epitalâmio”, que celebra encontros amorosos passados, na onipresente busca do amor definitivo. Aqui e ali, surge uma imagem mais inusita- da, como a da vampiresca amante de “A que vem de longe” (“Ela cobriu-me de seus cabelos / E os duros lábios no meu pescoço / Pôs-se a sugar-me.”). Mas a abordagem mais constante é aquela que focaliza o ato sexual em si. Vejamos alguns exem- plos. O título do “Soneto de devoção” traz à tona uma expressão de matriz religiosa, fazendo-a voltar-se para a descrição da mulher nua: Essa mulher que se arremessa, fria E lúbrica aos meus braços, e nos seios Me arrebata e me beija e balbucia Versos, votos de amor e nomes feios [...] Essa mulher é um mundo! – uma cadela Talvez... – mas na moldura de uma cama Nunca mulher nenhuma foi tão bela! Também o “Soneto da mulher inútil” parece que- rer realizar a pintura da mulher nua, emoldurando-a uma vez mais no leito do amor: “Brancos seios azuis, nívea garganta / Branco pássaro fiel com que me dei- to”. Apenas convém ressaltar que o pintor, no caso, não é mero observador, mas participante ativo do encontro sexual — o que se explicita uma vez mais em “O mergulhador”, que transforma o corpo feminino em um mar explorado pelo pesquisador maravilhado. Essa associação entre sexualidade e natureza ocorre ainda outras vezes, na Antologia. “Cinepoema” traz como epígrafe “O preto no branco”. Trata-se de um verso do poema “Água forte”, um dos mais eróti- cos da obra de Manuel Bandeira, que ali apresenta a descrição de uma vagina: “Em meio do pente, / A concha bivalve / Num mar de escarlata. / Concha rosa ou tâmara?”. Aproveitando-se da mesma sugestão erótica, o poema de Vinicius narra, de forma frag- mentária, uma relação sexual entre um homem negro e uma mulher branca, na Praia de Copacabana: “Ne- gror absoluto / Sobre um mar de leite / [...] / A branca de bruços / O preto pungente”. E se, aqui, o poeta se coloca como voyeur, em outro episódio, ambientado em praia diversa, ele é sujeito da ação: “Eu soube te amar, menina / Na praia do Vidigal... / [...] / Minhas mãos te confundiam / Com a fria areia molhada / Vencendo as mãos dos alísios / Nas ondas da tua saia” (“Balada da Praia do Vidigal”). A componente natural é ainda mais forte em “O sacrifício da aurora” e “O poeta e a lua”. Nos dois ca- sos, o eu lírico se envolve amorosamente com ele- mentos da natureza: a aurora, no primeiro caso (“Apaixonei-me da Aurora / No meu quarto de mar- fim / Todo o dia à mesma hora / Amava-a só para mim”); e a lua, no segundo, com tonalidades mais contundentes, que ainda ecoam o poema de Bandeira citado acima. A lua volta de flanco Eriçada de luxúria O poeta, aloucado e branco Palpa as nádegas da lua. Entre as esferas nitentes Tremeluzem pelos fulvos O poeta, de olhar dormente Entreabre o pente da lua. Um magnífico exemplo da temática sexual na Antologia é o poema “Os acrobatas”. Os versos acom- panham o desenrolar do ato sexual, começando pelo enlace inicial, a “posse física dos braços”, passando pela gestualidade mais intensa: Oh, acima Mais longe que tudo Além, mais longe que acima do além! Como dois acrobatas Subamos, lentíssimos Lá onde o infinito De tão infinito Nem mais nome tem Subamos! [...] Tu e eu, herméticos As nádegas duras A carótida nodosa Na fibra do pescoço Os pés agudos em ponta” Até atingir o orgasmo, explicitado em caixa altano verso final: Num último impulso Libertados do espírito Despojados da carne Nós nos possuiremos. E morreremos Morreremos alto, imensamente IMENSAMENTE ALTO. Note-se que o êxtase, atingido quando os aman- tes estão livres de corpo (“Despojados da carne”) e de alma (“Libertados do espírito”), é simbolizado pela morte (“E morreremos”), que aparece, assim, reco- berta de significação positiva, na medida em que se associa à plenitude de um amor que está além do físi- co e do espiritual. Trata-se de um aspecto bastante presente no novo tratamento que a temática amoro- sa recebe: se antes o amor era causa de conflito, dor, aflição e angústia, agora ele aparece como celebração. OO aammoorr vvaallee aa ppeennaa Aparentemente, para o poeta, todas as etapas do relacionamento amoroso possuem uma virtualidade positiva que as faz merecedoras de registro e comemo- ração. A experiência amorosa é válida por si mesma: “Fiel à sua lei de cada instante / Desassombrado, doido, delirante / Numa paixão de tudo e de si