Buscar

Antologia poetica

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 3, do total de 23 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 6, do total de 23 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 9, do total de 23 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Prévia do material em texto

SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 127 • ANGLO VESTIBULARES
IINNTTRROODDUUÇÇÃÃOO
UUmm ppooeettaa ccaammppeeããoo ddee aauuddiiêênncciiaa
Imagine-se um ginásio de esportes com sua quadra e suas arquibancadas tomadas por jovens.
Não estão ali para torcer por nenhum time. É noite, e eles assistem a um espetáculo musical. Envoltos
pela escuridão, são atraídos pelo único foco de luz do ambiente: um homem, quase solitário em um
palco, lê poesias. O público ouve em silêncio. Essa cena, que hoje pode nos parecer pouco verossímil,
acontecia de fato na década de 1970. Mas há uma informação fundamental para que ela não seja ape-
nas imaginária: o solitário leitor é o poeta Vinicius de Moraes.
Sua ligação com o mundo dos espetáculos não era recente. No final dos anos 1950, ao lado de Tom
Jobim e João Gilberto, participara da criação da Bossa Nova, movimento musical de grande importân-
cia para a história da canção brasileira. Desde os princípios da década de 1960, suas letras tinham feito
parte da trilha sonora da vida brasileira, veiculadas por emissoras de rádio e televisão. Embora os jo-
vens da época o associassem, acima de tudo, à composição musical, Vinicius jamais renegara a poesia,
razão pela qual o vemos naquele ginásio dos anos 1970, lendo seus versos para um público silencioso
e fazendo-se acompanhar, por vezes, pelos acordes do violão de Toquinho, seu parceiro mais constan-
te no período.
A leitura harmonizava perfeitamente com a melodia do violão — até porque quem lia era alguém
que um dia escreveu: “eu creio na música das palavras”. Passados trinta anos de sua morte, ainda hoje
é possível ler Vinicius de Moraes como quem assiste a um espetáculo musical. Basta se deixar levar
pela música de sua poesia. Façamos silêncio.
MMaarrccuuss VVIINNIICCIIUUSS ddaa CCrruuzz DDEE MMeelllloo MMOORRAAEESS
((RRiioo ddee JJaanneeiirroo,, 11991133--11998800))
O cronista carioca Sérgio Porto usou o humor para registrar um dos
traços mais marcantes da personalidade do poeta: segundo ele, o poeta
jamais poderia ter sido batizado no singular — “Vinicio de Moral” —
porque era muitos — daí, Vinicius de Moraes… De fato, a pluralidade de
Vinicius fez com que ele lutasse a vida inteira contra quaisquer rótulos
que lhe tentassem impor.
Os pais de Vinicius tinham a arte nas veias: eram músicos amadores.
Mas, como determinava o bom senso da época, ele optou por seguir uma
carreira mais convencional, formando-se em Direito aos 20 anos. Conse-
guiu uma bolsa de estudos em Oxford (Inglaterra), em 1938, mas pouco
usufruiu dela, já que retornou ao Brasil no ano seguinte, em função da
guerra. Depois de algumas atividades no serviço público, ingressou na
carreira diplomática em 1943. Durante vinte anos, serviu em lugares como
Paris, Los Angeles e Montevidéu. Em 1964, retornou ao Brasil, assistindo
ao triste cenário que se seguiu ao golpe civil-militar de março daquele ano.
AANNTTOOLLOOGGIIAA PPOOÉÉTTIICCAA
Vinícius de Moraes
ANALISE DA OBRA FERNANDO MARCÍLIO LOPES COUTO
Vinicius de Moraes
©
 F
o
lh
a 
Im
ag
em
´
Paralelamente a essa faceta pública, Vinicius não
descuidou da herança artística familiar. No mesmo ano
em que se formou em Direito (1933), lançou seu pri-
meiro livro, O caminho para a distância. Na década de
1930, surgiriam outros três, sempre marcados pelo
tom espiritualista. No entanto, o diplomata habituado
a conviver com mudanças, tanto de cidades quanto de
circunstâncias políticas, também experimentou trans-
formações em sua carreira poética. O último dos livros
da década, Novos poemas, publicado em 1938, trazia
novidades que operariam uma reorientação artística
de proporções consideráveis, que fariam com que o
misticismo intimista do poeta se abrisse cada vez mais
para a sensualidade, para a coletividade, para o seu pró-
prio tempo — elementos presentes nos livros seguin-
tes, de Cinco elegias (1943) à Antologia poética (1954). 
Pode-se dizer que, como poeta, Vinicius continua-
va diplomata. Assim como conseguiu unir o clássico
ao popular na peça Orfeu da Conceição (1956), na qual
ambienta o mito de Orfeu em uma favela carioca, foi
capaz de reunir em torno de si gerações de artistas
com interesses variados. Manteve a amizade com o
sisudo poeta Octávio de Faria, de quem foi discípulo
na juventude, ao mesmo tempo em que se tornava
mestre dos jovens músicos da Bossa Nova — Baden
Powell, Edu Lobo, Carlos Lyra, entre outros. No en-
tanto, aos olhos do poder militar, seu trabalho artísti-
co destoava do decoro exigido por suas funções pú-
blicas. Por isso, depois de sofrer perseguições explíci-
tas e veladas, recebeu a aposentadoria compulsória
em 1968. Desde então, dedicou-se quase que exclusi-
vamente à carreira musical, interrompida com sua
morte, em 1980.
Durante os anos 1960 e 1970, Vinicius parecia ter
duas faces: os mais velhos o viam como poeta, en-
quanto os jovens o associavam principalmente às
canções populares — e, na verdade, ele nunca deixou
de ser nenhuma das duas coisas. Porque soube, como
poucos, conviver com a dicotomia: boêmio e diplo-
mata; erudito e popular; apaixonado e indignado; ca-
rioca de nascimento e baiano por adoção — uma plu-
ralidade de seres que faziam dele Vinicius de Moraes.
AA AANNTTOOLLOOGGIIAA PPOOÉÉTTIICCAA
Capa do disco Antologia poética, Philips, 1977
Vinicius de Moraes forneceu algumas provas da
atenção permanente que mantinha sobre a própria
obra. Ao participar da edição de sua Poesia Completa
e Prosa, lançada pela Editora Aguilar em 1968, o poe-
ta reorganizou parte de sua produção, chegando mes-
mo a mudar o título de um de seus livros: Poemas, so-
netos e baladas virou O encontro do cotidiano. Antes
dessa experiência, já havia dado um exemplo da ten-
dência em rever os próprios poemas: colaborou na
organização da sua Antologia Poética, publicada em
1954. É este último livro (em sua 2ª- edição, revisada e
aumentada por ele) que nos interessa mais diretamen-
te aqui.
Na Antologia, para além de mera seleção de poe-
mas, Vinicius adotou uma perspectiva crítica, explici-
tada no “Prefácio” que escreveu para o livro. Nele,
identifica duas fases em sua obra. A primeira delas,
denominada por ele de “transcendental, frequente-
mente mística”, corresponde aos livros iniciais — O
caminho para a distância (1933), Forma e exegese
(1935) e Ariana, a mulher (1936) e alguns textos de No-
vos poemas (1938). A superação das tendências poéti-
cas dessa fase se dá ao longo de um período de tran-
sição, constituído pelo livro Cinco elegias (1943) — ao
qual podem ser acrescentados poemas esparsos pu-
blicados em jornais e revistas. É o momento em que
começam a se manifestar os elementos que definiriam
uma postura poética distinta da anterior. Essa nova
tendência se consubstancia nos livros daquela que o
poeta considera ser a segunda fase de sua carreira
— a maior parte de Novos poemas (1938), além das
obras Poemas, sonetos e baladas (1946), Pátria minha
(1949), Antologia Poética (1954, que trazia alguns poe-
mas publicados esparsamente, acrescidos de outros a
partir de 1960), Livro de Sonetos (1957) e Novos poe-
mas II (1959). Segundo o autor, nessas obras sua poe-
sia abandona “o idealismo dos primeiros anos”, pro-
movendo uma “aproximação do mundo material”.
As duas fases estão representadas na Antologia
— o que significa que o poeta não desprezava nenhu-
ma delas. Mas não aparecem ali de maneira equili-
brada, já que a segunda fase merece atenção maior.
Essa preferência mostra que o poeta possuía uma vi-
são evolutiva de sua obra, entendendo como avanços
artísticos tanto a passagem de poemas de versos mais
longos para aqueles de métrica mais curta, quanto o
abandono da espiritualidade, em nome da aproxi-
mação do mundo concreto.
De fato, as modificações formais e temáticas apro-
ximam o poeta das propostas artísticas formuladas
pela primeira geração modernista brasileira — surgi-
da a partirda Semana de Arte Moderna de 1922 e con-
tando com nomes como Mário de Andrade, Oswald
de Andrade e Manuel Bandeira, entre outros. Porém,
mais do que uma tentativa de dar maior contempora-
neidade a sua obra, o que se percebe é um desligamen-
to de expectativas pré-estabelecidas, de rigores con-
ceituais e comportamentais. 
SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 128 • ANGLO VESTIBULARES
Note-se, nesse sentido, que Vinicius usou, logo
em seus primeiros poemas, um recurso próprio dos
modernistas de 22, o verso livre (sem métrica regu-
lar); no entanto, ele o usou em uma linguagem algo
hermética e que fazia lembrar, em alguns momentos,
os mesmos parnasianos e simbolistas combatidos jus-
tamente por aqueles modernistas. Da mesma forma,
quando transforma o cotidiano em matéria de poesia,
segue outra lição das vanguardas; mas o faz inserindo
a temática em formas poéticas tradicionais — como o
soneto, por exemplo. Pode-se concluir daí que, assim
como em sua vida pessoal, também na poesia
Vinicius de Moraes não teve rigor na observação de
regras e limitações de qualquer ordem.
Pois é justamente a disposição do poeta para a
quebra de expectativas que recomenda o abandono
de uma postura excessivamente mecânica na divisão
de sua obra em duas fases. Na verdade, a primeira
delas já apresentava elementos antecipadores da se-
guinte. Atente-se, por exemplo, para a epígrafe de seu
segundo livro, Forma e exegese, de 1935: “Je ne vois
clair qu’au contact de la vie” (“Eu não vejo claramente
a não ser em contato com a vida”). São palavras do
poeta francês Jacques Rivière (1866-1925), cuja reto-
mada por Vinicius sugere um interesse pela realidade
— uma das marcas da segunda fase. Da mesma for-
ma, a referência religiosa e mística, que o próprio
poeta associou a sua primeira fase, não desaparece
por completo na segunda. Um livro como Poemas,
sonetos e baladas (1946), supostamente incluído nesta,
mostra, nas palavras de Antonio Candido, o “Vinicius
inteiro”, isto é, expondo aos leitores tanto a dimensão
da transcendência (própria da fase inicial) quanto a
experiência do cotidiano (expressa posteriormente).
