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APRESENTAÇÃO Esta disciplina tem como objetivo principal, prover no aluno o conhecimento linguístico, técnico-literário e sócio-cultural a fim de torná-lo um leitor crítico diante da produção literária desenvolvida durante os períodos artísticos brasileiros denominados Romantismo, Realismo e Naturalismo, chegando até o Simbolismo. Para isso, faz-se necessário entender a produção literária brasileira como a parte de um todo, que são as escolas ocidentais, inseridas em um contexto histórico, social e filosófico de extrema importância, desde que interiorizado no texto literário. A disciplina leva em conta também as formas de veiculação desta produção literária, bem como o público alvo dos escritores, compreendidos dentro de um amplo contexto social interiorizado no texto, como já dito anteriormente, para que, assim, o aluno adquira uma postura crítica em face dos elementos que compõem o fenômeno literário: autor, texto e leitor, sem os quais uma obra não se “proclama” e, consequentemente, não existe. Os elementos dos movimentos serão estudados a partir de três gêneros literários: a poesia, a prosa narrativa e o drama em suas vozes mais representativas, pois estamos certos de que, por meio desse conjunto, o aluno estará apto não só a se tornar um leitor crítico e autônomo diante da produção literária brasileira como também provido de subsídios que possibilitem a compreensão do texto literário de outros estilos de época seja no contexto brasileiro ou universal. A segunda metade do século XIX foi marcada nas Ciências, nas Artes e na Literatura por uma postura de denúncia das desigualdades sociais e da degradação moral e humana da classe burguesa. Veja nas telas como o povo mais humilde é retratado sem a idealização romântica. Além disso, o sofrimento e a degradação gerados pela miséria ficam patentes nos detalhes das vestes, da postura resignada e das expressões vincadas pelo sol. INTRODUÇÃO Veja estas três telas, produzidas no século XIX, e leia os três textos seguintes, que descrevem um cômodo de uma residência da época. Vagão de terceira classe, de Honoré Daumier. O Velho Jardineiro, de Émile Claus O Pagamento dos Ceifeiros, de Léon Lhermitte. I – Do romance Senhora, de José de Alencar. É uma sala em quadro, toda ela de uma alvura deslumbrante, que realçavam o azul celeste do tapete de riço recamado de estrelas e a bela cor de ouro das cortinas e do estofo dos móveis. A um lado duas estatuetas de bronze dourado, representando o amor e a castidade, sustentam uma cúpula oval de forma ligeira, donde se desdobram, até o pavimento, bambolins de cassa finíssima. Por entre a diáfana limpidez dessas nuvens de linho percebe-se o molde elegante de uma cama de pau-cetim pudicamente envolta em seus véus nupciais, e forrada por uma colcha de chamalote também cor de ouro. Do outro lado, há uma lareira, não de fogo, que o dispensa nosso ameno clima fluminense, ainda na maior força do inverno. Essa chaminé de mármore cor de rosa é meramente pretexto para o cantinho de conversação, pois que não podemos chamá-lo como os franceses o coin du feu. A bem dizer a lareira não passa de uma jardineira que esparze o aroma de suas flores, em vez do brando calor do lume, por aquele círculo, onde estão dispostas algumas poltronas baixas e derreadas, transição entre a cadeira e o leito. O aposento é iluminado por uma grande lâmpada de gás, cujo globo de cristal opaco filtra uma claridade serena e doce, que derrama-se sobre os objetos e os envolve como de um creme de luz. II – Do romance O primo Basílio, de Eça de Queirós. Tinham dado onze horas no cuco da sala de jantar. Jorge fechou o volume de Luís Figuier que estivera folheando devagar, estirado na velha voltaire de marroquim escuro, espreguiçou-se, bocejou e disse: – Tu não te vai vestir, Luísa? – Logo. Ficara sentada à mesa a ler o Diário de Notícias, no seu roupão de manhã de fazenda preta, bordado a soutache, com largos botões de madrepérola; [...] Tinham acabado de almoçar. A sala esteirada alegrava, com o seu teto de madeira pintado a branco, o seu papel claro de ramagens verdes. Era em julho, um domingo; fazia um grande calor; as duas janelas estavam cerradas, mas sentia-se fora o sol faiscar as vidraças, escaldar a pedra da varanda; havia o silêncio recolhido e sonolento de manhã de missa, uma vaga quebreira amolentava, trazia desejos de sestas, ou de sombras fofas debaixo de arvoredos, no campo ao pé da água; nas duas gaiolas, entre as bambinelas de cretone azulado, os canários dormiam; um zumbido monótono de moscas arrastava-se por cima da mesa, pousava no fundo das chávenas sobre o açúcar mal derretido, enchia toda a sala de um rumor dormente. Jorge enrolou um cigarro, e muito repousado, muito fresco na sua camisa de chita, sem colete, o jaquetão de flanela azul aberto, os olhos no teto, pôs-se a pensar na sua jornada ao Alentejo. III – Do romance Casa de pensão, de Aluísio Azevedo. O sujeito magro da véspera lá estava no mesmo sítio; agora, porém dormia, amortalhado a custo num insuficiente pedaço de chita vermelha. Do lado oposto, no chão, sobre um lençol encardido e cheio de nódoas, a cabeça pousada num jogo de dicionários latinos, jazia o Paiva, a sono solto, apenas resguardado por um colete de flanela. Mais adiante, em uma cama estreita de lona, viam-se dois moços, ressonando de costas um para o outro, com as nucas unidas, a disputarem silenciosamente o mesmo travesseiro. O quarto respirava todo um ar triste de desmazelo e boêmia. Fazia má impressão estar ali: o vômito de Amâncio secava-se no chão, azedando a ambiente; a louça, que servira ao último jantar, ainda coberta de gordura coalhada, aparecia dentro de uma lata abominável, cheia de contusões e comida de ferrugem. Uma banquinha, encostada à parede, dizia com o seu frio aspecto desarranjado que alguém estivera aí a trabalhar durante a noite, até que se extinguira a vela, cujas últimas gotas de estearina se derramavam melancolicamente pelas bordas de um frasco vazio de xarope Larose, que lhe fizera as vezes de castiçal. Num dos cantos amontoava-se roupa suja; em outro repousava uma máquina de fazer café, ao lado de uma garrafa de espírito de vinho. Nas cabeceiras das três camas e ao comprido das paredes, sobre jornais velhos e desbotados, dependuravam-se calças e fraques de casimira: em uma das ombreiras da janela havia umas lunetas de ouro, cuidadosamente suspensas de um prego. Por aqui e por ali pontas esmagadas de cigarro e cuspalhadas ressequidas. No meio do soalho, com o gargalo decepado, luzia uma garrafa. ANALISANDO OS TEXTOS Lemos um trecho do romance romântico brasileiro Senhora e trechos dos romances realistas O primo Basílio, português, e Casa de pensão, brasileiro. Este último apresenta traços de um movimento derivado do Realismo, o Naturalismo. Os três textos são descrições detalhadas de um cômodo. Perceba algumas diferenças fundamentais entre os temas e os estilos dos três movimentos: ▪ Sinta a perfeição e o idealismo que o ambiente romântico faz supor sobre a personagem burguesa que nele vive. Compare com o ambiente naturalista de Casa de pensão, que detecta a aviltante condição de jovens estudantes pobres, após uma noitada de bebida e sexo. ▪ Repare que o quarto da mulher romântica é pré-nupcial, ou seja, o “enlace matrimonial” ainda não ocorreu. A própria descrição dos elementos do quarto sugere a idealização do matrimônio, esperado como uma vida celestial na terra. Veja que a sala do romance realista O primo Basílio é de um casal já casado, entediado com a vida a dois. Aqui o matrimônio já perdeu sua aura celestial e caiu no marasmo. E o quarto de pensão naturalista reúne homens em situação nada heroica ou idealizada. ▪ Perceba, sobretudo, a linguagem. O quartoromântico é retratado com emoção, e até um tanto exageradamente, pelo narrador (vejam-se os adjetivos subjetivos positivos: “deslumbrante”, “finíssima”, “elegante” e “doce”, por exemplo). A sala realista é retratada em traços rápidos e com poucos adjetivos (os adjetivos, em geral, são objetivos – como, por exemplo, “escuro”, “preta”, “esteirada”, “claro”, “verdes”, “azulado” e “derretido” – para que você note como o narrador se isenta de opinar sobre o ambiente). O quarto naturalista é retratado de forma a exagerar, de modo oposto ao romântico, os aspectos negativos e podres do ambiente e do grupo que ali vive (vejam-se os adjetivos subjetivos negativos: “amortalhado”, “insuficiente”, “encardido”, “má”, “abominável”, “frio”, “desarranjado”, “suja”, “desbotados” e “esmagadas”, por exemplo.) Prof. Celso Cavicchia Prof. Djalma Rebelatto de Gouveia PROGRAMA DA DISCIPLINA EMENTA: O indianismo e o projeto de nacionalidade. O processo de consolidação do sistema literário brasileiro. Correlação entre forma social e forma literária: a “dialética da malandragem” nas Memórias de um sargento de milícias. Estudo analítico de poemas românticos. Condições de produção, circulação e recepção das obras no período literário denominado Realismo, com destaque para a singularidade da ficção de Machado de Assis. Correlação entre forma social e forma literária na prosa naturalista local: o meio, o momento e a raça na obra de Aluísio Azevedo. OBJETIVOS: Prover o aluno de um referencial teórico estrutural que lhe permita identificar as principais manifestações românticas; Desenvolver a capacidade analítica e crítica do aluno diante da obra literária, levando-se em conta também outros tipos de linguagem; Levar o aluno a compreender os