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Texto sobre cultura e etnocentrismo

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A arte de sensibilizar o olhar ou por que ensinar antropologia?" (Débora Krischke Leitão) 
 
"Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara. " 
Livro dos Conselhos. * 
 
Marcel Duchamp se permite uma licença poética para definir a pintura como 
atividade retínica, como arte do olhar. Proponho que se pense então a questão da 
Antropologia , se não como uma arte do olhar, como um exercício de brincar com 
a retina. Ensinar Antropologia seria, assim, possibilitar e estimular jogos de luzes, 
de ângulos e distâncias. 
Um par de óculos e uma centenas de lentes 
A relação do homem com o mundo é sempre mediada por suas ferramentas. Ele 
constrói, apreende e interpreta a realidade a partir dos instrumentos que lhe são 
fornecidos pela cultura. Tecelão quase compulsivo de si próprio, borda sem 
cessar teias de significados para dar sentido ao mundo (GEERTZ,1989:15) Essas 
teias, onde se misturam pontos abertos e fechados, novos e antigos, e linhas de 
todas as cores, são a cultura. É a partir desse véu da cultura, dessas lentes, que 
vemos então as coisas, os outros, e a nós mesmos. 
Cada cultura, entretanto, teria seu par de lentes próprio, ou, no máximo, um certo 
número de lentes utilizáveis, um certo leque de possibilidades de formas de ver o 
mundo. As lentes de uma sociedade nunca são as mesmas de outra (BENEDICT, 
1997:19). Ainda que tenham semelhanças, são encontradas certas nuanças e 
particularidades. O que pode ser considerado ponto comum entre todos os 
homens é a armação, a existência dos óculos em si. As lentes, sempre diferentes, 
vão variar em espessura, cor e formato. 
Uma vez vendo os outros por detrás dessas lentes, e a partir de uma visão de 
mundo, há uma tendência em considerar nossa forma de ver e fazer as coisas 
como a mais correta, ou mesmo a única correta. Tal postura etnocêntrica consiste 
em tomar o que é nosso como o verdadeiro, e o que é do outro (e o que é o outro) 
como digno de reprovação, dando assim aos nossos valores um suposto caráter 
de universalidade (TODOROV, 1993: 21). 
Uma vez estando ao nosso lado todas as verdades e a certezas, estaríamos 
autorizados a interferir, em nome de nossa bondade e piedade, no que é do outro. 
Partindo desse pressuposto muitas formas de dominação, e mesmo etnocídios, 
tentaram ser legitimados. 
O Etnocentrismo não é, entretanto, exclusividade de nossa sociedade ocidental e 
moderna. É um fenômeno que se registra por toda a parte. Sobre o assunto, 
Heródoto já nos contava que: 
 
