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PUBLICAÇÃO QUADRIMESTRAL EDITADA PELO Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES) Diretoria Nacional Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ) Avenida Brasil, 4036 – sala 802 – Manguinhos 21040-361 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil Tel.: (21) 3882-9140, 3882-9141 Cel.: (21) 9695-7663 – Fax.: (21) 2270-1793 E-mail: cebes@ensp.fiocruz.br Home page: http://www.ensp.fiocruz.br/parcerias/cebes/cebes.html DIREÇÃO NACIONAL (GESTÃO 2000-2002) Presidente Sarah Escorel (RJ) 1O Vice-Presidente Armando de Negri Filho (RS) 2O Vice-Presidente Eduardo Freese de Carvalho (PE) 3O Vice-Presidente Carlos Botazzo (SP) 4O Vice-Presidente Alcides Silva de Miranda (CE) 1O Suplente Rogério Renato Silva (SP) 2O Suplente Maria José Scochi (PR) CONSELHO FISCAL Anamaria Testa Tambellini (RJ), Paulo Duarte de Carvalho Amarante (RJ) & Ary Carvalho de Miranda (RJ) CONSELHO CONSULTIVO Antônio Ivo de Carvalho (RJ), Antônio Sérgio da Silva Arouca (RJ), Emerson Elias Merhy (SP), Lia Giraldo da Silva Augusto (PE), Luiz Augusto Facchini (RS), Gastão Wagner de Souza Campos (SP), Gilson de Cássia M. de Carvalho (SP), Jorge Antônio Zepeda Bermudez (RJ), José Ruben de Alcântara Bonfim (SP), Roberto Passos Nogueira (DF), José Gomes Temporão (RJ), Luíz Carlos de Oliveira Cecilio (SP) & Paulo Sérgio Marangoni (ES) CONSELHO EDITORIAL Coordenador Paulo Duarte de Carvalho Amarante (RJ) Ana Maria Malik (SP), Célia Maria de Almeida (RJ), Francisco de Castro Lacaz (SP), Guilherme Loureiro Werneck (RJ), Jairnilson da Silva Paim (BA), José da Rocha Carvalheiro (SP), Lígia Giovanella (RJ), Luis Cordoni Jr. (PR), Maria Cecília de Souza Minayo (RJ), Naomar de Almeida Filho (BA), Nilson do Rosário Costa (RJ), Renato Peixoto Veras (RJ), Ronaldo Bordin (RS) & Sebastião Loureiro (BA) SECRETARIA EXECUTIVA Ana Cláudia Gomes Guedes Renata Machado da Silveira RESPONSÁVEL PELA EDIÇÃO Ana Cláudia Gomes Guedes REVISÃO DE TEXTO Carlos Frederico Manes Guerreiro – português Juliana Monteiro Samel – inglês FOTOS DA CAPA Alvaro Funcia Lemme CAPA, DIAGRAMAÇÃO E EDITORAÇÃO ELETRÔNICA Adriana Carvalho & Carlos Fernando Reis da Costa IMPRESSÃO E ACABAMENTO Armazém das Letras Gráfica e Editora TIRAGEM 3.000 exemplares Apoio: Indexação: Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS) A Revista Saúde em Debate é associada à Associação Brasileira de Editores Científicos Rio de Janeiro v.25 n.58 maio/ago. 2001 ÓRGÃO OFICIAL DO CEBES Centro Brasileiro de Estudos de Saúde ISSN 0103-1104 CONCEITUALMENTE A CAPA EXPRESSA A RICA PRODUÇÃO POLÍTICA, ARTÍSTICA E CULTURAL DO MOVIMENTO DE REFORMA PSIQUIÁTRICA FONTE – LABORATÓRIO DE ESTUDOS E PESQUISAS EM SAÚDE MENTAL (LAPS/FIOCRUZ) 2 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 23, n. 53, p. XX-YY, set./dez. 1999 SUMÁRIO EDITORIAL ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 3 ARTIGOS ORIGINAIS Desinstitucionalização em Saúde Mental: considerações sobre o paradigma emergente Deinstitutionalization in Mental Health: considerations on the emergent paradigm Jacileide Guimarães, Soraya Maria de Medeiros, Toyoko Saeki & Maria Cecília Puntel de Almeida ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 5 As Conferências Nacionais de Saúde Mental e as premissas do Modo Psicossocial The National Conferences of Mental Health and the premises of the psychosocial way Abílio da Costa-Rosa,Cristina Amélia Luzio & Silvio Yasui ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 12 A constituição de novas práticas no campo da Atenção Psicossocial: análise de dois projetos pioneiros na Reforma Psiquiátrica no Brasil The forming of new practices in the Psychiatric-social care: review of two pioneer projects in the Psychiatric Reform in Brazil Paulo Duarte de Carvalho Amarante & Eduardo Henrique Guimarães Torre ○ ○ ○ ○ ○ ○ 26 Da avaliação em saúde à avaliação em Saúde Mental: gênese, aproximações teóricas e questões atuais From health assesment to mental Health Assesment: birth, theoretical approaches and current issues Patty Fidelis de Almeida & Sarah Escorel ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 35 Ambiente construído e comportamento espacial na instituição psiquiátrica: questões éticas em Observação Participante Built environment and spatial behaviour in psychiatric institution: ethical issues in Participative Observation Mirian de Carvalho ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 48 Lares Abrigados: dispositivo clínico-político no impasse da relação com a cidade Sheltered Homes: a political-clinical apparatus in the locked relationship with the city Regina Benevides de Barros & Silvia Josephson ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 57 O usuário de psicofármacos num Programa Saúde da Família The psycopharmic user in a Family Health Program Maria Célia F. Danese & Antonia Regina F. Furegato ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 70 A construção da diferença na assistência em Saúde Mental no município: a experiência de São Lourenço do Sul – RS The construction of difference in Mental Health assistance in municipalities: the experience of São Lourenço do Sul – RS Christine Wetzel & Maria Cecília Puntel de Almeida ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 77 Qualidade de vida de pessoas egressas de instituições psiquiátricas: o caso de Ilhéus – BA Quality of life in patients discharged from psychiatric institutions: the Ilhéus – BA, case Rozemere Cardoso de Souza & Maria Cecília Morais Scatena ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 88 Clínica: a palavra negada – sobre as práticas clínicas nos serviços substutivos de Saúde Mental Clinical ptractice: denied words – on clinical practices in Mental Health substitutive services Rosana Onocko Campos ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 98 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 23, n. 53, p. XX-YY, set./dez. 1999 3 EDITORIAL Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 3, maio./ago. 2001 3 Este número da Saúde em Debate é dedicado à SaúdeMental e será lançado por ocasião da III Conferên- cia Nacional de Saúde Mental, em Brasília, no período entre 11 e 15 de dezembro de 2001. Desde os primórdios da Reforma Sanitária, no iní- cio do CEBES que completa 25 anos, o campo da Saúde Mental têm sido vanguarda e integrante do movimento sanitário, resguardando suas especificidades que in- tegram o Movimento da Reforma Psiquiátrica no Bra- sil e, ao mesmo tempo, inserindo objetos, teorias, temas, atores e arenas no movimento mais geral que luta pela transformação das condições de saúde da população brasileira. Desnecessário enfatizar a importância da III Confe- rência Nacional de Saúde Mental, desejada há mais de uma década e que se realiza num contexto nacional e internacional auspicioso. Há cerca de dez anos vêm sendo implantados serviços substitutivos e novas prá- ticas assistenciais e este é um bom momento para ava- liar avanços e impasses. Depois de muitos anos tra- mitando no congresso, e de muita luta do movimento social por uma sociedade sem manicômios, foi apro- vada a Lei da Reforma Psiquiátrica abrindo possibili- dades de inovação e de regulação. A OMS declarou 2001 o ano da Saúde Mental com a proposta “cuidar sim, excluir não”. Mas, estas boas novas inserem-se no velho e conhecido cenário de pobreza e extremas desigual- dades sociais. Portanto, há que se pensar nas necessi- dades específicas de proteção social dos portadores de sofrimento psíquico no interior do contexto de recons- trução de um efetivo sistema de proteção social. Este número é a contribuição do CEBES aos importan- tes debates da III Conferência Nacional de Saúde Men- tal. Desinstitucionalização, novas práticas, práticas clí- nicas nos serviços substitutivos, avaliação, relações dos lares abrigados com a cidade, uso de psicofármacos no PSF, experiências municipais de assistência em saúde mental e qualidade de vida dos egressos de instituiçõespsiquiátricas são os temas abordados além do artigo que recupera as conferências anteriores na área de Saú- de Mental que nos lembra e relembra que a Reforma Sanitária em geral, e a Reforma Psiquiátrica em parti- cular, são processos, nem contínuos nem lineares e que dependem da participação de todos os segmentos para alcançar efetivamente os objetivos desejados: inclusão, solidariedade e cidadania emancipada. A Diretoria Nacional 4 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 23, n. 53, p. XX-YY, set./dez. 1999 QUEM SOMOS Desde a sua criação, em 1976, o CEBES tem como centro de seu projeto a luta pela democratização da saúde e da sociedade. Nesses 25 anos, como centro de estudos que aglutina profissionais e estudantes, seu espaço esteve assegurado como produtor de conhecimentos com uma prática política concreta, seja em nível dos movimentos sociais, das instituições ou do parlamento. Durante todo esse tempo, e a cada dia mais, o CEBES continua empenhado em fortalecer seu modelo democrático e pluralista de organização; em orientar sua ação para o plano dos movimentos sociais, sem descuidar de intervir nas políticas e práticas parlamentares e institucionais; em aprofundar a crítica e a formulação teórica sobre as questões de saúde; e em contribuir para a consolidação das liberdades políticas e para a constituição de uma sociedade mais justa. A produção editorial do CEBES tem sido fruto de um trabalho coletivo. Estamos certos que continuará assim, graças a seu apoio e participação. Desinstitucionalização em Saúde Mental: considerações sobre o paradigma emergente Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 5-11, maio/ago. 2001 5 ARTIGOS ORIGINAIS Desinstitucionalização em Saúde Mental: considerações sobre o paradigma emergente1 Deinstitutionalization in Mental Health: considerations on the emergent paradigm Jacileide Guimarães2 Soraya Maria de Medeiros3 Toyoko Saeki4 Maria Cecília Puntel de Almeida5 1 Trabalho elaborado a partir da disciplina Seminários de Saúde Mental do Mestrado de Enfermagem Psiquiátrica e Saúde Mental da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo – EERP/ USP, 1999. 