fatos, a estrutura e o discurso literários, sob uma ótica que privilegia a história do seu desenvolvimento, expressa em textos literários selecionados; Comparar Realismo e Romantismo; Compreender as diferenças estilísticas entre as épocas artísticas.; Interpretar o vocabulário romântico em contraste com o vocabulário naturalista, a leitura das descrições românticas em contrastes com as descrições realistas; Destacar o Naturalismo mais esquemático de Aluísio Azevedo em contraste com o Realismo mais existencialista e filosófico de Machado de Assis. CONTEÚDOS PROGRAMÁTICOS: Contexto Ocidental e Características Centrais Romantismo; A Primeira Geração da Poesia Romântica: A Poesia Nacionalista De Gonçalves Dias; A Poesia Indianista e Lírico-Amorosa de Gonçalves Dias; A Segunda Geração da Poesia Romântica – Álvares de Azevedo; A Terceira Geração da Poesia Romântica Brasileira – Castro Alves; O Gênero Romance no Romantismo Brasileiro; Panorama da Prosa; Romântica Brasileira com Destaque à Obra de José de Alencar; Análise de Senhora e Iracema de José de Alencar; Memórias de Um Sargento de Milícias De Manuel Antônio de Almeida e o Noviço de Martins Pena; o Realismo e o Naturalismo; o Realismo; o Naturalismo; o Realismo e o Naturalismo no Brasil; Principais autores. METODOLOGIA: Adotamos para a disciplina uma metodologia que alia a teoria à prática, propiciada por meio de atividades que permitam, a partir de exemplos, a reflexão sobre literatura e estudo de obras representativas dos movimentos. AVALIAÇÃO: No sistema EAD, a legislação determina que haja avaliação presencial, sem, entretanto, se caracterizar como a única forma possível e recomendada. Na avaliação presencial, todos os alunos estão na mesma condição, em horário e espaço pré-determinados, diferentemente, a avaliação a distância permite que o aluno realize as atividades avaliativas no seu tempo, respeitando-se, obviamente, a necessidade de estabelecimento de prazos. A avaliação terá caráter processual e, portanto, contínuo, sendo os seguintes instrumentos utilizados para a verificação da aprendizagem: 1) Trabalhos avaliativos online; 2) Provas individuais semestrais realizadas presencialmente. As estratégias de recuperação incluirão: 1) Retomada eventual dos conteúdos abordados nas unidades, quando não satisfatoriamente dominados pelo aluno; BIBLIOGRAFIA BÁSICA BOSI, A. História concisa da literatura brasileira. 44.ed. SP: Cultrix, 2007. CANDIDO, A. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. 8.ed. SP: T.A. Queiroz, 2002. MOISÉS, M. História da literatura brasileira: das origens ao romantismo. SP: Cultrix, 2009. BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR ALMEIDA, M.A. Memórias de um sargento de milícias. SP: Ática, 1975. CALDWELL. H. Otelo brasileiro de Machado de Assis. SP: Atelie, 2005. CANDIDO, A.; CASTELLO, J. A. Presença da literatura brasileira: romantismo, realismo, parnasianismo e simbolismo. SP: DIFEL, 1972. CANDIDO, A. Na sala de aula: caderno de análise literária. SP: Ática, 1989. CANDIDO, A. Vários escritos. 4.ed. SP e RJ: Duas Cidades e Ouro sobre Azul, 2004. RONCARI, L. Literatura brasileira. SP: Edusp,1995. MERQUIOR, J. G. De Anchieta a Euclides: breve história da literatura brasileira. RJ: J. Olympio, 1977. MOISÉS, M. A literatura brasileira através dos textos. SP: Cultrix, 1986. SCHWARZ, R. Machado de Assis: um mestre na periferia do capitalismo. 4.ed. SP: Duas Cidades; Editora 34, 2006. SUMÁRIO UNIDADE 01 – ROMANTISMO: CONTEXTO OCIDENTAL E CARACTERÍSTICAS CENTRAIS - I .. 10 UNIDADE 02 - ROMANTISMO: CARACTERÍSTICAS CENTRAIS - II ............................................... 23 UNIDADE 03 - ROMANTISMO NO BRASIL: 1ª GERAÇÃO NA POESIA: A POESIA NACIONALISTA DE GONÇALVES DIAS ................................................................ 34 UNIDADE 04 - A POESIA INDIANISTA E LÍRICO-AMOROSA DE GONÇALVES DIAS .................. 43 UNIDADE 05 - A SEGUNDA GERAÇÃO DA POESIA ROMÂNTICA BRASILEIRA: ÁLVARES DE AZEVEDO ............................................................................................................... 53 UNIDADE 06 - A TERCEIRA GERAÇÃO ROMÂNTICA ................................................................... 66 UNIDADE 07 – O GÊNERO ROMANCE NO ROMANTISMO BRASILEIRO .................................... 82 UNIDADE 08 – PANORAMA DA PROSA ROMÂNTICA BRASILEIRA COM DESTAQUE À OBRA DE JOSÉ DE ALENCAR ........................................................................................... 95 UNIDADE 09 – ANÁLISE DE SENHORA E IRACEMA, DE JOSÉ DE ALENCAR ........................... 120 UNIDADE 10 – MEMÓRIAS DE UM SARGENTO DE MILÍCIAS, DE MANUEL ANTÔNIO DE ALMEIDA E O NOVIÇO DE MARTINS PENA ...................................................... 141 UNIDADE 11 – O REALISMO ........................................................................................................ 161 UNIDADE 12 – O NATURALISMO ................................................................................................ 165 UNIDADE 13 – REALISMO E NATURALISMO NO BRASIL: RAUL POMPEIA............................... 171 UNIDADE 14 – REALISMO E NATURALISMO NO BRASIL: ALUÍSIO AZEVEDO E ADOLFO CAMINHA ............................................................................................................. 177 UNIDADE 15 – MACHADO DE ASSIS E O “REALISMO MACHADIANO” – OS ROMANCES ..... 192 UNIDADE 16 – MACHADO DE ASSIS E O “REALISMO MACHADIANO” – OS CONTOS .......... 205 10 UNIDADE 01 – ROMANTISMO: CONTEXTO OCIDENTAL E CARACTERÍSTICAS CENTRAIS - I CONHECENDO A PROPOSTA DA UNIDADE Objetivo: Nesta unidade, daremos início ao estudo do Romantismo, a partir do contexto histórico ocidental, das origens do movimento e das características centrais deste estilo de época. ESTUDANDO E REFLETINDO Romantismo: Contexto Histórico ocidental, Origens e Características centrais Já, na segunda metade do século XVIII, esboçava-se o que viria a ser o estilode época denominado Romantismo. A Revolução Industrial fortaleceu ainda mais a burguesia e a Revolução Francesa levou-a ao poder com o lema “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”. Dessa forma, o ideal político burguês de liberdade se interioriza no texto literário pelo abandono do formal e rígido estilo clássico, que agradava aos nobres, e pela assimilação da liberdade de expressão a fim de atender ao eclético gosto artístico burguês, novo público alvo dos escritores e demais artistas. Observe, na tela abaixo, a Liberdade personificada na figura de uma mulher com os seios de fora, traduzindo a liberdade de expressão também na pintura. Acrescenta-se a isso a dramaticidade da cena: os corpos caídos, a sugestão de movimento nas vestes da figura feminina e jogo de claro e escuro. Eugéne Delacroix A Liberdade Conduzindo o Povo 11 Romantismo - Origens O Romantismo teve início no final do século XVIII, na Alemanha e na Inglaterra. O escritor alemão Goethe publica, em 1774, a narrativa em prosa Os Sofrimentos do Jovem Werther, na qual o protagonista se suicida devido ao amor impossível por Charlotte, o que desencadeia o Sturm und Drang (Tempestade e Ímpeto), denominação de um sentimentalismo exacerbado que leva muitos jovens à atitude semelhante à do protagonista de Goethe. Na Inglaterra,em 1798, os poetas William Wordsworth e Samuel Taylor Coleridge publicam Lyrical Ballads, demonstrando, na poesia, uma visão idealizada da mulher e da natureza, vendo nesta a manifestação divina. Quanto à terminologia, o adjetivo “romântico” deriva do inglês “romantic”, e este nasce do substantivo francês romaunt que designa os romances medievais de cavalaria, caracterizados pelos temas de aventuras e sentimentalismo. Portanto o emergente público burguês buscava, no plano da arte, evadir-se de seu sufocante cotidiano materialista, buscando, como forma de compensação, o sentimentalismo e o heroísmo das histórias do passado, principalmente do passado medieval. Na pintura, destacam-se Goya e Delacroix; na música, Wagner, Verdi, Schumann, Brahms, Liszt e Chopin. Vamos agora ao estudo das características centrais da literatura romântica para que assim possamos gradativamente aprofundar no tema. 12 Características Centrais do Romantismo Há basicamente duas características românticas essenciais que desencadeiam três tipos de Romantismo: a liberdade de expressão e o subjetivismo. Passemos, portanto, à abordagem destas duas características. A Liberdade de Expressão (...) seria estranho que, nesta época, a liberdade, como a luz, penetrasse por toda a parte, exceto no que há de mais nativamente livre no mundo, nas coisas do pensamento. Destruamos as teorias, as poéticas e os sistemas. Derrubemos este velho gesso que mascara a fachada da arte! Não há regras nem modelos; ou antes, não há outras regras senão as leis gerais da natureza que plainam sobre toda a arte, e as leis especiais que, para cada composição, resultam das condições de existência próprias para cada assunto. (Victor Hugo – Prefácio da peça Cromwell). Como já vimos, o ideal burguês de liberdade contamina as artes e, particularmente, a literatura, uma vez que o espírito romântico é pautado pelo ímpeto de Werther, protagonista de Goethe, levando ao extravasamento das emoções que se refletirá nos planos da expressão e do conteúdo dos três gêneros literários que propomos estudar: o verso, a narrativa e o drama. No fragmento acima, o escritor romântico francês Victor Hugo, no prefácio de sua peça Cromwell, expõe como a liberdade trazida pela Revolução Francesa contaminou as artes, quebrando o gesso da rigidez clássica fundamentada no racionalismo e estabelecendo o primado da emoção, por meio de regras mais naturais ou espontâneas que levem em conta a adequação do plano da expressão (“composição”) ao plano do conteúdo (“assunto”). Isso se refletirá nos três gêneros literários que estudaremos: o verso, a narrativa e o drama. Vejamos, portanto, como a liberdade de expressão se manifesta nestes três gêneros: 13 Gênero Lírico Levando em conta que o gênero lírico, mais propício ao verso, consiste na expressão subjetiva de sentimentos, poeta romântico abandona o racionalismo e a contenção emotiva do soneto, restritos a 14 versos (dois quartetos e dois tercetos), decretando que, enquanto houver sentimento, haverá versos. Os versos podem ser brancos ou rimados, mas, quanto à métrica, não se limitam aos clássicos decassílabos. O poeta passa a ter a liberdade de adequar a métrica (plano da forma ou da expressão) ao assunto abordado (plano do conteúdo). Veja o exemplo do romântico brasileiro Casimiro de Abreu, num fragmento do longo e belo poema A Valsa: “(...)Na valsa Tão falsa, Corrias, Fugias, Ardente, Contente, Tranquila, Serena, Sem pena De mim!