Com essas ressalvas, é possível seguir o sentido
didático adotado pelo poeta na organização de sua
obra. É o que se fará aqui, levando em conta a divisão
proposta no “Prefácio” da Antologia.
PPRRIIMMEEIIRRAA FFAASSEE
AA EEXXPPEERRIIÊÊNNCCIIAA MMÍÍSSTTIICCAA
OO tteerrrroorr ddoo ppeeccaaddoo
O período que Vinicius de Moraes considera a
primeira fase de sua carreira poética corresponde à
produção inicial, notadamente aquela que foi publica-
da ao longo dos anos de 1930 (segundo o autor, o últi-
mo poema da Antologia a representar essa fase seria
“Ariana, a mulher” — mas alguns poemas que se ali-
nhariam com ela já apresentam dados novos, como
veremos adiante). Acertadamente, o poeta a conside-
rou uma fase “transcendental” e “mística”. De fato, a
concepção espiritualizada e cristã da existência
deixou marcas profundas em sua arte. Certamente, a
formação católica do poeta contribuiu para isso; mas,
para além do dado particular, convém considerar que
se trata de uma tendência muito forte na literatura
brasileira do período — lembremos, por exemplo,
nomes como Augusto Frederico Schmidt, Cecília
Meireles, Murilo Mendes, Jorge de Lima etc. — que
recebeu influxo da poesia simbolista, que também
transparece em Vinicius.
Para incluí-lo nessa tendência literária, basta
observar títulos de poemas da Antologia, como “A
música das almas”, “Três respostas em face de Deus”
e “Poema nº- três em busca da essência”, ou ainda a fre-
qüência com que aparecem em seus versos expres-
sões como “céu”, “pecado” e “alma”.
No entanto, sua poesia não transmite a idéia de
estabilidade e confiança que se poderia associar ao
exercício pleno da religiosidade. Ao contrário, o que
se nota é uma espiritualidade que se manifesta sob o
signo da busca de Deus, do desejo de alcançar uma
transcendência que teima em não se realizar por
completo. Leia-se, por exemplo, o poema “A música
das almas”:
Na manhã infinita as nuvens surgiram como a loucura
numa alma
E o vento como o instinto desceu os braços das árvores
que estrangularam a terra...
Depois veio a claridade, os grandes céus, a paz dos cam-
pos...
Mas nos caminhos todos choravam com os rostos levados
para o alto
Porque a vida tinha misteriosamente passado na tormenta.
Nesses versos, o poeta retrata o estado inicial de
uma alma como uma “manhã infinita”, perturbada pe-
lo “vento”, associado ao “instinto”, que conduz à “lou-
cura”. Ora, a loucura a que a alma é conduzida pelo ins-
tinto representa o pecado que ronda a pureza original.
Embora a “claridade, os grandes céus, a paz dos cam-
pos” sejam vislumbrados, isso se dá após o transe do
pecado (“Depois”), o que faz com que a “manhã infinita”
jamais volte a ser a mesma. Os pecadores se voltam
para os céus (“rostos levados para o alto”), buscando
ali o consolo para a sua própria dor (“todos chora-
vam”), em um estado de desespero acentuado pela cer-
teza de que a ocorrência que lhes varrera a tranqüili-
dade não passara de ser a inescapável experiência da vi-
da humana, assolada constantemente pela impureza.
A tentativa de alcançar a purificação espiritual so-
fre permanentemente ameaça das tentações. No
poema “A Legião dos Úrias”, esse perigo é represen-
tado pela imagem de cavaleiros (os “Úrias” do título)
que passam pelas casas espalhando o terror do peca-
do, figurado em imagens fortes:
E vão pelas fazendas arrancando o sexo das meninas e
das mães sozinhas
[…]
E acendem fogueiras brancas de onde se erguem chamas
desconhecidas e fumos
Que vão ferir as narinas trêmulas dos adolescentes
adormecidos
Que acordam inquietos nas cidades sentindo náuseas e
convulsões mornas
SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 129 • ANGLO VESTIBULARES
Assim, os poemas dessa fase inicial indicam não
uma religiosidade afirmativa, mas dúvidas e questio-
namentos – expressões da angústia mística que o
poeta experimenta. Daí o destaque que essa poesia dá
ao choque entre a pureza desejada e o pecado
inevitável. Em “Balada feroz”, o eu lírico incita um
poeta a transformar seu canto em um instrumento
purificador:
Transforma-te por um segundo num mosquito gigante e
passeia de noite sobre as grandes cidades
Espalhando o terror por onde quer que pousem tuas 
antenas impalpáveis
Suga aos cínicos o cinismo, aos covardes o medo, aos
avaros o ouro
E para que apodreçam como porcos, injeta-os de pureza!
Como se pode perceber, a purificação assume
uma postura ativa e até mesmo bélica, para combater
os pecados do “cinismo”, da covardia e da avareza.
Essa luta não se dá sem percalços, já que a insistência
do ser humano em pecar conduz à impossibilidade
da remissão da culpa. Na visão do poeta, o homem
é um “escravo” (vocábulo usado constantemente,
para figurar o homem que não consegue resistir às
exigências da carne) que sofre a “miséria” (outra pala-
vra usada com frequência, para simbolizar a degrada-
ção provocada pelo pecado) à qual é inapelavelmente
conduzido por seus próprios sentidos. 
A despeito dessa perspectiva universalizante, o
elemento subjetivo deixa suas marcas, já que o poeta
particulariza a dor humana, descrevendo sucessivas
vezes a experiência trágica do pecado vivida por
ele. Pense-se em versos como: “Eu fiquei imóvel e no
escuro tu vieste” (“A mulher na noite”) e “No teu gran-
de corpo branco depois eu fiquei” (“Agonia”). Ou
ainda, no trecho a seguir, do poema “Alba”, no qual a
imagem da “flor” funciona como metáfora erótica do
corpo feminino do qual o eu lírico se apossa com mãos
que são “nervosas” pela volúpia e pela certeza do teor
impuro de seu ato:
Como poderias me perdoar, minha amiga, se soubesses
que me aproximei da flor como um perdido
E a tive desfolhada entre minhas mãos nervosas e senti
escorrer de mim o sêmen da minha volúpia?
Para destacar aindamais o caráter intimista que a
transgressão moral assume em Vinicius, veja-se a
perda da inocência relatada em “Ilha do Governa-
dor” (região do Rio de Janeiro onde Vinicius morou
na adolescência e onde teria vivido suas primeiras
experiências sexuais). No poema, a relação do eu líri-
co com seus amigos é perturbada pela presença da
mulher (“Os olhos de Susana eram doces mas Eli
tinha seios bonitos”), que faz com que ele se entregue
à experiência amorosa (“Depois, eu e Eli fomos an-
dando... — ela tremia no meu braço / Eu tremia no
braço dela, os seios dela tremiam”). Há uma discreta
celebração no resgate do episódio pela memória, mas
o eu lírico se refere a ele como sua “primeira angús-
tia”, isto é, o amor já surge em sua vida trazendo uma
bagagem de sofrimento e separação (“Um dia eu li
Alexandre Dumas e esqueci os meus amigos” — lem-
brando que Alexandre Dumas, autor de Os três mos-
queteiros, foi um dos grandes nomes do Romantismo
francês).
AA tteennttaaççããoo ddaa ccaarrnnee
Do universo do pecado de que trata o poeta nessa
fase de sua carreira (e isso persistiria depois), avulta a
figura feminina. A descrição da “branca mulher”
em “O poeta”1 é uma demonstração da presença des-
sa temática:
Era como um canto ou como uma flor brotando ou como
um cisne
Tinha um sorriso de praia em madrugada e um olhar 
esvanecente
E uma cabeleira de luz como uma cachoeira em plenilúnio.
Como se vê, trata-se de uma imagem idealizada.
Contudo, a mulher é, acima de tudo, representação
da carne, do pecado, da tentação — enfim, uma
súmula de todos os perigos que colocam o homem
sob a ameaça do pecado e o risco da punição divina.
Não por outro motivo o eu lírico de “A volta da mu-
lher morena” apela:
Meus amigos, meus irmãos, cegai os olhos da mulher 
morena
Que os olhos da mulher morena estão me envolvendo
E estão me despertando de noite.
Meus amigos, meus irmãos, cortai os lábios da mulher 
morena
Eles são maduros e úmidos e inquietos
E sabem tirar a volúpia de todos os frios.
Meus amigos, meus irmãos, e vós que amais a poesia da 
minha alma
Cortai os peitos da mulher morena
Que os peitos da mulher morena sufocam o meu sono
E trazem cores tristes para os meus olhos.
Note-se como, aqui, a já referida luta contra o
pecado se realiza através de uma recusa do corpo
feminino. A mulher é colocada, dessa forma, como
uma instância geradora da culpa. No poema em
prosa “Viagem à sombra”, lê-se:
És, de qualquer modo, a Mulher. Há teu ventre que se
cobre, invisível, de odor marítimo dos brigues selvagens
que eu não tive; há teus olhos mansos de louca, oh, lou-
ca! e há tua face obscura, dolorosa, talhada na pedra que
quis falar. Nos teus seios de juventude, o ruído miste-
rioso dos duendes ordenhando o leite pálido da tristeza
do desejo.
SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 130 • ANGLO VESTIBULARES
1 Na edição da Antologia poética, publicada pela Editora Com-
panhia das Letras em 2009, das três partes de que se compõe
o poema “O poeta”, as duas últimas são agrupadas separada-
mente, constituindo um poema independente, “O nascimen-
to do homem”. Essa opção recupera a forma original que o
poeta dera ao texto, quando o publicara pela primeira vez, no
livro Forma e exegese (1935) — obra em que “O poeta” apa-
rece titulado como “Os malditos (A aparição do poeta)”.
O “leite pálido” que vem da mulher provoca um
“desejo” que é associado à “tristeza” por representar a
queda moral e espiritual do homem. Atraído pela sen-
sualidade a que não consegue resistir, o homem se
deixa conduzir pelo pecado, para depois terminar
proclamando seu arrependimento.
Em alguns versos, pode-se entrever uma alterna-
tiva à tendência pecaminosa. Uma estrofe de “O
poeta”2 oferece uma pista nesse sentido:
Tinha nascido o poeta. Sua face é bela, seu coração é 
trágico
Seu destino é atroz; ao triste materno beijo mudo e
ausente
Ele parte! Busca ainda as viagens eternas da origem
Sonha ainda a música um dia ouvida em sua essência.