2 Mestranda em Enfermagem Psiquiátrica e Saúde Mental na Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo – EERP/USP. 3 Professora Doutora do Departamento de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. e-mail: sorayamaria@uol.com.br 4 Professora Doutora do Departamento de Enfermagem Psiquiátrica e Ciências Humanas da EERP/USP. e-mail: maryto@eerp.usp.br 5 Professora Doutora do Departamento de Materno Infantil e Saúde Pública da EERP/USP. e-mail: cecilia@glete.eerp.usp.br RESUMO O presente artigo tem como objetivo analisar a pós-modernidade epistemológica, social e política do saber/fazer psiquiátrico no Brasil. Para tanto partimos dos pressupostos do Paradigma Emergente no âmbito epistemológico e dos Novos Movimentos Sociais (NMS) no âmbito social e político ambos segundo Santos (1997a, 1998), acrescido das experiências práticas da assistência em saúde mental no Brasil nas duas últimas décadas (1979-1999). Verificamos a congruência existente entre os movimentos de mudança da atenção psiquiátrica e as prerrogativas do paradigma emergente, podendo-se destacar a complexidade e complementariedade exigida por esse paradigma e defendida pelas experiências brasileiras de desinstitucionalização de orientação basagliana. PALAVRAS-CHAVE: desinstitucionalização; saúde mental; paradigma emergente. ABSTRACT This essay aims to analyze the epistemological, social and political post- modernity of psychiatric knowledge/performance in Brazil. With that objective, we started from the presuppositions of the Emergent Paradigm in the epistemological level and of the New Social Movements in the social level, both according to Santos (1997a, 1998), in addition to practical experience on mental health care in Brazil in the past two decades (1979-1999). We observed the congruence that exists between both movements related to psychiatric health care change and the prerogatives of the emergent paradigm. The complexity and complementarity required by such paradigm, which is defended by the Brazilian deinstitutionalization experiences based on the theories of Basaglia, can be highlighted. KEY WORDS: deinstitutionalization; mental health; emergent paradigm. GUIMARÃES, J. et al. 6 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 5-11, maio/ago. 2001 INTRODUÇÃO O presente artigo tem como ob- jetivo analisar a pós-modernida- de epistemológica, social e políti- ca do saber/fazer psiquiátrico no Brasil nas duas últimas décadas (1979 - 1999). Santos (1998: 37) define as transformações epistemológicas no modo de se fazer/ver ciência ou o Paradigma Emergente como um “paradigma de um conhecimento prudente para uma vida decente” assim atestando a novidade de que a ciência comporta, simultaneamen- te ao aspecto estritamente investi- gativo, o aspecto social da vida das pessoas. Com base neste pensamen- to tecido como um discurso sobre as ciências e introdução a uma ci- ência pós-moderna, este autor de- fende um conjunto de teses que têm em comum a superação do paradig- ma dominante1, sobre o que nos in- teressa citar sucintamente: 1. Todo o conhecimento científico- natural é científico-social; 2. Todo o conhecimento é local e total; 3. Todo o conhecimento é autoco- nhecimento; 4. Todo o conhecimento cientí- fico visa constituir-se em sen- so comum. A primeira tese – Todo o conhe- cimento científico-natural é cientí- fico-social – fudamenta-se na su- peração das dicotomias na não-du- alidade do conhecimento, abolin- do-se assim o sentido que continha interpretações estanques como, por exemplo, natureza/cultura, natural/ artificial, observador/observado, saúde/doença, razão/desatino. A segunda tese – Todo o conhecimen- to é local e total – visa a um co- nhecimento interdisciplinar que una ao que estudamos” (SANTOS, 1998: 53). A quarta tese – Todo o conhecimento científico visa cons- tituir-se em senso comum –, por fim, visa ao diálogo entre o conhe- cimento científico e o senso comum enquanto possibilidade qualitativa de ampliação do fenômeno obser- vado e em detrimento do autorita- rismo e dominação de um sobre o outro, ou seja, do primeiro sobre o segundo. Ressalta-se a importância deci- siva do desvelamento pelo paradig- ma emergente, da chamada neutra- lidade científica – preconizada pelo paradigma dominante – na qual o observador separado, cindido do observado atuava sobre este sem no entanto responsabilizar-se so- cialmente, enquanto que o obser- vado por sua vez, possuía um lu- gar passivo e coisificado no proces- so de investigação. No âmbito social e político, San- tos (1997a) atesta um estado pós- moderno dos acontecimentos atra- vés dos denominados Novos Mo- vimentos Sociais (NMSs), presen- tes em todo o mundo, principal- mente nas décadas de 70 e 80, de forma mais ou menos intensa con- forme o estágio de desenvolvimen- to econômico local. Os NMSs são os movimentos ti- picamente pós-industriais que de- 1 Dentre vasta bibliografia sobre o paradigma científico dominante, pode-se consultar o próprio Santos (1989, 1998). perceba a totalidade dos aconteci- mentos específicos, complexifican- do-os e assim enriquecendo-os. A terceira tese - Todo o conhecimen- to é auto-conhecimento - refere-se a integração e intencionalidade en- tre sujeitos e não entre ‘um sujeito e um objeto’, assim trata-se de “um conhecimento compreensivo e ín- timo que não nos separee antes nos NO ÂMBITO SOCIAL E POLÍTICO, SANTOS (1997A) ATESTA UM ESTADO PÓS-MODERNO DOS ACONTECIMENTOS ATRAVÉS DOS DENOMINADOS NOVOS MOVIMENTOS SOCIAIS (NMSS) Desinstitucionalização em Saúde Mental: considerações sobre o paradigma emergente Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 5-11, maio/ago. 2001 7 nunciam as formas de opressão cotidianas contidas na violência, na poluição, no sexismo, no racis- mo e no produtivismo, dentre ou- tras formas de exclusão. Para San- tos (1997a: 258), os NMSs trazem como “novidade maior tanto uma crítica da regulação social capita- lista como uma crítica da emanci- pação social socialista tal como foi defendida pelo marxismo”. Assim denunciando ‘com uma ra- dicalidade sem precedentes os ex- cessos de regulação da moderni- dade’ e contribuindo para a cons- trução, no dizer deste autor, de uma equação que comungue si- multaneamente ‘subjetividade, ci- dadania e emancipação’. Segundo Santos (1997a: 257), a América Latina destaca-se dos de- mais países periféricos e semiperi- féricos com relação a atuação dos NMSs, sendo que aqui estes movi- mentos são peculiarmente ‘nutridos por inúmeras energias’ que compi- lam desde reivindicações pós-ma- terialistas a lutas por condições bá- sicas de sobrevivência, diferente- mente do que se passa nos países centrais onde os movimentos são ‘puros’ ou bem definidos. Com relação ao Brasil particu- larmente, tem-se na ‘década de se- tenta e de oitenta um notável flo- rescimento de NMSs’ (Santos, 1997a), atente-se para o momento político de luta pela transição de- mocrática pós-ditadura que se de- lineava. Vale situar esse momento crucial para a transformação da sociedade brasileira, denominado por Sader (1990) como ‘entre o ve- lho e o novo’. Segundo Sader (1990: 48), o ponto de partida da transi- ção é claro: uma ditadura militar permeada por uma ideologia de se- gurança nacional favorável ao grande capital monopolista e finan- ceiro nacional e internacional. Já o ponto de chegada é menos claro: um regime híbrido, em que deixaram de existir as leis de exceção, em que pacote de medidas que revogava dis- posições que limitavam os direitos políticos estabelecidos pela ditadu- ra militar (Sader, 1990: 48). Mas, à revelia da menor clareza do ponto de chegada da transição, não se pode negar o surgimento de algo novo que se podia dizer germe da redemocratização do país: A chamada Nova República foi sendo instaurada assim como uma mistura híbrida entre o velho e o novo. Inegavelmente se trata de um novo regime. A forma de domina- ção política foi modificada, subs- tituindo as instâncias militares por formas parlamentares: a nova Constituição fortaleceu o papel do Congresso, as liberdades individu- ais foram ampliadas, o direito de organização política foi explicita- do, introduziram-se direitos da ci- dadania que antes não constavam de nosso sistema jurídico, tem vi- gência, ao menos teoricamente, um Estado de direito, baseado em leis votadas por um Parlamento eleito pelo voto universal e direto (Sader, 1990: 54). Assim finalizamos a década de 70 e adentramos a década de 80 com um Brasil efervescente, manifesta- das as contradições e reduzido o poder ditatorial das elites dirigen- tes. A sociedade civil