(...)” Observe que Casimiro de Abreu abre mão do soneto e dos decassílabos, optando pelos versos dissílabos, com acento rítmico na segunda sílaba “Na / Val /”. Você já deve imaginar por que o poeta faz esta opção. Com certeza, para sugerir o ritmo da valsa, transmitindo, assim, o assunto ou conteúdo de uma forma mais expressiva e emotiva, atendendo, dessa maneira, ao público burguês desejoso de evadir-se do cotidiano prosaico. 14 Gênero Épico ou Epopeia O gênero épico, narrativa heroica em versos, vai perdendo espaço para a narrativa em prosa, de temática mais variada, cedendo espaço a um novo gênero, o romance, narrativa em prosa de extensão maior que o conto e dividida em capítulos. É importante ressaltar que a prosa só ganhou prestígio literário a partir do Romantismo, uma vez que o público burguês tinha um gosto mais simples que o da nobreza, preferindo ler uma narrativa de maneira mais natural e fluente. Observe, atualmente, a lista dos best Sellers do mês, ou seja, os livros mais consumidos pela burguesia contemporânea, estes, mesmo sendo ficção, são compostos quase que totalmente de narrativas em prosa. Gênero Dramático Trata-se do gênero teatral, cujo enredo é representado, sem a presença de um narrador. A rigidez do teatro clássico não permitia que uma mesma peça apresentasse cenas cômicas e trágicas. A liberdade de expressão romântica faz surgir o drama tal qual o conhecemos hoje, ou seja, a fusão da tragédia com a comédia numa mesma peça teatral, como podemos observar, retomando às palavras de Victor Hugo, no prefácio da peça Cromwell: Se tivéssemos o direito de dizer qual poderia ser, em nosso gosto, o estilo do drama, quereríamos um verso livre, franco, leal, que ousasse tudo dizer sem hipocrisia, tudo exprimir sem rebuscamento e passasse com um movimento natural da comédia à tragédia, do sublime ao grotesco; alternadamente positivo e poético, ao mesmo tempo artístico e inspirado, profundo e repentino, amplo e verdadeiro; que soubesse quebrar a propósito e deslocar a censura para disfarçar sua monotonia de alexandrino. (Victor Hugo – Prefácio da peça Cromwell). Esta liberdade de expressão se faz presente até hoje, à medida que, a partir do século XX, com a invenção do cinema e da televisão, a dramaturgia passa a ser veiculada pelo 15 vídeo em filmes e novelas que mesclam núcleos de humor com núcleos de maior densidade trágica, agradando ao público, hoje, não só burguês mas também as camadas menos favorecidas da população que passaram a ter acesso a essas mídias. O Subjetivismo Também denominado egocentrismo ou individualismo, o subjetivismo romântico nos faz levar em conta que, por não existir objetivismo total na arte, todas as escolas literárias têm a essência subjetiva, pois o escritor cria sua obra a partir de sua visão pessoal. Não obstante, no Romantismo, o subjetivismo vai ao extremo, já que a visão subjetiva ou pessoal do artistaofusca a realidade, originando três tipos de Romantismo: de idealização, de evasão e de oposição, que passaremos, agora, a abordar. Romantismo de Idealização Visando fugir do cotidiano sufocante, atitude também almejada pelo público burguês, o artista romântico mostra o mundo não como ele é mas como desejaria que fosse, decorrendo disso as seguintes formas de idealização: - Idealização da relação amorosa: não é qualquer história de amor que é romântica. O amor romântico é idealizado, havendo fidelidade entre os amantes. Dom Casmurro de Machado de Assis é uma história de amor, mas não é romântica, pois, para o protagonista Bentinho, sua amada esposa Capitu o traiu com o amigo Escobar. Outra característica do amor romântico é o platonismo, desencadeando o sofrimento do amante, que, desejando ter a pessoa amada eroticamente, só consegue tê-la no plano do pensamento. Isso pressupõe que o erotismo também emerge no texto 16 romântico, embora este se mantenha no plano do pensamento, configurando o platonismo erotizado. Disso decorre também a idealização da figura feminina, como uma dama inacessível, bela, lânguida e delicada. Observe o platonismo erotizado e a idealização da figura feminina nos versos abaixo de Álvares de Azevedo: “Se uma lágrima as pálpebras me inunda, Se um suspiro nos seios treme ainda, É pela virgem que sonhei... que nunca Aos lábios me encostou a face linda!” (Lembrança de Morrer – Álvares de Azevedo) É inegável também o resgate da tradição lírica medieval das cantigas de amor trovadorescas, em que a dama inacessível desencadeia no eu lírico a coita, ou seja, o sofrimento amoroso. Vale ressaltar que o platonismo na literatura romântica traduz também a moral burguesa, segundo a qual a mulher deveria se manter casta até o casamento. - Idealização dos Protagonistas: nas narrativas, os protagonistas encarnam o bem em luta com os antagonistas, que encarnam o mal, impondo obstáculos à união dos amantes. Logo, emerge outra característica romântica: o maniqueísmo. O herói romântico é inspirado nos cavaleiros medievais: viris nas batalhas e nas justas, mas posicionando-se como vassalos diante da mulher amada. - Idealização da Pátria: consiste no nacionalismo ufanista, ou seja, na retratação da Pátria ideal, valorizando a cor local: paisagem, folclore, tradições. 17 Vamos refletir o porquê de o nacionalismo interessar ao público burguês do início do século XIX. Isso se deu pelo fato de a política de Napoleão em dominar toda a Europa fracassou. Portanto, à medida que as tropas francesas desocupavam os territórios tomados, a burguesia de cada país, então libertado, interessava-se em resgatar a identidade nacional. Nas Américas, a independência dos Estados Unidos motivou o processo de independência de cada colônia europeia pelo continente americano, inclusive o Brasil. O processo de independências, dessa forma, deflagrou o sentimento nacionalista na burguesia dos países americanos. Outra reflexão a ser feita é que não só histórias ou versos sobre amor perfeito configuram o Romantismo. Textos que expõem a Pátria idealizada, mesmo extrapolando a época do Romantismo, perpetuam o espírito romântico. Vamos a alguns exemplos: “O país estrangeiro mais belezas Do que a pátria, não tem; E este mundo não vale um só dos beijos Tão doces duma mãe! Dá-me os sítios gentis onde eu brincava Lá na quadra infantil; Dá que eu veja uma vez o céu da pátria, O céu do meu Brasil!(...)” ( Canção do Exílio- Casimiro de Abreu – poeta romântico do século XIX ) “Por essas fontes murmurantes Onde eu mato a minha sede Onde a lua vem brincar. Esse Brasil lindo e trigueiro É o meu Brasil Brasileiro Terra de samba e pandeiro...” (Aquarela do Brasil – Ary Barroso – compositor do século XX) 18 -Idealização do Índio: também denominada indianismo. Trata-se de uma forma de nacionalismo nas Américas por valorizar a raça local, tratando-se, portanto, de uma forma de busca da identidade nacional. O índio romântico é inspirado na tese do Bom Selvagem do iluminista francês Rousseau, segundo o qual o índio é puro e íntegro porque vive distante da corrompida civilização. No entanto, a Europa ainda é referência, já que os românticos das Américas se inspiraram também nos cavaleiros medievais para criar o índio heroico, caracterizado pela bravura e pela coragem. Tomemos como exemplos o poemeto épico I – Juca Pirama de Gonçalves Dias e o romance O Guarani de José de Alencar, no momento em que o índio Peri doma uma onça para presenteá-la a sua adorada Ceci. “Valente na guerra, Quem há, como eu sou? Quem vibra o tacape Com mais valentia? Quem golpes daria Fatais, como eu dou? — Guerreiros, ouvi-me; — Quem há, como eu sou?” Mas (a onça) tinha em frente um inimigo digno dela, pela força e agilidade. Como a princípio, o índio havia dobrado um pouco os joelhos, e segurava na esquerda a longa forquilha, sua única defesa; os olhos sempre fixos magnetizavam o animal. No momento em que o tigre se lançara, curvou-se ainda mais; e fugindo com o corpo apresentou o gancho. A fera, caindo com a força do peso e a ligeireza do pulo, sentiu o forcado cerrar-lhe o colo, e vacilou. Então, o selvagem distendeu-se com a flexibilidade da cascavel ao lançar o bote; fincando os pés e as costas no tronco, arremessou-se e foi cair sobre o ventre da onça, 19 que, subjugada, prostrada de costas, com a cabeça presa ao chão pelo gancho, debatia-se contra o seu vencedor, procurando debalde alcançá-lo com as garras. Esta luta durou minutos; o índio, com os pés apoiados fortemente nas pernas da onça e o corpo inclinado sobre a forquilha, mantinha assim imóvel a fera, que há pouco corria a mata não encontrando obstáculos à sua passagem.” - Idealização da Religiosidade Cristã: O paganismo estético clássico continua a ter espaço como forma de erudição, mas a burguesia queria ver, na obra literária, sua crença. Daí os valores do cristianismo predominarem sobre a mitologia greco-romana clássica. “Estou só neste mudo santuário, Eu só, com minha dor, com minhas penas! E o pranto nos meus olhos represado, Que nunca viu correr humana vista, Livremente o derramo aos pés de Cristo, Que tão bem suspirou, gemeu sozinho, Que tão bem padeceu sem ter conforto, Como eu padeço, e sofro, e gemo, e choro.