As “viagens eternas da origem” e a “essência” on-
de o poeta um dia ouviu “a música” são recuperadas
em um ambiente onírico (“Sonha”), o que pode ser
interpretado como uma remissão à imagem platônica
da memória espiritual (a reminiscência), num esforço
de preservar a alma da atração magnética da matéria.
Com isso, sugere-se que a salvação do corpo poderia
estar na experiência amorosa apenas espiritualizada
— o amor platônico. A mulher ideal para o poeta
parecia ser aquela que conseguisse representar o
desejo sem incorrer no pecado de satisfazê-lo…
UUmmaa lliinngguuaaggeemm bbííbblliiccaa
Do ponto de vista formal, a primeira fase da obra
de Vinicius de Moraes é marcada pelo predomínio
absoluto do verso livre (sem métrica regular). Quan-
do Vinicius iniciou sua carreira, o Modernismo brasi-
leiro completava uma década, e a prática da irregular-
idade métrica começava a se consolidar, diminuindo
o potencial de escândalo e ineditismo que já tivera.
No entanto, entre os poemas dessa fase representa-
dos na Antologia, chama a atenção não apenas o uso
do verso livre, mas do verso longo (ou bárbaro —
nome dado a versos que ultrapassam a medida do
alexandrino, de doze sílabas), que desrespeita mar-
gens e limites. Embora tal recurso possa, com acerto,
ser associado a um exercício de liberdade estética, na
obra do poeta carioca essa pretensa liberalização vem
associada a uma linguagem retórica convencional,
de certo sabor parnasiano — o que, como já foi dito,
parecia contradizer os próprios princípios moder-
nistas.
O traço mais saliente dessa linguagem é o voca-
bulário religioso — intimamente relacionado à atmos-
fera mística dos textos. Já o primeiro poema da An-
tologia, “O olhar para trás”, introduz o leitor nesse
universo vocabular: “piedade”, “círio”, “céu”, “orató-
rio”, “homem prostrado”, “óleo santo” etc. Ainda desse
mesmo poema pode-se recolher outro recurso comum
na primeira fase: trata-se do polissíndeto, ou seja, a re-
petição da conjunção aditiva (“e”) na seguinte estrofe:
E o olhar estaria ansioso esperando
E a cabeça ao sabor da mágoa balançando
E o coração fugindo e o coração voltando
E os minutos passando e os minutos passando...
Não é casual a exploração dessa figura nos poe-
mas do período. De fato, o polissíndeto, associado ao
ritmo pausado do verso longo e ao conteúdo místico,
contribui para dar ao texto um aspecto que evoca o
versículo bíblico, tal como também se observa na
poesia cristã de Augusto Frederico Schmidt ou de
Octávio de Faria, cuja influência a de Vinicius absor-
vera, sobretudo na primeira fase.
É curioso notar que, a despeito da irregularidade
métrica, alguns poemas apresentam regularidade
estrófica (isto é, estrofes com o mesmo número de
versos). Textos como “O olhar para trás”, “O incria-
do”, “A Legião dos Úrias”, “O poeta”, “Balada feroz”,
“A máscara da noite”, por exemplo, são compostos
por estrofes de quatro versos. Talvez esse choque en-
tre o derramamento dos versos longos e os limites
das estrofes regulares funcione como uma tradução
formal do drama que o poeta vive e de que já se tra-
tou aqui: o impasse entre o desejo de alcançar a sub-
limidade da vida espiritual e a prisão ao mundo ma-
terial que o pecado representa.
TTRRAANNSSIIÇÇÃÃOO
OO CCAAMMIINNHHOO PPAARRAA AA RREENNOOVVAAÇÇÃÃOO
OO ppeeccaaddoo mmoorraa aaoo llaaddoo
No “Prefácio” que escreveu para Antologia Poé-
tica, Vinicius reconhece em sua obra um “período de
transição entre aquelas duas tendências”. Para ele,
apenas um livro, Cinco elegias, publicado em 1943, re-
presentaria essa transição. No entanto, é possível per-
ceber sinais de mudança em obras anteriores a essa
data, como o poema-livro Ariana, a mulher (1936) e
em alguns textos de Novos poemas (1938). Assim,
para efeito didático e sem nenhuma pretensão de es-
tabelecer limites rigorosos, pode-se considerar que,
no que diz respeito aos poemas listadosna Antologia,
esse período de transição iria de “A invocação da mu-
lher única” até “A última elegia”.
Seja como for, o poeta reconhece um momento
de sua carreira em que as duas fases de sua produção
poética “se encontraram e fundiram em busca de
uma sintaxe própria”. De fato, em alguns poemas dos
livros em questão, o que se percebe é a convivência
de elementos antigos, isto é, da primeira fase, com
novas informações poéticas. A luta contra a carne,
que marcara a fase inicial, persiste, por exemplo, em
“Solilóquio”, em que o eu lírico propõe “Caminhar
SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 131 • ANGLO VESTIBULARES
2 Na edição da Companhia das Letras publicada em 2009, essa
estrofe pertence ao poema “O nascimento do homem” (ver
nota 1).
ciliciando a carne / Sobre o corpo macerado da vida”
— recorde-se que ciliciar (castigar o corpo como sinal
de penitência) é um termo de forte carga religiosa.
Mas o teor de angústia verificado anteriormente vai
cedendo terreno à aceitação maior do próprio
desejo, como se vê em “Invocação à mulher única”,
poema no qual a relativa misoginia (= aversão à mu-
lher) que despontara na primeira fase, em função da
associação entre a figura feminina e o pecado, agora
aparece diminuída: “Criatura, mais que nenhuma
outra, porque nasceste fecundada pelos astros (...) /
(...) / Mulher que eu amo, criança que eu amo, ser igno-
rado, essência perdida num ar de inverno...”
O poeta continua aqui as suas incansáveis buscas.
Antes, elas eram definidas pela tentativa de se alcan-
çar o sublime, a transcendência espiritual — pode-se
dizer, o amor de Deus. Agora, o amor está preserva-
do; isto é, o poeta continua a buscá-lo (“O que é o
meu Amor? senão o meu desejo iluminado / O meu
infinito desejo de ser o que sou acima de mim
mesmo” — versos de “A vida vivida”). No entanto, a
busca do amor se traduz como procura da mulher
amada (“Oh, a mulher amada é como a onda sozinha
correndo distante das praias / Pousada no fundo
estará a estrela, e mais além.” — trecho de “A brusca
poesia da mulher amada”). 
Não é outro o assunto de “Ariana, a mulher”, que
mostra um eu lírico em busca do objeto de seu de-
sejo. Há um verso desse poema que representa bem
esse momento em que a espiritualidade divina e a
materialidade feminina se encontram sem cho-
que: “E compreendi que só onde cabia Deus cabia
Ariana”. Assim, partir em busca dessa mulher signifi-
ca aceitar a matéria, o desejo, a transgressão — sem
sofrer mais o medo da punição divina: “Onde estão os
teus olhos — onde estão? — Oh, milagre de amor que
escorres dos meus olhos! / Na água iluminada dos
rios da lua eu os vi descendo e passando e fugindo /
Iam como as estrelas da manhã. Vem, eu quero os
teus olhos, meu amor!” (“Sonata do amor perdido”). 
Os aspectos que estão sendo levantados aqui,
típicos da transição poética de Vinicius, estão reuni-
dos em um trecho bastante significativo de “A vida
vivida”:
O que é a mulher em mim senão o Túmulo
O branco marco da minha rota peregrina
Aquela em cujos braços vou caminhando para a morte
Mas em cujos braços somente tenho vida?
A mulher ainda se associa à perdição e à morte
(“Túmulo”, “vou caminhando para a morte”), mas
também contém seu teor de vitalidade e de renovação
(“em cujos braços somente tenho vida”). Nesses ver-
sos, é possível verificar a persistência da vertente reli-
giosa que predominara na primeira fase. Mas pres-
sente-se que essa busca da mulher acabará por pro-
vocar o nascimento do homem — isto é, a aceitação
da sua dimensão erótica.
AAss CCiinnccoo eelleeggiiaass
A transição experimentada pelo poeta está regis-
trada nas Cinco elegias, o livro que, para Vinicius, fun-
ciona como síntese das duas fases. Por isso, interessa
acompanhar resumidamente o desenrolar desses tex-
tos. Convém lembrar que o próprio poeta declarou
(em texto de abertura do livro Cinco elegias) que idea-
lizou as quatro primeiras de uma só vez, em certa jor-
nada de 1937.
A primeira, “Elegia quase uma ode”, já traz um
verso que consubstancia as transformações que
então se operavam na vida e na obra do escritor:
“Meu sonho, eu te perdi; tornei-me em homem”. O “so-
nho” corresponde ao “idealismo dos primeiros anos”
a que se refere o autor no “Prefácio”. Perder esse so-
nho significa abandonar a atmosfera onírica e trans-
cendente dos primeiros poemas. Tornar-se homem,
por outro lado, representa o contato com a vida, com
a realidade, com a imanência.
A reafirmação da própria humanidade também
transparece na elegia seguinte, a “Elegia lírica”, na
qual o poeta trata do sentimento amoroso, voltando-o
especialmente para a amada diretamente referida (“A
minha amada é tão bonita, tem olhos como besourin-
hos do céu”). A dilaceração íntima provocada pelo
embate entre carne e espírito aciona um tom auto-
piedoso: “Oh / Crucificado estou / Na ânsia deste
amor / Que o pranto me transporta sobre o mar”.
Escapando um pouco do intimismo das duas pri-
meiras elegias, o poeta coletiviza seu canto, ao referir-
se ao “homem vazio” que “se atira para o esforço des-
conhecido” na “Elegia desesperada”. A confirma-
ção dessa dispersão se dá no trecho que traz como
título “O desespero da piedade”, uma longa prece
pela qual desfilam figuras humanas as mais variadas
(“músicos de café e casas de chá”, “pequenas famílias
suburbanas”, “vendedores de passarinhos” etc.), por
quem o poeta pede piedade. O ponto culminante é re-
servado ao “longo capítulo das mulheres”, que tam-
bém comporta referências múltiplas (“moças peque-
nas das ruas transversais”, a “mulher no instante do
parto”, “mulheres chamadas desquitadas” etc.). O
pedido inclui o próprio eu lírico — mas apenas no úl-
timo verso, um espaço menos destacado do que aque-
le, central, das elegias anteriores —: “E se piedade
vos sobrar, Senhor, tende piedade de mim!” 
Da multidão anônima que figura na “Elegia de-
sesperada”, o poeta passa para um tom afetivo mais
próximo, na “Elegia ao primeiro amigo”. Concla-
ma o destinatário a refletir sobre os desdobramentos
do sentimento amoroso ao qual ele está prestes a se
entregar e lamenta essa decisão, a partir de suas pró-
prias experiências. Assim, mesmo tratando do drama
do amigo, o parâmetro é a vivência íntima do poeta.