despertava de um pesadelo que durara vinte e um anos e havia muito o que ser ques- tionado. Emergem denúncias e in- dignação acerca da questão psiqui- átrica no âmbito da saúde. os partidos políticos, as associações civis e a grande imprensa não en- contram limitações do ponto de vis- ta legal. Os próprios militares se re- tiraram do centro da cena política para um lugar mais discreto. Dei- xou de haver presos políticos, os ór- gãos de segurança tiveram seu pa- pel diminuído, foram restabelecidos os mecanismos eleitorais na sua ple- nitude. Antes mesmo da nova Cons- tituição, o Congresso já havia remo- vido o que considerou como ‘entu- lhos autoritários’, aprovando um PARA SANTOS (1997A: 258), OS NMSS TRAZEM COMO “NOVIDADE MAIOR TANTO UMA CRÍTICA DA REGULAÇÃO SOCIAL CAPITALISTA COMO UMA CRÍTICA DA EMANCIPAÇÃO SOCIAL SOCIALISTA TAL COMO FOI DEFENDIDA PELO MARXISMO” GUIMARÃES, J. et al. 8 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 5-11, maio/ago. 2001 O PROCESSO SAÚDE/DOENÇA MENTAL: A DESINSTITUCIONALIZAÇÃO SOB O SIGNO DO PARADIGMA EMERGENTE Feita esta breve localização teó- rico-metodológica à luz do Paradig- ma Emergente e dos Novos Movi- mentos Sociais conforme Santos (1997a, 1998), retomamos o recor- te das duas últimas décadas no Bra- sil no âmbito das políticas e práti- cas em saúde mental. A saúde mental brasileira nas duas últimas décadas, mais precisa- mente de 1979 a 1999, passou por transformações através de avanços que constituíram e constituem o pro- cesso contemporâneo desta prática. Em 1979, o Brasil recebe a visi- ta do psiquiatra italiano Franco Ba- saglia, cujo discurso sobre a desins- titucionalização do aparato psiqui- átrico repercute no meio social e político que passa por contestações e desejos de mudança em uma soci- edade que vivencia um processo de abertura após anos de regime mili- tar ditatorial. Surge o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Men- tal – então um NMS – que fortaleci- do pela sociedade civil organizada e pelas primeiras experiências de desinstitucionalização, destacada- mente a experiência santista, cul- mina em 1989 com o movimento de Reforma Psiquiátrica, a criação do Projeto de Lei 3657 de autoria do deputado federal Paulo Delgado (PT- MG) – que dispõe sobre a supera- ção do manicômio e a construção de assistência substitutiva – e com a Luta Antimanicomial. Em janeiro de 1999, o referido projeto foi apro- vado no Senado, devendo, para tor- nar-se lei, ser aprovado em nova votação na Câmara. Em abril deste ano (2001) foi aprovado e sancio- nado pelo Presidente da República, tornando-se lei. Temos passado pouco mais de duas décadas (1979 – 1999), marcadas por indignação, contestação, lutas e conquistas sig- nificativas de um processo que se Amarante (1999: 48) destaca a dualidade do processo epistêmico científico dominante onde a natureza de um conceito ou teoria científica significa uma determinada forma pela qual o homem se relacio- na com a natureza. A ciência moder- na, de base predominantemente po- sitivista, vem exercitando um proces- so de objetivação da natureza, em que a relação que se estabelece é entre sujeitos epistêmicos, de um lado, e de coisas e objetos de outro. Esse autor ressalta o pensamen- to de Franco Basaglia, que diz que é preciso pôr a doença, e não o homem, entre parênteses, assim invertendo a tradição psiquiátrica e cientifica- mente moderna de objetivação do sujeito. Com tal inversão, se estabe- lece uma ruptura operada pela Luta Antimanicomial e pela Reforma Psi- quiátrica brasileira, de orientação basagliana, com o método da ciên- cia moderna. No dizer de Amarante (1999: 48), podemos conferir: Neste sentido, o que vimos deno- minando como Luta Antimanicomial, ou como Reforma Psiquiátrica, tem como princípio básico uma ruptura com essa tradição científica [a ciên- cia moderna ou paradigma dominan- te]. Em primeiro lugar, por romper com o processo de objetivação da loucura e do louco (inscrevendo a questão ho- mem-natureza ou a questão do nor- mal-patológico em termos éticos, isto é, de relação e não de objetivação). Em segundo lugar, por romper com o pro- cesso de patologização dos comporta- inspira em um conhecimento quepressupõe o diálogo como instru- mento da contratualidade estabe- lecida nos inter-relacionamentos, sendo assim, um processo delibe- radamente contra a opressão, onde é seguro afirmar a presença decisi- va dos pressupostos deste estudo – ou seja, do Paradigma Emergen- te e da atuação dos Novos Movi- mentos Sociais segundo Santos (1997a, 1998) – no âmbito da saú- de mental brasileira. A SAÚDE MENTAL BRASILEIRA NAS DUAS ÚLTIMAS DÉCADAS, MAIS PRECISAMENTE DE 1979 A 1999, PASSOU POR TRANSFORMAÇÕES ATRAVÉS DE AVANÇOS QUE CONSTITUÍRAM E CONSTITUEM O PROCESSO CONTEMPORÂNEO DESTA PRÁTICA Desinstitucionalização em Saúde Mental: considerações sobre o paradigma emergente Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 5-11, maio/ago. 2001 9 mentos humanos, com base em um pressusposto teleológico ou ontológi- co de normalidade. Daí advém o prin- cípio de colocar a doença mental en- tre parênteses, como forma de inver- ter a tradição psiquiátrica, que é a de colocar o homem entre parênteses para se ocupar da doença, como ressaltou Basaglia (Amarante, 1999: 48). E relembrando as quatro teses de Santos (1998), vejamos o que ain- da nos diz Amarante (1999: 49) so- bre a démarche de colocarmos a doença entre parênteses: Colocar um ‘fenômeno’ entre pa- rênteses representa uma importante demarcação epistemológica no âmbi- to da tradição do pensamento filosó- fico existencial: consiste na idéia de que o ‘fenômeno’ não existe em si, mas é construído pelo observador, é um constructo da ciência, e só existe enquanto inter-relação com o obser- vador. E, portanto, se o observador, sujeito do conhecimento, constrói o ‘fenômeno’, este é parte do primeiro, é parte de sua cultura e de sua sub- jetividade (Amarante, 1999: 49). Daí a complexidade e a comple- mentariedade da mudança em saú- de mental acentuada por Amaran- te (1999: 50), em pelo menos qua- tro campos: a) o teórico-conceitu- al; b) o técnico-assistencial; c) o jurídico-político e d) o sócio-cultu- ral. Ou seja, trata-se de uma inter- relação de reconstrução de concei- tos; de espaços substitutivos de sociabilidade de possibilidades plu- rais e singulares concretas para sujeitos concretos; de direito ao tra- balho, à família, aos amigos, ao cotidiano da vida social e coletiva; de solidariedade e inclusão de su- jeitos em desvantagem social. Assim o processo de desinstitu- cionalização da psiquiatria brasilei- ra, enquanto conhecimento e práti- ca centrados no paradigma emer- gente, inscreve-se na contra-mão do (1997b: 117), as “imagens desesta- bilizadoras” são os veículos, no tem- po presente, portadores das “inter- rogações poderosas” – “tomadas de posições apaixonadas, capazes de sentidos inesgotáveis”. As imagens, potencializam as interrogações ao flagrarem o fato de que “tudo de- pende de nós e tudo podia ser dife- rente e melhor”. PARA UM CONCEITO EMERGENTE DE SAÚDE MENTAL Para um conceito de saúde men- tal assentado no paradigma emer- gente é seguro indicar a necessida- de fundamental de se conhecer a historicidade da chamada psiquia- tria moderna, resguardando as suas conquistas e superando os limites por ela determinados, atendo-se no dizer de Santos ao “paradigma de um conhecimento prudente para uma vida decente”. Aqui faz-se oportuno reiterarmos a necessida- de de uma vigilância constante con- tra o atavismo manicomial real ou travestido na psiquiatrização do cotidiano ou no institucionalismo sutil, sobre o qual Amarante (1999: 49) ressalta a importância de estar- mos atentos e munidos com estra- tégias de enfrentamento capazes de identificar e propugnar “um certo olhar que classifica desclassifican- 2 Sobre esta questão confira por exemplo: FERNANDES, M. I. A.; SCARCELLI, I. R. & COSTA, E. S. (Orgs.), 1999. Fim de século: ainda manicômios? São Paulo: IPUSP. projeto científico, político e econô- mico dominante: o neoliberalismo2. Uma novidade fruto da concepção epistemológica que “se assenta na idéia de que não há só uma forma de conhecimento, mas várias, e de que é preciso optar pela que favore- ce a criação de imagens desestabi- lizadoras e a atitude de inconformis- mo perante elas”. Para Santos “...NÃO HÁ SÓ UMA FORMA DE CONHECIMENTO, MAS VÁRIAS, E DE QUE É PRECISO OPTAR PELA QUE FAVORECE A CRIAÇÃO DE IMAGENS DESESTABILIZADORAS E A ATITUDE DE INCONFORMISMO PERANTE ELAS” GUIMARÃES, J. et al. 10 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 5-11, maio/ago. 2001 do, que inclui excluindo, que nomeia desmerecendo, que vê sem olhar”. Não seria fácil a luta e manu- tenção de um tal paradigma emer- gente. No entanto, a saúde mental brasileira, nas duas últimas déca- das, tem demonstrado que é possí- vel. Hoje, embora o projeto neolibe- ral seja dominante e pululem trans- tornos/sofrimentos mentais e o gas- to público com internações psiquiá- tricas – que conforme dados do Mi- nistério da Saúde em apenas seis anos aumentou de 224 milhões de dólares em 1991 para aproximada- mente 370 milhões de dólares em 1996 (Ministério da Saúde apud Daúd Júnior, 1999: 65-6) – vemos a redução palpável do hospitalocen- trismo psiquiátrico e a implemen- tação de serviços substitutivos em 26 dos 27 Estados do Brasil (Alves, 1999). Serviços