(...) Quando ao sopé da cruz me chego aflito, Sinto que o meu sofrer se vai minguando (...)” (O Templo – Gonçalves Dias) É importante ressaltar que os românticos eram panteístas, ou seja, viam Deus manifestado na natureza, como podemos observar no fragmento abaixo do poema O Mar de Gonçalves Dias: “Ó mar, o teu rugido é um eco incerto Da criadora voz, de que surgiste: Seja, disse; e tu foste, e contra as rochas As vagas compeliste. E à noite, quando o céu é puro e limpo, Teu chão tinges de azul, — tuas ondas correm Por sobre estrelas mil; turvam-se os olhos Entre dois céus brilhantes. Da voz de Jeová um eco incerto Julgo ser teu rugir; mas só, perene, Imagem do infinito, retratando 20 As feituras de Deus. Por isto, a sós contigo, a mente livre Se eleva, aos céus remonta ardente, altiva, E deste lodo terreal se apura, Bem como o bronze ao fogo. Férvida a Musa, co'os teus sons casada, Glorifica o Senhor de sobre os astros Co'a fronte além dos céus, além das nuvens, E co'os pés sobre ti.” BUSCANDO CONHECIMENTO O Romantismo – Porta Voz da Revolução Burguesa Com a vitória política da burguesia, na França de 1789, começa um ciclo cultural novo. Do outro lado do Canal da Mancha, na Inglaterra, a industrialização criava um modo novo de produção. Desaparecia o artesão e em seu lugar surgia o operário. Entre o operário e a mercadoria que ele produzia,estavam as máquinas, cada vez mais aperfeiçoadas. Para fazer a máquina funcionar, o operário precisava saber ler. Abriram-se escolas. A alfabetização espalhou-se, a difusão da leitura ampliou muito o mercado disponível para livros. Firma-se uma nova cultura, e nela novas linguagens redefinirão e expressarão a nova posição do homem (e da mulher...) no mundo e a natureza deste mundo. Homens, mulheres e mundos bastante diferentes dos vistos e registrados pelos olhos clássicos, medievais, renascentistas, barrocos e neoclássicos. Na literatura, essa virada foi o Romantismo LAJOLO, 2002, p: 75 No texto acima, Marisa Lajolo ressalta que a revolução burguesa, ou seja, a tomada do poder pela burguesia originou-se de duas revoluções: a industrial, ocorrida na Inglaterra, e a francesa. Ambas difundindo a necessidade de alfabetização e de leitura para homens e mulheres. Disso decorre a valorização de duas faixas etárias até então pouco relevantes para a sociedade: a criança e o jovem. 21 A necessidade de alfabetização fez tomar força a literatura para crianças, em plena época romântica, com destaque para os irmãos Grimm. É o que afirma a escritora Bárbara Vasconcelos de Carvalho: E são os irmãos Grimm que, animados pelo espírito romântico, vão buscar as suas estórias, vivas, na pureza e na simplicidade das fontes folclóricas (...) Os irmãos alemães Brüder e Wilhelm Grimm, influenciados pela estética romântica, criaram as inesquecíveis histórias A Branca de Neve, A Bela Adormecida, nas quais verificamos os arquétipos românticos das heroínas castas e dos heróis idealizados, os príncipes encantados. A Bela Adormecida Também vale destacar o dinamarquês Hans Christian Andersen, autor de O Soldadinho de Chumbo e A Pequena Sereia, narrativas de influência romântica, ao tematizar relações amorosas, não obstante se dirijam ao público infantil. No que diz respeito ao jovem, é importante lembrar que, entre os nobres, os casamentos eram impostos com a finalidade de união de riquezas e obtenção de títulos, obrigando o jovem a submeter-se às determinações dos pais. Essa situação se mantém, de certa forma, no mundo burguês, mas, agora, com acesso maior à leitura, rapazes e moças, instigados pela ficção romântica, começarão a requerer o direito de união com quem realmente amam. 22 Visando atingir esse público jovem, os escritores do período trarão de volta um grande dramaturgo, que ficara esquecido por quase dois séculos, William Shakespeare, principalmente a sua tragédia sentimental Romeu e Julieta, os jovens que lutam contra as imposições dos pais. A cena clássica de "Romeu e Julieta" na versão cinematográfica de Franco Zeffirelli Observe, na bela fala de Julieta, o amor suplantando as convenções, os sobrenomes que herdaram de suas famílias rivais: os Capuletos, família de Julieta, e os Montechios, família de Romeu: "What's in a name? That which we call a rose By any other name would smell as sweet." "Que há em um nome? O que chamamos de rosa, com outro nome, exalaria o mesmo perfume tão agradável." Cabe agora a vocês, caros alunos, buscar conhecimento por meio do contato com essas e outras obras, identificando nelas o espírito romântico, pois, com certeza, a busca do conhecimento é a forma mais eficaz de se formar um leitor autônomo e crítico. 23 UNIDADE 02 - ROMANTISMO: CARACTERÍSTICAS CENTRAIS - II CONHECENDO A PROPOSTA DO TEMA Objetivo: Estudar as características centrais do Romantismo. Nesta unidade, daremos continuidade ao estudo das características centrais do Romantismo, ressaltando o romantismo de evasão e de oposição. ESTUDANDO E REFLETINDO Romantismo de Evasão ou Escapismo (Fuga da Realidade) Embora a idealização seja uma forma de evasão, há outros meios de fuga da realidade prosaica, como apresentaremos a seguir: Evasão no passado Também denominada nostalgia, passadismo ou saudosismo, trata-se da valorização do passado pessoal ou histórico, principalmente a Idade Média, o que configura o Medievalismo. Portanto o romântico se opõe ao carpe diem clássico e à retratação do momento contemporâneo, que virá com o Realismo. O medievalismo se proliferou na Europa. Já, pelo fato de o Novo Mundo não ter tido a cultura da Idade Média, os românticos das Américas vão adaptar o ambiente medieval à paisagem local, como ocorre em O Guarani de José de Alencar, na descrição da casa de Dom Antônio de Mariz, um verdadeiro castelo medieval em meio à floresta tropical brasileira: “(...) vinham sempre abrigar-se na casa de Dom Antônio de Mariz, a qual fazia as vezes de um castelo feudal na Idade Média. O fidalgo recebia a todos como um rico-homem que devia proteção e asilo aos seus vassalos.” Já o sentimento nostálgico pessoal aflora com mais força nos versos de Casimiro de Abreu, conhecido como Poeta da Saudade: 24 “Oh! que saudades que tenho Da aurora da minha vida, Da minha infância querida Que os anos não trazem mais!” Evasão na Natureza A natureza, no Romantismo, se torna expressiva, opondo-se à estática e convencional natureza árcade, sempre aprazível. Para os românticos, além de refúgio, a natureza é espelho do estado de alma do poeta, oscilando entre a alegria e a melancolia e, quando melancólica, torna-se noturna, definida na expressão latina Locus Horrendus. Observe a negação aos padrões clássicos ( ninfa, Horácio ) e a oscilação da natureza no poema Minha Musa de Gonçalves Dias. Neste poema, a musa é alegoria da Poesia: “Minha Musa não é como ninfa Que se eleva das águas - gentil - Co'um sorriso nos lábios mimosos, Com requebros, com ar senhoril. (...) Não é como a de Horácio a minha Musa;(...) Ela ama a solidão, ama o silêncio, Ama o prado florido, a selva umbrosa E da rola o carpir. Ela ama a viração da tarde amena, O sussurro das águas, os acentos De profundo sentir.(...)” Enquanto nos versos de Gonçalves Dias a natureza oscila, nos versos abaixo da autoria de Fagundes Varela o foco é a natureza locus horrendus: “Eu amo a noite quando deixa os montes, Bela, mas bela de um horror sublime, E sobre a face dos desertos quedos Seu régio selo de mistério imprime.(...)” O Locus Horrendus também se manifesta em outras linguagens artísticas, como na pintura romântica do inglês William Turner. Na tela, o mar revolto, a tempestade, a escuridão do céu carregam de dramaticidade a imagem. 