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Escola: Espaço do Projeto Político-Pedagógico Os textos, organizados de maneira a aprofundar a compreensão das complexas implicações do projeto político-pedagógico, mesclam-se a várias questões práticas enfrentadas diariamente pelos educadores, como a organização do trabalho escolar e o gerenciamento dos recursos financeiros na escola. Na proposta de fundir teoria e prática, o professor terá em mãos um livro rico em vivências educativas que trafegam pela diversidade multicultural, pelos dilemas dos processos avaliativos e das instâncias colegiadas sem perder de vista o desafio da construção da cidadania no interior das salas de aula e na escola. Escola Espaço do Projeto Político-Pedagógico Coleção Magistério - Formação e Trabalho Pedagógico Esta coleção que ora apresentamos visa reunir o melhor do pensamento teórico e crítico sobre a formação do educador e sobre seu trabalho, expondo através da diversidade de experiências dos autores que dela participam um leque de questões de grande relevância para o debate nacional sobre a Educação. Trabalhando a partir de duas vertentes básicas - magistério/formação profissional e magistério/trabalho pedagógico - os vários autores enfocam diferentes ângulos da problemática educacional, tais como - a orientação na pré-escola, a escola de 1 grau - currículo e ensino, a escola no meio rural, a prática pedagógica e o cotidiano da escola, estágio supervisionado, didática do ensino superior etc. Esperamos assim contribuir para a reflexão dos profissionais da área de educação e do público leitor em geral, visto que neste campo o questionamento é o primeiro passo na direção da melhoria da qualidade do ensino, o que afeta a todos nós e ao país. Ilma Passos Alencastro Veiga Coordenadora Sumário Apresentação 1. PERSPECTIVA PARA REFLEXÃO EM TORNO DO PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO Ilma Passos Alencastro Veiga 2. A PERSPECTIVA MULTICULTURAL NO PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO Lúcia Maria Gonçalves de Resende 3. EDUCAÇÃO PARA A CIDADANIA - O PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO COMO ELEMENTO ARTICULADOR Rosilda Baron Martins 4. A AÇÃO COLETIVA COMO REFERENCIAL PARA A ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO PEDAGÓGICO Maria Eveline Pinheiro 5. PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO, AUTONOMIA E REALIDADE ESCOLAR - ENTRAVES E CONTRIBUIÇÕES Luzia Borsato Cavagnari 6. AS INSTÂNCIAS COLEGIADAS DA ESCOLA Zilah de Passos Alencastro Veiga 7. AVANÇOS E RECUOS NA CONSTRUÇÃO DO PROJETO POLÍTICO- PEDAGÓGICO EM REDE DE ENSINO José Vieira de Sousa 8. A GESTÃO DOS RECURSOS FINANCEIROS NA ESCOLA Ana Maria de Albuquerque Moreira 9. O PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO E A AVALIAÇÃO Benigna Maria de Freitas Villas Boas APRESENTAÇÃO Escola: Espaço do projeto político-pedagógico apresenta um conjunto de trabalhos decorrentes de experiências educativas que envolvem pesquisas, docência e atividades de extensão, destacando-se aquelas relacionadas ao processo de formação continuada dos profissionais da educação. A trajetória acadêmica e profissional do grupo de autores constituiu-se em fator determinante na composição do presente livro por dois motivos fundamentais. De um lado, consolidou a existência do núcleo de pesquisa ligado a uma das linhas temáticas do programa de pós-graduação da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília-UnB, intitulada "Magistério: Formação e trabalho pedagógico"; de outro, propiciou a aproximação de profissionais da educação, articulando professor e aluno, graduação e pós-graduação, universidades e escola. Nessa perspectiva, o elo integrador dos capítulos está fundado nas diferentes vivências educativas e na pluralidade de espaços de atuação profissional, tanto do ponto de vista geográfico como da tipologia das instâncias de intervenção nas práticas pedagógicas analisadas. A temática central da obra aponta, então, para o vínculo entre as proposições teóricas sobre o projeto político-pedagógico e as diversas dimensões inerentes à sua concretização dialética no espaço escolar. Assim, é enfatizada a relação desse projeto com: a gestão tanto na escola como em esferas administrativo-pedagógicas intermediárias, a organização do trabalho escolar, os desafios multiculturais, a construção da cidadania, os dilemas dos processos avaliativos e das instâncias colegiadas e, finalmente, o gerenciamento dos recursos financeiros na escola. As reflexões aqui apresentadas e postas à disposição dos leitores contemplam a preocupação em aproximar os pressupostos teóricos à multiplicidade das práticas escolares. Não se inclui, todavia, entre os nossos propósitos imediatos, uma estruturação de cunho eminentemente acadêmico que, apresentando pretensões ambiciosas, represente construções paradigmáticas absolutamente originais em relação aos referenciais teórico-conceituais hoje discutidos. Ao contrário, buscamos aprofundar a compreensão dessa questão, na medida em que procuramos contribuir para o entendimento das ainda complexas imbricações do projeto político-pedagógico no contexto das várias possibilidades da organização do trabalho da escola. Finalizando, é importante ressaltar a opção metodológica de construção do livro que, como na construção do projeto político-pedagógico, se pautou no princípio da ação coletiva compartilhada, na medida em que os textos foram objeto de reflexão e enriquecimento, por todos os autores, visando assegurar a unicidade da temática. Os autores 8 1 PERSPECTIVAS PARA REFLEXÃO EM TORNO DO PROJETO POLÍTICO- PEDAGÓGICO Ilma Passos Alencastro Veiga* Projeto político-pedagógico: Um convite à reflexão O projeto pedagógico exige profunda reflexão sobre as finalidades da escola, assim como a explicitação de seu papel social e a clara definição de caminhos, formas operacionais e ações a serem empreendidas por todos os envolvidos com o processo educativo. Seu processo de construção aglutinará crenças, convicções, conhecimentos da comunidade escolar, do contexto social e científico, constituindo-se em compromisso político e pedagógico coletivo Ele precisa ser concebido com base nas diferenças existentes entre seus autores, sejam eles professores, equipe técnico- administrativa, pais, alunos e representantes da comunidade local. É, portanto, fruto de reflexão e investigação. Nesse sentido, e mediante observação e análise que se caracterizam por um contato direto do professor-pesquisador com a situação pesquisada e que vão ocorrendo ao longo de Bruno Realce Bruno Realce Bruno Realce um tempo, no dia-a-dia da escola, os profissionais, do seu cotidiano, observam o que ocorre, ouvem o que é dito, lêem o que é escrito, levantam questões, observam e registram tudo. Documentam o não-documentado, procurando entender como ocorrem no interior da escola e das salas de aula as relações pedagógicas, como é concebido, executado e avaliado o currículo escolar, quais atitudes, valores e crenças são perseguidos, quais as formas de, organização do trabalho pedagógico. Tais dados servem para clarificar ás questões prioritárias e propor alternativas de solução. André ( 1995, p. 111) afirma: Conhecer a escola mais de perto significa colocar uma lente de aumento na dinâmica das relações e interações que constituem seu dia-a-dia, apreendendo as forças que a impulsionam ou que a retêm, identificando as estruturas de poder e os modos de organização do trabalho escolar, analisando a dinâmica de cada sujeito nesse complexo interacional. Esse imprescindível esforço coletivo implica a seleção de valores a serem consolidados, a busca de pressupostos teóricos e metodológicos postulados por todos, a identificação das aspirações maiores das famílias, em relação ao papel da escola na educação da população e na contribuição específica que irá oferecer para "o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho" (art. 2° da Lei n° 9.394/96).A análise do contexto externo consiste no estudo do meio no qual a escola está inserida e das suas interações,, Para fazer a análise do contexto externo, é necessário identificar os principais participantes que interagem com a escola e analisar ás influências das dimensões geográficas, políticas, econômicas e culturais. No decorrer do processo de construção do projeto pedagógico, consideram-se dois momentos interligados e permeados pela avaliação: o da concepção é o da execução. Para que possam construir esse projeto, é necessário que as escolas, reconhecendo sua história e a relevância de sua contribuição, façam autocrítica e busquem uma nova forma de organização do trabalho pedagógico; que "reduza os efeitos da divisão do trabalho, da fragmentação e do controle hierárquico" (Veiga 1996, p. 22). Quanto a concepção, um projeto pedagógico de qualidade deve apresentar as seguintes características: a) ser um processo participativo de decisões b) preocupar-se em instaurar uma forma de organização do trabalho pedagógico que desvele Bruno Realce Bruno Realce Bruno Realce Bruno Realce os conflitos e as contradições; c) explicitar princípios baseados na autonomia da escola, na solidariedade entre seus agentes educativos e no estímulo à participação de todos no projeto comum e coletivo; d) conter opções explícitas na direção da superação de problemas, no decorrer do trabalho educativo voltado para uma realidade específica; e) explicitar o compromisso com a formação do cidadão. No que tange à execução, um projeto é de