substitutivos, ou seja, serviços que, mais do que al- ternativas, preconizam a substitui- ção do modelo manicomial, notoria- mente iatrogênico. Serviços substi- tutivos pautados numa nova cidada- nia e numa nova ética, que superem a cidadania social e a ética política da responsabilidade liberal voltada apenas para a reciprocidade entre direitos e deveres, buscando uma ci- dadania que, somada à subjetivida- de emancipatória, seja nova e esteja atenta às novas formas de exclusão social (Santos, 1997a). Apontamos como possibilidade de ampliação das estratégias de enfrentamento em prol desta nova cidadania, as ‘imagens desestabili- zadoras’ e as ‘interrogações pode- rosas’ de que fala Santos (1997b: 117-8), que, além de comprometi- das com a transformação do real, lançam um desafio que potencializa a indignação, o inconformismo e a ação qualitativamente emancipató- ria. As ‘interrogações poderosas’ são as que nos fazem refletir sobre realidade que poderia ser melhor. Imagens desestabilizadoras não nos falta no âmbito da saúde mental brasileira e as interrogações pode- rosas, felizmente, estão em nosso meio, pelo menos, há duas décadas. De tais imagens e interrogações nas- ce o vértice do tripé: a realização de uma nova prática. Retomando as teses de Santos (1998: 37-58) sobre o paradigma emergente, podemos inferir que: • todo o conhecimento científico transmitido nos órgãos forma- dores, reproduzido e (re)criado nas instituições e entidades que atuam com o processo saúde/ doença mental, é essencialmen- te um conhecimento científico- social e como tal, não é neutro, resulta de escolhas cotidianas e prática política; • sendo o conhecimento local e to- tal, quando apreendemos e so- cializamos através das experi- ências e vivências de trabalhos em saúde mental, estamos (re)criando esse conhecimento, e contribuindo para a mudança ou a reprodução do “discurso competente”3 sobre a saúde, a doença e o doente mental; • que todo o conhecimento técni- co-científico e ético-político so- bre saúde mental, com o qual atuamos, na cotidianidade de 3 Confira CHAUÍ, M. de S., 1989. Cultura e Democracia: o discurso competente e outras falas. 4 ed. São Paulo: Cortez. o motivo, a causa dos acontecimen- tos e trazem em si o traço de seremmais relevantes do que as próprias respostas – “como interrogar de modo que a interrogação seja mais partilhada do que as respostas que lhe forem dadas?” – As ‘imagens desestabilizadoras’ são as que su- primem do presente a característica de inculpável, trazendo à tona uma SERVIÇOS SUBSTITUTIVOS PAUTADOS NUMA NOVA CIDADANIA E NUMA NOVA ÉTICA, QUE SUPEREM A CIDADANIA SOCIAL E A ÉTICA POLÍTICA DA RESPONSABILIDADE LIBERAL VOLTADA APENAS PARA A RECIPROCIDADE ENTRE DIREITOS E DEVERES Desinstitucionalização em Saúde Mental: considerações sobre o paradigma emergente Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 5-11, maio/ago. 2001 11 nossa prática no âmbito das ins- tituições de ensino, nos servi- ços de saúde e movimentos so- ciais, constituem-se como par- te do autoconhecimento de nos- sas subjetividades e das respec- tivas interlocuções entre socie- dade e indivíduo; entre a vida no âmbito público e no privado; en- tre os sujeitos sociais e estrutu- ras de micro e macro poder polí- tico. Dessa forma, podemos in- tervir nesse processo, na pers- pectiva de melhorá-lo, a partir de nossas contribuições cotidianas individuais e coletivas; • considerando que todo o conhe- cimento científico visa consti- tuir-se em senso comum, a pers- pectiva de mudança do paradig- ma emergente na saúde mental, caminha no sentido da pro- posta de uma visão do ser doente mental como sujeito, como cidadão, respeitado em sua alteridade, abandonando a visão do doente como ‘um ser perigoso’, anormal, excluído. En- fim, contribuindo para a gera- ção de um imaginário coletivo onde o ‘trem dos doidos de Bar- bacena’, o ‘beribéri do São João de Deus’, a ‘imensidão lotada do Juquery’, e tantos outros emble- mas/realidades similares cruas ou maquiadas que conhecemos na assistência ao sofrimento psí- quico, não sejam mais toleradas na sociedade brasileira. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALVES, D. S., 1999. O “Ex” – tentando ver o futuro. Cadernos IPUB / Ins- tituto de Psiquiatria da UFRJ, NO 14: p.21-30. AMARANTE, P., 1999. Manicômio e loucura no final do século e do milênio. In: FERNANDES, M. I. A.; SCARCELLI, I. R. & COSTA, E. S. (Orgs.) Fim de século: ainda manicô- mios? São Paulo: Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, p. 47-53. CHAUÍ, M. de S., 1989. Cultura e Democracia: o discurso competen- te e outras falas. 4 ed. São Paulo: Cortez, 309p. DAÚD JÚNIOR, N., 1999. Neoliberalismo, luta antimanicomial e pós- neoliberalismo. In: FERNANDES, M. I. A.; SCARCELLI, I. R. & COSTA, E. S. (Orgs.) Fim de século: ainda manicômios? São Paulo: Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, p. 57-73. FERNANDES, M. I. A.; SCARCELLI, I. R. & COSTA, E. S. (Orgs.) Fim de século: ainda manicômios? São Paulo: Instituto de Psicologia da Univer- sidade de São Paulo, 208p. SADER, E., 1990. A transição no Brasil: da ditadura à democracia? 6 ed. São Paulo: Atual, 92p. (Série história viva). SANTOS, B. de S., 1989. Introdução a uma ciência pós-moderna. Rio de Janeiro: Graal, 176p. SANTOS, B. de S., 1997a. Pela mão de Alice: o social e o político na pós- modernidade. 3 ed. São Paulo: Cortez, 348p. SANTOS, B. de S., 1997b. A queda do Angelus Novus: para além da equação moderna entre raízes e opções. NOVOS ESTUDOS – CEBRAP. No 47: p.103–124. Pu- blicacão quadrimestral do Centro Brasileiro de Análises e Planeja- mento (CEBRAP). SANTOS, B. de S., 1998. Um discurso sobre as ciências. 10 ed. Porto: Afrontamento, 58p. COSTA-ROSA, A. da, LUZIO, C. A. & YASUI, S. 12 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001 ARTIGOS ORIGINAIS As Conferências Nacionais de Saúde Mental e as premissas do Modo Psicossocial The National Conferences of Mental Health and the premises of the psychosocial way Abílio da Costa-Rosa1 Cristina Amélia Luzio2 Silvio Yasui3 1 Professor assistente-doutor do Departamento de Psicologia Clínica da Universidade Estadual Paulista, campus Assis, doutor em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo; psicanalista e analista institucional. e-mail: abiliocr@assis.unesp.br 2 Professora assistente do Departamento de Psicologia Clínica da Universidade Estadual Paulista, campus Assis, doutoranda em Saúde Coletiva na Universidade de Campinas. e-mail: caluzio@assis.unesp.br 3 Professor assistente do Departamento de Psicologia Evolutiva, Social e Escolar da Universidade Paulista, campus Assis, doutorando em Psicologia Social na Universidade de São Paulo. e-mail: syasui@assis.unesp.br RESUMO O presente artigo pretende analisar as proposições básicas e os marcos conceituais das duas conferências nacionais de saúde mental ocorridas até o momento, à luz dos parâmetros do Modo Psicossocial construídos por Costa-Rosa. Pretende-se, também, indicar a sua exeqüibilidade nos dispositivos construídos pelas práticas de Atenção Psicossocial, que têm proposto superar a lógica manicomial, observar os avanços e retrocessos do processo de estratégia de hegemonia na saúde mental. Finaliza apresentando alguns pontos para uma proposta de agenda de discussão. PALAVRAS-CHAVE: atenção psicossocial; políticas públicas; conferências nacionais de saúde mental. ABSTRACT The present article intends to analyze the basic propositions and the conceptual marks of the two Mental Health National Conferences that have occurred up until now, under the light of the Psychosocial Way parameters built by Costa-Rosa. It is intended, also, to indicate its feasibility in devices built by Psychosocial Attention's practices, that intend to overcome the manicomial logic, to observe the progresses and setbacks of the hegemony strategy process in mental health. It concludes presenting a few points for a proposed discussion. KEY WORDS: psychosocial attention; public politics; national conferences of mental health. As Conferências Nacionais de Saúde Mental e as Premissas do Modo Psicossocial Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001 13 INTRODUÇÃO Neste artigo retomamos os ‘mar- cos conceituais’ e as proposições básicas das duas conferências na- cionais de saúde mental ocorridas até o momento, a fim de efetuar- mos uma análise à luz dos parâ- metros do Modo Psicossocial (Cos- ta-Rosa, 2000:141-168). Pretende- mos, ao mesmo tempo, indicar a sua exeqüibilidade nos dispositivos construídos pelas práticas de Aten- ção Psicossocial que têm proposto superar a lógica manicomial. PRIMEIRA CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE MENTAL (CNSM) Proposições gerais: concepção de saúde, participação popular, ci- dadania e interesses dos usuários. Em junho de 1987, como des- dobramento da histórica 8a Confe- rência Nacional de Saúde de 1986, ocorreu, na cidade do Rio de Janei- ro, a I Conferência Nacional de Saú- de Mental (CNSM). A Conferência foi realizada em um clima de intensas discussões e o seu relatório final ficou para a história do movimento da reforma psiquiátri- ca, que fez prevalecer suas teses em praticamente todos os temas. No tema I – Economia, Socieda- de e Estado: impactos sobre a saú- de e doença mental, o relatório ana- lisa o modelo econômico altamen- te concentrador brasileiro, apontan- do