25 William Turner – Naufrágio Evasão no Sonho, na Fantasia, no Sobrenatural O romântico prefere o sonho, a fantasia à realidade, pois esta não condiz ao ideal desejado pelo artista e pelo público burguês. Disso resulta o amor, o erotismo, a mulher, existentes apenas na imaginação do poeta, o que pode ser verificado no excerto do poema Ideias Íntimas de Álvares de Azevedo: “Oh! ter vinte anos sem gozar de leve A ventura de uma alma de donzela! E sem na vida ter sentido nunca Na suave atração de um róseo corpo Meus olhos turvos se fechar de gozo! Oh! nos meus sonhos, pelas noites minhas Passam tantas visões sobre meu peito!” A evasão no mundo da fantasia traz à tona também o gosto pelo sobrenatural, fazendo proliferar narrativas de terror como Frankenstein de Mary Shelley, The Legend of Sleepy Hollow (A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça) de Washington Irwing, além dos contos de Noite na Taverna de Álvares de Azevedo, no Brasil. O sobrenatural alia-se ao locus horrendus no gênero lírico, como podemos notar nos versos de Gonçalves de Magalhães: 26 “Que horrenda noite! ... que pavor me cerca! Por toda parte mil fantasmas se erguem De espesso fumo, sem cessar vibrando Olhos de brasas. (...)” Evasão na vida desregrada Consiste no apego à vida boêmia seja na ficção ou na vida real, levandoo poeta ou o eu lírico se entregar ao vinho, ao ópio, ás orgias. “Oh! não maldigam o mancebo exausto Que nas orgias gastou o peito insano... Que foi ao lupanar pedir um leito, Onde a sede febril lhe adormecesse! Não podia dormir! nas longas noites Pediu ao vício os beijos de veneno... E amou a saturnal, o vinho, o jogo E a convulsão nos seios da perdida! (...)” (Oh Não Maldigam – Álvares de Azevedo) Este gosto pelo sobrenatural e pela bebida é influência do poeta inglês George Gordon, mais conhecido como Lord Byron, que criou a moda bizarra de tomar vinho em crânio humano, enquanto se narram estórias de terror. Tomemos como exemplo o poema abaixo: Versos Inscritos Numa Taça Feita de Um crânio – Lord Byron Não, não te assustes: não fugiu o meu espírito Vê em mim um crânio, o único que existe Do qual, muito ao contrário de uma fronte viva, Tudo aquilo que flui jamais é triste. Vivi, amei, bebi, tal como tu; morri; Que renuncie e terra aos ossos meus Enche! Não podes injuriar-me; tem o verme Lábios mais repugnantes do que os teus. Onde outrora brilhou, talvez, minha razão, Para ajudar os outros brilhe agora e; Substituto haverá mais nobre que o vinho Se o nosso cérebro já se perdeu? Bebe enquanto puderes; quando tu e os teus Já tiverdes partido, uma outra gente Possa te redimir da terra que abraçar-te, 27 E festeje com o morto e a própria rima tente. E por que não? Se as fontes geram tal tristeza Através da existência -curto dia-, Redimidas dos vermes e da argila Ao menos possam ter alguma serventia. ( tradução Paulo H. Britto ) Evasão na Solidão, na Melancolia, na Morte Configura o sentido trágico da existência, já que, decepcionado com os ideais que não se concretizam, o poeta prefere estar só, caindo em depressão ou melancolia e culminando até mesmo no desejo de morte. “Minh'alma é como o deserto De dúbia areia coberto, Batido pelo tufão; É como a rocha isolada, Pelas espumas banhada, Dos mares na solidão.(...)” ( Tristeza – Fagundes Varela ) “Meu peito de gemer já está cansado, Meus olhos de chorar; E eu sofro ainda, e já não posso alivio Sequer no pranto achar!(...)” ( Sofrimento – Gonçalves Dias ) “Pensamento gentil de paz eterna Amiga morte, vem. Tu és o termo De dous fantasmas que a existência formam, — Dessa alma vã e desse corpo enfermo.(...)” (Morte – Junqueira Freire) Romantismo de Oposição É a terceira vertente deste estilo de época, decorrente do subjetivismo romântico. Opondo-se á visão idealizada da Pátria e à alienação melancólica, os românticos de oposição mantêm a crença nas revoluções, nas lutas libertárias, projetando-se não no passado, mas no futuro, almejando o progresso e a concretização de suas utopias. É a vertente politizada do Romantismo, tendo surgido na França com o escritor Victor Hugo, autor de Os Miseráveis, romance social, que tematiza a injustiça humana. No 28 Brasil, o maior representante foi Castro Alves, que, no poema O Livro e a América, vê no livro, ou seja, no saber, o meio de instigar revoluções e levar o progresso a todos “Oh! Bendito o que semeia Livros... livros à mão cheia... E manda o povo pensar! O livro caindo n'alma É germe — que faz a palma, É chuva — que faz o mar. Vós, que o templo das ideias Largo — abris às multidões, Pra o batismo luminoso Das grandes revoluções, Agora que o trem de ferro Acorda o tigre no cerro E espanta os caboclos nus, Fazei desse "rei dos ventos" — Ginete dos pensamentos, — Arauto da grande luz! ...(...)” Além das três vertentes estudadas, faz-se necessário abordar a linguagem romântica impregnada de sentimentalismo. Sentimentalismo e Função Emotiva da Linguagem Concluindo as características centrais do Romantismo, constatamos que o romântico oscila entre a idealização e a depressão; a alienação e a postura politizada. Isso decorre do fato de o espírito romântico ser guiado pelo sentimentalismo, ou seja, pela emoção e não pela razão. Dessa forma, no texto romântico, dá-se o predomínio da função emotiva da linguagem, a qual é observada nos seguintes recursos linguísticos e estilísticos: descritivismo idealizante; emprego de interjeições, exclamações, reticências; adjetivação abundante; preferência pela metáfora, hipérbole, prosopopeia, antítese e sinestesia. Vejamos o exemplo a seguir: “Morrer... quando este mundo é um paraíso, E a alma um cisne de douradas plumas: Não! o seio da amante é um lago virgem... Quero boiar à tona das espumas. Vem! formosa mulher — camélia pálida, Que banharam de pranto as alvoradas, 29 Minh'alma é a borboleta, que espaneja O pó das asas lúcidas, douradas ... E a mesma voz repete-me terrível, Com gargalhar sarcástico: — impossível!(...) Ai! morrer — é trocar astros por círios, Leito macio por esquife imundo, Trocar os beijos da mulher — no visco Da larva errante no sepulcro fundo, (Castro Alves – Mocidade e Morte) Neste excerto, temos, no plano do conteúdo, o lirismo existencial de Castro Alves, que repudia a morte precoce e anseia pela concretização do amor e da vida. No plano da expressão, a função emotiva da linguagem contamina o texto, numa sucessão de metáforas: mundo/paraíso; alma/cisne de douradas plumas; seio da amante/lago virgem, espumas; Mulher/camélia pálida; alma/borboleta. O emprego das reticências, no primeiro verso, produz efeito de suspensão do pensamento, sugerindo inconformidade com a morte, o que é ratificado no emprego da exclamação, após o advérbio de negação “Não!”, mas contrastando com a exclamação eufórica após o imperativo “Vem!”. O extravasamento emotivo é salientado pela hipérbole presente na combinação da forma verbal “banhar” com o substantivo “pranto”: “Que banharam de pranto as alvoradas. A descrição se torna idealizante em relação à vida e à mulher, por meio da adjetivação de valor semântico positivo: “douradas”. “virgem”, “formosa”, “pálida”, “lúcidas”, “douradas”. “macio”, mas deixa de ser idealizante pela adjetivação de valor semântico negativo em relação à morte: “sarcástico”, “imundo”, “errante”, “fundo”. Note que a voz referida no texto é da morte, que, portanto, se personifica pelo recurso estilístico denominado prosopopeia. 30 Portanto instala-se, no texto, uma série de antíteses relativas à vida e à morte: “astros” x “círios”, “leito macio” x “esquife imundo”, “beijos da mulher” x “visco da larva”. E essas antíteses fazem emergir a sinestesia, em que “astros”, “círios” sugerem luz, visão; “leito macio”, “beijos” e “visco”, tato. BUSCANDO CONHECIMENTO O Polêmico Espírito Romântico “O conceito de literatura como transbordamento de uma alma para outra parece durar até hoje. Às vezes, com Caetano Veloso, acho que (ainda) somos todos um pouco muito românticos.” LAJOLO, 2002, p: 78 Iniciemos nossa busca de conhecimento, tomando como referência o excerto de Marisa Lajolo, que, citando Caetano Veloso, afirma estar o espírito romântico ainda está presente entre nós, conforme podemos comprovar numa estrofe da canção Muito Romântico: “Tudo o que eu quero é um acorde perfeito maior Com todo o mundo podendo brilhar no cântico Canto somente o que não pode mais se calar Noutras palavras sou muito romântico” (Caetano Veloso) No entanto a permanência do espírito romântico até os dias atuais foi marcada por muita polêmica, ora sendo assimilado ora satirizado ou rejeitado. Realismo e Parnasianismo, escolas literárias subsequentes ao Romantismo, rejeitaram o espírito romântico. A primeira em prol de uma visão mais crítica da sociedade, e a segunda por pregar a contenção emotiva. Tomemos como exemplo um trecho da obra realista Memórias Póstumas de Brás Cubas de Machado deAssis: “Não digo que já lhe coubesse a primazia da beleza, entre as mocinhas do tempo, porque isto não é romance, em que o autor sobredoura a realidade e fecha os olhos às sardas e espinhas(...)” 31 Todavia o espírito romântico contaminou o rígido soneto machadiano, no momento da perda da esposa, fazendo-o considerar-se morto junto com ela: A Carolina Querida, ao pé do leito derradeiro Em que descansas dessa longa vida, Aqui venho e virei, pobre querida, Trazer-te o coração do companheiro. Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro Que, a despeito de toda a humana lida, Fez a nossa existência apetecida E num recanto pôs o mundo inteiro. Trago-te flores - restos arrancados Da terra que nos viu passar unidos E ora mortos nos deixa e separados. Que eu, se tenho nos olhos malferidos Pensamentos de vida formulados, São pensamentos idos e vividos. Já os parnasianos, defensores da arte clássica, rejeitaram os padrões estéticos românticos, como podemos verificar na estrofe de Carvalho Junior: Profissão de Fé “Odeio as virgens pálidas, cloróticas, Beleza de missal que o romantismo Hidrófobo apregoa em peças góticas, Escritas nuns acessos de histerismo.” Essa postura não encontrou total ressonância no parnasiano Olavo Bilac, que, assimilando o espírito romântico, compôs um de seus mais belos e famosos sonetos: Via Láctea "Ora (direis) ouvir estrelas! Certo Perdeste o senso!" E eu vos direi, no entanto, Que, para ouvi-las, muita vez desperto E abro as janelas, pálido de espanto... E conversamos toda a noite, enquanto A Via Láctea, como um pálio aberto, Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto, 32 Inda as procuro pelo céu deserto. Direis agora: "Tresloucado amigo! Que conversas com elas? Que sentido Tem o que dizem, quando estão contigo?" E eu vos direi: "Amai para entendê-las! Pois só quem ama pode ter ouvido Capaz de ouvir e entender estrelas" No final do século XIX, o Simbolismo resgatou, embora de maneira diferente, o espírito romântico, que se torna mais evidente na temática da amada morta presente no soneto de Alphonsus de Guimaraens: Hão de chorar por ela os cinamomos, Murchando as flores ao tombar do dia. Dos laranjais hão de cair os pomos, Lembrando-se daquela que os colhia. As estrelas dirão - "Ai! nada somos, Pois ela se morreu silente e fria... " E pondo os olhos nela como pomos, Hão de chorar a irmã que lhes sorria. A lua, que lhe foi mãe carinhosa, Que a viu nascer e amar, há de envolvê-la Entre lírios e pétalas de rosa. Os meus sonhos de amor serão defuntos... E os arcanjos dirão no azul ao vê-la, Pensando em mim: - "Por que não vieram juntos?" No início do século XX, pré-modernistas polemizaram com o espírito idealizador romântico, como é o caso de Monteiro Lobato com seu artigo intitulado Jeca Tatu que, referindo-se à personagem indígena Peri de José de Alencar, faz um ataque à idealização do índio e do sertanejo: “Morreu Peri, incomparável idealização dum homem natural como o sonhava Rousseau, protótipo de tantas perfeições humanas, que no romance, ombro a ombro com altos tipos civilizados, a todos sobreleva em beleza d'alma e corpo. Contrapôs-lhe a cruel etrologia dos sertanistas modernos um selvagem real, feio e brutesco, anguloso e desinteressante, tão incapaz. muscularmente, de arrancar uma palmeira, como incapaz, moralmente, de amar Ceci.(...) Pobre Jeca Tatu! Como és bonito no romance e feio na realidade!” 33 Também no século XX, os modernistas satirizaram o espírito romântico, como, por exemplo, Oswald de Andrade, que, em seu Manifesto Antropófado, critica o fato de José de Alencar ter criado a figura do índio subserviente ao branco, a Dom Antônio de Mariz, pai de sua amada Ceci. “ Contra o índio de tocheiro. O índio filho de Maria, afilhado de Catarina de Médicis e genro de D. Antônio de Mariz.” Entretanto o espírito romântico manteve-se presente em várias obras do modernista Vinícius de Moraes, inclusive no seu mais famoso poema, o Soneto de Fidelidade: De tudo, ao meu amor serei atento Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto Que mesmo em face do maior encanto Dele se encante mais meu pensamento. Quero vivê-lo em cada vão momento E em seu louvor hei de espalhar meu canto E rir meu riso e derramar meu pranto Ao seu pesar ou seu contentamento. E assim quando mais tarde me procure Quem sabe a morte, angústia de quem vive Quem sabe a solidão, fim de quem ama Eu possa me dizer do amor (que tive): Que não seja imortal, posto que é chama Mas que seja infinito enquanto dure Portanto, caro aluno, com o conteúdo abordado nas unidades 1 e 2, busque mais conhecimento, procurando tornar-se um leitor ou ouvinte cada vez mais crítico, identificando vozes que ratificam ou retificam o espírito romântico. 34 UNIDADE 03 - ROMANTISMO NO BRASIL: 1ª GERAÇÃO NA POESIA: A POESIA NACIONALISTA DE GONÇALVES DIAS CONHECENDO A PROPOSTA DA UNIDADE Objetivos: Apresentar um panorama das condições do surgimento do romantismo. Nesta unidade, apresentaremos um panorama das condições para o surgimento do Romantismo no Brasil, bem como o estudo da primeira geração da poesia romântica brasileira, em sua mais representativa voz: Gonçalves Dias, em sua vertente nacionalista. ESTUDANDO E REFLETINDO Contexto Histórico Brasileiro Apenas para fins didáticos, divide-se a história da literatura em datas, pois sabemos que cada estilo de época vai se formando gradativamente indiferente a datas oficiais. Portanto, somente com finalidade didática, fixa-se o Romantismo no Brasil de 1836 com a publicação de Suspiros Poéticos e Saudades de Gonçalves de Magalhães a 1881 com a publicação de Memórias Póstumas de Brás Cubas de Machado de Assis e O Mulato de Aluísio Azevedo, dando início ao Realismo e ao Naturalismo brasileiros respectivamente. Dessa forma, o Romantismo foi sendo germinado no Brasil de 1808, com a vinda da família real portuguesa, até os anos pós- independência. Fugida de Napoleão, a família real portuguesa se fixou no Rio de Janeiro de 1808 a 1821, o que proporcionou grande desenvolvimento cultural, como a criação de tipografias, da imprensa periódica, de museus, bibliotecas e teatros. 35 Logo a estada da família real no Rio gerou as condições para a formação de um público leitor local e para o surgimento da função social do escritor. Em 7 de setembro de 1822, Dom Pedro I proclama a Independência e dá início ao primeiro reinado, que se estende até 1831, quando o monarca abdica ao trono, assumindo-o seu filho Dom Pedro II. Dessa forma, o Romantismo inicia oficialmente no Brasil, no início do segundo reinado, quando artistas, escritores e o público burguês buscavam a consolidação de nossa independência, a nossa identidade nacional. Observe esse anseio nas palavras de Gonçalves de Magalhães num ensaio para a Revista Niterói: “Não, oh! Brasil! No meio do geral merecimento tu não deves ficar imóvel e tranquilo, como o colono sem ambição e sem esperança. O germe da civilização, depositado em teu seio pela Europa, não tem dado ainda todos os frutos que deveria dar, vícios radicais têm tolhido o seu desenvolvimento. Tu afastaste do teu colo a mão estranha que te sufocava, respira livremente, respira e cultiva as ciências, as artes, as letras, as indústrias, e combate tudo o que entrevá-las pode.” Observe o ufanismo presente na tela O Grito do Ipiranga do pintor romântico brasileiro Pedro Américo: O Grito do Ipiranga - Pedro_Américo 36 A Primeira Geração da Poesia Romântica Brasileira A poesia romântica brasileira se divide em três gerações. Nesta unidade, daremos início ao estudo da 1ª geração por meio de sua voz mais representativa, GonçalvesDias. A 1ª geração romântica, por estar próxima à independência do Brasil, apresenta como principais características o nacionalismo ufanista e o indianismo. Gonçalves Dias 1823 – 1864 Aspectos Biográficos O maranhense Antônio Gonçalves Dias é filho de uma união não oficializada entre um português com uma mestiça cafuza brasileira (mestiça de índio e negro). O pai abandonou a mãe do poeta, vindo a se casar com Adelaide Ramos de Almeida, com a qual o menino passou a viver. Dona Adelaide deu ao enteado acesso aos estudos. Foi estudar em Portugal, em 1838, onde ingressou na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, retornando ao Brasil em 1845, após bacharelar-se. Em Coimbra, travou amizade com os escritores românticos lusitanos Almeida Garrett, Alexandre Herculano e Antonio Feliciano de Castilho. Em terra lusitana e saudoso do Brasil, escreveu a Canção do Exílio e parte dos poemas de "Primeiros Cantos" e "Segundos Cantos". 37 Um ano depois de ter retornado ao Maranhão, apaixonou-se por Ana Amélia Ferreira Vale. Várias de suas poesias lírico-amorosas, inclusive “Ainda uma vez — Adeus” foram escritas para ela. Viajou para o Rio de Janeiro, onde atuou como jornalista e professor, divulgando o Romantismo no Brasil. Em 1851 retornou a São Luís do Maranhão, onde pediu Ana Amélia em casamento, mas a família da moça, em virtude da ascendência mestiça do escritor, opôs-se à união. No mesmo ano retornou ao Rio de Janeiro, onde se casou com Olímpia da Costa. Voltou para a Europa, retornou ao Brasil e novamente viajou para Europa a fim de tratar de problemas de saúde. Não obtendo resultados regressou ao Brasil em 1864 no navio Ville de Boulogne, que naufragou na costa maranhense; salvaram-se todos, exceto o poeta. Estilo Gonçalves Dias destacou-se na poesia, abordando, segundo os padrões do Romantismo, vários temas: a Pátria, o índio, o amor e Deus manifestado na natureza. Seus principais livros são: Primeiros Cantos, Segundos Cantos, Novos Cantos e Últimos Cantos. É considerado o melhor poeta romântico brasileiro, principalmente no manuseio com o ritmo e a métrica. Vale a pena ler o poema A Tempestade, no qual o poeta trabalha com quase todos os metros, numa perfeita adequação entre os planos da forma e do conteúdo. 38 A Poesia Nacionalista Kennst du das Land, wo die Citronen blühen, Im dunkeln die Gold-Orangen glühen, Kennst du es wohl? — Dahin, dahin! Möcht ich... ziehn.[ Goethe Canção do Exílio Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá; As aves que aqui gorjeiam, Não gorjeiam como lá. Nosso céu tem mais estrelas, Nossas várzeas têm mais flores, Nossos bosques têm mais vida, Nossa vida mais amores. Em cismar, sozinho, à noite, Mais prazer encontro eu lá; Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá. Minha terra tem primores, Que tais não encontro eu cá; Em cismar - sozinho, à noite - Mais prazer encontro eu lá; Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá. Não permita Deus que eu morra, Sem que eu volte para lá; Sem que desfrute os primores Que não encontro por cá; Sem qu'inda aviste as palmeiras, Onde canta o Sabiá. Análise do Poema No que diz respeito ao plano da forma, ressalta-se a estrutura poemática, que rejeita a tradição clássica dos decassílabos em soneto e adere à liberdade formal romântica e à tradição medieval, a redondilha maior, disposta em três quartetos e duas sextilhas. 39 Essa estrutura corrobora a característica romântica de adequação do plano da forma ao conteúdo, uma vez que, por se tratar de uma “canção”, a popular e musical redondilha maior, com acentos rítmicos predominantemente nas 3ª e 7ª sílabas, imprime musicalidade ao poema, o que é reforçado pelos refrões “minha terra tem palmeiras / Onde canta o sabiá” e “Em cismar sozinho à noite / Mais prazer encontro eu lá”, além do paralelismo na segunda estrofe, ou seja, a repetição parcial “Nosso (s), Nossa (s) ...