qualidade quando: a) nasce da própria realidade, tendo como suporte a explicitação das causas dos problemas e das situações nas quais tais problemas aparecem; b) é exeqüível e prevê as condições necessárias ao desenvolvimento e à avaliação; c) implica a ação articulada de todos os envolvidos com a realidade da escola d) é construído continuamente, pois, como produto, é também processo, incorporando ambos numa interação possível. Considera-se que o projeto político-pedagógico da escola não visa simplesmente a um "rearranjo formal da escola, mas a uma qualidade em todo o processo vivido" (ibidem, p. 15). O projeto pedagógico é um documento que não se reduz à dimensão pedagógica, nem muito menos ao conjunto de projetos e planos isolados de cada professor em sua sala de aula. O projeto pedagógico é, portanto, um produto específico que reflete a realidade da escola, situada em um contexto mais amplo que a influencia e que pode ser por ela influenciado. Em suma, é um 'instrumento clarificador da ação educativa dá escola a em sua totalidade. Conforme afirmei em cursos por mim ministrados, 11 (...) a primeira ação que me parece fundamental para nortear a organização do trabalho da escola é a construção do projeto pedagógico assentado na concepção de sociedade, educação e escola que vise à emancipação humana. Ao ser claramente delineado, discutido e assumido coletivamente ele se constitui como processo. E, ao se constituir como processo, o projeto político-pedagógico reforça o trabalho integrado e organizado da equipe escolar, enaltecendo a sua função primordial de coordenar a ação educativa da escola para que ela atinja o seu objetivo político-pedagógico. (Veiga 1996, p. 137) A nova LDB e o projeto político-pedagógico A nova LDB, _Lei n. 9.394/96 prevê no seu art. 12, inciso I, que "os estabelecimentos de ensino, respeitadas as normas comuns e as do seu sistema de ensino, terão a incumbência de elaborar e executar sua proposta pedagógica". Esse preceito legal está sustentado na idéia de que a escola deve assumir, como uma de suas principais tarefas, o trabalho de refletir Bruno Realce Bruno Realce Bruno Realce Bruno Realce sobre sua intencionalidade educativa. Vale chamar a atenção para a variedade terminológica empregada pelo legislador: proposta pedagógica (arts. 12 e 13), plano de trabalho (art. 13), projeto pedagógico (art. 14), o que poderá trazer confusões conceituais e, consequentemente, operacionais. A proposta pedágógica ou.projeto pedagógico relaciona-se à organização do trabalho pedagógico da escola; o plano de trabalho está ligado à organização da sala de aula e a outras atividades pedagógicas e administrativas. Isso significa que o plano de trabalho é o detalhamento da proposta ou projeto (art. 13). Portanto, compete aos docentes, à equipe técnica (supervisor, coordenador pedagógico, diretor, orientador educacional) e aos funcionários elaborar e cumprir o seu plano de trabalho, também conhecido por plano de ensino e plano de atividades. É por esse caminho que vamos construindo o planejamento participativo e a estratégia de ação da escola. O projeto pedagógico aponta um rumo, uma direção, um sentido explícito para um compromisso estabelecido coletivamente. O projeto pedagógico, ao se constituir em processo participativo de decisões, preocupa-se em instaurar uma forma de organização do trabalho pedagógico que desvele os conflitos e as contradições, buscando eliminar as relações competitivas, corporativas e autoritárias, rompendo com a rotina do mando pessoal e racionalizado da burocracia e permitindo as relações horizontais no interior da escola. Para que a construção do projeto pedagógico seja possível, não é necessário convencer os professores, a equipe escolar e os funcionários a trabalhar mais ou mobilizá- los de forma espontânea, mas propiciar situações que lhes permitam aprender a pensar e a realizar o fazer pedagógico de forma coerente. E, para enfrentarmos essa ousadia, necessitamos de um referencial que fundamente a construção do projeto. O projeto político-pedagógico explicita os fundamentos teórico-metodológicos, os objetivos, o tipo de organização e as formas de implementação e avaliação da escola. As modificações que se fizerem necessárias resultam de um processo de discussão, avaliação e ajustes permanentes do projeto pedagógico. Ao nos referirmos ao projeto político-pedagógico fica claro que construí-lo, executá-lo e avaliá-lo é tarefa da escola; tarefa que não se limita ao âmbito das relações interpessoais, mas que se torna "realisticamente situada nas estruturas e funções específicas da escola, nos recursos e limites que singularizam, envolvendo ações continuadas em prazos distintos" (Marques 1990, p. 22). 13 É necessário que se afirme que a discussão do projeto político-pedagógico exige uma reflexão acerca da concepção da educação e sua relação com a sociedade e a escola, o que Bruno Realce Bruno Realce Bruno Realce não dispensa uma reflexão sobre o homem a ser formado, a cidadania e a consciência crítica. O projeto político-pedagógico, ao dar uma nova identidade à escola, deve contemplar a questão da qualidade de ensino, entendida aqui nas dimensões indissociáveis: a formal ou técnica e a política. Uma não: está subordinada à outra; cada uma delas tem perspectivas próprias. A primeira enfatiza instrumentos, métodos e técnicas. A qualidade formal não está afeita, necessariamente, a conteúdos determinados. Demo ( 1994, p. 14) afirma que a qualidade formal "significa a habilidade de manejar meios, instrumentos, formas, técnicas, procedimentos diante dos desafios do desenvolvimento". A qualidade política é condição imprescindível da participação. Está voltada para os fins, os valores e os conteúdos; quer dizer "a competência humana do sujeito em termos de se fazer e de fazer história, diante dos fins históricos da sociedade humana (idem p 14). Para que ocorra a definição do projeto pedagógico com o indispensável embasamento teórico-metodológico, há necessidade de pesquisas, estudos, reflexões e discussões com professores, especialistas em educação, alunos, ex-alunos, determinando o caminho desse processo. A adesão à construção .do projeto não deve ser _imposta e sim conquistada por uma equipe coordenadora, compromissadae consequente. Marques.(1990, p. 21) certamente contribüi para esse entendimento, quando afirma que "a necessária transparência e legitimidade do projeto pedagógico deriva do fato de poderem constituir-se formalmente as diversas instâncias de discussões, publicamente reconhecidas e postas em condições de total publicidade". A legitimidade de um projeto político-pedagógico está devidamente ligada ao grau e ao tipo de participação de todos os envolvidos com o processo educativo da escola, o que requer continuidade de ações. Bussmann (1995, p. 43) afirma: (...) na organização escolar, que se quer democrática, em que a participação é elemento inerente à consecução dos fins, em que se buscam e se desejam práticas coletivas e individuais baseadas em decisões tomadas e assumidas pelo coletivo escolar, exige-se da equipe diretiva, que é parte desse coletivo, liderança e vontade firme para coordenar, dirigir e comandar o processo decisório como tal e seus desdobramentos de execução. Em suma, o processo de construção do projeto é dinâmico e exige esforço coletivo e comprometimento; não se resume, portanto, à elaboração de um documento escrito por um grupo de pessoas para que se cumpra uma formalidade. É concebido solidariamente com possibilidade de sustentação e legitimação. Construir um projeto pedagógico significa enfrentar o desafio da mudança e da transformação, tanto na forma como a escola organiza seu processo de trabalho pedagógico como na gestão que é exercida pelos a interessados, o que implica o repensar dá estrutura de poder da escola. A autonomia escola, um reexame A autonomia da escola é uma questão importante para o delinearnento de sua identidade. A autonomia anula a dependência "O significado de autonomia remete-nos para regras e orientações criadas pelos próprios sujeitos das ações educativas, sem imposições externas" (Veiga 1997, p. 19). A autonomia não é um valor absoluto, fechado em si mesmo, mas um valor que se determina numa relação de interação social. Nesse sentido, a escola deve alicerçar o conceito de autonomia, enfatizando a responsabilidade de todos, sem deixar de lado os outros níveis da esfera administrativa educacional. A autonomia é importante para a criação da identidade da escola. A autonomia não é, afinal, uma política, mas a substância de uma nova organização do trabalho pedagógico na escola. Essa supõe a possibilidade de singularidade e variação entre as instituições escolares. Para ser autônoma, a escola não pode depender somente dos órgãos centrais e intermediários que definem a política da qual ela não passa de executora. Ela concebe sua proposta pedagógica ou projeto pedagógico e tem autonomia para executá-lo e avaliá-lo ao assumir uma nova atitude de liderança, no sentido de refletir sobre as finalidades sociopolíticas e culturais da escola. (...) o que se requer dos educadores, para essa tarefa, é, fundamentalmente, competência. Construir ética e politicamente a autonomia não teria significado se não se aliassem à perspectiva ético-política a dimensão técnica, o domínio seguro de conhecimentos específicos, a utilização de uma metodologia eficaz, a consciência crítica e o propósito firme de ir ao encontro das necessidades concretas de sua sociedade