mes- mo” (“Soneto do maior amor”). Pode-se mesmo pen- sar que essa paixão resiste até ao desprezo da ama- da, como está sugerido em “Ternura”: “Pela graça in- dizível dos teus passos eternamente fugindo / Trago a SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 136 • ANGLO VESTIBULARES doçura dos que aceitam melancolicamente”. A hipó- tese do desencontro, da irrealização do sentimento, está presente, mas não gera angústia, e sim confor- mismo: “Por não te possuir, tendo-te minha / Por só quereres tudo, e eu dar-te nada / Hei de lembrar-te sempre com ternura” (“Soneto de quarta-feira de cin- zas”). A despeito desses azares, o que predomina é o convite ao amor: “Vem. Meus músculos estão doces para os teus dentes / E áspera é minha barba. Vem mergulhar em mim”. Mesmo quando há um desvio da exacerbação da carne e da sexualidade, resta a ter- nura expressa na “Elegia lírica”: “Meu Deus, eu que- ria brincar com ela, fazer comidinha, jogar nai-ou- nentes / Rir e num átimo dar um beijo nela e sair cor- rendo / E ficar de longe espiando-lhe a zanga, meio vexado, meio sem saber o que faça…” Provavelmen- te, o poeta apreendeu essa lição de um de seus mes- tres, Manuel Bandeira. Registre-se, aliás, que o título de um artigo que Bandeira escreveu sobre Vinicius traz expressões retiradas dessa Elegia: “Coisa alóve- na, ebaente”. O sofrimento é concebido como algo inerente à condição de apaixonado: para fazer perdurar a expe- riência amorosa, o poeta se dispõe a aceitar a dor que ela provoca. Quando há tristeza na relação afetiva, ela se deve menos à falta de correspondência ou outras circunstâncias externas, e mais ao universo íntimo do próprio eu lírico, o que faz com que, nesse sentido, a concepção amorosa aqui se distancie daquela eter- nizada por Camões. Uma das causas do sofrimento é o fim do amor. Dele trata o apólogo (narrativa que tem como perso- nagens seres inanimados) de “Trecho”, que mostra um diálogo entre um Celo e uma Flauta, no qual esta re- clama: “Quem foi que me fez perdida / E que me de- siludiu?”. E é este também o tema de um dos mais fa- mosos textos do autor, o “Soneto de separação”: “De repente da calma fez-se o vento / Que dos olhos des- fez a última chama / E da paixão fez-se o pressenti- mento / E do momento imóvel fez-se o drama”. A do- lorosa experiência da separação não exclui a possibili- dade de um reencontro: “Quando chegares e eu te vir chorando / De tanto te esperar, que te direi? / E da angústia de amar-te, te esperando / Reencontrada, como te amarei?” (“Soneto de véspera”). Mas a força do sentimento amoroso está mesmo em sua capacidade de sobreviver a dores e de- sencontros. Superando tudo isso, o desejo de amar permanece movendo o poeta. Na “Balada do morto- vivo”, o eu lírico narra a história de um amor que foi além da morte: a moça Linalva recebeu a visita do amado, sem saber que, na verdade, ele se afogara no mar e que aquele encontro era seu gesto de despedi- da. Em “Conjugação da ausente”, o eu lírico afirma que, mesmo depois de “separações, tantas separações / Uma separação...”, a presença da amada pode ser sentida: “Vejo-te em cada prisma, refletindo / Diago- nalmente a múltipla esperança / E te amo, te venero, te idolatro / Numa perplexidade de criança”. Um amor que sobrevive a tanta coisa, só pode terminar por seu próprio efeito: “E de te amar assim, muito e amiúde / É que um dia em teu corpo de repente / Hei de morrer de amar mais do que pude” (“Soneto do amor total”). Se eventualmente o amor pode ser eterno, so- brevivendo à “grande partida que há no fim” (como se vê em “Soneto de carnaval”), é preciso reconhecer que, para o poeta, parte substancial da celebração do amor está no reconhecimento conformista de sua efemeridade. Este é o fundamento daqueles que talvez sejam os versos mais conhecidos de Vinicius: “Eu possa me dizer do amor (que tive): / Que não seja imortal, posto que é chama / Mas que seja infinito enquanto dure.” O mesmo ímpeto de fixação do efê- mero está presente em “A mulher que passa” (“Meu Deus, eu quero a mulher que passa”), que retoma o poema “A uma passante”, do poeta francês Charles Baudelaire, para celebrar a beleza anônima que deixa marcas profundas na sensibilidade sempre acesa do poeta. NNoovvaa aattmmoossffeerraa mmííssttiiccaa A religiosidade, predominante na primeira fase, não é totalmente abandonada. No