“tem mais”. Merece também destaque a rima oxítona em /a/. Quanto ao plano do conteúdo, trata-se de um poema lírico-saudosista e nacionalista, no qual aflora o ufanismo romântico, principalmente por meio dos elementos da natureza brasileira. O nacionalismo, por meio da natureza, já vem sugerido na epígrafe transcrita de Goethe. Eis a tradução: “Conheces o país onde florescem as laranjeiras? Ardem na escura fronde os frutos de ouro... Conhecê-lo – Para lá quisera eu ir!”. Já na primeira estrofe, vem à tona o subjetivismo romântico “minha”, que torna poeticamente possível o inverossímil: o sabiá cantando na palmeira. Este tipo de vegetação não é o habitat do sabiá, mas, na poesia romântica, a visão pessoal do poeta prevalece sobre a realidade, fundindo a ave e a vegetação, que melhor simbolizam a Pátria. Também, na primeira estrofe, emerge a antítese que alicerça o texto, os advérbios “lá” (Brasil) e “aqui” (Portugal). Na segunda estrofe, o eu lírico amplia o subjetivismo ao flexionar o pronome possessivo “nosso”, trazendo o leitor brasileiro para dentro da obra. Salienta-se a 40 natureza brasileira superior à da antiga Metrópole e culmina no sentimentalismo romântico: “Nossa vida mais amores”. A terceira estrofe inicia com um resquício clássico, o plano platônico gerando equilíbrio no eu lírico, pois, ao pensar “cismar” na Pátria, a solidão, típica dos românticos, é suplantada pelo prazer proporcionado pelas lembranças da terra natal. A quarta estrofe ratifica as anteriores e conduz ao fecho, exemplificando a religiosidade romântica: o apelo do eu lírico a Deus para que possa morrer na Pátria onde nasceu. Notável é o senso de equilíbrio na quase ausência de adjetivos na exaltação à Pátria, conforme justifica Antônio Cândido: A Canção do Exílio (banalizada ao ponto de perder a magia que no entanto a percorre de ponta a ponta) representa bem o seu ideal literário; beleza na simplicidade, fuga ao adjetivo, procura da expressão de tal maneira justa que outra seria difícil. CÂNDIDO, 2002, p: 21 Note, nas palavras de Cândido, que a Canção do Exílio foi banalizada por muitos, porém houve também os que a exaltassem. Tanto a banalização quanto a exaltação se deram por meio do diálogo intertextual, como veremos a seguir. BUSCANDO CONHECIMENTO As Várias Canções do Exílio Talvez por ser o mais popular poema brasileiro, a Canção do Exílio foi a obra literária que mais recebeu diálogo intertextual na história da nossa literatura. 41 Décadas depois de Gonçalves Dias tê-la escrito, a república foi proclamada no Brasil e o Hino Nacional foi composto. Na letra do hino, encontramos um diálogo intertextual com o poema romântico, ratificando-lhe o caráter ufanista. Eis o trecho do hino: “Nossos bosques têm mais vida Nossa vida no teu seio mais amores” No século XX, durante a Segunda Guerra Mundial, os soldados brasileiros foram combater na Itália e o poeta modernista Guilherme de Almeida compôs a Canção do Expedicionário, a qual também ratifica o ufanismo romântico: “Por mais terras que eu percorra, Não permita Deus que eu morra Sem que volte para lá; Sem que leve por divisa Esse "V" que simboliza A vitória que virá” Durante a ditadura militar de 1964, a canção Sabiá de Tom Jobim e Chico Buarque derrotava, num Festival de MPB, a música preferida do público, Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores de Geraldo Vandré. A canção Sabiá, dialogando intertextualmente com a Canção do Exílio de Gonçalves Dias, fazia alusão aos exilados políticos. Eis a letra e fica a sugestão de ouvir a música: Vou voltar Sei que ainda vou voltar Para o meu lugar Foi lá e é ainda lá Que eu hei de ouvir cantar Uma sabiá Vou voltar Sei que ainda vou voltar Vou deitar à sombra De um palmeira Que já não há Colhera flor Que já não dá E algum amor Talvez possa espantar As noites que eu não queira E anunciar o dia 42 Vou voltar Sei que ainda vou voltar Não vai ser em vão Que fiz tantos planos De me enganar Como fiz enganos De me encontrar Como fiz estradas De me perder Fiz de tudo e nada De te esquecer Vou voltar Sei que ainda vou voltar E é pra ficar Sei que o amor existe Não sou mais triste E a nova vida já vai chegar E a solidão vai se acabar E a solidão vai se acabar No entanto a Canção do Exílio foi talvez mais satirizada do que ratificada, principalmente pelos modernistas. Na Canção do Exílio, abaixo transcrita, o modernista Murilo Mendes satiriza o Brasil aculturado, sem identidade nacional: Minha terra tem macieiras da Califórnia onde cantam gaturamos de Veneza. Os poetas da minha terra são pretos que vivem em torres de ametista, os sargentos do exército são monistas, cubistas, os filósofos são polacos vendendo a prestações. A gente não pode dormir com os oradores e os pernilongos. Os sururus em família têm por testemunha a Gioconda. Eu morro sufocado em terra estrangeira. Nossas flores são mais bonitas nossas frutas mais gostosas mas custam cem mil réis a dúzia. Ai quem me dera chupar uma carambola de verdade e ouvir um sabiá com certidão de idade! Agora é com você, prezado aluno, busque mais conhecimento, com olhos e ouvidos atentos aos textos e canções com os quais você tiver contato, pois neles poderá haver aquele gorjeio do sabiá ou o saudosismo do poeta romântico distante da Pátria. 43 UNIDADE 04 - A POESIA INDIANISTA E LÍRICO-AMOROSA DE GONÇALVES DIAS CONHECENDO A PROPOSTA DA UNIDADE Objetivos: Estudar a poesia indianista e lírica de Gonçalves Dias. Nesta unidade, estudaremos a poesia indianista e lírico-amorosa de Gonçalves Dias, ressaltando o poemeto épico I-Juca Pirama e o diálogo intertextual com a tradição lírica trovadoresca lusitana. Também estabeleceremos um paralelo entre a visão do índio no Romantismo e no Modernismo. ESTUDANDO E REFLETINDO A Poesia Indianista I – Juca Pirama O título deste poemeto épico é o nome do protagonista, um guerreiro indígena tupi, e significa “aquele que deve morrer”. Isso porque um de seus temas é a antropofagia, ou seja, a crença de que, se a carne de um bravo guerreiro for digerida, os devoradores se nutrem de sua força e valentia. Se Gonçalves Dias fosse seguir o rigor clássico, ele manteria os versos decassílabos por todo o poema. No entanto, seguindo a liberdade formal romântica, o poeta opta pela flexibilidade do metro e do ritmo, adaptando-os aos momentos da narrativa. Trata-se de um trabalho de mestre, conforme afirma Antônio Cândido: “A rotação psicológica do poema, as alternativas de pasmo e exaltação, se realizam de modo impecável na estrutura melódica, nos movimentos marcados pela variação de ritmo e amparados na escolha dos vocábulos.” CÂNDIDO, 2002, p: 31 O poema inicia com a descrição do ritual antropofágico realizado pelos bravos Timbiras. Juca Pirama é o prisioneiro, que mantém uma calma apenas aparente. 44 Observe, no plano da forma, a alternância de versos decassílabos e tetrassílabos, dando um ritmo de suspense e terror respectivamente. “O prisioneiro, cuja morte anseiam, Sentado está, O prisioneiro, que outro sol no ocaso Jamais verá! A dura corda, que lhe enlaça o colo, Mostra-lhe o fim Da vida escura, que será mais breve Do que o festim! Contudo os olhos d'ignóbil pranto Secos estão; Mudos os lábios não descerram queixas Do coração. Mas um martírio, que encobrir não pode, Em rugas faz A mentirosa placidez do rosto Na fronte audaz!” Em seguida, Juca Pirama se apresenta aos Timbiras e expõe seus sentimentos. O protagonista revela que ele e o velho e cego pai foram os últimos remanescentes da tribo. Por isso, implora, chorando, sua liberdade para que possa cuidar do pai já idoso e doente, prometendo, assim que este morrer, entregar-se, pois se julga digno de ser devorado. Perceba, no plano da forma, a redondilha menor, com acento rítmico na 2ª e 5ª sílaba, dando o efeito tanto da força do guerreiro quanto do som dos tambores indígenas: “Meu canto de morte, Guerreiros, ouvi: Sou filho das selvas, Nas selvas cresci; Guerreiros, descendo Da tribo tupi. Da tribo pujante, Que agora anda errante Por fado inconstante, Guerreiros, nasci; Sou bravo, sou forte, Sou filho do Norte; 45 Meu canto de morte, Guerreiros, ouvi.(...) Ao velho coitado De penas ralado, Já cego e quebrado, Que resta? - Morrer. Enquanto descreve O giro tão breve Da vida que teve, Deixai-me viver!(...) Guerreiros, não coro Do pranto que choro: Se a vida deploro, Também sei morrer.” Vendo-o chorar, o chefe Timbira o liberta por julgá-lo um covarde indigno de ser devorado. Envergonhado, Juca Pirama parte para ser arrimo do pai. No plano da forma, vêm à tona os diálogos, típicos do gênero dramático, alternando o solene decassílabo e a agilidade dos metros curtos: “- És livre; parte. - E voltarei. - Debalde. - Sim, voltarei, morto meu pai. - Não voltes! (...) - Mentiste, que um Tupi não chora nunca, E tu choraste!... parte; não queremos Com carne vil enfraquecer os fortes.” O protagonista reencontra o pai e lhe conta o ocorrido. O pai, idoso guerreiro altivo, o amaldiçoa e o expulsa, uma vez que, para os bravos tupis, é melhor morrer reconhecido como herói do que viver como pai de um covarde. No plano da forma, os versos eneassílabos, com acento rítmico na 3ª, 6ª e 9ª sílabas, dão efeito de lentidão e cansaço na fala do velho pai, dirigindo-se ao filho: “Tu choraste em presença da morte? Na presença de estranhos choraste? Não descende o cobarde do forte; 46 Pois choraste, meu filho não és! Possas tu, descendente maldito De uma tribo de nobres guerreiros, Implorando cruéis forasteiros, Seres presa de vis Aimorés.