e de seu tempo. (Rios 1993, p. 18) 15 A autonomia é, pois, questão fundamental numa instituição educativa envolvendo quatro dimensões básicas, relacionadas e articuladas entre si: administrativa, jurídica, financeira e pedagógica. Essas dimensões implica direitos e deveres e, principalmente, um alto grau de compromisso e responsabilidade de todos os segmentos da comunidade escolar. As diferentes dimensões da autonomia são interdependentes. A Figura l, a seguir, ilustra essas dimensões. Figura 1 - As dimensões da autonomia A autonomia administrativa consiste na possibilidade de elaborar e gerir seus planos, programas e projetos. Envolve, inclusive, a possibilidade de adequar sua estrutura organizacional à realidade e ao momento histórico vivido. Refere-se à organização da escola e nela destaca-se o estilo de gestão, a direção como coordenadora de um processo que envolve relações internas e externas, ou seja, com o sistema educativo e com a comunidade na qual a escola está inserida. A autonomia administrativa traduz a possibilidade de a escola !garantir a indicação dos dirigentes por meio de processo eleitoral que 'realmente verifique a competência profissional e a liderança dos candidatos; a constituição dos conselhos escolares com funções deliberativa, consultiva e fiscalizadora; a formulação, a aprovação e a implementação do plano de gestão da escola (Gadotti e Romão 1997). Convém lembrar que o processo de descentralização é muitas vezes travestido de uma desconcentração que "intensifica o poder, central, pois representa o lançamento de tentáculos deste poder na periferia do sistema (ibidem, p. 1~36j. A autonomia administrativa representa um espaço de negociação permanente por parte dos atores mais diretamente envolvidos. É pela participação, pela intervenção e pelo diálogo que a autonomia se constrói e internaliza. Neves ( 1995) afirma que o eixo administrativo pode ser analisado por meio dos seguintes aspectos: formas de gestão, controles normativo-burocráticos, racionalidade interna, administração de pessoal, ' administração de material e controle de natureza social. "'' A autonomia jurídica diz respeito à possibilidade de a escola elaborar suas próprias normas e orientações escolares, como, por exemplo, matrícula, transferência de alunos, admissão de professores, concessão de graus etc. Mesmo estando vinculada à legislação dos órgãos centrais, a instituição escolar deve policiar-se, também, no sentido de não se transformar numa instância burocrática, por meio de estatutos, regimentos, portarias,' resoluções, avisos, memorandos, os quais acabam por descaracterizar seu papel de proporcionar aos educandos, mediante um ensino efetivo, os instrumentos que lhes permitam conquistar melhores condições de participação cultural, profissional e sociopolítica. . A autonomia financeira refere-se à existência de recursos financeiros capazes de dar à instituição educativa condições de funcionamento efetivo. A educação pública é financiada. A autonomia financeira pode ser total ou parcial. É total quando a escola administra todos os recursos a ela destinados pelo Poder Público, o que tem encontrado "fortes resistências das entidades de representação da categoria docente, que se sente ameaçada em vários aspectos: perda da estabilidade no emprego, fragilização da articulação sindical e, no limite, privatização das unidades escolares" (ibidem, p. 136). É parcial quando a escola administra apenas parte dos recursos repassados, mantendo-se no órgão central do sistema educativo a gestão de pessoal e as despesas de capital. A nova LDB (Lei n 9.394/96), além de explicitar a incumbência da escola de "elaborar e executar sua proposta pedagógica (art. 12, 1), define também sua responsabilidade em "administrar seu pessoal e seus recursos financeiros" (art. 12, II). 17 A autonomia financeira compreende as competências para elaborar e executar seu orçamento, com fluxo regular do Poder Público, permitindo a escola planejar e executar suas atividades, independentemente de outras fontes de receita com fins específicos, bem como aplicar e remanejar diferentes rubricas de elementos ou categorias de despesas, sem prejuízo de fiscalização dos órgãos externos competentes. Assim sendo, a autonomia financeira engloba duas vertentes: dependência financeira do Poder Público, controle e previsão de contas. O que não deve ocorrer é a redução do processo participativo por parte do Estado visto como "o agente central na alocação de recursos destinados ao financiamento dos serviços educacionais, transferindo essa responsabilidadeaos próprios indivíduos, às famílias e às empresas" (Gentili 1998, p. 324). A autonomia pedagógica consiste na liberdade de ensino e pesquisa. Está estreitamente ligada à identidade, à função social, à clientela, à organização curricular, a avaliação, bem como aos resultados e, portanto, à essência do projeto pedagógico da escola. Embora guarde relação com as outras três dimensões, a autonomia pedagógica diz respeito as medidas essencialmente pedagógicas, necessárias ao trabalho de elaboração, desenvolvimento e avaliação do projeto político-pedagógico, em consonância com as políticas públicas vigentes e as orientações dos sistemas de ensino. Caberá à escola: - explicitar objetivos filosóficos, pedagógicos, científicos, tecnológicos, artísticos e culturais; - selecionar e organizar os conhecimentos curriculares, observadas as diretrizes gerais do Conselho Nacional de Educação; - introduzir metodologias inovadoras; - avaliar desempenhos docente e discente , - tomar decisões relativas à concepção, à execução e à avaliação do currículo; - organizar a pesquisa; 18 - estabelecer cronogramas, calendários, horários; - capacitar docentes e técnicos por meio de cursos, seminários e estágios em universidades e centros de formação de professores; . implantar sistemas de acompanhamento de egressos; - estabelecer critérios e normas de seleção, admissão e promoção de seus alunos e da matrícula dos transferidos; - conferir graus, diplomas, certificados e outros títulos escolares; . fazer articulação com outras instituições como: associações culturais, científicas e sindicais, a fim de garantir aos professores e grupos de pesquisa a liberdade de elaborar projetos; - definir os problemas relevantes, sujeitos à avaliação dos seus pares da comunidade interna; - analisar o impacto das ações previstas e desencadeadas. A autonomia pedagógica abrange, portanto, os seguintes aspectos: poder decisório referente à melhoria do processo ensino-aprendizagem, adoção de critérios próprios de organização da vida escolar e de pessoal docente e celebração de acordos e convênios de cooperação técnica (Neves 1995). A relatividade dessa autonomia evidencia-se quando existem interferências, como, por exemplo, currículos mínimos de cursos predefinidos, e ela se amplia com as possibilidades prescritas na nova LDB (Lei n 9.394/96). Pressupostos norteadores do projeto político-pedagógico É preciso considerar a teoria pedagógica progressista, que parta da prática social e esteja compromissada em solucionar os problemas da educação, do currículo e do processo ensino-aprendizagem da escola. Os pressupostos norteadores são: filosófico-sociológico, epistemológico e didático-metodológico. Os pressupostos filosóficos-sociológicos consideram a educação como compromisso político do Poder Público para com a população, com vistas à formação do cidadão participativo para um determinado tipo de sociedade. A escola guarda relação com o contexto social mais amplo. Ora, para sabermos que escolas precisamos construir, que cidadãos queremos formar, nós temos que saber para que sociedade estamos rumando. Definido o tipo de sociedade que queremos construir, discutiremos qual a concepção de educação correspondente. A educação é direito de todos e não deve se constituir em um serviço, uma mercadoria, sendo transformada num processo centrado na ideologia da competição e da qualidade para poucos. 19 A educação básica deve estar alicerçada nas múltiplas necessidades humanas. Trata-se de um processo articulador das relações sociais, culturais e educacionais, como sugerido pelas indagações seguintes: - Qual é o contexto filosófico, sociopolítico, econômico e cultural em que a escola está inserida? - Que concepção de homem se tem? - Que valores devem ser defendidos na sua formação? - O que entendemos por cidadania e cidadão? - Em que medida a escola contribui para a cidadania? - Em que dimensão a escola propicia a vivência da cidadania? - A formação da cidadania tem sido o fio condutor do trabalho pedagógico da escola? - Até que ponto a escola se preocupa em colocar o sujeito (aluno) como centro do processo educativo? - Como a escola deve responder às aspirações dos alunos, dos pais e dos professores? - Qual é o papel da escola diante de outros espaços formadores? Os pressupostos epistemológicos levam em conta que o conhecimento é construído e transformado coletivamente. Nesse sentido, o processo de produção do conhecimento deve pautar-se, sobretudo, na socialização e na democratização do saber. O conhecimento escolar é dinâmico e não mera simplificação do conhecimento científico, que se adequaria à faixa etária e aos interesses dos alunos. A análise do processo de produção do conhecimento escolar amplia a compreensão sobre as questões curriculares. O conhecimento produzido pela pesquisa parte do concreto e da prática que precede a teoria, de modo que esta só tem sentido quando articulada.com aquela. O