para a necessidade de se ampli- ar o conceito de saúde, consideran- do em seus determinantes as con- dições materiais de vida. Destaca- mos o seguinte trecho: Situando a saúde mental no bojo da luta de classes, podemos afirmar que seu papel tem consis- tido na classificação e exclusão dos ‘incapacitados’ para a produção(...) É urgente pois o reconhecimen- to da função de dominação dos tra- balhadores de saúde mental e a sua Único de Saúde, com garantia da participação popular. No plano as- sistencial, aponta para os mesmos princípios já consagrados, tais como reversão da tendência hospi- talocêntrica, com prioridade para o sistema extra-hospitalar. Por fim, no tema III – Cidada- nia e Doença mental: direitos, de- veres e legislação, o relatório rea- firma, também, teses do Movimen- to Sanitário, sugerindo inclusões no texto constitucional no que se refere ao direito à saúde e propon- do reformulações da legislação or- dinária que trata especificamente da saúde mental, ou seja: Código Civil; Código Penal e legislação sa- nitária; propõe, ainda, modifica- ções na legislação trabalhista, considerando a interface trabalho/ saúde mental. O texto do relatório demonstra uma estreita vinculação entre o Movimento Sanitário e o Movi- mento da Reforma Psiquiátrica. Ambos tratam a saúde como uma questão revolucionária, no eixo da luta pela transformação da socie- dade. Aponta, especificamente, aos trabalhadores de saúde men- tal, a necessária revisão de seu papel de agentes de exclusão e de dominação, para reorientá-lo na direção de uma identidade com os interesses da classe trabalhadora. Estão presentes nesse documento oficial, não apenas propostas téc- nicas, mas argumentos e proposi- ções que engajam o processo de revisão crítica, redefinindo seu pa- pel, reorientando a sua prática e configurando a sua identidade ao lado das classes trabalhadoras. (BRASIL/MS, 1992:15) No tema II – Reforma Sanitária e reorganização da assistência à saúde mental, o relatório reafirma as teses do Movimento Sanitário, introduzindo a especificidade da saúde mental no contexto de suas diretrizes e princípios, apontando para a constituição de um Sistema EM JUNHO DE 1987, COMO DESDOBRAMENTO DA HISTÓRICA 8A CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE DE 1986, OCORREU, NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO, A I CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE MENTAL (CNSM) COSTA-ROSA, A. da, LUZIO, C. A. & YASUI, S. 14 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001 transformação de um setor espe- cifico da saúde, a saúde mental, em uma luta que transcende essa especificidade, vinculando-a à luta pela transformação da socie- dade. Mas foi apenas mais um do- cumento oficial, talvez o primeiro que colocou a questão da saúde mental nessa perspectiva da luta entre os interesses de classes. O Modo Psicossocial e a I Conferência Nacional de Saúde Mental Costa-Rosa (2000:151-164), conceitua o Modo Psicossocial de acordo com quatro parâmetros fun- damentais, que podemos definir, su- cintamente, nos seguintes termos: • em relação à concepção do ‘ob- jeto’ e dos meios de trabalho preconiza a implicação subje- tiva do usuário, o que pressu- põe a superação do modo de relação sujeito-objeto caracte- rístico do modelo médico e das disciplinas especializadas que ainda se pautam pelas ciênci- as positivas. Preconiza-se, ao mesmo tempo, a horizontali- zação das relações interprofis- sionais como condição básica para a horizontalização das relações com os usuários e a população da área; • no que diz respeito às formas de organização das relações in- trainstitucionais preconiza-se a sua horizontalização, com a distinção obrigatória entre as esferas do poder decisório, de origem política e as esferas do poder de coordenação, de natu- reza mais operativa. Esta reo- rientação das relações intrains- titucionais vai na mesma dire- ção das relações especificamen- te interprofissionais e faz parte dos requisitos necessários para o exercício da subjetivação sin- gularizada que é meta cara ao Modo Psicossocial; • quanto à forma como a insti- tuição se situa no espaço geo- gráfico, no imaginário e no simbólico o Modo Psicossocial preconiza antes de tudo a in- tegralidade das ações no terri- tório. Além disso ao preconizar o posicionamento da institui- ção como espaço de interlocu- ção, como instância de ‘supos- to saber’ e, ao fazer dela um espaço de absoluta e intensa porosidade em relação ao ter- ritório, praticamente subverte a própria natureza da institui- ção como dispositivo. A natu- reza da instituição como orga- nização fica modificada e o lo- cal de execução de suas práti- cas desloca-se do antigo inte- rior da instituição para tomar o próprio território como refe- rência. A instituição, enquan- to equipamento, posiciona-se num foco em que se entrecru- zam as diferentes linhas de ação no território e para onde podem remeter-se as primeiras pulsações da Demanda; • destacando a ética dos efeitos das práticas em saúde mental, o Modo Psicossocial preconiza a superação da ética da adapta- ção, que tem seu suporte nas ações de tratamento como rever- sibilidade dos problemas e na adequação do indivíduo ao meio e do ego à realidade. Ao propor suas ações na perspectiva de uma ética de duplo eixo, que considera por um lado a relação sujeito-desejo e por outro a di- mensão carecimento-Ideais1, deixa firmada a meta da produ- 1 Carecimento, por oposição ao conceito de carência ou de necessidade, abarca uma dimensão do homem que inclui o desejo (como propõe a psicanálise) e toda a abertura do homem para os Ideais, possíveis ou não de imediato. Mas inclui também a abertura para a produção e usufruto de todos os bens da produção social, muito além do preenchimento de necessidades, e que, muito mais que estas, correspondem à especificida- de humana. Pode-se considerar que aqui estão incluídas também as criações da Filosofia, da Arte, da Ciência, e até da Religião, mas não sem passar pela aspiração pertinente ao usufruto das comodidades socialmente produzidas no mais alto grau da sua evolução histórica, tal como encontrado em Marx nos Manuscritos de 1844. Quanto aos Ideais, na mesma perspectiva do conceito de desejo, é preciso sublinhar seu caráter além da dimenção teleológica. (Costa-Rosa, 2000:162) As Conferências Nacionais de Saúde Mental e as Premissas do Modo Psicossocial Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001 15 ção de subjetividade singulari- zada, tanto nas relações imedi- atas com o usuário propriamen- te dito, quanto nas relações com toda a população do território. Retornando às proposições da I CNSM, em primeiro lugar merece destaque a proposta de ampliação do conceito de saúde, incluindo em seus determinantes as condições gerais de vida. Além de sua sintonia com os princípios gerais da Refor- ma Sanitária, podemos indicar, ain- da, o alinhamento dessa preocupa- ção com as do campo da Atenção Psicossocial, que insistem, de mo- dos diversos, na reformulação da concepção do ‘objeto’ das práticas em saúde mental. Essa ampliação da definição é sem dúvida um bom pon- to de partida para tal reformulação. Outra proposição que deve ser sublinhada diz respeito à exigência da ‘participação popular’ na saúde mental. Além de uma proposta co- erente com a ética da participação geral do cidadão na vida social, é fundamental percebermos sua coe- rência com a ética da Atenção Psi- cossocial. Uma série de evidências apontam as relações diretas exis- tentes entre as formas da organi- zação intrainstitucional e as formas como essa instituição (através de seus agentes) se dirige e se relacio- na com a clientela e a população de sua área de ação. Se nas práticas da Atenção Psicossocial a exigên- cia da superação do paradigma su- jeito-objeto é um objetivo funda- mental,parece mais do que justifi- cado que a participação popular nas instituições seja elevada à catego- ria de dispositivo necessário, não apenas contingente. Por outro lado, o Modo Psicossocial propõe que a ética da implicação subjetiva e so- ciocultural dos usuários das insti- tuições de saúde mental nos con- flitos e contradições que os atraves- sam, fazendo-os procurarem ajuda, seja um componente essencial da Atenção. Essa implicação do sujei- exclusão e dominação, ao mesmo tempo propondo sua reorientação na direção dos interesses da classe trabalhadora. Esta é mais uma pro- posição que ultrapassa os interes- ses ético-políticos globais. Sua tra- dução nos pressupostos do Modo Psicossocial exige um percurso um pouco mais complexo. Antes de tudo é preciso firmarmos uma con- ceituação de Sociedade como arti- culação de interesses contraditóri- os, num processo político-social que Gramsci denominou Processo de Estratégia de Hegemonia (PEH). A seguir temos de recorrer a uma das proposições importantes do Modo Psicossocial, que conceitua as prá- ticas em saúde mental neste mo- mento histórico, como conjunto ar- ticulado (nos mesmos termos do PEH), podendo aí designar-se dois pólos bem configurados e com ló- gicas contraditórias: o Modo Asilar e o Modo Psicossocial. (Costa-Rosa, 2000:141-168). Uma vez colocados na situação de trabalhadores de saúde mental não há como escapar ao alinhamen- to com uma dessas lógicas. É fácil demonstrar que a lógica asilar é perfeitamente congruente com a do Modo Capitalista de Produção, na qual os