entanto, sofre o mesmo processo de dessacralização verificado an- teriormente, o que traz modificações substanciais. O “Soneto de devoção”, como já se viu, sugere em seu título um desenvolvimento místico que é desmentido pelos versos, que descrevem uma mulher pronta para o encontro sexual. Mas o exemplo mais marcante desse aspecto da obra é “O dia da criação”. O tom religioso, explícito, tanto no título quanto na epígrafe (“Macho e fêmea os criou”, retirado da Bíblia — Gênesis, 1,27), continua ao longo do poema. Na primeira parte, o nome de “Nosso Senhor Jesus Cristo” é citado por duas vezes; na segunda parte, o refrão (“Porque hoje é sábado”) é repetido em todo verso par, constituindo uma pode- rosa sugestão de ambiente litúrgico. Contudo, o tom preponderante do poema é menos a contenção refle- xiva própria da expressão espiritualista, e mais o hu- mor e as referências ao cotidiano: Neste momento há um casamento Porque hoje é sábado Há um divórcio e um violamento Porque hoje é sábado Há um homem rico que se mata Porque hoje é sábado Há um incesto e uma regata TTeemmááttiiccaa ssoocciiaall Outra abordagem significativa dessa segunda fa- se é a temática social. O poeta abraça a causa do compromisso político, defendendo a prática de uma SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 137 • ANGLO VESTIBULARES poesia engajada. Em “Mensagem à poesia”, é clara a proposta de uma arte que se obriga a voltar-se para os temas associados à miséria e à exploração. Em certo ponto, dirigindo-se àqueles a quem pede que enviem em seu nome um recado à poesia, diz o autor: “Contem-lhe, bem em segredo, que eu devo estar pres- tes, que meus / Ombros não se devem curvar, que meus olhos não se devem / Deixar intimidar, que eu levo nas costas a desgraça dos homens”. No primeiro verso do trecho, a expressão “prestes” nos remete a Luís Carlos Prestes (1898-1990), líder comunista bra- sileiro — o que sugere uma inequívoca simpatia por posições esquerdizantes, que Vinicius chegou a mani- festar em alguns momentos de sua carreira artística. Dentre os temas políticos, ganha destaque o da guerra. Algumas vezes, ele aparece como o contra- ponto cruel de um mundo utópico, que se funda no amor. Em “Repto”, o poeta convida “jovens guerri- lheiros” a conhecerem batalhas mais suaves (“Que tal amanhã / Lutarmos de amar?”), em uma antecipação do lema Faça amor, não a guerra que circularia nos anos 1960. Também a “Mensagem a Rubem Braga” (jornalista e escritor, autor de Com a FEB na Itália, sé- riede reportagens sobre a II Guerra Mundial) estabe- lece a distância entre a vida tranquila no Brasil e a triste realidade dos campos de batalha. Já a “Balada dos mortos dos campos de concentração” trata com crueza as cenas da opressão nazista (“Vossas peles afrouxadas / Sobre os esqueletos dão-me / A impres- são que éreis tambores — / Os instrumentos do Mons- tro — / Desfibrados a pancada: / Ó mortos de percus- são!”). O grotesco desses versos está presente também nos poemas em que Vinicius tratou da bomba atômi- ca. Em “A bomba atômica”, o artefato aparece perso- nificado, pleno de sentimentos, em contraste com sua condição e sua função: “A bomba atômica é triste / Coisa mais triste não há / Quando cai, cai sem vonta- de / Vem caindo devagar”. Novo contraste se apresen- ta em “A rosa de Hiroshima”, em que a semelhança entre a imagem da rosa e a da explosão atômica é iro- nicamente explorada. A imagem da flor suspensa em Rosa meditativa (1958), de Salvador Dali, pode ser associada à semelhança explorada em “Rosa de Hiroshima” entre a rosa e a explosão atômica. A realidade brasileira também marca presença nessa vertente social da poesia de Vinicius. Por vezes, de maneira ainda idílica, como em “Pátria minha”, que funciona quase como uma retomada da “Canção do exílio”, do romântico Gonçalves Dias: a saudade leva o poeta a forjar uma imagem paradisíaca da terra na- tal. Mas também está presente a dimensão da explo- ração e da espoliação, no mais famoso poema social do escritor, “O operário em construção”. Aqui, um ope- rário se apercebe epifanicamente de sua importância no mundo em que vive: À mesa, ao cortar o pão O operário foi tomado De uma súbita emoção Ao constatar assombrado Que tudo naquela mesa — Garrafa, prato, facão — Era ele quem os fazia Ele, um humilde operário, Um operário em construção. Não se pode dizer que