importante é, sobretudo, a garantia da unicidade entre teoria e prática, conhecimento geral e específico, conteúdo e forma e dimensão técnica e política. É preciso muita ¡intencionalidade para provocar mudanças no processo de produção do conhecimento. O conhecimento deixa de ser visto numa perspectiva estática e passa a ser enfocado como processo. Leite (1994, p. 13) aponta duas dimensões básicas do conhecimento: conhecimento- produto e conhecimento-processo. Ela afirma: Na qualidade de produto, o conhecimento parece ser estático, acabado, evolutivo e acumulativo, pois se resume a um conjunto de informações neutras, objetivas e impessoais sobre o real elaborado e sistematizado no trabalho de investigação da realidade. Na qualidade de processo, o conhecimento é dinâmica, está envolto por um contexto de controvérsias e divergências, traz subjacente uma série de compromissos. interesses e alternativas que contestam sua condição de objetividade e neutralidade. Isso posto, as questões a responder são: - Qual é, então, nosso papel neste momento, uma vez que há uma compreensão, entre nós, professores e especialistas, de que a construção do conhecimento é condição sine qua non para a formação do educando? - O que significa construir o conhecimento no campo da educação básica? - Como construir um conhecimento interdisciplinar e globalizador, conseguindo, de fato, trabalhar o específico e avançar para a compreensão das relações sociais? - Como avançar a prática pedagógica de forma que o conhecimento seja trabalhado como processo e, dessa forma, contribuir para a autonomia do aluno, do ponto de vista intelectual, social e político, favorecendo a cidadania? - Como a relação entre ensino e pesquisa pode favorecer essa construção? - Como definir o essencial e o complementar na organização do conhecimento curricular? - Em que nível o aluno deve participar da organização dos programas escolares? - De que forma partir do conhecimento trazido pelo estudante, para relacioná-lo com o novo conhecimento? . - Como propiciar a aquisição de conhecimentos e habilidades intelectuais aliada às atitudes de cooperação, co-responsabilidade, iniciativa, organização e decisão? - Como viabilizar a compreensão das relações sociais que o trabalho gera com relações sociais mais amplas por meio de conteúdos curriculares históricos, críticos, criativos, não tomados em si, mas à luz do trabalho em questão? - Qual é a concepção de conhecimento, currículo, ensino, aprendizagem e avaliação? O projeto político-pedagógico construído pela própria comunidade escolar é o definidor de critérios para a organização curricular e a seleção de conteúdos, embora o Estado legitimamente constituído assuma o papel de formulador de políticas integrativas, principalmente com o intuito de preservar a unidade nacional respaldado na legislação que estabelece as prescrições mais amplas, em termos dos fundamentos/princípios eorientações. Quanto aos pressupostos didático-metodológicos, entende-se que a sistematização do processo ensino-aprendizagem precisa favorecer o aluno na elaboração crítica dos conteúdos, por meio de métodos e técnicas de ensino e pesquisa que valorizem as relações solidárias e democráticas. Como sugestões metodológicas, podemos citar: pesquisa de campo, oficinas pedagógicas, trabalhos em grupo, debate e discussão, estudo dirigido, estudo de texto, demonstração em laboratórios, oficinas escolares, entrevista, observação das práticas escolares, visitas, estágios, cursos etc. Os pressupostos didático-metodológicos sugeridos devem pautar-se em um trabalho interdisciplinar que é muito mais do que a compatibilização de métodos e técnicas de ensino e pesquisa. Há necessidade de ampliar a perspectiva de pesquisa como princípio educativo. O que fundamenta o processo de ensino- aprendizagem tem profunda relação com os princípios da pesquisa do cotidiano escolar. Como tudo isso se relaciona com a construção do projeto político-pedagógico e a atividade docente? A nova LDB, em seu art. 13, incumbindo os docentes da tarefa de participar da elaboração, da execução e da avaliação do projeto pedagógico, explicita a importância da presença dos professores como sujeitos vinculados a processos de socialização, sujeitos que se reúnem numa prática intencionada, na qual têm oportunidade de combinar o fazer pedagógico com a reflexão. Nesse sentido, a ação prático-reflexiva resulta em propostas, planos de ensino e atividades e novas formas de organização do trabalho pedagógico. Isso significa uma enorme mudança na concepção do projeto político-pedagógico e na própria estrutura da administração central. Se a escola se nutre da vivência cotidiana de cada um de seus membros, co-participantes da organização do seu trabalho pedagógico, aos órgãos da administração central, seja o Ministério da Educação, a Secretaria de Educação estadual ou municipal, não compete propor um modelo pronto e acabado, mas definir normas de gestão democrática, como previsto no art. 14, com a participação dos profissionais da educação e da comunidade escolar e local em instäncias colegiadas. Os órgãos centrais devem estimular inovações e coordenar as ações pedagógicas planejadas e organizadas pela própria escola. Em outras palavras, as escolas necessitam receber assistência técnica e financeira (art. 9°, inciso If1), decidida em conjunto com as instäncias superiores do sistema de ensino. Isso pode exigir, também, mudanças na própria lógica da organização de instâncias superiores, implicando uma alteração substancial na sua prática e ampliando, dessa forma, a concepção de gestão democrática. 23 A construção do projeto político-pedagógico Existem vários caminhos para a construção do projeto pedagógico. Enfatizam-se aqui os movimentos do processo de construção desse projeto, marcados por três atos bem distintos, porém interdependentes. a) O ato situacional - descreve a realidade na qual desenvolvemos nossa ação; é o desvelamento da realidade sociopolítica, econômica, educacional e ocupacional. Implica levantar questões, tais como: - Como compreendemos a sociedade atual? - Qual é a realidade de nossa escola em termos: legais, históricos, pedagógicos, financeiros, administrativos, físicos e materiais e de recursos humanos? - Quais são os dados demográficos da região em que se situa a escola? - Qual é a população-alvo da escola? - Quais suas características em termos de nível socioeconômico, cultural e educacional? - Qual o papel da educação/escola nessa realidade? - Qual a relação entre a escola e o mundo do trabalho? - Quais as principais questões apresentadas pela prática pedagógica? - O que é prioritário para a escola? - Quais as alternativas de superação das dificuldades detectadas? A reflexão de questões dessa natureza leva ao reconhecimento de que: (...) em suas forças e fraquezas, de maneira transparente; a compreensão dos movimentos educativos que se processam no seu interior; o estabelecimento das relações existentes entre o fazer pedagógico e as questões sociais mais amplas, bem como as relações de mútua interdependëncia são fatores determinantes a serem considerados na elaboração do Projeto Pedagógico e da Escola... (Ferreira Neto 1996, p. 21) O ato situacional significa, portanto, ir além da percepção imediata. É o momento de desvelar os conflitos e as contradições postas pela prática pedagógica; é apreender seu movimento interno, de tal forma que se possa reconfigurá-la, fortalecida pela reflexão teórico-prática. b) O ato conceitual diz respeito ã concepção ou visão de sociedade, homem; educação, escola, currículo, ensino e aprendizagem. Diante da realidade situada, retratada, constatada e documentada cabem as seguintes indagações: - Que referencial teórico, ou seja, que concepções se fazem necessárias para a transformação da realidade? - Que tipo de alunos queremos formar? - Para qual sociedade? - O que significa ser uma escola voltada para a educação básica? - Que experiências queremos que nosso aluno vivencie no dia-a-dia de nossa escola? / - Quais as decisões básicas referentes ao que, para que, e a como ensinar, articulados ao para quem? - O que significa construir o projeto político-pedagógico como prática social coletiva? As questões levantadas geram respostas e novas indagações por parte da direção de professores, funcionários, alunos e pais e da sociedade em geral. O esforço analítico da realidade constatada possibilitará a identificação de quais finalidades estão relegadas e precisam ser reforçadas e priorizadas, e como elas poderão ser detalhadas e retrabalhadas. Nesse momento conceitual, devem também ser considerados os eixos norteadores do projeto, discutidos anteriormente. A reflexão sobre o trabalho pedagógico, descrevendo-o, problematizando-o, analisando os componentes ideológicos que o sustentam, vai configurando uma matriz teórica que permitirá a participação de toda a comunidade escolar em sua concretização. Por sua vez, a definição dessa matriz teórica propiciará a revisão do trabalho pedagógico desenvolvido pela escola e, conseqüentemente, da sua própria organização. Para Serafin (1987, p. 205), essa prática é uma "contínua atividade de investigação e reflexão na ação e sobre a própria ação, uma vez que se vai fundamentando em uma teorização sobre o atuado. Supõe, pois, uma pratica de construção de organização e uma prática dos atores". A escola tem que pensar o que pretende, do ponto de vista político e pedagógico. Há um alvo por ser atingido pela escola: a produção e a