No entanto, isso não significa perda da perspectiva
mais ampla, já que o texto trata do sofrimento ineren-
te à condição de apaixonado.
SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 132 • ANGLO VESTIBULARES
Finalmente, “A última elegia” é a expressão de
um apaixonado (“Da alta e irreal paixão subindo as
veias / Com que chegar ao coração da amiga”). Mes-
mo com uma impressionante pluralidade de refe-
rências — em que se incluem trechos retirados de
poemas da língua inglesa —, não perde seu caráter
de evocação da amada, embora realizado quase que
com agressividade e um pouco distante do lirismo
das elegias anteriores. É como se a experiência mun-
dana, o contato com o outro de “Elegia desesperada”
e “Elegia ao primeiro amigo” fizesse o poeta intimista
da “Elegia quase uma ode” e da “Elegia lírica” ampliar
seu universo expressivo. Curioso é notar que isso, de
fato, ocorreria na obra de Vinicius, dali em diante.
PPrriimmeeiirraass oouussaaddiiaass ffoorrmmaaiiss
A convivência de traços da primeira fase com no-
vas informações estéticas manifesta-se igualmente no
terreno formal. Persiste, por exemplo, a exploração
ocasional da regularidade estrófica. O poeta não
abandona por completo o vocabulário litúrgico,
como a evidenciar a persistência das angústias reli-
giosas dos primeiros livros. No entanto, já ocorrem
algumas transgressões significativas. Algumas
das mais importantes aparecem nessas mesmas Cin-
co elegias, indicadas pelo próprio poeta como o ponto
de clivagem das duas fases de sua carreira.
Assim, a desobediência às restrições de gê-
nero, como a inserção de trechos em prosa no corpo
do poema (já ensaiada antes com “Viagem à som-
bra”), é reafirmadapor duas vezes, em “Elegia quase
uma ode” e “Elegia lírica”. Neste último poema, temos
ainda uma demonstração das primeiras tentativas de
Vinicius no caminho que, mais tarde, representaria
uma transformação poética relevante: a adoção de
uma linguagem mais coloquial, como se lê no tre-
cho em prosa de “Elegia lírica”:
Meu benzinho adorado minha triste irmãzinha eu te peço
por tudo o que há de mais sagrado que você me escreva
uma cartinha sim dizendo como é que você vai que eu
não sei eu ando tão zaranza por causa do teu abandono
eu choro e um dia pego tomo um porre danado que você
vai ver (...)
Na “Elegia desesperada”, aparecem elementos que
seriam constantes na obra, a partir desse momento.
Vejamos o exemplo a seguir:
Tende piedade dos homens úteis como os dentistas
Que sofrem de utilidade e vivem para fazer sofrer
Mas tende mais piedade dos veterinários e práticos de
farmácia
Que muito eles gostariam de ser médicos, Senhor.
Verifica-se, no trecho, o tom religioso que ca-
racterizava a poesia do autor (“Tende piedade”, “Se-
nhor”), mas que, agora, faz-se acompanhar por claras
referências ao cotidiano (“dentistas”, “veterinários e
práticos de farmácia”), temperadas com algum hu-
mor. Na “Elegia ao primeiro amigo”, pode-se entre-
ver o cômico no tom dolorosamente irônico que o poe-
ta usa para avisar um amigo dos desastres de amor que
ele (o amigo) se dispõe a experimentar.
“A última elegia”, por fim, contém as maiores ou-
sadias formais de toda a obra de Vinicius. Composta
no final da década de 1930, quando o poeta gozava de
uma bolsa de estudos na Inglaterra, o poema mistu-
ra expressões em inglês e em português, apresen-
ta inúmeros exemplos de intertextualidade (com
referências a muitos escritores britânicos), além de
neologismos e inusitadas disposições gráficas,
como as da abertura do texto, reproduzida a seguir:
O L
O F E S
R S H E
“O O F C A
Greenish, newish roofs of Chelsea
Onde, merencórios, toutinegram rouxinóis
Forlornando baladas para nunca mais!”
Os telhados do bairro londrino de Chelsea, referidos em “A últi-
ma elegia”
O primeiro verso (“O, roofs of Chelsea” — isto é:
“Ó, telhados de Chelsea”) tem suas letras dispostas de
forma a imitar os telhados característicos das casas
do bairro londrino de Chelsea, utilizando-se de um
procedimento que seria bastante explorado posterior-
mente, pela Poesia Concreta da década de 1950. O
segundo verso apresenta duas expressões em inglês,
“greenish” (= esverdeado) e “newish” (algo como “no-
vidadeiros”), enquanto o terceiro é escrito em portu-
guês, trazendo um neologismo, “toutinegram” (for-
mado a partir de toutinegra, espécie de pássaro, e
fazendo referência ao canto dos “rouxinóis”, citados a
seguir). “Forlornando”, que aparece no quarto verso,
é outro neologismo, constituído a partir de uma pala-
vra inglesa (forlorn, isto é, triste, desolado, infeliz),
acrescida de um sufixo típico da formação do gerún-
dio em português. Note-se que o vocábulo forlorn
aparece no poema “Ode a um rouxinol” (1819), do
poeta inglês John Keats (1795-1821). O poema de
Vinicius segue nessa linha, desafiando a capacidade
interpretativa do leitor.
SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 133 • ANGLO VESTIBULARES
AArriiaannaa,, aa mmuullhheerr
Para finalizar essas considerações a respeito do
período de transição da poética de Vinicius, convém
destacar o poema “Ariana, a mulher”. A despeito de
ser alinhado junto à primeira fase pelo próprio autor,
traz algumas direções particulares. É possível per-
ceber o desenvolvimento expositivo do tema da bus-
ca da mulher amada, que viria a se constituir em
um dos mais marcantes de sua obra. Em um primeiro
momento (estrofes 1-3), o poeta descreve a própria
solidão, em que tudo rescende a morte. Na quarta es-
trofe, ele percebe que a sensação mórbida está nele
mesmo. A solução é apontada logo a seguir: sair à
procura da amada, em uma busca que, ainda que car-
regada de angústia, vem também cheia de esperança.
Desesperado me ergui e bradei: Quem és que te devo 
procurar em toda parte e estás em cada uma?
Espírito, carne, vida, sofrimento, serenidade, morte, por
que não serias uma?
Quando essa mulher é finalmente encontrada,
dá-se também o reconhecimento da sua plenitude,
como algo que é clamado por todos e ocupa todos os
espaços (estrofes 15-18). Um trecho, já citado ante-
riormente, sintetiza toda a dimensão (e imensidão) do
trajeto existencial do poeta: “E compreendi que só
onde cabia Deus cabia Ariana”. Nesse verso, pode-se
notar, de um lado, a reafirmação da tendência mística
do poeta, e, de outro, o desafio a essa mesma tendên-
cia, fazendo pontificar a mulher de carne e osso, à qual
confere uma dimensão quase divinizada.
Em tais poemas, percebe-se com clareza o esfor-
ço do artista na tentativa de elaborar novas formas de
expressão. Vinicius levaria adiante essa tendência,
mudando corajosamente o rumo de sua obra.
SSEEGGUUNNDDAA FFAASSEE
AA DDEESSCCOOBBEERRTTAA DDOO MMUUNNDDOO
UUmm nnoovvoo cceennáárriioo:: oo ccoottiiddiiaannoo
Vinicius definiu “O falso mendigo” (publicado ori-
ginalmente no livro Novos poemas, de 1938) como o
texto que evidencia a consolidação de novas opções
expressivas em sua obra. De fato, a partir dele, na An-
tologia, as marcas anunciadas durante o período de
transição mostram-se ainda mais salientes. Livros
posteriores, como Poemas, sonetos e baladas (1946) e
Novos poemas — II (1959), além da própria Antologia
(que, como já se disse, publicada originalmente em
1954, trazia alguns poemas inéditos), confirmam a
firmeza da direção assumida pelo poeta.
Novas linhas temáticas ganham força e consis-
tência. Dessas, a mais importante é aquela que trata
do cotidiano. A importância desse tema é reconhe-
cida pelo próprio poeta, que, na organização de sua
Poesia completa e prosa para a Editora Aguilar, em
1968, reuniu parte de sua produção sob o título de “O
encontro do cotidiano”. Nesse contexto, ganha desta-
que a temática da vida urbana, que aparece, por
exemplo, em “O dia da criação” e em muitas das bala-
das, algumas das quais tratam de mulheres inseridas
na cidade grande.
Embora relativamente nova na obra do autor, a
temática do cotidiano já gozava de certa tradição em
nossa literatura, em virtude da fixação que os moder-
nistas de 1922 demonstraram por ela. As paisagens
urbanas das multidões pelas ruas, de trens e automó-
veis movimentando-se velozmente, do cinema e da
cultura, são faces da apologia da cidade grande que
se percebe em escritores como Oswald de Andrade,
Mário de Andrade, Antônio de Alcântara Machado,
Octávio de Faria, entre outros. Herdeiro da perspecti-
va lírica desses poetas, Vinicius promove a integra-
ção da realidade à poesia. Esta, todavia, é que deve
dominar a expressão; o real deve servir ao estético.
AA mmuullhheerr ddee ccaarrnnee ee oossssoo
O mergulho no cotidiano atualiza uma série de
temas da fase anterior. Isso ocorre, por exemplo, com
a figura da mulher. A busca pela amada permanece
como uma das obsessões do poeta — no entanto, em
uma versão que se permite algum erotismo. A mulher,
agora, tem “mãos lânguidas, loucas” e seduz o poeta,
a ponto de fazê-lo indagar: “Quem te criou tão boa
para o ruim / E tão fatal para os meus versos duros?”
(“Soneto à lua”). O louvor da beleza atinge a apologia
da forma atlética em “Balada das meninas de bicicle-
ta”, em que as ciclistas são chamadas de “Centauresas
transpiradas”, imagem que remete aos centauros,
seres míticos com torso humano e pernas de cavalo,
que, no poema, figuram a força física das moças.
A mulher assim concebida, ao se distanciar da
idealização dos poemas iniciais, passa por um pro-
cesso de dessacralização. É bem esse o enfoque do
“Soneto de agosto”, que retrata uma mulher despoja-da tanto de suas roupas quanto de qualquer tipo de
transcendência:
Só assim arrancara a linha inútil
Da tua eterna túnica inconsútil...
E para a glória do teu ser mais franco
Quisera que te vissem como eu via
Depois, à luz da lâmpada macia
O púbis negro sobre o corpo branco.