Vinicius tenha sido um poeta de ideologia bem definida, de carregar bandei- ras políticas ou de agir em prol de qualquer tipo de partidarismo. Nele, o engajamento é mais propria- mente expressão de solidariedade pelo outro — eco de sua formação cristã. Daí seu interesse crescente pelos párias, pelas vítimas das injustiças — mais do que pelos mecanismos provocadores dessas injus- tiças. Em sua obra, a reflexão política se submeteu sempre às determinações líricas do fazer poético. A “Mensagem à poesia” pretensamente enviada por ele jamais chegou ao destinatário, pois a poesia conti- nuou sendo sua linha de conduta política, seu jeito de ser cidadão. NNaattuurreezzaa Outros temas ganham importância na segunda fase. Acentua-se, por exemplo, a presença da natu- reza – que já vimos associada à sexualidade. Ela tam- bém serve de interlocutor para o eu lírico, em “O es- cândalo da rosa” (“Oh rosa que raivosa / Assim car- mesim / Quem te fez zelosa / O carme tão ruim?”) e em “Soneto ao inverno” (“Inverno, doce inverno das manhãs / Translúcidas, tardias e distantes”); e, de cer- ta forma, também no diálogo com “O pescador”, no qual o poeta pergunta sobre as coisas do amor e da natureza. No “Soneto da rosa”, chega-se a propor um amálgama entre natureza e poesia: “Para que o sonho viva da certeza / Para que o tempo da paixão não mu- de / Para que se una o verbo à natureza”. O cenário natural aparece ainda em quadros fi- xos, como pinturas. Assim acontece na descrição do nascimento do dia (em “Aurora, com movimento”) e de um rio (“O rio”). E ainda em “A pera”, curiosa ima- gem de natureza-morta (tipo de pintura que costu- meiramente representa frutas e objetos inanimados) na qual, no entanto, a fruta do título aparece como depositária da vida: entre “bananas / Supervenientes / SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 138 • ANGLO VESTIBULARES E maçãs lhanas”, ela está “A entardecer”, o que lhe confere ação e temporalidade. UUmm ccaannttaarr ddee aammiiggooss São vários os poemas em que Vinicius realiza ho- menagens a artistas que exerceram grande influ- ência em sua obra. O tom decadentista e mórbido de alguns poemas de Paul Verlaine (1844-1896) repercute na seleção vocabular do poeta carioca em expressões como “maldita”, “putrefação”, “sórdido”, “túmulo”, que figuram em “A Verlaine”. Charles Baudelaire (1821- 1867), um dos fundadores da modernidade poética, é relido pelo eu lírico de “Bilhete a Baudelaire” em que o sentimento de spleen retoma o espírito de muitos dos textos do francês. A morte do poeta e drama- turgo espanhol Federico Garcia Lorca (1898-1936) pelas mãos das forças ditatoriais de Franco, durante a Guerra Civil, inspira a comovente homenagem de “A morte de madrugada”, em que se reafirma a necessi- dade de unir poesia e compromisso político. Rainer Maria Rilke (1875-1926) aparece por duas vezes: no título de “Imitação de Rilke”, no qual Vinicius tenta resgatar as indagações presentes na obra do escritor tcheco, e indiretamente em “Soneto do Só ou Pará- bola de Malte Laurids Brigge”, que faz referência a um romance de Rilke, Os cadernos de Malte Laurids Brigge (1910), cujo protagonista tenta se situar em Pa- ris no início do século, buscando ainda — como Vini- cius — criar a imagem da mulher ideal. Katherine Mansfield (1888-1923) foi uma contista neozelandesa de grande influência na prosa moderna; suas cartas, que chegaram a ser publicadas em vários volumes, inspiraram o “Soneto a Katherine Mansfield”. Em “O poeta Hart Crane suicida-se no mar”, Vinicius tra- va um diálogo imaginário com o artista americano morto em 1932, aos 33 anos de idade. A paixão pela imagem cinematográfica conduz a homenagem ao ci- neasta russo Eisenstein (1898-1948), no “Soneto a Sergei Mikhailovitch Eisenstein”. Muitos artistas brasileiros são também lembra- dos em alguns títulos da Antologia, celebrados tanto em sua arte quanto na amizade que mantinham com Vinicius. Octavio de Faria (1908-1980), a quem Vi- nicius dedica o “Soneto a Octavio de Faria” foi um de seus mentores na juventude, conduzindo-o tanto pelos caminhos da poesia quanto da espiritualidade, que era uma das linhas de força da obra de ambos. A já referida “Mensagem a Rubem Braga” possui o tom intimista adequado à amizade que unia remetente e destinatário. Manuel Bandeira (1886-1968) dá nome a “Saudade de Manuel Bandeira”, onde é