socialização do conhecimento, das ciências, das letras das artes da política e da tecnologia, para que o aluno possa compreender a realidade socioeconômica, política e cultural, tornando-se capaz de participar do processo de construção da sociedade. c) O ato operacional orienta-nos quanto a como realizar nossa ação. É o momento de nos posicionarmos com relação às atividades a serem assumidas para transformar a realidade da escola. Implica, também, a tomada de decisão de como vamos atingir nossas finalidades, nossos objetivos e nossas metas. Na operacionalização do projeto pedagógico, o que se faz é verificar se as decisões foram acertadas ou erradas e o que é preciso revisar ou reformular. Tendo em vista as diferentes circunstâncias, pode-se tornar necessário tanto alterar determinadas decisões quanto introduzir ações completamente novas. As decisões básicas para a execução dizem respeito à proposição de medidas de ação coletiva, no sentido do aperfeiçoamento do ato operacional. É preciso ter presente algumas indagações: - Quais as decisões necessárias para a operacionalização? - Como redimensionar a organização do trabalho pedagógico? - Qual o tipo de gestão? ~ - Quais as ações prioritárias? São exeqüíveis? - Qual o papel específico de cada membroda comunidade escolar? - De que recursos a escola dispõe para realizar seu projeto? - Quais os critérios gerais para elaboração do calendário escolar, horários letivos e não-letivos (incluindo os de capacitação)? - Quais as necessidades de formação inicial e continuada dos diferentes profissionais que trabalham na escola?/ - Quais os critérios para a organização e a utilização dos espaços educativos (internos e externos à própria escola)? - Como será feita a organização de turmas por professor, em virtude da especificidade das situações diversificadas inerentes à própria estrutura curricular dos cursos desenvolvidos pela escola? - Quais as diretrizes para a avaliação de desempenho do pessoal docente e não-docente, do currículo, dos projetos não-curriculares e do próprio projeto político-pedagógico da escola? - Qual a relação entre o pedagógico e o administrativo, no processo de gestão? - Qual o papel das instâncias colegiadas da escola, tais como: Conselho da Escola, Conselho de Classe, Grëmio Estudantil, Associação de Pais e Mestres, clubes diversos e outros? - Como se efetiva o acompanhamento de egressos? Os movimentos avaliativos partem da necessidade de se conhecer a realidade escolarpara explicar e compreender criticamente as causas de existência dos problemas bem como suas relações e mudanças, esforçando-se por propor ações alternativas (criação coletiva). A avaliação é vista como ação fundamental para a garantia do ëxito do Projeto, na medida em que é condição sine qua non para as decisões significativas a serem tomadas. É parte integrante do processo de construção do projeto e compreendida como responsabilidade coletiva. A avaliação interna e sistemática é essencial para definição, correção e aprimoramento de rumos. É também por meio dela que toda a extensão do ato educativo, e não apenas a dimensão pedagógica, é considerada. Para visualização dos atos do processo de construção do projeto Pedagógico e para facilitar a compreensão do relacionamento existente entre eles; apresentamos a Figura 2, a seguir, baseada em Gandin ( 1986, p. 20). Esses três atos do processo de construção de projeto político-pedagógico mantém relações de interdependência ( Figura 2) e refletem propósitos, perspectivas, experiências, valores e interesses humanos concretos, devendo ser levados em consideração ao longo do planejamento. Eles correspondem aos momentos de concepção, incluindo tanto o ato situacional quanto o conceitual e o de execução do projeto mais ligado ao operacional. 27 A avaliação no contexto do processo de planejamento é concebida como acompanhamento da qualidade das decisões. Essas decisões avaliativas são basicamente de dois tipos: - as decisões em nível dos atos situacional e conceitual dizem respeito ao momento da concepção do projeto pedagógico. São decisões pedagógicas, epistemológicas e metodológicas, implicando levantar questões para um profundo conhecimento da situação. O esforço analítico da realidade constatada possibilitará a identificação de quais finalidades precisam ser reforçadas e priorizadas; - as decisões de execução do projeto político-pedagógico dizem respeito, sobretudo ao ato operacional. As decisões básicas de execução visam acompanhar a operacionalização do projeto pedagógico. Nesse sentido, todos os momentos de planejamento (concepção e execução do projeto pedagógico estão permeados por um processo de avaliação . A Figura 3 ilustra o que acabamos de afirmar. As relações de planejamento e avaliação do projeto político-pedagógico implicam que as decisões das várias etapas do planejamento se apóiem em avaliação. A avaliação é ponto de partida e ponto de chegada. , Como se pode notar pela Figura 3, o processo cíclico de planejamento é permeado por um processo cíclico de avaliação. Vasconcellos ( 1991, p. 26) considera que (...) mais importante do que ter um texto bem elaborado, é construirmos um envolvimento e o crescimento das pessoas, principalmente dos educadores, no processo de elaboração do projeto, através de uma participação efetiva naquilo que é essencial na instituição. Planejar com e não planejar para. (Grifos do autor) Insistimos, então, na importância de se ouvirem as vozes dos professores, dos alunos, dos pais, bem como as dos outros sujeitos envolvidos no processo de construção do projeto político-pedagógico. Acreditamos, conseqüentemente, que alguns avanços significativos encontrados na prática pedagógica de muitas escolas podem contribuir para a construção desse processo, merecendo especial atenção aos seguintes aspectos: o papel da escola, dos profissionais e da clientela, as condições de trabalho, a gestão e o projeto político-pedagógico, a política educacional. Considerando a temática deste estudo e as análises dos relatórios dos participantes de cursos por mim ministrados em escolas públicas e privadas (1995-1996), encaminhamos algumas sugestões que servirão para qualificar as ações mobilizadoras e propulsoras de novas maneiras de pensar e fazer o projeto político-pedagógico: - assumir a competência primordial da escola: educar, ensinar/aprender; - dinamizar os conteúdos curriculares de maneira a provocar a participação do aluno; - lutar pela valorização dos profissionais da educação, fortalecendo sua formação inicial e continuada, propiciando melhores condições de trabalho (salário, concurso para ingresso, tempo remunerado para atividades pedagógicas fora de sala de aula etc). - entender que os alunos provenientes das classes populares são sujeitos concretos que têm uma rica experiência e possuidores de diferentes saberes; - criar e institucionalizar instâncias colegiadas na escola tais como: Associação de Pais e Mestres, Conselho da Escola, Conselho de Classe, Grêmio Estudantil; - criar o Conselho de Diretores de Escolas Básicas, por município, nos moldes do Conselho de Diretores das Escolas Técnicas Federais - Conditec; - definir a política global da escola por meio do projeto político-pedagógico, elaborado de baixo para cima, contando com a participação de todos os segmentos da escola; - desocultar os interesses envolvidos nas decisões, reforçando o diálogo e construindo formas alternativas de superação das propostas oficiais e verticais; - fortalecer as relações entre escolas e Secretarias Estaduais e Municipais de Educação, Delegacias ou Coordenadorias Regionais e instituições de ensino superior, entre outros; - reivindicar a participação das escolas na definição das políticas públicas para a educação. E para concluir... Como procuramos demonstrar, a construção do projeto político-pedagógico é um ato deliberado dos sujeitos envolvidos com o processo educativo da escola. Entendemos que ele é o resultado de um processo complexo de debate, cuja concepção demanda não só tempo, mas também estudo, reflexão e aprendizagem de trabalho coletivo. Não é possível, portanto, concebê-lo e instituí-lo por decreto ou resolução de conselhos e colegiados escolares. Assim, discuti-lo na escola não é apenas falar sobre o projeto instituído, mas, ao mesmo tempo, reafirmar que no projeto político-pedagógico está o instituinte, ou seja, "as pessoas concretas com suas intenções e valores, falando uma linguagem instituinte, que projeta e dilata os campos das possibilidades, mobiliza ânimos e energias" (Marques 1990, p. 23). O projeto político-pedagógico, como projeto/intenções, deve constituir-se em tarefa comum da equipe escolar e, mais especificamente, dos serviços pedagógicos (Supervisão Escolar e Orientação Educacional). A esses cabe o papel de liderar o processo de construção desse Projeto pedagógico. Se, por um lado, a coordenação do processo de construção do projeto pedagógico é tarefa do corpo diretivo e da equipe técnica, por outro, é co-responsabilidade dos professores, dos pais, dos alunos, do pessoal técnico-administrativoe de segmentos organizados da sociedade local, contando, ainda, com a colaboração e a assessoria efetivas de profissionais ligados à educação. Finalizando, para que a escola seja palco de inovação e investigação e torne-se autônoma é fundamental a opção por um referencial teórico-metodológico que permita a construção de sua identidade e exerça seu direito à diferença, à singularidade, à transparência, a solidariedade e à participação. Precisamos reconstruir a utopia e, como profissionais da educação, refletir e questionar profundamente o trabalho pedagógico que realizamos até hoje em nossas escolas Bibliografia André, M.E. D..A. A contribuição da pesquisa etnográfica para a construção do saber didático. IN OLIVEIRA, M.RN.S. (Org.). Didática: Ruptura, compromisso e pesquisa. 