O despojamento atinge imagens consagradas da
mulher, para trazê-la ao seu próprio tempo. Assim
ocorre com a moderna personagem da “História pas-
sional, Hollywood, Califórnia”, que traz, na boca, “um
beijo com batom marca indelével” e um brilho “de
dois mil dentes de esmalte” e, no corpo, um “seio de
arame”. Em tentativas de sedução sempre frustradas,
o eu lírico a vê beber “vinte uísques”, dançar a uma
velocidade de “cem rotações de quadris por minuto”,
SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 134 • ANGLO VESTIBULARES
realizar “um desejo de boliche”, matar a sede com
“uma coca gelada” — até que ele, cansado de suas re-
cusas, mata-a e a possui “assim, morta e desfigurada”.
Como se vê, estamos bem distantes das histórias de
amor com finais felizes de muitos dos filmes de
Hollywood, Califórnia...
Em “Receita de mulher”, a desmontagem fere de
morte a própria poesia lírica de evocação e apologia
da amada. O título, por si só, já possui uma sugestiva
nota culinária. E os versos que se seguem a ele des-
crevem a mulher ideal em um plano predominante-
mente físico, em termos que parecem dialogar ironi-
camente com a obra de Vinicius — e que, até hoje,
ainda são capazes de deixar de cabelos em pé as femi-
nistas menos complacentes:
As muito feias que me perdoem
Mas beleza é fundamental
[...]
Seja leve como um resto de nuvem; mas que seja uma 
nuvem
Com olhos e nádegas. Nádegas é importantíssimo. [...]
[...]
É preciso que as extremidades sejam magras; que uns 
ossos
Despontem, sobretudo a rótula no cruzar das pernas, e 
as pontas pélvicas
No enlaçar de uma cintura semovente
[...]
[...] Que a mulher seja, em princípio, alta
Ou, caso baixa, que tenha a atitude mental dos altos pín-
caros.
Destituída de sua condição santificada, a mulher
desce do pedestal e ocupa as ruas. Daí a imagem femi-
nina incluir não apenas a amada individualizada, mas
“A mulher que passa”, capaz de despertar no poeta o
mesmo desejo (“Meu Deus, eu quero a mulher que
passa”) e mantendo o poder de eternizar o efêmero, já
que é aquela que “fica e passa, que pacifica”. Em
“Valsa à mulher do povo”, lê-se uma perfeita tradução
dessa mulher: ela é a “antideusa”, situando-se fora
dos padrões exigidos pela “Receita de mulher” perpe-
trada pelo poeta. Despossuída de bens materiais, mis-
turando-se diariamente à massa de trabalhadores que
se utiliza dos trens, ela é a “Musa central-ferroviária”.
Na sua busca entusiasmada por essa mulher (“Te en-
contrarei. Te encontrarei nas feiras livres”), percebe-
se certa nota de piedade e comiseração — a mesma
que ele dedica às infelizes e solitárias funcionárias da
“Balada das arquivistas”.
Ainda no terreno da condição feminina, desta-
cam-se duas imagens fortes e de grande apelo na arte
brasileira: a que mostra a prostituição e a que realça o
instinto maternal. O ofício das prostitutas de “Balada
do Mangue” (zona do meretrício carioca) traz menos
perfume que podridão ao jardim amoroso: “Pobres
flores gonocócicas / Que à noite despetalais / As vos-
sas pétalas tóxicas!”.
A prostituição é o tema do quadro acima (“O interior no
Mangue”, 1949), do pintor Lasar Segall (1891-1957) e tam-
bém de “Balada do Mangue”, de Vinicius de Moraes
A mulher de “Balada para Maria” é feita para a
maternidade; a ela, o eu lírico proclama: “— Cobrir-
te-ei da pomada / Do pólen das flores puras / E te fe-
cundarei deitada / Num chão de frutas maduras”.
Como se vê, trata-se de um jardim mais propenso à
frutificação do que aquele do Mangue.
“Mulher com criança” (1936), de Candido Portinari (1903-1962)
SSeexxoo sseemm ccuullppaa
Contudo, o ponto culminante da vertente erótica
é a referência à relação sexual, constantemente
abordada. Por vezes, apenas como manifestação de
desejo incontido, como em “O assassino”, em que o
eu lírico “põe olhos malvados” em inocentes “meni-
nas de colégio”. Outras vezes, em poemas de tom
memorialista, como a recordação das primeiras ex-
periências sexuais em “Rosário” (“E eu que era um
menino puro / Não fui perder minha infância / No
mangue daquela carne!”), em “Marina” (“E quantas
vezes, precoce / Em vão, pela tua posse / Não me saí
SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 135 • ANGLO VESTIBULARES
tão mal...”) ou em “Epitalâmio”, que celebra encontros
amorosos passados, na onipresente busca do amor
definitivo. Aqui e ali, surge uma imagem mais inusita-
da, como a da vampiresca amante de “A que vem de
longe” (“Ela cobriu-me de seus cabelos / E os duros
lábios no meu pescoço / Pôs-se a sugar-me.”).
Mas a abordagem mais constante é aquela que
focaliza o ato sexual em si. Vejamos alguns exem-
plos. O título do “Soneto de devoção” traz à tona uma
expressão de matriz religiosa, fazendo-a voltar-se
para a descrição da mulher nua:
Essa mulher que se arremessa, fria
E lúbrica aos meus braços, e nos seios
Me arrebata e me beija e balbucia
Versos, votos de amor e nomes feios
[...]
Essa mulher é um mundo! – uma cadela
Talvez... – mas na moldura de uma cama
Nunca mulher nenhuma foi tão bela!
Também o “Soneto da mulher inútil” parece que-
rer realizar a pintura da mulher nua, emoldurando-a
uma vez mais no leito do amor: “Brancos seios azuis,
nívea garganta / Branco pássaro fiel com que me dei-
to”. Apenas convém ressaltar que o pintor, no caso,
não é mero observador, mas participante ativo do
encontro sexual — o que se explicita uma vez mais em
“O mergulhador”, que transforma o corpo feminino
em um mar explorado pelo pesquisador maravilhado.
Essa associação entre sexualidade e natureza
ocorre ainda outras vezes, na Antologia. “Cinepoema”
traz como epígrafe “O preto no branco”. Trata-se de
um verso do poema “Água forte”, um dos mais eróti-
cos da obra de Manuel Bandeira, que ali apresenta a
descrição de uma vagina: “Em meio do pente, / A
concha bivalve / Num mar de escarlata. / Concha rosa
ou tâmara?”. Aproveitando-se da mesma sugestão
erótica, o poema de Vinicius narra, de forma frag-
mentária, uma relação sexual entre um homem negro
e uma mulher branca, na Praia de Copacabana: “Ne-
gror absoluto / Sobre um mar de leite / [...] / A branca
de bruços / O preto pungente”. E se, aqui, o poeta se
coloca como voyeur, em outro episódio, ambientado
em praia diversa, ele é sujeito da ação: “Eu soube te
amar, menina / Na praia do Vidigal... / [...] / Minhas
mãos te confundiam / Com a fria areia molhada /
Vencendo as mãos dos alísios / Nas ondas da tua
saia” (“Balada da Praia do Vidigal”). 
A componente natural é ainda mais forte em “O
sacrifício da aurora” e “O poeta e a lua”. Nos dois ca-
sos, o eu lírico se envolve amorosamente com ele-
mentos da natureza: a aurora, no primeiro caso
(“Apaixonei-me da Aurora / No meu quarto de mar-
fim / Todo o dia à mesma hora / Amava-a só para
mim”); e a lua, no segundo, com tonalidades mais
contundentes, que ainda ecoam o poema de Bandeira
citado acima.
A lua volta de flanco
Eriçada de luxúria
O poeta, aloucado e branco
Palpa as nádegas da lua.
Entre as esferas nitentes
Tremeluzem pelos fulvos
O poeta, de olhar dormente
Entreabre o pente da lua.
Um magnífico exemplo da temática sexual na
Antologia é o poema “Os acrobatas”. Os versos acom-
panham o desenrolar do ato sexual, começando pelo
enlace inicial, a “posse física dos braços”, passando
pela gestualidade mais intensa:
Oh, acima
Mais longe que tudo
Além, mais longe que acima do além!
Como dois acrobatas
Subamos, lentíssimos
Lá onde o infinito
De tão infinito
Nem mais nome tem
Subamos!
[...]
Tu e eu, herméticos
As nádegas duras
A carótida nodosa
Na fibra do pescoço
Os pés agudos em ponta”
Até atingir o orgasmo, explicitado em caixa altano verso final:
Num último impulso
Libertados do espírito
Despojados da carne
Nós nos possuiremos.
E morreremos
Morreremos alto, imensamente
IMENSAMENTE ALTO.
Note-se que o êxtase, atingido quando os aman-
tes estão livres de corpo (“Despojados da carne”) e de
alma (“Libertados do espírito”), é simbolizado pela
morte (“E morreremos”), que aparece, assim, reco-
berta de significação positiva, na medida em que se
associa à plenitude de um amor que está além do físi-
co e do espiritual. Trata-se de um aspecto bastante
presente no novo tratamento que a temática amoro-
sa recebe: se antes o amor era causa de conflito, dor,
aflição e angústia, agora ele aparece como celebração.
OO aammoorr vvaallee aa ppeennaa
Aparentemente, para o poeta, todas as etapas do
relacionamento amoroso possuem uma virtualidade
positiva que as faz merecedoras de registro e comemo-
ração. A experiência amorosa é válida por si mesma:
“Fiel à sua lei de cada instante / Desassombrado,
doido, delirante / Numa paixão de tudo e de si mes-
mo” (“Soneto do maior amor”). Pode-se mesmo pen-
sar que essa paixão resiste até ao desprezo da ama-
da, como está sugerido em “Ternura”: “Pela graça in-
dizível dos teus passos eternamente fugindo / Trago a
SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 136 • ANGLO VESTIBULARES
doçura dos que aceitam melancolicamente”. A hipó-
tese do desencontro, da irrealização do sentimento,
está presente, mas não gera angústia, e sim confor-
mismo: “Por não te possuir, tendo-te minha / Por só
quereres tudo, e eu dar-te nada / Hei de lembrar-te
sempre com ternura” (“Soneto de quarta-feira de cin-
zas”). 
A despeito desses azares, o que predomina é o
convite ao amor: “Vem. Meus músculos estão doces
para os teus dentes / E áspera é minha barba. Vem
mergulhar em mim”. Mesmo quando há um desvio
da exacerbação da carne e da sexualidade, resta a ter-
nura expressa na “Elegia lírica”: “Meu Deus, eu que-
ria brincar com ela, fazer comidinha, jogar nai-ou-
nentes / Rir e num átimo dar um beijo nela e sair cor-
rendo / E ficar de longe espiando-lhe a zanga, meio
vexado, meio sem saber o que faça…” Provavelmen-
te, o poeta apreendeu essa lição de um de seus mes-
tres, Manuel Bandeira. Registre-se, aliás, que o título
de um artigo que Bandeira escreveu sobre Vinicius
traz expressões retiradas dessa Elegia: “Coisa alóve-
na, ebaente”.