"Se fosse dada a alguém, não importa a quem, a possibilidade de escolher entre 
todas as nações do mundo as crenças que considerasse melhores, 
inevitavelmente... escolheria as de seu próprio país. Todos nós, sem exceção, 
pensamos que nossos costumes nativos e a religião em que crescemos são os 
melhores... Existe uma multiplicidade de evidências de que este sentimento é 
universal... Poderíamos lembrar, em particular, uma anedota de Dario. Sendo ele 
rei da Pérsia, chamou alguns gregos presentes em sua corte e perguntou-lhes 
quanto queriam em troca de comer os corpos de seus pais defuntos. Os gregos 
replicaram que não havia dinheiro suficiente no mundo para fazer isso. Depois 
perguntou a alguns índios da tribo chamada Callatie - que realmente comem os 
corpos de seus pais defuntos - quanto queriam para queimá-los (referindo-se, é 
claro, ao costume grego da cremação). Os índios exclamaram horrorizados que 
nem se devia falar em coisa tão repugnante"* 
Binóculos: explorando territórios desconhecidos 
Partir para o território do outro, dar espaço ao que não é familiar: esse é o 
primeiro passo para uma possível transformação do olhar, uma relativização de 
ponto de vista. A curiosidade do homem sobre si próprio sempre existiu, mas a 
passagem do curioso, do exótico e do bizarro, para uma consciência da alteridade 
é que marca realmente o pensamento do homem sobre o homem (LAPLANTINE, 
1995:13), e a reflexão a respeito da diferença. 
A diversidade cultural só pode ser compreendida se a postura frente ao estranho e 
ao estrangeiro se tornar mais flexível e permitir existência da diferença enquanto 
diferença, não enquanto hierarquia. 
Deve-se então, em primeiro lugar, aceitar que o outro existe, conhecê-lo e 
reconhecê-lo. É preciso perceber que somos apenas uma das culturas possíveis, 
e não a única. Conhecendo as diferentes formas de lidar com o mundo, as 
diferentes respostas dadas pelas mais diversas culturas é que se pode relativizar 
o que nos é o estranho, tentando encontrar, assim, no olhar do outro, o ponto de 
partida. Nossas lentes muitas vezes nos cegam, quando tentamos ver o que está 
distante. Ajustemos então essas lentes para mais longe, não deixando que nos 
ceguem para o outro e, principalmente, nos tornem míopes para nós mesmos. 
Ensinar a olhar é, assim, antes de tudo, apontar os caminhos desse olhar, 
fazendo nascer a consciência da diversidade cultural e da pluralidade das 
culturas. 
O Jogo dos Espelhos 
É a partir do reconhecimento do outro que eu posso, finalmente, entender quem 
sou. Cruzar a fronteira, deixando meu território, é a melhor forma de - olhando 
para trás - ver meu mundo com o espanto e a curiosidade que não podia germinar 
enquanto eu estava dentro dele. 
Por mais que o antropólogo tenha esse quê de viajante, não precisamos aqui falar 
em transposição de fronteiras físicas. A viagem que proponho é a de 
simplesmente enxergar o outro lado, a outra margem do lago, o que não me 
pertence e é diferente de mim. Através do estranhamento provocado pelas outras 
culturas, modifica-se a forma que temos de olhar sobre nós mesmos. 
A reflexão antropológica é, em certa medida, o exercício de um desejo narcísico 
de conhecer a si próprio. O Narciso antropológico, ao contrário daquele de que 
tanto ouvimos falar, não vê no lago sua imagem familiar refletida, e sim a imagem 
de algo que é desconhecido, rica em detalhes que, antes de ver o outro, 
passavam desapercebidos. 
É um Narciso que, em vez de apaixonado, se aproximar cada vez mais do lago 
para mergulhar em si próprio, toma certa distância para admirar-se de mais longe 
e a partir de outros ângulos. Começa, então, a estranhar a si próprio, a se 
espantar com tudo que lhe parecia banal. 
O conhecimento de nossa própria cultura só é possível, assim, através do 
conhecimento do outro, das outras culturas. A partir da experiência da alteridade 
tem lugar, então, um descentramento do olhar. Essa revolução no olhar 
(LAPLANTINE, 1996: 19) provocada pelo distanciamento permite, então, que nos 
espantemos com o que nos é mais familiar, com o que é parte de nosso cotidiano 
e da sociedade na qual vivemos. 
O jogo dos espelhos é justamente esse, tornar o estranho familiar e enxergar o 
mais familiar com espanto e estranhamento. Assim, passamos a observar mais 
atentamente tudo o que encontramos. Passamos, principalmente, a reparar. 
Bem debaixo do seu nariz 
As fronteiras entre o inato e o adquirido são extremamente tênues e vacilantes. 
Pode-se dizer que todo comportamento humano, do mais simples ao mais 