2 ed., Campinas: Papims, 1995. Bussmann, Antônia Carvalho. O projeto político-pedagógico e a gestão da escola. In: VEIGA, I.P.A. (org.). Projeto político-pedagógico da escola: Uma construção possível Campinas: Papirus, 1995. DEMO, Pedro. Educação e qualidade. Campinas: Papirus, 1994. Ferreira NETO, Augusto. Projeto pedagógico da escola. In: Revista AMAE. Belo Horizonte, 1996. Gadotti, M e Romão. J.E. (orgs.). Autonomia da escola: Princípios e propostas. São Paulo: Cortez, 1997. Gandin, Danilo. Planejamento como prática educativa. 3a ed., São Paulo: Loyola, 1986. Gentili, Pablo. 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RELATÓRIOS DOS CURSOS SOBRE PROJETO POLITICO-PEDAGÓGICO. ministrados por VEIGA, Ilma P.A. e promovidos por Secretaria de Educação Fundamental do MEC (Programas dos Caics), Secretarias Estaduais e Municipais de Educação de MG, PR. PI, RS, sob a coordenação das Universidades Federais de Uberlândia e Pelotas, Universidade Estadual de Londrina e instituição de consultoria educacional Pesquisadores Associados, em Teresina, PI 1995/1996. RIOS, Terezinha Azerêdo. A autonomia como projeto-Horizonte ético-político. In: Série Idéias n. 16. A autonomia e qualidade do ensino na escola pública. São Paulo: FDE, Diretoria Técnica, I993. SERAFW, Antúnez. O projeto educativo de centro. Barcelona: Graó, 1987. VASCONCELLOS, Celso dos S. Projeto educativo: Elementos metodológicos para a elaboração do projeto educativo. São Paulo: Libertad, 1991. VEIGA, I.P.A. Escola, currículo e ensino. /n: VEIGA. I.P.A. e CARDOSO, M.H. (orgs.). Escola fundamental, currículo e ensino. Campinas: Papirus, 1991. _____. Ensino e avaliação: Uma relação intrínseca à organização do trabalho pedagógico. In: VEIGA, I.P.A. (org.) Didática: O ensino e suas relações. 2a ed., Campinas: Papirus, 1996. _____. Projeto político-pedagógico da escola: Uma construção coletiva. In: VEIGA, I.P.A. (org.). Projeto político-pedagógico da escola: Uma construção possível. 4a ed., Campinas: Papirus, 1997. 32 2 A PERSPECTIVA MULTICULTURAL NO PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO Lúcia Maria Gonçalves de Resende* Alguns autores distinguem o significado dos termos multiculturalismo e interculturalismo, associando o primeiro à realidade cultural, com a presença de diferentes grupos culturais numa mesma sociedade, e o segundo à ação deliberada de intervenção entre as diferentes culturas. Nas reflexões que desenvolvo neste artigo, tomarei o multiculturalismo na imbricação dos dois significados, quais sejam, no reconhecimento da diversidade e no caráter intervencionista das ações, desvelando o cotidiano das pessoas, que é identificado como natural e comum a todos, embora não o seja, permeado que é pelas disputas de relações de poder construídas socialmente de forma desigual. A abordagem objetiva traz à tona uma discussão que, mesmo podendo sugerir modismo, evidencia a interseção existente entre o multicultural e as propostas de construções coletivas. Docente da Universidade de Brasília - Faculdade de Educação; assessora de Educação da Unesco: doutoranda da Unesp. 32 Abordar o caráter multicultural como transversalidade de um fazer e um pensar no mundo requer a compreensão de um retrospecto histórico ou pelo menos de fatos que, se não justificam, explicam a faceta relativa à dificuldade comumente encontrada em adotar uma postura multicultural nos mais diferentes campos de atuação e, entre eles, naquele que nos diz respeito, a educação. A chamada "guetificação" que insistem em acentuar pode ser alterada por meio de um esforço conjunto que não se fundamenta em supremacias mas nas articulações. O debate sobre essa temática tem se intensificado nos encontros de educadores e pesquisadores interessados em descobrir nas instituições educativas espaços em que possam predominar a capacidade de mudança mais que o conservadorismo em práticas discriminatórias, a transgressão de limites de especialidades fortalecendo construções interdisciplinares e transdisciplinares e, fundamentalmente, o movimento e o trânsito na rica diversidade cultural, no diálogo entre as culturas e com a consciência de que quase sempre será um processo nada harmônico, como pretendem alguns. Tal preocupação está fundada nos evidentes confrontos macro (entre os chamados países do Primeiro Mundo e os demais) e micro (no interior de comunidades, grupos, instituições etc.) baseados em intransigências étnicas, religiosas, raciais, políticas e culturais de forma mais ampla. Padrões aceitos como únicos colidem-se com as chamadas culturas marginais, vistas como constantes ameaças para a dominante homogeneização cultural. A imposição de significados de dada realidade acaba por se constituir em focos de atrito explícito e muitas vezes velado. A pertinência das reflexões sobre o multiculturalismo A escola, ao longo de sua história, tem evidenciado uma monocultura que se expressa pela intransigência e pela impermeabilidade em relação tanto às realidades diversas como ao multifacetado mundo das crianças e dos adolescentes. Segundo Sacristán (1995, p. 97), "a cultura dominante nas salas de aula é a que corresponde à visão de determinados grupos sociais: nos conteúdos escolares e nos textos aparecem poucas vezes a cultura popular, as subculturas dos jovens". Os espaços culturais têm se constituído em freqüentes focos de luta, de diferenças e de disputas de poder absolutamente desiguais não em sua essência, isto é, não se voltando às diferenças absolutas, mas àquelas relativas a certos aspectos ou a certas combinações de alguns deles, como, por exemplo, o político, o racial, o religioso, de gênero, de classe social, entre outros. Nas malhas construídas nas relações de poder, essas diferenças acabam se transformando e travestindo de forma a se constituírem em um bloco justificador de discriminações. Conceitos de normalidade e anormalidade, do que é comum e diferente se misturam enquanto os estereótipos "desejáveis adquirem uma supremacia quase absoluta. Certamente, o movimento desintegrador de algumas culturas está fundado na desvalorização da rica diversidade cultural dos povos, atingindo a capilaridade da incompetência do convívio com o outro, que pode ser sintetizada na incapacidade de ser solidário. Há algum tempo, tive a oportunidade de conhecer Hilda Jimenes, uma mexicana que reside em Chiapas e trabalha na universidadedessa mesma cidade, que fica numa região de muitos conflitos culturais. Em seus testemunhos carregados de emoção, ela relata a incapacidade de dois mundos conviverem entre si: o dos índios e o dos chamados homens brancos, nem sempre tão brancos como pressupõem. Na verdade, é uma "brancura" que se constituiu mais na assimilação cultural e menos na questão racial. Em sua fala fica claro que boa parte do povo clama por reformas estruturais, enquanto os ares do neoliberalismo também atingem as cidades e aldeias, reforçando a exclusão. Os chamados diferentes, que não se incluem nos padrões e códigos da modernidade e, como querem alguns, da pós-modernidade, ficam excluídos dos processos de globalização e imersos na crescente massificação que lhes desconfigura as referências identitárias. Acabam não mais se reconhecendo como indivíduos que têm história e raízes. Outra referência mais próxima que também pode ser aqui colocada é o convívio que tive por 18 longos anos na região de Dourados, no Mato Grosso do Sul, com a aldeia dos índios caivás, que ficava praticamente dentro da cidade tornando mais explícitas as opressões. Eram freqüentes os pedidos :de "pão velho" feitos por crianças índias e a presença de seus 34 pais bêbados perambulando pela cidade em situação de mendicância muitos deles exterminando a própria vida, provavelmente por perda de identidade e perspectiva. Coincidentemente, os fortes exemplos dados referem-se ao índio, mas muitas outras situações poderiam ser apontadas envolvendo o homem do campo, o negro etc. A ignorância sobre diferentes culturas e a constante preocupação em manter o poder aniquilam construções sociais erguidas a duras penas. Após algum tempo de opressão, o próprio grupo se pergunta: Quem somos nós? Quais são nossas verdades? Quais são e onde estão fincadas nossas raízes? E dificilmente encontram respostas para essas perguntas. A problemática apresentada nos coloca frente a frente com uma necessidade muito concreta, a do multiculturalismo. Atualmente, fortalece-se o movimento no sentido de melhor compreender o chamado hibridismo cultural em que, por exemplo, está imerso o povo brasileiro. Poderíamos dizer que o grau de conscientização a respeito ainda é embrionário, mas que já não é mais possível negar que a necessidade de resgate das várias verdades culturais adquire uma forte concretude. A esse respeito, é interessante resgatar uma reflexão de Gaston Kaboré ( 1996, p. 14), presidente da Federação Pan-Africana dos cineastas, oriundo de uma área que cada vez mais se aproxima das questões referentes à educação - a artística. Mais tarde, quando me dediquei ao cinema documental contemporâneo, quis compreender como é que a imagem construía o pensamento, como é que pessoas permanentemente dominadas por uma