O sofrimento é concebido como algo inerente à
condição de apaixonado: para fazer perdurar a expe-
riência amorosa, o poeta se dispõe a aceitar a dor que
ela provoca. Quando há tristeza na relação afetiva, ela
se deve menos à falta de correspondência ou outras
circunstâncias externas, e mais ao universo íntimo do
próprio eu lírico, o que faz com que, nesse sentido, a
concepção amorosa aqui se distancie daquela eter-
nizada por Camões.
Uma das causas do sofrimento é o fim do amor.
Dele trata o apólogo (narrativa que tem como perso-
nagens seres inanimados) de “Trecho”, que mostra um
diálogo entre um Celo e uma Flauta, no qual esta re-
clama: “Quem foi que me fez perdida / E que me de-
siludiu?”. E é este também o tema de um dos mais fa-
mosos textos do autor, o “Soneto de separação”: “De
repente da calma fez-se o vento / Que dos olhos des-
fez a última chama / E da paixão fez-se o pressenti-
mento / E do momento imóvel fez-se o drama”. A do-
lorosa experiência da separação não exclui a possibili-
dade de um reencontro: “Quando chegares e eu te vir
chorando / De tanto te esperar, que te direi? / E da
angústia de amar-te, te esperando / Reencontrada,
como te amarei?” (“Soneto de véspera”).
Mas a força do sentimento amoroso está mesmo
em sua capacidade de sobreviver a dores e de-
sencontros. Superando tudo isso, o desejo de amar
permanece movendo o poeta. Na “Balada do morto-
vivo”, o eu lírico narra a história de um amor que foi
além da morte: a moça Linalva recebeu a visita do
amado, sem saber que, na verdade, ele se afogara no
mar e que aquele encontro era seu gesto de despedi-
da. Em “Conjugação da ausente”, o eu lírico afirma que,
mesmo depois de “separações, tantas separações /
Uma separação...”, a presença da amada pode ser
sentida: “Vejo-te em cada prisma, refletindo / Diago-
nalmente a múltipla esperança / E te amo, te venero,
te idolatro / Numa perplexidade de criança”. Um
amor que sobrevive a tanta coisa, só pode terminar
por seu próprio efeito: “E de te amar assim, muito e
amiúde / É que um dia em teu corpo de repente / Hei
de morrer de amar mais do que pude” (“Soneto do
amor total”).
Se eventualmente o amor pode ser eterno, so-
brevivendo à “grande partida que há no fim” (como
se vê em “Soneto de carnaval”), é preciso reconhecer
que, para o poeta, parte substancial da celebração do
amor está no reconhecimento conformista de sua
efemeridade. Este é o fundamento daqueles que
talvez sejam os versos mais conhecidos de Vinicius:
“Eu possa me dizer do amor (que tive): / Que não seja
imortal, posto que é chama / Mas que seja infinito
enquanto dure.” O mesmo ímpeto de fixação do efê-
mero está presente em “A mulher que passa” (“Meu
Deus, eu quero a mulher que passa”), que retoma o
poema “A uma passante”, do poeta francês Charles
Baudelaire, para celebrar a beleza anônima que deixa
marcas profundas na sensibilidade sempre acesa do
poeta.
NNoovvaa aattmmoossffeerraa mmííssttiiccaa
A religiosidade, predominante na primeira fase,
não é totalmente abandonada. No entanto, sofre o
mesmo processo de dessacralização verificado an-
teriormente, o que traz modificações substanciais. O
“Soneto de devoção”, como já se viu, sugere em seu
título um desenvolvimento místico que é desmentido
pelos versos, que descrevem uma mulher pronta para
o encontro sexual.
Mas o exemplo mais marcante desse aspecto da
obra é “O dia da criação”. O tom religioso, explícito,
tanto no título quanto na epígrafe (“Macho e fêmea os
criou”, retirado da Bíblia — Gênesis, 1,27), continua
ao longo do poema. Na primeira parte, o nome de
“Nosso Senhor Jesus Cristo” é citado por duas vezes;
na segunda parte, o refrão (“Porque hoje é sábado”) é
repetido em todo verso par, constituindo uma pode-
rosa sugestão de ambiente litúrgico. Contudo, o tom
preponderante do poema é menos a contenção refle-
xiva própria da expressão espiritualista, e mais o hu-
mor e as referências ao cotidiano:
Neste momento há um casamento
Porque hoje é sábado
Há um divórcio e um violamento
Porque hoje é sábado
Há um homem rico que se mata
Porque hoje é sábado
Há um incesto e uma regata
TTeemmááttiiccaa ssoocciiaall
Outra abordagem significativa dessa segunda fa-
se é a temática social. O poeta abraça a causa do
compromisso político, defendendo a prática de uma
SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 137 • ANGLO VESTIBULARES
poesia engajada. Em “Mensagem à poesia”, é clara a
proposta de uma arte que se obriga a voltar-se para
os temas associados à miséria e à exploração. Em
certo ponto, dirigindo-se àqueles a quem pede que
enviem em seu nome um recado à poesia, diz o autor:
“Contem-lhe, bem em segredo, que eu devo estar pres-
tes, que meus / Ombros não se devem curvar, que
meus olhos não se devem / Deixar intimidar, que eu
levo nas costas a desgraça dos homens”. No primeiro
verso do trecho, a expressão “prestes” nos remete a
Luís Carlos Prestes (1898-1990), líder comunista bra-
sileiro — o que sugere uma inequívoca simpatia por
posições esquerdizantes, que Vinicius chegou a mani-
festar em alguns momentos de sua carreira artística. 
Dentre os temas políticos, ganha destaque o da
guerra. Algumas vezes, ele aparece como o contra-
ponto cruel de um mundo utópico, que se funda no
amor. Em “Repto”, o poeta convida “jovens guerri-
lheiros” a conhecerem batalhas mais suaves (“Que tal
amanhã / Lutarmos de amar?”), em uma antecipação
do lema Faça amor, não a guerra que circularia nos
anos 1960. Também a “Mensagem a Rubem Braga”
(jornalista e escritor, autor de Com a FEB na Itália, sé-
riede reportagens sobre a II Guerra Mundial) estabe-
lece a distância entre a vida tranquila no Brasil e a
triste realidade dos campos de batalha. Já a “Balada
dos mortos dos campos de concentração” trata com
crueza as cenas da opressão nazista (“Vossas peles
afrouxadas / Sobre os esqueletos dão-me / A impres-
são que éreis tambores — / Os instrumentos do Mons-
tro — / Desfibrados a pancada: / Ó mortos de percus-
são!”).
O grotesco desses versos está presente também
nos poemas em que Vinicius tratou da bomba atômi-
ca. Em “A bomba atômica”, o artefato aparece perso-
nificado, pleno de sentimentos, em contraste com sua
condição e sua função: “A bomba atômica é triste /
Coisa mais triste não há / Quando cai, cai sem vonta-
de / Vem caindo devagar”. Novo contraste se apresen-
ta em “A rosa de Hiroshima”, em que a semelhança
entre a imagem da rosa e a da explosão atômica é iro-
nicamente explorada.
A imagem da flor suspensa em Rosa meditativa (1958), de
Salvador Dali, pode ser associada à semelhança explorada
em “Rosa de Hiroshima” entre a rosa e a explosão atômica.
A realidade brasileira também marca presença
nessa vertente social da poesia de Vinicius. Por vezes,
de maneira ainda idílica, como em “Pátria minha”, que
funciona quase como uma retomada da “Canção do
exílio”, do romântico Gonçalves Dias: a saudade leva
o poeta a forjar uma imagem paradisíaca da terra na-
tal. Mas também está presente a dimensão da explo-
ração e da espoliação, no mais famoso poema social
do escritor, “O operário em construção”. Aqui, um ope-
rário se apercebe epifanicamente de sua importância
no mundo em que vive: 
À mesa, ao cortar o pão
O operário foi tomado
De uma súbita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
— Garrafa, prato, facão — 
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário,
Um operário em construção.
Não se pode dizer que Vinicius tenha sido um
poeta de ideologia bem definida, de carregar bandei-
ras políticas ou de agir em prol de qualquer tipo de
partidarismo. Nele, o engajamento é mais propria-
mente expressão de solidariedade pelo outro — eco
de sua formação cristã. Daí seu interesse crescente
pelos párias, pelas vítimas das injustiças — mais do
que pelos mecanismos provocadores dessas injus-
tiças. Em sua obra, a reflexão política se submeteu
sempre às determinações líricas do fazer poético. A
“Mensagem à poesia” pretensamente enviada por ele
jamais chegou ao destinatário, pois a poesia conti-
nuou sendo sua linha de conduta política, seu jeito de
ser cidadão.
NNaattuurreezzaa
Outros temas ganham importância na segunda
fase. Acentua-se, por exemplo, a presença da natu-
reza – que já vimos associada à sexualidade. Ela tam-
bém serve de interlocutor para o eu lírico, em “O es-
cândalo da rosa” (“Oh rosa que raivosa / Assim car-
mesim / Quem te fez zelosa / O carme tão ruim?”) e
em “Soneto ao inverno” (“Inverno, doce inverno das
manhãs / Translúcidas, tardias e distantes”); e, de cer-
ta forma, também no diálogo com “O pescador”, no
qual o poeta pergunta sobre as coisas do amor e da
natureza. No “Soneto da rosa”, chega-se a propor um
amálgama entre natureza e poesia: “Para que o sonho
viva da certeza / Para que o tempo da paixão não mu-
de / Para que se una o verbo à natureza”.
O cenário natural aparece ainda em quadros fi-
xos, como pinturas. Assim acontece na descrição do
nascimento do dia (em “Aurora, com movimento”) e
de um rio (“O rio”). E ainda em “A pera”, curiosa ima-
gem de natureza-morta (tipo de pintura que costu-
meiramente representa frutas e objetos inanimados)
na qual, no entanto, a fruta do título aparece como
depositária da vida: entre “bananas / Supervenientes /
SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 138 • ANGLO VESTIBULARES
E maçãs lhanas”, ela está “A entardecer”, o que lhe
confere ação e temporalidade. 