interesses dos usuários são inequivocamente subordinados aos interesses do Hospital. A proposi- ção de se alinhar com os interesses dos usuários é, portanto, uma exi- gência inadiável dos que pretendem fazer das práticas em saúde men- to na sua situação específica nun- ca poderia ser realizada se, no con- texto mais amplo da sua existên- cia, o exercício dessa implicação lhe fosse negado. No Modo Psicossoci- al o engajamento subjetivo e socio- cultural são indissociáveis da defi- nição de saúde mental. Um terceiro aspecto, que é opor- tuno sublinhar, refere-se à concla- mação dos trabalhadores da área a reverem os riscos, ou mesmo, a efe- tivação do seu papel de agentes de RETORNANDO ÀS PROPOSIÇÕES DA I CNSM, EM PRIMEIRO LUGAR MERECE DESTAQUE A PROPOSTA DE AMPLIAÇÃO DO CONCEITO DE SAÚDE, INCLUINDO EM SEUS DETERMINANTES AS CONDIÇÕES GERAIS DE VIDA COSTA-ROSA, A. da, LUZIO, C. A. & YASUI, S. 16 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001 tal dispositivos alternativos ao Modo Asilar; ou seja, práticas ca- pazes da produção de subjetivida- de singularizada, em que os lucros principais das ações de produção de saúde sejam apropriados pelos usu- ários das instituições, como pólo socialmente subordinado. Observamos, de modo geral, como parece justo esperar por tratar-se da I CNSM, uma ênfase em proposições na esfera político-ideológica e no âmbito jurídico. Pode-se notar clara- mente, agora, como ali se tratava de produzir bases para as propostas e experiências práticas que viriam, na seqüência, exercitar outras lógicas contrárias à asilar. Deve-se registrar, ainda, que a proposição antimanico- mial, que vai atravessar os passos de boa parte das práticas da Reforma Psiquiátrica, até os dias de hoje, já se apresenta aí bem clara e plena- mente afirmada. A SEGUNDA CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE MENTAL Proposições gerais: Atenção Integral Territorializada, direitos e terapêutica cidadã Quatro anos depois, em dezem- bro de 1992, foi realizada a II Con- ferência Nacional de Saúde Mental (II CNSM) com uma organização di- ferente da anterior. Precedida de etapas municipais, regionais e es- taduais, que contaram com o envol- vimento direto de cerca de vinte mil pessoas, a etapa nacional contou com a participação de quinhentos delegados eleitos nas conferências estaduais, com composição paritá- ria dos dois segmentos: usuários e sociedade civil, governo e prestado- res de serviços. Diversos pontos do relatório, aprovados na plenária final, tive- ram a defesa emocionada e firme dos usuários. Foram discutidos três grandes temas: crise, democracia e reforma visão integrada das várias dimensões humanas da vida do indivíduo, em diferentes e múltiplos âmbitos de in- tervenção (educativo, assistencial e de reabilitação). (Brasil-MS,1994:13) Reafirma os princípios da uni- versalidade, integralidade, eqüida- de, descentralização, participação popular e municipalização, propon- do a substituição do modelo hospi- talocêntrico por uma rede de servi- ços, diversificada e qualificada, e a intensificação da desospitalização através dos programas públicos de lares e pensões protegidas. Propõe, também, a articulação com os recur- sos existentes na comunidade e a necessária transformação das rela- ções cotidianas entre trabalhadores de saúde mental, usuários, famílias, comunidade e serviços, em busca da desinstitucionalização, bem como da humanização das relações no campo da saúde mental. (Idem:16) Chama a atenção para uma ne- cessária construção coletiva de prá- ticas e saberes cotidianos que con- sidere: o trabalho em equipe, ou- tros campos de conhecimento e os saberes populares. Por fim, desta- ca a relação entre cidadania, Esta- do e Sociedade, propondo estimu- lar a organização dos cidadãos em associações comunitárias, altera- ções na legislação e ações no cam- po da informação e educação. Em sua segunda parte, o relató- rio apresenta inúmeras propostas relativas à atenção em saúde men- psiquiátrica; modelos de atenção em saúde mental; direitos e cida- dania. O relatório final subdivide- se em três partes: marcos conceitu- ais; atenção à saúde mental e mu- nicipalização; direitos e legislação. Em sua primeira parte, o relató- rio aponta a atenção integral e cida- dania como conceitos direcionado- res das deliberações da Conferência. A atenção integral deverá propor um conjunto de dispositivos sanitári- os e socioculturais que partam de uma EM DEZEMBRO DE 1992, FOI REALIZADA A II CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE MENTAL (II CNSM) COM UMA ORGANIZAÇÃO DIFERENTE DA ANTERIOR As Conferências Nacionais de Saúde Mental e as Premissas do Modo Psicossocial Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001 17 tal e municipalização. No capítulo sobre as recomendações gerais, além de reafirmar o princípio da munici- palização, acrescentou a proposta de utilização dos conceitos de território e responsabilidade como dispositivos para uma ruptura com o modelo hos- pitalocêntrico. Finaliza essa segun- da parte com propostas para a capa- citação dos trabalhadores de saúde, sobre as relações no trabalho em ter- mos de organização e conquista de direitos, e sobre a promoção de pes- quisas voltadas para a investigação epidemiológica e sócio-antropológi- cas e para a avaliação da rede de atenção em saúde mental. A terceira parte do relatório apre- senta propostas referentes ao tema Direitos e Legislação. São cinco ca- pítulos abrangendo os seguintes te- mas: questões gerais sobre uma ne- cessária revisão legal; direitos civis e cidadania; direitos trabalhistas; drogas e legislação; direitos dos usu- ários. Talvez tenha sido a parte do relatório na qual os usuários parti- ciparam de forma mais ativa, espe- cialmente na plenária final. Realizada em circunstâncias históricas distintas da I CNSM, cujo relatório apresentava diversas pro- posições de caráterpolítico, o texto da II CNSM não foi tão contunden- te na crítica ao modelo econômico nem ao momento político que se estava vivendo. Embora aquelas questões estivessem como pano de fundo, o relatório era muito mais extenso e específico nas questões da saúde mental. A II CNSM foi realizada em um momento em que diversas experi- ências já estavam consolidadas e espalhando-se pelo país;2 já exis- tia uma lei, aprovada na Câmara dos Deputados e tramitando no Se- nado, e leis estaduais aprovadas ou em tramitação; já existiam dispo- sitivos institucionais (portarias mi- O Modo Psicossocial e a II Conferência Nacional de Saúde Mental. Podemos considerar como de significativa relevância o fato de que os ‘marcos conceituais’ do RE- LATÓRIO DA SEGUNDA CONFE- RÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE MENTAL, realizada em 1992, este- jam perfeitamente em sintonia com as premissas gerais do Modo Psi- cossocial para os tratamentos psí- quicos na Saúde Coletiva. Ainda que se possa considerar que tais marcos conceituais este- jam muito mais na perspectiva de transformações na esfera político- ideológica, eles podem ser tradu- zidos em dispositivos teórico-prá- ticos, capazes de fazerem de pre- ceitos gerais, verdadeiros instru- mentos de transformação das prá- ticas cotidianas nas instituições de saúde mental, sobretudo das relações destas com os usuários e com a população das suas áreas de referência. Senão vejamos: 1. “I. ATENÇÃO INTEGRAL E CI- DADANIA são conceitos direciona- dores das deliberações da II Confe- rência Nacional de Saúde Mental”. (Brasil/MS,1994:11) Definir a integralidade da con- cepção e do exercício dos programas e ações implica operar uma série de 2 Como exemplo, o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) Luiz Cerqueira já era uma realidade consolidada, o Programa de Saúde Mental de Santos já era reconhecido internacionalmente como experiência modelar, inclusive pela Organização Pan-americana de Saúde (OPAS). nisteriais) que possibilitavam a im- plantação de novos serviços e au- mentavam a fiscalização dos hos- pitais; já existiam diversas associ- ações de usuários atuando ativa- mente pelo país. Ou seja, estava em curso um processo de transforma- ção da saúde mental no campo teó- rico, no campo assistencial, no cam- po jurídico e no campo cultural. ESTAVA EM CURSO UM PROCESSO DE TRANSFORMAÇÃO DA SAÚDE MENTAL NO CAMPO TEÓRICO, NO CAMPO ASSISTENCIAL, NO CAMPO JURÍDICO E NO CAMPO CULTURAL COSTA-ROSA, A. da, LUZIO, C. A. & YASUI, S. 18 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001 transformações no modo de traba- lho. Estas transformações é que são condição para o exercício de ações integrais, e ao mesmo tempo cons- tituem a base para a efetivação de um princípio de cidadania nas prá- ticas dos trabalhadores de saúde mental que seja coerente com a meta da singularização. Na perspectiva do Modo Psicos- social é de fundamental importân- cia que se tenha proposto a aten- ção integral e a cidadania como conceitos direcionadores, mas não se pode perder de vista, por outro lado, o conjunto dos passos concre- tos que ainda precisam ser dados para estar no exercício efetivo de ações integrais em Saúde e de cida- dania singularizada. Também não podemos esquecer que a integrali- dade, supondo o conceito de Terri- tório, deve ocorrer simultaneamen- te em extensão e profundidade, su- perando as mazelas da Atenção es- tratificada por níveis (primário, se- cundário e terciário). 