representação exterior de seu próprio universo podiam pouco a pouco ver-se impedidas de ser elas próprias. Uma coisa tornou-se clara para mim: submersos por imagens vindas de fora, os povos do meu continente não tëm a possibilidade de projetar no ecrã da sua realidade o seu imaginário, a sua sensibilidade, a visão que têm deles próprios e do mundo, e até mesmo as suas ilusões e as suas utopias. São-lhes propostas imagens modeladoras que os impedem de se encontrar a si próprios. Contextualizando essa reflexão de Kaboré à área da educação, metemo-nos a realidade de muitas escolas brasileiras e, ao mesmo tempo, colocamo-nos em conflito com idéias que acabam por privilegiar a homogeneidade, sugerindo movimentos centrados na cristalização e na exclusão, ou seja, na manutenção e na conservação. Analisando algumas realidades, é possível concluir que essa homogeneização ocorre pela necessidade de controle, desconsiderando, inclusive, a história vivencial dos alunos. Professores e comunidade escolar trazem embutido em seu pensar e em seu fazer o princípio de que só existe uma história, a que é escrita, restrita e padronizada nos livros didáticos, quando nós somos, como na África, um continente permeado pela diversidade e pela oralidade de regiões tão fortes em seus valores, dogmas, costumes e princípios. São ambigüidades que perpassam o pedagógico e, como era de se esperar, atingem a alma da escola e, mais explicitamente, seu papel como instituição que se pretende formadora, "oxigenada" e apta à análise e à crítica. Sem a menor dúvida, a globalização da educação, assim como da economia, se, por um lado, oportuniza a imersão em contextos diferentes, pode provocar, por outro, a descaracterização do regionalizado e, mais particularmente, da identidade local. A constatação do cenário da cultura hegemônica é essencial para qualquer movimento de superação. Assim, a realidade de um mundo multicultural é, hoje, uma das verdades mais latentes e uma questão que necessita ser captada e administrada pelas relações sociais das mais diversas instituições, dentre elas as educacionais. Os espaços educativos nada multiculturais A fragilidade da escola no trato com o multiculturalismo representa a própria fragilidade da relação entre educação e sociedade. Cabe aqui ressaltar que sentimentos maniqueístas fortalecem os antagonismos, visto que tanto a ênfase na igualdade cultural como a ênfase na diferença configuram uma postura que reflete a lógica da auto- suficiênciab. As diferenças devem ser analisadas como produto da história, da ideologia e das relações de poder e constituem-se em fato incontestável. 36 A idéia de reconhecimento e complementaridade afasta a anulação de valores, conceitos, princípios e do próprio consenso. Não há acréscimos a partir de uma base hegemônica. As chamadas negociações e os diálogos entre diferentes culturas, na maior parte das vezes, caracterizam-se como processos conflitantes. A pseudo-harmonia que algumas correntes pleiteiam deve ser criticamente analisada, uma vez que pode representar o reforço da manutenção da força cultural hegemônica. Candau (1997) explicita que a desestabilização, a relativização e a própria contestação são ingredientes necessários no encontro entre culturas e, ao defender a transparência e a autenticidade cultural via currículo, considera: - a colocação da cultura como foco central dos currículos, desenvolvendo nos processos de aprendizagem o estudo das diferenças historicamente delineadas; - a sustentação da linguagem como eixo central, buscando sua identidade social; - a busca da articulação entre currículo e experiências vivenciadas pelos alunos; - a consideração da estruturação da vida em comunidade e as diferentes definições do "eu"; - a concepção da história como seqüência de rupturas e deslocamentos; - a ampliação da concepção de pedagogia, compreendendo-a como modo de produção cultural. Com essas reflexões, fica claro que a escola e sua gestão se vêem diante da necessidade de reestruturar-se e resignificar os princípios do que sejam os processos do ensinar e do aprender na entrada do terceiro milênio. A própria figura do professor, estereotipada ao longo de sua história, está a exigir uma revisão, bem como seu papel, que, longe de buscar suas bases na homogeneidade, funda-se na diversidade como construção social. Cabe esclarecer que no convite de mudança da escola não está apenas essa justificativa. Seria uma grande ingenuidade não identificar existência de apelos que se fundamentam nos valores neoliberais que, ao contrário da inclusão cultural, apregoam, mesmo que algumas vezes não explicitamente, o nivelamento. O grupo que domina" os princípios e movimentos sociais age como um rolo compressor capaz de inverter e lógicas e confundir argumentos. Recentemente, o presidente Fernando Henrique Cardoso afirmou, em outras palavras, que também não gosta do desemprego, mas que se trata de um fato, da concretude de nossos dias. A fala parece transmitir a infalibilidade ou o absurdo de se contestar o incontestável, quando se sabe que a própria globalizaçãoe seus efeitos já estão sendo revistos por países como a França e a Inglaterra, entre outros, significando o tratamento da causa e não das conseqüências. Numa outra direção, em entrevista dada à TV Educativa (28/5/1998), o professor Milton Santos afirmou que estamos vivendo um rico momento na medida em que está se aproximando a possibilidade de alteração dialética social, ou seja, a inviabilidade social do neoliberalismo acabará sendo o elemento dialético disparador e provocador de sua revisão. O Projeto político-pedagógico como indicador de diversidades Muitos são os educadores que entendem como necessidade a identificação e o respeito pelas diferenças e pleiteiam uma escola autônoma e capaz de construir e explicitar coletivamente seus rumos ou, em outras palavras, seu próprio projeto político- pedagógico. Parece que essa reflexão deixou de ser um mero modismo para representar uma proposta capaz de garantir as especificidades culturais, ideológicas, históricas, políticas etc. da escola, avançando, como se refere Santos (1995), em direção ao instituinte. Normalmente, os planos dizem respeito ao instituído e o projeto como rumo deve garantir a revisão do oficial; sem negar o instituído, projeta o instituinte. Os projetos, ao serem pensados e sistematizados, devem considerar sua imersão na diversidade, mesmo que sua origem diga respeito a um nascedouro comum, que freqüentemente é estabelecido em instâncias superiores, como as Secretarias de Educação. Isso porque cada escola é o resultado ao desenvolvimento de suas próprias contradições. 38 ricamente diversa e o referencial estabelecido é, antes, o rompimento com modelos liberais conservadores, que desconsideram a competição desigual. Implica, mesmo, a denúncia de uma matriz teórica, incrustada no fazer dos profissionais, dando a tônica das ações e decisões, mesmo sob a égide de um discurso antagônico. O "engessamento" não se restringe aos profissionais, visto que, não raras vezes, os próprios alunos são também responsáveis pela manutenção de ranços discriminatórios, levando a cultura da não-diversidade a falar mais alto. A necessidade de revisão de posturas não poupa ninguém. Esse é, sem dúvida, um grande desafio que surgiu da própria perplexidade da incompetência de fazer aflorar e efetivamente tornar possível o meramente desejado, o hipoteticamente compreendido. A idéia do fazer coletivizado e inclusivo é conhecida e aceita pelos profissionais da educação, mas a dificuldade de viabilização pode ter seu embrião na rapidez e na intensidade com que temos convivido com rupturas de explicações que, por vezes, estavam cristalizadas e bem instaladas. Santos (1995) destaca que a realidade torna-se "hiper-real" em decorrência da rapidez com que os conceitos se alteram. Acabamos nos anestesiando e passamos a teorizar, crendo que a teoria é a própria realidade com outro nome, ou seja, a teoria se auto-realiza. Em alguma medida, essa ocorrência dificulta a presença de algo que é absolutamente salutar - a identificação de perplexidades produtivas, baseadas também na dominação cultural. Caso não ocorram essas perplexidades, reforça-se a incapacidade de promover a conscientização do concreto e de tudo que seja sua referência, ou seja, a cultura do grupo e sua epistemologia subjacente. Melhor ilustrando, podemos trazer como referência a figura do professor que se vê imerso em confusões a respeito de propostas pedagógicas ditas progressistas. É possível ouvir e observar docentes "convictos" de que desenvolvem uma proposta didática construtivista, até porque esta é a tônica atual nas escolas, até organizando ações em suas salas de aula dentro dessa proposta. No entanto, como sua concepção epistemológica não mudou e a cultura da não-diversidade está amparando seus conceitos, o resultado das ações sempre se identifica via reprodução e homogeneização. Da mesma maneira, os referenciais que buscam a cultura da diversidade do coletivo e do multiculturalismo colidem com os referenciais epistemológicos opostos, que se estruturaram no parcelamento das atividades, na fragmentação, no trabalho tecnicista, na homogeneização pela ideologia dominante. A escola precisa ir além do discurso democrático, o que significa, entre outros aspectos, respeitar a concretude de sua comunidade, do efetivo exercício da democracia, por meio do qual todos - além de serem convidados a participar de um projeto comum vendo respeitados seus