lembrado co- mo “poeta”, “pai” e “áspero irmão” do eu lírico. Outro amigo próximo foi Pedro Nava (1903-1984), merece- dor da “Balada de Pedro Nava”. E João Cabral de Melo Neto (1920-1999) aparece liricamente descrito em “Retrato, à sua maneira”: “Magro entre pedras” — verso que registra não apenas o aspecto físico de Ca- bral, mas ainda uma das paisagens mais constantes de sua poesia calcária. Há também as homenagens póstumas a Mário de Andrade (1893-1945), em “A manhã do morto”, e a Graciliano Ramos (1892-1953), em “Máscara mortuária de Graciliano Ramos” — e também nesses dois casos, os versos captam algo do estilo dos homenageados. O afeto dedicado aos amigos se estende aos fa- miliares. Assim, a “Balada do Cavalão” fala de um lo- cal associado à filha Susana, também lembrada em “Canção”; “A paixão da carne” trata da relação entre o poeta e seu filho Pedro, recém-nascido; já o pai é lem- brado em duas ocasiões: “Elegia na morte de Clo- doaldo Pereira da Silva Moraes, poeta e cidadão” e “Balada negra”. MMeettaalliinngguuaaggeemm A nova fase de Vinicius de Moraes é anunciada por uma temática que será também constante: trata- se da reflexão sobre a poesia, que está na base do poema “O falso mendigo”, com que ele inaugura o no- vo rumo. Minha mãe, manda comprar um quilo de papel almaço na venda Quero fazer uma poesia. Diz a Amélia para preparar um refresco bem gelado [...] Se me telefonarem, só estou para Maria Se for o Ministro, só recebo amanhã Se for um trote, me chama depressa Tenho um tédio enorme da vida. Aqui, o fazer poético se propõe como parte do co- tidiano do eu lírico, integrando-se naturalmente a seus pequenosprazeres diários. A poesia já não paira acima da vida, mas tenta, ao contrário, buscar o que nela existe de empolgante, de novo, de diferente na existência: a ruptura com a expectativa, efeito seme- lhante ao “trote” — não um simples engodo de brin- quedo, mas uma forma de fugir ao tédio que conduza a outra forma de fruir as experiências. Em “Poética (I)”, que é posterior, a reflexão já parece mais madura: De manhã escureço De dia tardo De tarde anoiteço De noite ardo A oeste a morte Contra quem vivo Do sul cativo O este é meu norte. Outros que contem Passo por passo: Eu morro ontem Nasço amanhã Ando onde há espaço — Meu tempo é quando Os versos são conduzidos pela idéia da subversão temporal (1ª- estrofe) e espacial (2ª- estrofe): o poeta funda seu próprio tempo (assumido com um ciclo SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 139 • ANGLO VESTIBULARES eterno — “Eu morro ontem // Nasço amanhã”) e sua própria estratégia de ação no mundo (“Meu tempo é quando”, verso que institui uma transitoriedade, ao mesmo tempo em que sugere uma superação da de- limitação temporal). Trata-se de uma reflexão de cará- ter existencial; no entanto, o título estabelece uma re- lação entre aquelas subversões e a própria poesia. Assim, o texto se coloca como um programa estético de inovação, de exploração da surpresa — não por outro motivo é um soneto que foge ao modelo con- vencional, já que tem versos curtos, nos quais predo- minam os tetrassílabos. O fato de se tratar de uma reflexão em torno da própria existência reforça a pro- posta de uma poesia que pretende ser um mergulho na vida. AA ddoorr ddee vviivveerr A nota melancólica, que acompanhou o poeta na primeira fase, não o abandona agora. A saudade da amada é o tema de “Cântico” e a solidão (talvez inspirada pela condição do diplomata distante da terra de origem) aparece em “Soneto de Londres” e “A estrela polar”. Com uma visão mais complacente e bem-humorada, temos a imagem da infância, geral- mente associada aos filhos (“O crocodilo”). Saudade, solidão, presença dos filhos – são dados que parecem lembrar ao poeta que o tempo está pas- sando. De fato, o poema “Desert Hot Springs” descre- ve sem piedade a degenerescência física de pes- soas frequentadoras de uma piscina pública na cida- de que dá título ao poema — uma estação de águas da Califórnia, nos Estados Unidos. As mazelas ali expostas talvez funcionem como um prelúdio daquele que será um dos temas mais constantes da obra: a morte. Na poesia de Vinicius, a morte possui uma di- mensão pessoal. O poeta parece desejar a morte, como em “A partida”: “Quero ir-me embora pra es- trela / Que vi luzindo no céu / [...] / No oco do raio solar / Libertado subirei”. O que