complexo, contém um pouco de cada uma dessas duas dimensões. Geertz nos 
traz o exemplo da anatomia humana: natural e fisiologicamente preparada para a 
fala, de nada serviria se vazia da cultura, uma vez que é ela que nos fornece as 
línguas, os idiomas e os dialetos a falar. (Geertz,1989:62). A relação entre 
natureza e cultura sempre foi interesse não só da Antropologia, mas de 
praticamente todas as outras formas de busca de conhecimento inventadas pelo 
homem. 
Dada sua proximidade extrema, certos hábitos e costumes culturalmente 
construídos são, muitas vezes, vistos como fenômenos naturais inatos. De muito 
perto, sua imagem se desfoca, perdendo a nitidez. Como enxergar com perfeição, 
afinal, o que está bem debaixo do seu nariz? 
A prova mais substancial de que uma série de características humanas 
naturalizadas são, na verdade, culturalmente dadas é, antes detudo, o 
conhecimento de outras realidades onde há uma variação do padrão cultural. 
Dotados de uma anatomia semelhante, damos a nossos corpos diferentes usos. A 
maneira de caminhar, vestir, sentar, comer e até mesmo rir, se dá de cultura para 
cultura, de forma diversa. É a partir da percepção da diversidade, da presença do 
outro, que se pode relativizar, portanto, nossa própria sociedade. Percebendo que 
existem outras formas diferentes da nossa de expressar a dor, outras regras de 
casamento, práticas de cura muito diferentes e distintas crenças e religiões, 
vemos também nossa cultura com outros olhos. Olhos mais críticos mas, antes de 
tudo, mais aguçados e muito mais sensíveis. 
Do olhar crítico ao olhar sensível 
As diretrizes curriculares propostas pelo Ministério da Educação estabelecem a 
construção de uma visão crítica do mundo como uma das competências a serem 
desenvolvidas em Sociologia no ensino médio. Essa visão crítica permitiria ao 
aluno "perceber-se como elemento ativo, dotado de força política e capacidade de 
transformar" 
Ela teria então o mérito de proporcionar essa postura reflexiva por ser, antes de 
tudo, uma disciplina que propõe que se pense a realidade (muitas vezes cotidiana 
e próxima de nós) de forma a fugir do senso comum. Antropologia e Sociologia, 
irmãs gêmeas (não univitelinas, porque semelhantes, mas não iguais; 
companheiras, porém independentes) têm a reflexão sobre o mundo como 
companhia inseparável. 
Pensar o mundo a partir de uma postura antropológica é, entretanto, ir além da 
visão crítica. É desafiar, sem temores, nossas próprias crenças e certezas (e as 
dos outros) mas, antes de tudo é perceber a enorme gama de elementos que 
compõe a realidade. Ensinar antropologia, mais do que mostrar o lugar de 
posicionamento crítico, é trocar incessantemente de lugar, é possibilitar que se 
experimente as mais diversas posições. É ser capaz se entregar a empatia e de 
se deixar colocar em um lugar diferente do seu, "enriquecendo a perspectiva 
pessoal com a percepção das relações que se estabelecem do ponto de vista do 
outro" (MACHADO, 1997:81). É conhecer o outro, mas principalmente 
compreendê-lo e respeitá-lo. É reconhecer, sobretudo, a existência da assimetria 
e da diversidade. 
Trazendo para dentro da sala de aula temáticas do cotidiano, a "cultura da vida", a 
Antropologia é capaz de proporcionar, espelhada na comparação com o "outro", o 
distanciamento essencial para o desenvolvimento do olhar sensível. Desenvolver 
o olhar sensível é exercitar a um só tempo uma postura crítica, política e cidadã, 
mas também, e principalmente, poética. Sófocles, dramaturgo grego autor da 
Trilogia Tebana, foi nomeado general porque, por ser poeta, era capaz de ver as 
coisas em sua totalidade sem, entretanto, perder em minuto algum a dimensão 
dos detalhes, das pequenas coisas, das gotículas de tinta que formam o quadro 
maior. Não precisaria o mundo hoje, mais do que nunca, do olhar sensível de 
generais poetas? 
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Bibliografia 
BENEDICT, Ruth. O crisântemo e a espada. São Paulo: Perspectiva. 1997 
GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC. 1989 
HERÓDOTO História. In: www.perseus.tufts.edu 
LAPLANTINE, François. La Description Ethnographique. Paris: Nathan. 1996 
LAPLANTINE, François. Aprender Antropologia. São Paulo: Brasiliense, 1995. 
LARAIA, Roque de Barros. Cultura, um conceito antropológico. Rio de Janeiro: 
Jorge Zahar Editor. 1996. 
MACHADO, Nilson José. São Paulo: Escrituras.1997 
TODOROV, Tzetan. Nós e os Outros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

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