limites, reconhecidas suas riquezas e desenvolvidas suas potencialidade - tenham o seu tempo de amadurecimento epistemológico e tornem-se capazes de traçar seu próprio percurso reflexivo. Pesquisadores e especialistas muitas vezes participam do processo de concepção das idéias e mudanças e, se não, têm a oportunidade de conviver com elas num plano que não os denuncia - o operativo. Muitos deles vivem da produção do discurso. A imersão da mudança no cotidiano escolar caberá ao professor e aos demais profissionais que atuam diretamente com o campo de ação. Compartilham, pesquisadores e profissionais, mais uma dimensão da dicotomia teórico-prática, o que dificulta ainda mais os desafios educativos. Se o tempo não for respeitado, administradores, coordenadores, orientadores e mesmo professores, apesar do discurso em prol da construção coletiva de um projeto político- pedagógico, acabarão por cultuar a hierarquia e o privilégio da competência técnica em suas ações. Serão emboscados por suas convicções, que não só o cotidiano escolar sedimentou, mas também o contexto social mais amplo. Diante dessas circunstâncias, como reverter posturas ou instalar outra referência epistemológica interagindo multiculturalmente? Num primeiro momento é necessário que a leitura das ambigüidades seja feita. Criar espaços para confrontos entre o pensar e o agir, identificar diferenças, revisar e revisitar princípios, teorias, categorias e conceitos é prioritário e antecedente. É preciso, ainda, admitir rupturas e produzir superações que incluam o exercício da transcendência do discurso. É necessário que uma outra postura diante da realidade concreta seja processada. Caso a postura que se traduz pelas ações não se altere, mesmo que exista o discurso, o espaço estará propício para a prática autoritária e a anulação das identidades culturais que decorrem da alienação da teoria (Silva Junior 1993). A identificação de processos autoritários só pode ser trabalhada com seu processo oposto, ou seja, pelas ações colegiadas. A hipertrofia do poder é fruto do verticalismo (Cury 1985), verticalismo esse que não nasce na escola, mas, como já foi mencionado, em um contexto mais amplo, no qual governo, família ou grupos menores também são desencadeadores ou desencadeantes. Em meus quase 30 anos de atuação em escola pública pude conviver com diferentes personalidades, nas mais diversas funções, e, certamente, não conheci um profissional ditador em seu núcleo familiar que fosse um democrata no seu espaço de atuação profissional ou vice-versa. Os profissionais da educação, como os demais, podem "representar" uma certa postura, via discurso, mas vivem a essência que os constitui. Para buscar a coerência entre o dito e o feito é preciso, antes, elucidar o significado mais profundo da relação educativa e das relações do trabalho pedagógico com as outras formas de trabalho social. O significado da educação se constrói na historicidade da prática social. Um procedimento democrático escolar, traduzido por uma gestão democrática, carrega a explicitação de um princípio -"a democracia na escola pública é, antes de mais nada, condição necessária à realização de sua finalidade" (Silva Junior 1993, p. 160). No bojo dessas considerações, a possibilidade concreta da construção coletiva do projeto político-pedagógico da escola nos aparece não como fórmula milagrosa, mas como proposta desencadeadora para uma realsuperação de um projeto hegemônico, que pressupõe uma concepção de mundo e relações sociais reducionistas e empobrecidas. Em outras palavras, a concepção de projeto político-pedagógico e o multiculturalismo estão mais próximos do que muitos possam imaginar, por serem princípios interdependentes e que se complementam. Não partilhamos da visão, certamente ingênua, que entende a participação como solução dos problemas e das mazelas da escola, até como forma de desvio de atenção de outras questões igualmente relevantes, hipervalorizando um dos aspectos da realidade e desconectando-o e outras dimensões que devem estar imbricadas. "O fato de ser um espaço muito importante não pode levar a vê-lo como único" (Paro 1995, p. 331 ). Mas sem a menor dúvida os espaços de participação efetiva são o berço do respeito ao outro e da valorização das diversidades. 44 Algumas dificuldades nos procedimentos multiculturais No afã de criar os chamados espaços multiculturais, corre-se o risco de se desenvolver condutas reducionistas que tornam esporádicas a preocupação e as ações de apresentação e respeito à diversidade cultural. Não é difícil lembrar de momentos de culminância no bojo das atividades escolares, como palestras e músicas, que servem de vitrines e não interagem com o currículo. São acontecimentos que tendem a ter a efemeridade do momento em que ocorrem. Aí está o grande desafio: a incorporação do multiculturalismo ao currículo, de forma que sua transversalidade possa perpassar os conteúdos tratados no cotidiano do processo de aprendizagem. Essa idéia contradiz a "abordagem da educação compensatória, interpretando a diferença como déficit, particularmente na área acadêmica" (Candau 1998, p. 185). E pensar currículo é pensar o projeto da escola. No início deste artigo referimo-nos ao princípio de que a educação produz e é produzida pela prática social, o que, por sua vez, representa os movimentos e as expressões de uma sociedade concreta. Com essa perspectiva mais ampla, cabe destacar outro nível de dificuldade - o respaldo de políticas que promovam o multiculturalismo. O direito de educação deve estar diretamente associado ao direito à diversidade. O democrático e justo socialmente não se garante pela igualdade em tudo, mas, também, no poder ser diferente e compor o grande mosaico social, no qual a beleza do conjunto só aparece na diversidade de cada peça. Outra dificuldade diz respeito ao equilíbrio entre o cognitivo e o emocional. Estereótipos não são combatidos apenas emocional e eventualmente, quando eles se apresentam mais explicitamente. Existe uma tendência forte de sermos pendulares em nossas ações, o que pode promover a exacerbação das discussões em torno de situações "festivas", esvaziando e descaracterizando o eixo do multiculturalismo. Até que o pêndulo adquira o equilíbrio necessário, nós, educadores, devemos estar atentos, abertos a críticas e conscientes de que contradições deverão estar presentes na construção de um projeto que se pretenda multidisciplinar. A própria construção do projeto depende da capacidade de diálogos demonstrada pelo grupo, de maneira que devemos nos preocupar com as diferentes formas de diálogos que podem ser travados pelo educadores. Já existe um começo que, sem nenhum excesso de otimismo, pode estar representando o embrião de posturas coletivas mais sólidas nas escolas. Finalizando as reflexões, destaco que vivemos o momento não apenas das intensas dificuldades em entender e denunciar as raízes dos processos discriminatórios, como, também, da necessidade da construção de ações coletivas que as combatam. Não são ações que se associam a atos de heróis isolados, mas do cidadão comum que desfruta do interagir das diferenças. Para tanto, é necessário que a consistência teórica esteja engajada na luta contra as opressões e pela transformação social. De fato, não me refiro a pequenos ajustes, mas à essência da luta democrática, na qual seja levada em consideração a diferença. Segundo Moreira ( 1998, p. 33): À valorização da diferença precisa juntar-se a promoção do diálogo em prol de propósitos comuns. Nesse momento mais dificuldades emergem, tanto teóricas como práticas, já que divergências inconciliáveis entre classes sociais antagônicas precisam ser superadas na difícil construção de uma visão social que se situe além das preocupações particulares de grupos sociais específicos. Temas de tamanha complexidade só podem ser tratados com o entendimento de que a busca das certezas é limitada, quando se tem a compreensão de que a própria realidade se constitui em espaços de incertezas. A alternativa para minimizar as ambigüidades e as chamadas zonas cinzentas, que se caracterizam pela indefinição e pelo desalojamento paradigmático, é a criação de formas de revisão, e a formação dos profissionais da educação deverá ser um dos espaços revisitados. É evidente que quando o eixo central se refere à identificação de diferenças e conseqüentes transformações sociais, o mais esperado é que as relações sociais se tensionem e os conflitos apareçam. Mas, pelo que vale mais a pena viver senão pelo próprio desafio por uma vida mais digna, de inclusão, em que cada vez mais se construa pelo coletivo, porque o individual ficou fortalecido? Categorias deverão ser renovadas para iluminar a relação teórico-prática, a fim de que se possa melhor responder às complexidades do novo milênio. Bibliografia Amiguinho, Abilis. Viver a formação, construir a mudança. Lisboa: Educa, 1992. Becker, Fernando. A epistemologia do professor: O cotidiano da escola. Petrópolis: Vozes, 1993. Benjamim, Fernanda S. Educação e mudança social: Uma tentativa de crítica. São Paulo: Cortez, 1981. Candau, V.Mt. Pluralismo cultural, cotidiano escolar e formação de professores. ln: Candau, V.M. (org.). Magistério construção cotidiana Petrópolis: Vozes, 1997. _____. Interculturalidade e educação escolar. In: Anais do IX Endipe. Águas de Lindóia, 1998. Casassus, J. Modernidade educativa e modernização educacional. In: Cadernos de Pesquisa n 87. 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