ocorre, na verdade, não é a aspiração da morte, mas a consciência de sua fatalidade. Se, de um lado, não deixa de haver certo tom angustiante na espera pela morte (que se vê em “Sinos de Oxford”: “Respondei-me, sinos: / A morte já vem?”), por outro, existe a certeza de que ela espera pelo poeta em “Imitação de Rilke”, em que a sensação de ser observado se confunde com a expectativa do fim (“Alguém que me espia do fundo da noite / (Tam- bém chega a Morte dos ermos da noite...) / Quem é?”). Diante do inevitável, o poeta adota uma perspec- tiva por vezes contemplativa (como em “Paisagem”: “Assim entrei no pensamento / Da morte minha ami- ga / [...] / Como tudo nesse momento / Me pareceu plácido e sem memória”), por vezes reflexiva (como nos “Quatro sonetos de meditação”). A morte impreg- na mesmo a temática sexual, marcante na segunda fase. É o que se vê em “Mar” (“E anseio em teu miste- rioso seio / Na atonia das ondas redondas / Náufrago entregue ao fluxo forte / Da morte.”) e em “A hora ín- tima” (“Quem pagará o enterro e as flores / Se eu me morrer de amores?”). Em um poema de título explícito — “A morte” — o poeta revela outra perspectiva sob a qual o tema é focalizado em sua obra: “A morte vem de longe / Do fundo dos céus / Vem para os meus olhos / Virá para os teus”. Trata-se, como se vê, de uma dimensão uni- versal, humana (“Dos homens, ai! dos homens / Que matam a morte / Por medo da vida.”). Daí a sucessão de personagens que enfrentam a morte em poemas como “Balada do enterrado vivo”, “Balada da moça do Miramar”, “Balanço do filho morto”, Balada do morto-vivo”, “Menino morto pelas ladeiras de Ouro Preto”, “O poeta Hart Crane suicida-se no mar” e “Epitáfio” (cujos versos tratam da morte do sol: “Aqui jaz o Sol”). Embora não fale diretamente da morte, o poema “A rosa de Hiroshima”, já reproduzido neste trabalho, descreve os efeitos cruéis e fatais da bomba. DDeessppoojjaammeennttoo ddaa lliinngguuaaggeemm São sensíveis as transformações operadas na lin- guagem poética de Vinicius, a partir de novas opções formais, identificadas por ele mesmo com sua se- gunda fase. No entanto, como já se disse aqui, não se pode considerar que a fase inicial tenha sido comple- tamente superada. A referência religiosa persiste, como se vê em “Soneto do só ou Parábola de Malte Laurids Brigge”: “Sentiu-se pobre e triste como Jó / [...] / Viu a face do Cristo ensanguentada”. Os sinais dessa presença são ainda mais evidentes em “O filho do homem” (que, como está indicado, celebra o “Na- tal de 1947”), cuja estrofe final é reveladora: “Jesus pequenino / Filho natural / Ergue-te, menino / É triste o Natal”. Aqui e ali, emerge a nota melancólica que nor- teava a temática nos primeiros poemas; no entanto, como já vimos, o tom predominante é o da dessa- cralização. “O dia da criação”, por exemplo, contém a mesma referência, mas o que prevalece é mesmo a crítica graciosa à vida na cidade grande. O processo de ressignificação do discurso místico é acompanhado (e reforçado) pelo abandono da lin- guagem retórica elevada predominante nos pri- meiros livros do escritor. Uma das formas de mani- festação do despojamento que passa a caracterizar a expressão poética diz respeito aos metros dos versos. De fato, na primeira fase, os versos longos eram uti- lizados para expressar a religiosidade que marcava a obra de Vinicius na época, graças a uma aproximação que se estabelecia entre a métrica e o versículo bíbli- co. Na segunda, o declínio do predomínio da visão mís- tica provoca um relativo desligamento do verso longo. Os metros curtos mais explorados na literatura de língua portuguesa, os versos redondilhos menores (5 sílabas) e maiores (7 sílabas), figuram em muitos SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 140 • ANGLO VESTIBULARES poemas da Antologia. Do primeiro tipo, temos, por exemplo, “Sinos de Oxford”, “A um passarinho” e a “Balada das duas mocinhas de Botafogo”. Do segun- do tipo, mais comum, temos: “Trecho”, “Balada da Praia do Vidigal”, “A estrela polar”, “Balada do enter- rado vivo”, “Rosário”, “Balada a Pedro Nava”, “A ma- nhã do morto”, “Balada da moça do Miramar”, “Bala- da do morto-vivo”, “A morte de madrugada”, “Balada negra”, “O operário em construção”, entre outros. Mas há ainda poemas com versos tetrassílabos (quatro sílabas), como o “Poema enjoadinho”; octossílabos (oito sílabas), como “A Verlaine” e “A hora íntima”; eneas- sílabos (nove sílabas), como “A mulher que passa”; alexandrinos (12 sílabas), como “O mergulhador”. A regularidade métrica está presente também em poemas de versos polimétricos, que apresentam estrofes com idêntica distribuição métrica, como as quadras de “Marinha” (três primeiros versos com sete sílabas e o quarto com três) e de “A que vem de lon- ge” (três primeiros versos com nove sílabas e o quar- to com quatro) e os tercetos de “Imitação de Rilke” (dois primeiros versos com 11 sílabas e o terceiro com dois). No entanto, não há exageros normativos na poe- sia de Vinicius. Em “A morte” predominam os versos redondilhos menores, mas aqui e ali aparecem versos hexassilábicos (seis sílabas). Essa permissividade se deve ao fato de o poeta obedecer menos à rigidezfor- mal e mais à captação de emotividades específi- cas. Veja-se o caso de “A rosa de Hiroshima”: Pensem nas crianças Mudas telepáticas Pensem nas meninas Cegas inexatas Pensem nas mulheres Rotas alteradas Pensem nas feridas Como rosas cálidas Mas oh não se esqueçam Da rosa da rosa Da rosa de Hiroshima A rosa hereditária A rosa radioativa Estúpida e inválida A rosa com cirrose A antirrosa atômica Sem cor sem perfume Sem rosa sem nada. O poema possui dezoito versos. Os dez primeiros são redondilhos menores, mas o verso 11 introduz uma nova medida: seis sílabas (“Da rosa de Hiroshi- ma”). Nele, aparece o nome da cidade que dá título ao poema e que foi bombardeada pelos americanos em 1945, no término da II Guerra Mundial. A referência ao nome do local estabelece uma transformação no texto, que concretiza formalmente a irregularidade física das deformações provocadas pela bomba. Isto é: da mesma forma que o artefato traz prejuízos físi- cos às mulheres (sexto verso: “Rotas alteradas”), a ci- tação da cidade atacada muda alguma coisa no poe- ma. A alteração prossegue até o verso 16, como a es- tabelecer outra normalidade, esta monstruosa, provo- cada pela guerra. Os dois versos finais retornam ao redondilho menor, parecendo recuperar o estado de espírito que focalizava as “crianças / Mudas telepáti- cas”, as “meninas / Cegas inexatas” e as “feridas”, trans- ferindo-o agora para a imagem da rosa, modificada depois que é associada à bomba, cujo estouro levanta uma nuvem de fumaça que se assemelha a uma rosa aberta. Metáfora da bomba, a rosa também é atingida por seus efeitos, perde a sua condição original e fica “Sem cor sem perfume / Sem rosa sem nada” — ou seja, deforma-se, exatamente como os seres humanos que os redondilhos iniciais retratavam. Por vezes, o poeta parece buscar uma renovação do ritmo convencional. Isso ocorre em “Balanço do filho morto”. As quatro primeiras estrofes são escritas em versos livres e construídas por meio de mecanis- mos de repetição: o mesmo verso abre as três estro- fes iniciais (“Homem sentado na cadeira de balanço”) e aparece como segundo verso na quarta; além disso, explora-se a anadiplose (retomada do final de um ver- so no início do verso seguinte) na primeira estrofe: “Sentado na cadeira de balanço / Na cadeira de balan- ço / De balanço / Balanço do filho morto”. Nesse caso, o verso livre não é utilizado para traduzir expansão, explosão, mas emoção contida, represada. A quinta e última estrofe, bastante longa, traz versos decassíla- bos. O sentido solene e reflexivo tradicionalmente as- sociado a esse metro é substituído pela intensidade do desespero paterno, ainda ressaltado pela repetição: Pobre pai, pobre, pobre, pobre, pobre Sem memória, sem músculo, sem nada Além de uma cadeira de balanço No infinito vazio... o sofrimento Amordaçou-te a boca de amargura E esbofeteou-te a palidez na cara. Ergues nos braços uma imagem pura E não teu filho; jogas para cima Um bocado de espaço e não teu filho Não são cachos que sopras, porém cinzas A asfixiar o ar onde respiras. A despeito do predomínio da regularidade mé- trica, os versos livres, que caracterizavam a primeira fase do poeta, não são totalmente abandonados aqui, como exemplificam os textos “Poema de Natal”, “Re- ceita de mulher”, “Poema de Auteil”, “Pátria minha”, “Elegia na morte de Clodoaldo Pereira da Silva Mo- rais, poeta e cidadão”, entre outros. AA rreettoommaaddaa ddoo ssoonneettoo O apego à forma fixa levou o poeta a sistematizar o exercício do soneto (que ele já experimentara no primeiro