UUmm ccaannttaarr ddee aammiiggooss
São vários os poemas em que Vinicius realiza ho-
menagens a artistas que exerceram grande influ-
ência em sua obra. O tom decadentista e mórbido de
alguns poemas de Paul Verlaine (1844-1896) repercute
na seleção vocabular do poeta carioca em expressões
como “maldita”, “putrefação”, “sórdido”, “túmulo”, que
figuram em “A Verlaine”. Charles Baudelaire (1821-
1867), um dos fundadores da modernidade poética, é
relido pelo eu lírico de “Bilhete a Baudelaire” em que
o sentimento de spleen retoma o espírito de muitos
dos textos do francês. A morte do poeta e drama-
turgo espanhol Federico Garcia Lorca (1898-1936)
pelas mãos das forças ditatoriais de Franco, durante a
Guerra Civil, inspira a comovente homenagem de “A
morte de madrugada”, em que se reafirma a necessi-
dade de unir poesia e compromisso político. Rainer
Maria Rilke (1875-1926) aparece por duas vezes: no
título de “Imitação de Rilke”, no qual Vinicius tenta
resgatar as indagações presentes na obra do escritor
tcheco, e indiretamente em “Soneto do Só ou Pará-
bola de Malte Laurids Brigge”, que faz referência a
um romance de Rilke, Os cadernos de Malte Laurids
Brigge (1910), cujo protagonista tenta se situar em Pa-
ris no início do século, buscando ainda — como Vini-
cius — criar a imagem da mulher ideal. Katherine
Mansfield (1888-1923) foi uma contista neozelandesa
de grande influência na prosa moderna; suas cartas,
que chegaram a ser publicadas em vários volumes,
inspiraram o “Soneto a Katherine Mansfield”. Em
“O poeta Hart Crane suicida-se no mar”, Vinicius tra-
va um diálogo imaginário com o artista americano
morto em 1932, aos 33 anos de idade. A paixão pela
imagem cinematográfica conduz a homenagem ao ci-
neasta russo Eisenstein (1898-1948), no “Soneto a
Sergei Mikhailovitch Eisenstein”.
Muitos artistas brasileiros são também lembra-
dos em alguns títulos da Antologia, celebrados tanto
em sua arte quanto na amizade que mantinham com
Vinicius. Octavio de Faria (1908-1980), a quem Vi-
nicius dedica o “Soneto a Octavio de Faria” foi um de
seus mentores na juventude, conduzindo-o tanto
pelos caminhos da poesia quanto da espiritualidade,
que era uma das linhas de força da obra de ambos. A
já referida “Mensagem a Rubem Braga” possui o tom
intimista adequado à amizade que unia remetente e
destinatário. Manuel Bandeira (1886-1968) dá nome a
“Saudade de Manuel Bandeira”, onde é lembrado co-
mo “poeta”, “pai” e “áspero irmão” do eu lírico. Outro
amigo próximo foi Pedro Nava (1903-1984), merece-
dor da “Balada de Pedro Nava”. E João Cabral de Melo
Neto (1920-1999) aparece liricamente descrito em
“Retrato, à sua maneira”: “Magro entre pedras” —
verso que registra não apenas o aspecto físico de Ca-
bral, mas ainda uma das paisagens mais constantes
de sua poesia calcária. Há também as homenagens
póstumas a Mário de Andrade (1893-1945), em “A
manhã do morto”, e a Graciliano Ramos (1892-1953),
em “Máscara mortuária de Graciliano Ramos” — e
também nesses dois casos, os versos captam algo do
estilo dos homenageados.
O afeto dedicado aos amigos se estende aos fa-
miliares. Assim, a “Balada do Cavalão” fala de um lo-
cal associado à filha Susana, também lembrada em
“Canção”; “A paixão da carne” trata da relação entre o
poeta e seu filho Pedro, recém-nascido; já o pai é lem-
brado em duas ocasiões: “Elegia na morte de Clo-
doaldo Pereira da Silva Moraes, poeta e cidadão” e
“Balada negra”.
MMeettaalliinngguuaaggeemm
A nova fase de Vinicius de Moraes é anunciada
por uma temática que será também constante: trata-
se da reflexão sobre a poesia, que está na base do
poema “O falso mendigo”, com que ele inaugura o no-
vo rumo.
Minha mãe, manda comprar um quilo de papel almaço
na venda
Quero fazer uma poesia.
Diz a Amélia para preparar um refresco bem gelado
[...]
Se me telefonarem, só estou para Maria
Se for o Ministro, só recebo amanhã
Se for um trote, me chama depressa
Tenho um tédio enorme da vida.
Aqui, o fazer poético se propõe como parte do co-
tidiano do eu lírico, integrando-se naturalmente a
seus pequenosprazeres diários. A poesia já não paira
acima da vida, mas tenta, ao contrário, buscar o que
nela existe de empolgante, de novo, de diferente na
existência: a ruptura com a expectativa, efeito seme-
lhante ao “trote” — não um simples engodo de brin-
quedo, mas uma forma de fugir ao tédio que conduza
a outra forma de fruir as experiências. Em “Poética
(I)”, que é posterior, a reflexão já parece mais madura:
De manhã escureço
De dia tardo
De tarde anoiteço
De noite ardo
A oeste a morte
Contra quem vivo
Do sul cativo
O este é meu norte.
Outros que contem
Passo por passo:
Eu morro ontem
Nasço amanhã
Ando onde há espaço
— Meu tempo é quando
Os versos são conduzidos pela idéia da subversão
temporal (1ª- estrofe) e espacial (2ª- estrofe): o poeta
funda seu próprio tempo (assumido com um ciclo
SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 139 • ANGLO VESTIBULARES
eterno — “Eu morro ontem // Nasço amanhã”) e sua
própria estratégia de ação no mundo (“Meu tempo é
quando”, verso que institui uma transitoriedade, ao
mesmo tempo em que sugere uma superação da de-
limitação temporal). Trata-se de uma reflexão de cará-
ter existencial; no entanto, o título estabelece uma re-
lação entre aquelas subversões e a própria poesia.
Assim, o texto se coloca como um programa estético
de inovação, de exploração da surpresa — não por
outro motivo é um soneto que foge ao modelo con-
vencional, já que tem versos curtos, nos quais predo-
minam os tetrassílabos. O fato de se tratar de uma
reflexão em torno da própria existência reforça a pro-
posta de uma poesia que pretende ser um mergulho
na vida.
AA ddoorr ddee vviivveerr
A nota melancólica, que acompanhou o poeta
na primeira fase, não o abandona agora. A saudade
da amada é o tema de “Cântico” e a solidão (talvez
inspirada pela condição do diplomata distante da
terra de origem) aparece em “Soneto de Londres” e
“A estrela polar”. Com uma visão mais complacente e
bem-humorada, temos a imagem da infância, geral-
mente associada aos filhos (“O crocodilo”).
Saudade, solidão, presença dos filhos – são dados
que parecem lembrar ao poeta que o tempo está pas-
sando. De fato, o poema “Desert Hot Springs” descre-
ve sem piedade a degenerescência física de pes-
soas frequentadoras de uma piscina pública na cida-
de que dá título ao poema — uma estação de águas
da Califórnia, nos Estados Unidos. As mazelas ali
expostas talvez funcionem como um prelúdio daquele
que será um dos temas mais constantes da obra: a
morte. 
Na poesia de Vinicius, a morte possui uma di-
mensão pessoal. O poeta parece desejar a morte,
como em “A partida”: “Quero ir-me embora pra es-
trela / Que vi luzindo no céu / [...] / No oco do raio
solar / Libertado subirei”. O que ocorre, na verdade,
não é a aspiração da morte, mas a consciência de sua
fatalidade. Se, de um lado, não deixa de haver certo
tom angustiante na espera pela morte (que se vê em
“Sinos de Oxford”: “Respondei-me, sinos: / A morte já
vem?”), por outro, existe a certeza de que ela espera
pelo poeta em “Imitação de Rilke”, em que a sensação
de ser observado se confunde com a expectativa do
fim (“Alguém que me espia do fundo da noite / (Tam-
bém chega a Morte dos ermos da noite...) / Quem
é?”). Diante do inevitável, o poeta adota uma perspec-
tiva por vezes contemplativa (como em “Paisagem”:
“Assim entrei no pensamento / Da morte minha ami-
ga / [...] / Como tudo nesse momento / Me pareceu
plácido e sem memória”), por vezes reflexiva (como
nos “Quatro sonetos de meditação”). A morte impreg-
na mesmo a temática sexual, marcante na segunda
fase. É o que se vê em “Mar” (“E anseio em teu miste-
rioso seio / Na atonia das ondas redondas / Náufrago
entregue ao fluxo forte / Da morte.”) e em “A hora ín-
tima” (“Quem pagará o enterro e as flores / Se eu me
morrer de amores?”).
Em um poema de título explícito — “A morte” —
o poeta revela outra perspectiva sob a qual o tema é
focalizado em sua obra: “A morte vem de longe / Do
fundo dos céus / Vem para os meus olhos / Virá para
os teus”. Trata-se, como se vê, de uma dimensão uni-
versal, humana (“Dos homens, ai! dos homens / Que
matam a morte / Por medo da vida.”). Daí a sucessão
de personagens que enfrentam a morte em poemas
como “Balada do enterrado vivo”, “Balada da moça
do Miramar”, “Balanço do filho morto”, Balada do
morto-vivo”, “Menino morto pelas ladeiras de Ouro
Preto”, “O poeta Hart Crane suicida-se no mar” e
“Epitáfio” (cujos versos tratam da morte do sol: “Aqui
jaz o Sol”). Embora não fale diretamente da morte, o
poema “A rosa de Hiroshima”, já reproduzido neste
trabalho, descreve os efeitos cruéis e fatais da bomba.
DDeessppoojjaammeennttoo ddaa lliinngguuaaggeemm
São sensíveis as transformações operadas na lin-
guagem poética de Vinicius, a partir de novas opções
formais, identificadas por ele mesmo com sua se-
gunda fase. No entanto, como já se disse aqui, não se
pode considerar que a fase inicial tenha sido comple-
tamente superada. A referência religiosa persiste,
como se vê em “Soneto do só ou Parábola de Malte
Laurids Brigge”: “Sentiu-se pobre e triste como Jó /
[...] / Viu a face do Cristo ensanguentada”. Os sinais
dessa presença são ainda mais evidentes em “O filho
do homem” (que, como está indicado, celebra o “Na-
tal de 1947”), cuja estrofe final é reveladora: “Jesus
pequenino / Filho natural / Ergue-te, menino / É triste
o Natal”. Aqui e ali, emerge a nota melancólica que nor-
teava a temática nos primeiros poemas; no entanto,
como já vimos, o tom predominante é o da dessa-
cralização. “O dia da criação”, por exemplo, contém
a mesma referência, mas o que prevalece é mesmo a
crítica graciosa à vida na cidade grande.
O processo de ressignificação do discurso místico
é acompanhado (e reforçado) pelo abandono da lin-
guagem retórica elevada predominante nos pri-
meiros livros do escritor. Uma das formas de mani-
festação do despojamento que passa a caracterizar a
expressão poética diz respeito aos metros dos versos.