2. “II. A democratização do Es- tado com o controle da sociedade ci- vil é fundamento do direito à cida- dania e da transformação da legis- lação de saúde mental”. (idem:11) Esta diretriz, colocada em âm- bito de análise política da Forma- ção Social global é muito pertinen- te, porém é necessário aproximá- la das nossas esferas cotidianas de ação. Desse modo, ao preconi- zar a democratização das institui- ções e de suas relações com os usuários e com a população, e a partir da condição de trabalhado- res da Saúde, cuida-se da aplica- ção daquela diretriz. Uma das maneiras mais eficazes de cumprir, nesta esfera de atuação, a diretriz de controle social, pela sociedade civil, é pondo em prática disposi- tivos como os conselhos ‘gestores de unidades de saúde’ e como os ‘conselhos comunitários de saú- 3. “III. O processo saúde/doença mental deverá ser entendido a par- tir de uma perspectiva contextuali- zada, onde qualidade e modo de vida são determinantes para a compre- ensão do sujeito, sendo de impor- tância fundamental vincular o con- ceito de saúde ao exercício de cida- dania, respeitando-se as diferenças e as diversidades”. (idem, idem) 3.1. Contextualizar o processo saúde/doença exige várias opera- ções articuladas: Primeira: o Modo Psicossocial preconiza uma definição de saúde numa perspectiva que a contextua- lize em relação a uma concepção de sociedade, entendida como conjun- to de interesses contraditórios arti- culados, possíveis de serem descri- tos e compreendidos através do con- ceito de Processo de Estratégia de Hegemonia (PEH). Essa contextua- lização, nos termos do PEH, obriga a considerar a própria luta por saú- de, tanto entendida como estado das condições de vida, quanto en- tendida como reivindicação de cui- dados de saúde, como componente da própria definição de saúde. Segunda: no Modo Psicossocial define-se a especificidade da saúde mental, de tal modo que se visualiza a participação da dimensão sociocul- tural como intrínseca ao próprio pro- cesso de subjetivação. Desse modo a própria forma de atravessamento da dimensão sócio-simbólica pode ser parte constitutiva dos problemas que de’, aliás, instrumentos já garan- tidos na constituição do país. Além disso devemos lembrar que as metas de livre trânsito dos usuá- rios pelas instituições e de sua participação direta na instituição, preconizadas pelo Modo Psicosso- cial, podem ser implementadas cri- ando condições para que os con- selhos e comissões de usuários e população participem em esferas da instituição relacionadas com o poder decisório. NA PERSPECTIVA DO MODO PSICOSSOCIAL É DE FUNDAMENTAL IMPORTÂNCIA QUE SE TENHA PROPOSTO A ATENÇÃO INTEGRAL E A CIDADANIA COMO CONCEITOS DIRECIONADORES As Conferências Nacionais de Saúde Mental e as Premissas do Modo Psicossocial Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001 19 tendem a apresentar-se como típicos ou preponderantes numa determina- da conjuntura histórico-social. Terceira, o Modo Psicossocial inclui em sua caracterização a consideração da especificidade da saúde mental com a inclusão da própria noção de ‘crise’ como seu componente estrutural. Ou seja, dada a concepção de saúde que inclui em sua definição a partici- pação ativa do homem na busca de melhores condições de vida e de melhor atendimento à saúde, e dada a circunstância histórica de que a sociedade liberal - ainda mais gravemente nos contextos chamados de capitalismos depen- dentes - é conjunção de interes- ses contraditórios, portanto um processo que envolve luta e confli- to entre esses interesses, então só é possível conceber a saúde men- tal como um certo modo do posici- onamento subjetivo e sociocultu- ral dos indivíduos na conjuntura conflitiva particular que os atra- vessa e pela qual são atravessados. 3.2. Vincular o conceito de saúde ao exercício de cidadania, no âmbito das práticas em Saúde, é possível apenas em decorrência da própria contextualização da definição de saú-de nos termos acima propostos. Nes- te sentido também é importante não perder de vista algumas nuances in- cluídas na questão, que podem ser capciosas se tomadas em sentido muito estrito ou muito genérico. Dizer que o exercício de cidada- nia é resolutivo e preventivo de problemas psíquicos e mentais pode ser muito pertinente, porém isto está longe de significar que prevenção em saúde mental e tra- tamento psíquico em Saúde Cole- tiva possam ser reduzidos ao exer- cício de ações de cidadania, qual- quer que seja a definição em que se tome esta última. Disso resulta que o mais impor- tante é especificar quais são as con- prisma, não ignoramos as dramá- ticas condições de vida dos usuári- os do hospital psiquiátrico, cuja re- vogação há muito tarda. 4. “IV. A vida exige uma aborda- gem abrangente no campo da saú- de mental, capaz de romper com a usual e ainda hegemônica concep- ção compartimentalizada do sujei- to, com as dissociações mente/cor- po e trabalho/prazer ...”. Refletida em: a) “Mudança no modo de pen- sar a pessoa com transtornos men- tais em sua existência-sofrimento, e não apenas a partir do seu diag- nóstico”; b) “Diversificação das re- ferências conceituais e operacionais, indo além das fronteiras delimita- das pelas profissões clássicas em saúde mental”; c) “uma ética da autonomia e singularização que rompa com o conjunto de mecanis- mos institucionais e técnicos em Saúde, que têm produzido, nos últi- mos séculos, subjetividades proscri- tas e prescritas.” (idem:11-12) Este talvez seja, entre todos os outros, o marco conceitual mais complexo. Isto se deve ao fato de aí se mesclarem, como veremos, as- pectos teórico-técnicos e éticos: 4.1. Para mudarmos nossa ati- tude asilar, reformista e tecnicista diante da pessoa com transtornos psíquicos ou mentais, e considerá- la a partir de sua existência-sofri- mento, faz-se necessário especificar dições das próprias práticas em saúde mental, capazes de criar os meios de exercício de cidadania nas relações das instituições e dos tra- balhadores com os usuários e a po- pulação, e, ao mesmo tempo, mos- trar como essas condições podem estar em sintonia com a ética da ci- dadania singularizada e da produ- ção de subjetividade singularizada, explicitadas no Modo Psicossocial. É importante sublinhar, ainda, que, ao tomarmos a questão por esse É IMPORTANTE SUBLINHAR, AINDA, QUE, AO TOMARMOS A QUESTÃO POR ESSE PRISMA, NÃO IGNORAMOS AS DRAMÁTICAS CONDIÇÕES DE VIDA DOS USUÁRIOS DO HOSPITAL PSIQUIÁTRICO, CUJA REVOGAÇÃO HÁ MUITO TARDA COSTA-ROSA, A. da, LUZIO, C. A. & YASUI, S. 20 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001 uma concepção de subjetividade e de saúde psíquica que deixem cla- ro qual é o lugar e o estatuto das crises e dos diferentes desencadea- mentos problemáticos. É necessário dar às crises um lugar estrutural (depois de extirpa- das de sua porção indesejável e evi- tável). As crises só terão uma aco- lhida como efeitos estruturais e, portanto, também estruturantes, se elas forem concebidas como inte- grantes do modo de o sujeito se po- sicionar em relação às conjunturas conflitivas (subjetivas e sociocultu- rais) que os atravessam. Apenas numa concepção de saúde psíquica assim formulada será possível con- siderar seriamente os indivíduos como ‘existência-sofrimento’. Também já sabemos que esta diretriz da II Conferência Nacional de Saúde Mental sai explicitamen- te do modelo italiano. Sobre isso, Rotelli et al. (1990:28), afirmam que para considerar, de fato, o in- divíduo como existência-sofrimen- to é ‘preciso começar a desmontar a relação problema-solução, renun- ciando a perseguir aquela solução racional (tendencialmente ótima) que no caso é a normalidade ple- namente restabelecida’. O modelo italiano, do qual tam- bém é tributário o Modo Psicosso- cial, proclama que o mal da Psiquiatria está em haver separado um objeto fictício, a ‘doen- ça’, da existência global complexa e concreta dos pacientes e do corpo so- cial. Sobre essa separação artificial se construiu o conjunto de aparatos científicos, legislativos, administra- tivos (precisamente a ‘instituição’), todos referidos à ‘doença’. É este con- junto que se pretende desmontar (de- sinstitucionalizar) para retomar o contato com aquela existência dos pacientes, enquanto existência-sofri- mento. (idem, idem). O problema não é cura (a vida produtiva) mas a produção de vida sentir o sofrimento do ‘paciente’ e que, ao mesmo tempo, se transforme sua vida concreta e cotidiana, que ali- menta esse sofrimento (...) Por isso a festa, a comunidade difusa, a recon- versão contínua dos recursos insti- tucionais, e por isso solidariedade e afetividade se tornarão momentos e objetivos centrais... ( idem:30). Esta diretriz está perfeitamen- te em sintonia com o que, no Modo Psicossocial, se define em termos de implicação subjetiva e sociocultu- ral dos indivíduos que recorrem às instituições de saúde mental. 