(...) Sê maldito, e sozinho na terra; Pois que a tanta vileza chegaste, Que em presença da morte choraste, Tu, cobarde, meu filho não és." Com o brio ferido, Juca Pirama retorna à tribo Timbira. O pai o segue. O herói deseja provar ser digno de ser devorado, propondo lutar contra todos os guerreiros timbiras. Assim o faz e sai vencedor, sendo reconhecido como um bravo pelo chefe e pelo pai. Ironicamente, o pai chora de emoção ao constatar a grandeza do filho, que será enfim devorado, por ser um bravo guerreiro. Daí o título, I – Juca Pirama (aquele que deve morrer). Observe que o fato de o herói ter chorado, caracteriza-o como personagem romântica e lírica. Já o choro do pai também o faz uma personagem lírica, mas, agora, pelo reconhecimento do caráter épico do filho, que provou sua bravura. A progressão narrativa faz, portanto, vir à tona o sentimentalismo romântico aliado à idealização do protagonista, inspirado na coragem dos cavaleiros medievais. “Este sim, que é meu filho muito amado! E pois que o acho enfim, qual sempre o tive, Corram livres as lágrimas que choro, Estas lágrimas, sim, que não desonram.(...)” Passam-se muitos anos e um velho Timbira conta aos mais jovens, céticos, a façanha de Juca Pirama: “Um velho Timbira, coberto de glória, Guardou a memória Do moço guerreiro, do velho Tupi! E à noite, nas tabas, se alguém duvidava Do que ele contava, Dizia prudente: - "Meninos, eu vi!” Belo poema que recebeu do crítico Antônio Cândido o seguinte elogio: 47 “O I-Juca-Pirama é dessas coisas indiscutidas, que se incorporam ao orgulho nacional e à própria representação da pátria, como a magnitude do Amazonas, o grito do Ipiranga ou as coresverde-e-amarela.” (Antonio Cândido, Formação da Literatura Brasileira) O Lirismo-Amoroso Indianista Na poesia indianista de Gonçalves Dias, merecem destaque também os poemas líricos Marabá e Leito de Folhas Verdes. Nestes, resgatando a tradição das cantigas de amigo trovadorescas, o poeta dá voz à indígena abandonada ou desprezada pelo amado guerreiro, emergindo o eu lírico feminino e o erotismo, inclusive por meio de elementos da natureza tropical. Veja um fragmento de Leito de Folhas Verdes: “Por que tardas, Jatir, que tanto a custo À voz do meu amor moves teus passos? Da noite a viração, movendo as folhas, Já nos cimos do bosque rumoreja. Eu sob a copa da mangueira altiva Nosso leito gentil cobri zelosa Com mimoso tapiz de folhas brandas, Onde o frouxo luar brinca entre flores.(...) Meus olhos outros olhos nunca viram, Não sentiram meus lábios outros lábios, Nem outras mãos, Jatir, que não as tuas A arazoia na cinta me apertaram.(...) Não me escutas, Jatir! nem tardo acodes À voz do meu amor, que em vão te chama! Tupã! lá rompe o sol! do leito inútil A brisa da manhã sacuda as folhas!” Análise do Fragmento Mantendo, no plano da forma, os versos decassílabos clássicos, mas não aderindo à contenção emotiva do soneto, Gonçalves Dias resgata o lirismo amoroso das cantigas de amigo trovadorescas ao dar voz à índia abandonada pelo amado guerreiro Jatir. O tom de lamento e abandono, reforçado pelos decassílabos, já se faz presente no questionamento do eu lírico nos dois primeiros versos. 48 O eu lírico feminino torna-se explícito, na segunda estrofe, com a flexão de gênero do adjetivo “zelosa”, e o erotismo sutilmente emerge por meio de elementos da natureza cor local “Eu sob a copa da mangueira altiva / Nosso leito gentil cobri zelosa”. A pobre índia preparara em vão o leito de amor, com folhas de uma mangueira, porém Jatir partiu e parece não querer retornar. Na terceira estrofe, irrompe a voz da fidelidade e o erotismo explícito, uma vez que Jatir já tocara na arazoia da abandonada índia. Vale ressaltar que arazoia é uma sainha de penas usada pelas índias. Na última estrofe, a melancolia toma conta do poema com o dia nascendo e a constatação de que o amado não retornara. Concluindo, original no épico e no lirismo, Gonçalves Dias foi a grande voz do indianismo romântico brasileiro no verso, enquanto José de Alencar o foi na prosa. O Lirismo Amoroso de Gonçalves Dias Embora, como já vimos, o lirismo amoroso se fez presente em poemas indianistas de Gonçalves Dias, agora trataremos do lirismo mais pessoal, influenciado pelo desencontro amoroso com Ana Amélia. Dessa forma, vem à tona a influência lusitana, já que o poeta estudou em Coimbra. Também se verifica a influência de Garrett, Camões e das cantigas de amor trovadorescas quanto à temática do amor gerando conflito. Seus poemas líricos mais famosos são Se Se Morre de Amor e Ainda Uma Vez – Adeus. Vamos à leitura e análise de um fragmento deste último poema. 49 Ainda Uma Vez – Adeus! Segundo os biógrafos de Gonçalves Dias, este poema fora escrito por ocasião de seu reencontro, em Lisboa, com Ana Amélia, já casada com outro. A família da moça impedira o matrimônio pelo fato de ele ser mestiço. No entanto, Ana veio a se casar, por capricho, com um comerciante também mestiço. “Enfim te vejo! – enfim posso, Curvado a teus pés, dizer-te, Que não cessei de querer-te, Pesar do quanto sofri, Muito penei! Cruas ânsias, Dos teus olhos afastado, Houveram-me acabrunhado, A não lembra-me de ti!(...) Louco, aflito, a saciar-me De agravar minha ferida, Tomou-me tédio da vida, Passos da morte senti; Mas quase no passo extremo, No último arcar da esp`rança, Tu me vieste à lembrança: Quis viver mais e vivi!(...) Adeus que eu parto, senhora; Negou-me o fado inimigo Passar a vida contigo, Ter sepultura entre os meus(...) Lerás porém algum dia Meus versos, da alma arrancados, De amargo pranto banhados, Com sangue escritos; - e então Confio que te comovas, Que a minha dor te apiade, Que chores, não de saudade, Nem de amor, - de compaixão.” Análise do Excerto No ritmo da redondilha maior, da medida velha medieval, o eu lírico masculino, ego fictício do poeta, reencontra a amada, declara seu amor a ela mas a vê como inacessível. Disso resulta a influência das cantigas de amor trovadorescas, com a 50 vassalagem amorosa “Curvado a teus pés” e a coita, ou sofrimento amoroso, “Pesar do quanto sofri”, “Tomou-me tédio da vida, / Passos da morte senti”, entre outros trechos. Em meio ao extravasamento emotivo romântico “De amargo pranto banhados, /Com sangue escritos”, há um resquício clássico, percebido na manutenção do equilíbrio por meio do platonismo, impedindo que o eu lírico recorra ao suicídio passional: “Mas quase no passo extremo, /No último arcar da esp`rança, /Tu me vieste à lembrança: /Quis viver mais e vivi!(...)”. Portanto, embora seja um digno representante romântico brasileiro, Gonçalves Dias apresenta certa influência clássica e grande resgate da tradição portuguesa, fruto de sua convivência com grandes poetas lusitanos da época. BUSCANDO CONHECIMENTO A Visão do Índio no Romantismo e no Modernismo Procure conhecer mais sobre a temática do índio nas nossas letras, levando em conta que, enquanto os românticos idealizaram o silvícola, os modernistas o viram de forma mais espontânea, como digno formador da cultura nacional, mas também como representante da malandragem brasileira. Dentre os modernistas que tematizaram o índio, destacam-se Mário e Oswald de Andrade, além de Cassiano Ricardo Mário de Andrade criou Macunaíma, O Herói Sem Nenhum Caráter, o que não implica um mau caráter mas sim uma síntese do povo brasileiro, sem caráter racial, cultural, comportamental ainda definido, oscilando entre o bem e o mal. Veja a abertura da obra: “No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite. Houve um momento em que o silêncio foi tão grande escutando o murmurejo do Uraricoera, que a índia tapanhumas pariu uma criança feia. Essa criança é que chamaram de Macunaíma. 51 Já na meninice fez coisas de sarapantar. De primeiro passou mais de seis anos não falando. Si o incitavam a falar exclamava: _Ai! que preguiça!...” Observe que Macunaíma, assim como o povo que ela simboliza, não apresenta um caráter racial definido: é negro e filho de uma índia. No âmbito estilístico, suspende-se a idealização romântica em sua descrição como criança feia e já predestinada à preguiça, além da adoção da linguagem coloquial. Também, tematizando a formação do povo brasileiro, Oswald de Andrade, no poema Brasil, retrata as três raças formadoras do nosso povo, num diálogo intertextual com I – Juca Pirama de Gonçalves Dias: O Zé Pereira chegou de caravela E perguntou pro guarani da mata virgem - Sois cristão? - Não. Sou bravo, sou forte, sou filho da Morte Teterê tetê Quizá Quizá Quecê! Lá longe a onça resmungava Uu! ua! uu! O negro zonzo saído da fornalha Tomou a palavra e respondeu - Sim pela graça de Deus Canhem Babá Canhem Babá Cum Cum! E fizeram o Carnaval Note, no poema de Oswald de Andrade, que, assim como os românticos, os modernistas também tinham como proposta a busca da identidade nacional, inclusive pelo fato de a Semana de Arte Moderna de 1922 ter feito parte dos festejos comemorativos do centenário da nossa independência. Dessa forma, cem anos depois do nascimento da nação, os modernistas propunham uma busca da brasilidade de forma diferente dos românticos, não admitindo idealizações, incorporando o falar brasileiro à literatura e admitindo também o negro como formador da raça brasileira. 52 Já Cassiano
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