De fato, na primeira fase, os versos longos eram uti-
lizados para expressar a religiosidade que marcava a
obra de Vinicius na época, graças a uma aproximação
que se estabelecia entre a métrica e o versículo bíbli-
co. Na segunda, o declínio do predomínio da visão mís-
tica provoca um relativo desligamento do verso
longo.
Os metros curtos mais explorados na literatura
de língua portuguesa, os versos redondilhos menores
(5 sílabas) e maiores (7 sílabas), figuram em muitos
SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 140 • ANGLO VESTIBULARES
poemas da Antologia. Do primeiro tipo, temos, por
exemplo, “Sinos de Oxford”, “A um passarinho” e a
“Balada das duas mocinhas de Botafogo”. Do segun-
do tipo, mais comum, temos: “Trecho”, “Balada da
Praia do Vidigal”, “A estrela polar”, “Balada do enter-
rado vivo”, “Rosário”, “Balada a Pedro Nava”, “A ma-
nhã do morto”, “Balada da moça do Miramar”, “Bala-
da do morto-vivo”, “A morte de madrugada”, “Balada
negra”, “O operário em construção”, entre outros. Mas
há ainda poemas com versos tetrassílabos (quatro
sílabas), como o “Poema enjoadinho”; octossílabos (oito
sílabas), como “A Verlaine” e “A hora íntima”; eneas-
sílabos (nove sílabas), como “A mulher que passa”;
alexandrinos (12 sílabas), como “O mergulhador”.
A regularidade métrica está presente também
em poemas de versos polimétricos, que apresentam
estrofes com idêntica distribuição métrica, como as
quadras de “Marinha” (três primeiros versos com sete
sílabas e o quarto com três) e de “A que vem de lon-
ge” (três primeiros versos com nove sílabas e o quar-
to com quatro) e os tercetos de “Imitação de Rilke”
(dois primeiros versos com 11 sílabas e o terceiro com
dois).
No entanto, não há exageros normativos na poe-
sia de Vinicius. Em “A morte” predominam os versos
redondilhos menores, mas aqui e ali aparecem versos
hexassilábicos (seis sílabas). Essa permissividade se
deve ao fato de o poeta obedecer menos à rigidezfor-
mal e mais à captação de emotividades específi-
cas. Veja-se o caso de “A rosa de Hiroshima”:
Pensem nas crianças
Mudas telepáticas
Pensem nas meninas
Cegas inexatas
Pensem nas mulheres
Rotas alteradas
Pensem nas feridas
Como rosas cálidas
Mas oh não se esqueçam
Da rosa da rosa
Da rosa de Hiroshima
A rosa hereditária
A rosa radioativa
Estúpida e inválida
A rosa com cirrose
A antirrosa atômica
Sem cor sem perfume
Sem rosa sem nada.
O poema possui dezoito versos. Os dez primeiros
são redondilhos menores, mas o verso 11 introduz
uma nova medida: seis sílabas (“Da rosa de Hiroshi-
ma”). Nele, aparece o nome da cidade que dá título ao
poema e que foi bombardeada pelos americanos em
1945, no término da II Guerra Mundial. A referência
ao nome do local estabelece uma transformação no
texto, que concretiza formalmente a irregularidade
física das deformações provocadas pela bomba. Isto
é: da mesma forma que o artefato traz prejuízos físi-
cos às mulheres (sexto verso: “Rotas alteradas”), a ci-
tação da cidade atacada muda alguma coisa no poe-
ma. A alteração prossegue até o verso 16, como a es-
tabelecer outra normalidade, esta monstruosa, provo-
cada pela guerra. Os dois versos finais retornam ao
redondilho menor, parecendo recuperar o estado de
espírito que focalizava as “crianças / Mudas telepáti-
cas”, as “meninas / Cegas inexatas” e as “feridas”, trans-
ferindo-o agora para a imagem da rosa, modificada
depois que é associada à bomba, cujo estouro levanta
uma nuvem de fumaça que se assemelha a uma rosa
aberta. Metáfora da bomba, a rosa também é atingida
por seus efeitos, perde a sua condição original e fica
“Sem cor sem perfume / Sem rosa sem nada” — ou seja,
deforma-se, exatamente como os seres humanos que
os redondilhos iniciais retratavam.
Por vezes, o poeta parece buscar uma renovação
do ritmo convencional. Isso ocorre em “Balanço do
filho morto”. As quatro primeiras estrofes são escritas
em versos livres e construídas por meio de mecanis-
mos de repetição: o mesmo verso abre as três estro-
fes iniciais (“Homem sentado na cadeira de balanço”)
e aparece como segundo verso na quarta; além disso,
explora-se a anadiplose (retomada do final de um ver-
so no início do verso seguinte) na primeira estrofe:
“Sentado na cadeira de balanço / Na cadeira de balan-
ço / De balanço / Balanço do filho morto”. Nesse caso,
o verso livre não é utilizado para traduzir expansão,
explosão, mas emoção contida, represada. A quinta e
última estrofe, bastante longa, traz versos decassíla-
bos. O sentido solene e reflexivo tradicionalmente as-
sociado a esse metro é substituído pela intensidade do
desespero paterno, ainda ressaltado pela repetição:
Pobre pai, pobre, pobre, pobre, pobre
Sem memória, sem músculo, sem nada
Além de uma cadeira de balanço
No infinito vazio... o sofrimento
Amordaçou-te a boca de amargura
E esbofeteou-te a palidez na cara.
Ergues nos braços uma imagem pura
E não teu filho; jogas para cima
Um bocado de espaço e não teu filho
Não são cachos que sopras, porém cinzas
A asfixiar o ar onde respiras.
A despeito do predomínio da regularidade mé-
trica, os versos livres, que caracterizavam a primeira
fase do poeta, não são totalmente abandonados aqui,
como exemplificam os textos “Poema de Natal”, “Re-
ceita de mulher”, “Poema de Auteil”, “Pátria minha”,
“Elegia na morte de Clodoaldo Pereira da Silva Mo-
rais, poeta e cidadão”, entre outros.
AA rreettoommaaddaa ddoo ssoonneettoo
O apego à forma fixa levou o poeta a sistematizar
o exercício do soneto (que ele já experimentara no
primeiro livro, O caminho para a distância, de 1933,
com “O judeu errante” — que não figura na Antolo-
gia). São muitos os exemplos. Aqueles que trazem no
próprio título a forma escolhida (“Soneto à lua”, “So-
neto de agosto”, “Soneto de contrição” etc.) enqua-
SISTEMA ANGLO DE ENSINO • 141 • ANGLO VESTIBULARES
dram-se mais perfeitamente no rigor do soneto clás-
sico, com versos decassílabos (considerando-se que
mesmo os alexandrinos do “Soneto de intimidade”
podem ser inseridos na tradição do verso longo).
Sob essa forma, Vinicius produziu alguns de seus
versos mais citados, como: “Que não seja imortal,
posto que é chama / Mas que seja infinito enquanto
dure” (“Soneto de fidelidade”); “De repente, não mais
que de repente” (“Soneto de separação”); “E de te
amar assim, muito e amiúde / É que um dia em teu cor-
po de repente / Hei de morrer de amar mais do que
pude” (“Soneto do amor total”). Resistindo a tratar
desses exemplos, que já entraram para a memória
popular, vamos acompanhar, de forma sintética, o
desenrolar dos versos de um soneto menos conheci-
do, mas igualmente belo. Trata-se do “Soneto de vés-
pera”.
A primeira quadra cria a expectativa pela chega-
da da amada:
Quando chegares e eu te vir chorando
De tanto te esperar, que te direi?
E da angústia de amar-te, te esperando
Reencontrada, como te amarei?
Já se percebe que a alegria do reencontro vem
substituída pela apreensão, explicitada na “angústia”
(terceiro verso) e consubstanciada pelas lágrimas que
correm dos olhos do eu lírico. As respostas para as
perguntas que o eu lírico se faz ficam suspensas,
assim como a curiosidade do leitor, que deseja saber
as razões da angústia. A segunda estrofe esclarece
alguma coisa:
Que beijo teu de lágrima terei
Para esquecer o que vivi lembrando
E que farei da antiga mágoa quando
Não puder te dizer por que chorei?
Diante da iminência do reencontro, o poeta se re-
corda de tudo o que a mulher o fizera sofrer — e é essa
recordação que impede a fruição feliz do instante. Ele
pergunta então o que terá que fazer para superar
toda a dor causadora de uma “antiga mágoa” que
teima em permanecer. Se o tom predominante na pri-
meira estrofe era o da espera, agora esta se faz acom-
panhar pela dor. Na terceira estrofe, continua o dra-
ma do poeta:
Como ocultar a sombra em mim suspensa
Pelo martírio da memória imensa
Que a distância criou — fria de vida
Aqui, a dor parece prevalecer sobre a saudade e
o desejo do reencontro: o poeta supõe que não con-
seguirá superar a desilusão preservada na lembrança.
Desde a separação dos amantes, nenhum aconteci-
mento veio modificar a desilusão primitiva — a dis-
tância não gerou nada (“fria de vida”) que pudesse
transformar a mágoa em perdão. Como encarar en-
tão o reencontro? O que resta a fazer está expresso na
última estrofe:
Imagem tua que eu compus serena
Atenta ao meu apelo e à minha pena
E que quisera nunca mais perdida...
O poema se encerra ressaltando o dilema que
marca a expectativa do reencontro. No trecho final,
recupera-se uma imagem da amada (mais “atenta” ao
“apelo” e à “pena” do poeta) que pode ser apenas uma
criação (“eu compus”) do eu lírico. Seja como for, a
essa imagem se opõe aquela de que ele se recorda
mais vivamente, provocadora da “antiga mágoa”. Pa-
ra o leitor, tanto quanto para o eu lírico, trata-se de
saber qual das duas imagens prevalecerá no momen-
to do reencontro. Sem chegar a constituir uma
resposta plena, o último verso prenuncia uma atmos-
fera sombria — já que a imagem positiva da amada
talvez tenha se perdido para sempre (“quisera nunca
mais perdida”).
O desenvolvimento do soneto mostra a habilida-
de de Vinicius em acrescentar elementos ao estado
inicial do eu lírico — o que corresponde ao desen-
volvimento canônico da forma soneto. A exposição,
mesmo mais emotiva que racional, ainda assim é fun-
dada em uma reflexão sobre o amor, a separação e o
perdão, que o poeta consegue sintetizar com habi-
lidade. 
Contudo, se demonstrou competência para se-
guir a tradição, Vinicius também não hesitou em de-
safiá-la. Quando incorre em transgressões da norma
consagrada, pratica o que se costuma chamar de so-
netilho (soneto fora dos padrões canônicos). Nesses
casos, temos poemas nos quais a palavra “soneto”
não aparece no título. Exemplos: “A pera”, “Poética”

Outros materiais

Outros materiais