4.2. Para superarmos as referên- cias conceituais e operacionais, para além das profissões clássicas, serão necessárias pelo menos duas operações articuladas. Primeira, será preciso rever e modificar a concepção de saúde e doença e dos meios de tratamento decorrentes dos postulados psiqui- átricos, como detentores exclusivos ou preponderantes do saber sobre o psíquico e o humano neste con- texto. Isso só poderá ser feito rela- tivizando a importância das con- tribuições desse campo de saber, agregando-lhe de modo bastante radical (não apenas como acessó- rios) uma série de conceitos e téc- nicas geradas no campo da Psica- nálise e do Materialismo Históri- co, além de contribuições da Filo- sofia (filosofia da Diferença), da Arte e da Estética. e de sentido, de sociabilidade, a uti- lização das formas (dos espaços co- letivos) de convivência dispersa (idem:30). Assim, o modelo italiano assen- ta-se em uma redefenição do tra- balho terapêutico voltado para a re- constituição de pessoas enquanto pessoas que sofrem, como sujeitos (idem:33). Fala-se menos em cura do que em cuidado. Cuidar significa ...fazer com que se transformem os modos de viver e O MAL DA PSIQUIATRIA ESTÁ EM HAVER SEPARADO UM OBJETO FICTÍCIO, A ‘DOENÇA’, DA EXISTÊNCIA GLOBAL COMPLEXA E CONCRETA DOS PACIENTES E DO CORPO SOCIAL As Conferências Nacionais de Saúde Mental e as Premissas do Modo Psicossocial Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001 21 A segunda operação deverá con- sistir numa crítica à divisão do tra- balho tal qual ela está em ação des- de o primeiro momento em que se congregaram diferentes disciplinas no campo do saber e das práticas em saúde mental. Essa crítica terá que passar pela demonstração (como via para a superação) de que o modo da divisão do trabalho aí atuante é o mesmo que vige no con- texto da produção em geral e que tem sido chamado de modo taylo- rizado ou ‘linha de montagem’, (Costa-Rosa, 1987:222-252). Nesta linha de raciocínio é pos- sível demonstrar que essa frag- mentação do cliente e da própria subjetividade são os meios através dos quais se reproduzem as rela- ções sociais dominantes no contex- to social (as relações sociais de produção e de poder). Ao mesmo tempo será possível demonstrar que essas relações sociais domi- nantes (já conhecidas nossas com as seguintes fisionomias: como trabalho intelectual e decisório versus trabalho de execução, e sob a forma da própria cisão fragmen-tadora do processo de trabalho, por exemplo, em termos da separação entre momento diagnóstico e mo- mento terapêutico, mas não apenas) são alguns dos modos de expropria- ção, tanto de trabalhadores quanto de usuários, do excedente precioso, que é o equivalente da “mais-valia” no contexto das práticas em saúde mental. Ou seja, onde há muita re- produção há pouca produção; onde há subjetividade serializada falta subjetividade singularizada. Em suma, esta segunda opera- ção inclui a superação teórico-téc- nica e ideológica do modelo taylo- rista no processo de trabalho na saúde mental, e sua substituição por outro modo capaz de permitir que o saldo mais precioso do pro- cesso de trabalho ( a implicação subjetiva e a singularização) seja apropriado pelos trabalhadores e ciais em sintonia com o agencia- mento dos interesses sociais subor- dinados (intersubjetividade hori- zontal singularizada). 4.3. Para sustentar na prática uma ética da autonomia e da sin- gularização também será necessá- rio realizar no mínimo outras duas operações conjugadas. A primeira diz respeito à auto- nomia. A autonomia dos usuários só pode estar associada à autono- mia dos trabalhadores. A autono- mia dos trabalhadores e dos usuá- rios por sua vez associa-se à supe- ração dos modos de existência e funcionamento das instituições que são características do Modo Asilar. A organização da instituição de saúde mental como dispositivo se- gundo a mesma lógica das institui- ções típicas do Modo Capitalista de Produção (MCP) produz uma série de efeitos refletidos na sua ‘produ- ção’, que são desastrosos e às ve- zes letais. Há muito que teorizar e transformar a fim de driblar esse intermediário necessário (já que não dá para escapar neste momen- to histórico da intermediação da instituição nas práticas de Atenção) da relação dos trabalhadores de saúde mental e dos usuários. Mas o melhor começo será, sem dúvida, reconhecer essa intermediação e desvendar-lhe a anatomia para des- cobrir as operações que são neces- sárias para fazer esse intermediá- rio trabalhar a favor da ética que pelos usuários e posto a seu servi- ço – ao contrário do que acontece no Modo Asilar, em que é o inter- mediário, dono dos meios de pro- dução e das decisões do quê e como produzir, quem dele se apropria. Convém não perdermos de vista que a natureza desse excedente muda conforme o seu destinatário. Num caso dá-se como reprodução das relações sociais dominantes (sub- jetividade capitalista), no outro dá- se como recriação de relações so- A ORGANIZAÇÃO DA INSTITUIÇÃO DE SAÚDE MENTAL COMO DISPOSITIVO SEGUNDO A MESMA LÓGICA DAS INSTITUIÇÕES TÍPICAS DO MODO CAPITALISTA DE PRODUÇÃO (MCP) PRODUZ UMA SÉRIE DE EFEITOS REFLETIDOS NA SUA ‘PRODUÇÃO’, QUE SÃO DESASTROSOS E ÀS VEZES LETAIS COSTA-ROSA, A. da, LUZIO, C. A. & YASUI, S. 22 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001 preconizamos para nossas práticas de Atenção. Quanto a este aspecto também propomos retomar as di- retrizes de Modo Psicossocial em relação à instituição como disposi- tivo, e quanto ao modo de ela se situar em relação à clientela e ao território que lhe correspondem. A segunda operação a respeito da singularização inclui justamen- te a nossa capacidade de criar uma mínima sintonia (ainda que com concessões táticas inevitáveis) en- tre a forma de conceber e atuar as definições de saúde e doença e dos meios de tratamento; a forma das relações intrainstitucionais; a for- ma da relação da Instituição como equipamento com seus usuários e com o território; e, finalmente, como se concebe o estatuto de nos- sas ações em termos de performan- ce e de ética. A meta da singularização, no Modo só poderá ser almejada por uma concepção do ‘objeto’ e dos meios, e da relação dos dois, que seja capaz de atender à especifici- dade da subjetividade humana, e que inclua a própria ação e autode- terminação como constitutivas do homem. Ninguém trabalhará na subjetividade à revelia do sujeito, a não ser para a produção de efei- tos de destituição subjetiva. Para ser almejada e alcançada, a singularização dependerá de que a forma das relações sociais e huma- nas na instituição parta da horizon- talização como meta e, em alguma medida, seja vivida como exercício. Sem isto não há a menor plausibili- dade em propor a implicação subje- tiva e sociocultural do usuário e do trabalhador; sem estas parece-nos que não pode haver terapêutica na perspectiva da singularização. Apenas poderá ser meta realis- ta, na medida em que a instituição seja capaz de desfazer seu imagi- nário repressivo e segregador (pa- trimônio que neste momento histó- rico não é exclusividade do Hospi- so aos usuários e da população do território a todos os espaços insti- tucionais; criar modelos de recep- ção e de escuta das primeiras de- mandas, que sejam capazes de der- rogar os atuais balcões e filas de espera, construindo uma relação di- reta que permita à instituição situ- ar-se no imaginário e no simbólico como ‘sujeito-suposto-saber’, ou seja, que lhe permita funcionar como primeiro interlocutor e até como te- rapeuta, se for o caso, ali onde a ins- tituição está acostumada a pensar e agir apenas como ‘natureza morta’ ou, na melhor das hipóteses, como suporte das relações sociais da sua produção ali atualizadas. Finalmente, a singularização só poderá ser almejada como meta éti- ca realista se formos capazes de superar o modo da ética vigente nas práticas atuais do Modo Asi- lar. A atitude ética de uma prática em saúde mental pode ser decifra- da a partir de uma análise de seus efeitos de tratamento e cura e tam- bém através das finalidades socio- culturais para que concorrem es- ses efeitos. A ética da singulariza- ção terá que superar os modelos funcionalistas das práticas que tra- balham nos eixos da adequação do indivíduo ao meio e do ego à reali- dade, e no eixo da relação entre carências e suprimentos da mais variada natureza. Essa superação só poderá ser alcançada na perspectiva de uma prática que seja capaz de propor, tal Psiquiátrico). Isto, por sua vez, só será possível se os seus agentes forem capazes de fazer prevalecer ações que tendam a transformá-la em espaço privilegiado de interlo- cução para questões subjetivas e socioculturais. Para isso será neces- sário que tais agentes sejam capa- zes de rever, de forma drástica, sua representação da sintaxe e da se- mântica em termos lingüísticos e em termos dos conjuntos do arqui- tetônico e do mobiliário; abrir aces- A ATITUDE ÉTICA DE UMA PRÁTICA EM SAÚDE MENTAL PODE SER DECIFRADA A PARTIR DE UMA ANÁLISE DE SEUS EFEITOS DE TRATAMENTO E CURA E TAMBÉM ATRAVÉS DAS FINALIDADES SOCIOCULTURAIS PARA QUE CONCORREM ESSES EFEITOS As Conferências Nacionais de Saúde Mental e as Premissas do Modo Psicossocial Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001 23 como efeito principal das suas ações de tratamento, a implicação subjetiva como meta radical, na re- lação do sujeito com o desejo (por oposição ao ego-realidade) e na re- lação carecimento-Ideais (por opo- sição à carência-suprimento); dese- jo e carecimento considerados como o que mais essencialmente define a especificidade do homem. O PROCESSO DE ESTRATÉGIA DE HEGEMONIA NA SAÚDE MENTAL: AVANÇOS E RETROCESSOS Muitas das propostas apresen- tadas nas duas Conferências se con- cretizaram, como, por exemplo, a criação de lei federal, leis estadu- ais e municipais,
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