livro, O caminho para a distância, de 1933, com “O judeu errante” — que não figura na Antolo- gia). São muitos os exemplos. Aqueles que trazem no próprio título a forma escolhida (“Soneto à lua”, “So- neto de agosto”, “Soneto de contrição” etc.) enqua- SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 141 • ANGLO VESTIBULARES dram-se mais perfeitamente no rigor do soneto clás- sico, com versos decassílabos (considerando-se que mesmo os alexandrinos do “Soneto de intimidade” podem ser inseridos na tradição do verso longo). Sob essa forma, Vinicius produziu alguns de seus versos mais citados, como: “Que não seja imortal, posto que é chama / Mas que seja infinito enquanto dure” (“Soneto de fidelidade”); “De repente, não mais que de repente” (“Soneto de separação”); “E de te amar assim, muito e amiúde / É que um dia em teu cor- po de repente / Hei de morrer de amar mais do que pude” (“Soneto do amor total”). Resistindo a tratar desses exemplos, que já entraram para a memória popular, vamos acompanhar, de forma sintética, o desenrolar dos versos de um soneto menos conheci- do, mas igualmente belo. Trata-se do “Soneto de vés- pera”. A primeira quadra cria a expectativa pela chega- da da amada: Quando chegares e eu te vir chorando De tanto te esperar, que te direi? E da angústia de amar-te, te esperando Reencontrada, como te amarei? Já se percebe que a alegria do reencontro vem substituída pela apreensão, explicitada na “angústia” (terceiro verso) e consubstanciada pelas lágrimas que correm dos olhos do eu lírico. As respostas para as perguntas que o eu lírico se faz ficam suspensas, assim como a curiosidade do leitor, que deseja saber as razões da angústia. A segunda estrofe esclarece alguma coisa: Que beijo teu de lágrima terei Para esquecer o que vivi lembrando E que farei da antiga mágoa quando Não puder te dizer por que chorei? Diante da iminência do reencontro, o poeta se re- corda de tudo o que a mulher o fizera sofrer — e é essa recordação que impede a fruição feliz do instante. Ele pergunta então o que terá que fazer para superar toda a dor causadora de uma “antiga mágoa” que teima em permanecer. Se o tom predominante na pri- meira estrofe era o da espera, agora esta se faz acom- panhar pela dor. Na terceira estrofe, continua o dra- ma do poeta: Como ocultar a sombra em mim suspensa Pelo martírio da memória imensa Que a distância criou — fria de vida Aqui, a dor parece prevalecer sobre a saudade e o desejo do reencontro: o poeta supõe que não con- seguirá superar a desilusão preservada na lembrança. Desde a separação dos amantes, nenhum aconteci- mento veio modificar a desilusão primitiva — a dis- tância não gerou nada (“fria de vida”) que pudesse transformar a mágoa em perdão. Como encarar en- tão o reencontro? O que resta a fazer está expresso na última estrofe: Imagem tua que eu compus serena Atenta ao meu apelo e à minha pena E que quisera nunca mais perdida... O poema se encerra ressaltando o dilema que marca a expectativa do reencontro. No trecho final, recupera-se uma imagem da amada (mais “atenta” ao “apelo” e à “pena” do poeta) que pode ser apenas uma criação (“eu compus”) do eu lírico. Seja como for, a essa imagem se opõe aquela de que ele se recorda mais vivamente, provocadora da “antiga mágoa”. Pa- ra o leitor, tanto quanto para o eu lírico, trata-se de saber qual das duas imagens prevalecerá no momen- to do reencontro. Sem chegar a constituir uma resposta plena, o último verso prenuncia uma atmos- fera sombria — já que a imagem positiva da amada talvez tenha se perdido para sempre (“quisera nunca mais perdida”). O desenvolvimento do soneto mostra a habilida- de de Vinicius em acrescentar elementos ao estado inicial do eu lírico — o que corresponde ao desen- volvimento canônico da forma soneto. A exposição, mesmo mais emotiva que racional, ainda assim é fun- dada em uma reflexão sobre o amor, a separação e o perdão, que o poeta consegue sintetizar com habi- lidade. Contudo, se demonstrou competência para se- guir a tradição, Vinicius também não hesitou em de- safiá-la. Quando incorre em transgressões da norma consagrada, pratica o que se costuma chamar de so- netilho (soneto fora dos padrões canônicos). Nesses casos, temos poemas nos quais a palavra “soneto” não aparece no título. Exemplos: “A pera”, “Poética”
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