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Carta ao Leitor Um dia histórico no STF ~ Ebem estabelecido pelaprática histórica o prin-cípio de que sobre a li- berdade de expressão repou- sam todas as demais garantias do regime democrático. Na quarta-feira passada, ao dar seu voto na decisão unânime do Supremo Tribunal Federal (STF) que considerou incons- titucionais os artigos 20 e 21 do Código Civil, que exigem a aprovação prévia dos biografa- dos ~ suas biografias, o minis- tro Luís Roberto Barroso pro- I duziu uma luminosa interpreta- ção jurídica de'ss~princípio. Barroso lembrou que inexiste hierarquia entre as normas constitucionais, mas deu três razões pelas quais "a liberdade de ex~ pressão deve ser tratada como uma liberda- de preferencial". A primeira razão, disse ele, é histórica, ressaltando que a censura nasceu junto com o Brasil, quando a carta de Pero Vaz de Ca- minha teve trechos considerados indecorosos suprimidos pelos religiosos jesuítas que fize- ram sua divulgação em Portugal. O ministro Barroso lembrou que durante o regime mili- tar havia censura ao cinema e à televisão, "apreendiam-se jornais e revistas por motivos políticos ou de moralidade e boicotava-se a publicidade dos jornais independentes,' para asfixiá-los economicamente, situação que ro- tineiramente se repete na América Latina'? A segunda: "Sem liberdade de expressão e de informação, não há cidadania plena, não há autonomia privada nem autonomia pública". oministro Barroso: '~ liberdade de expressão deve ser tratada como uma liberdade preferencial" A terceira: ''A liberdade de expressão é indispensável para o conhéclmento da histó- ria, para o progresso social e para o aprendi- zado das novas gerações". A dimensão histórica da votação de quarta-feira foi acentuada pelo advogado Gustavo Binebojm, que atuou na ação em nome da Associação Nacional de Editores de Livros (Anel): "Esta é uma causa de um país que tem pressa de se educar e se infor- mar; é causa de todos os que acreditam que as ideias e as palavras podem mudar o mun- do". A quarta-feira passada ficará como mais um contraste do Brasil com a América Latina, onde, como bem disse o ministro Barroso, são rotineiras as tentativas de asfi- xiar a liberdade de expressão. No Brasil, es- sas tentativas. recentes nunca passaram de ameaças. Isso se deve à resistência do STF, à maturidade das instituições civis, à cora- gem do Congresso - e, reconheça-se, à rei- terada profissão de fé da presidente Dilma Rousseff nas liberdades democráticas. veja 117 DE JUNHO, 2015 III J ··Não devemos retroceder nesse proce$so de conquista , das liberdades democráticas. O peso da censura, ninguém o suporta."" CELSO DE MELLO A.HISTORIA LIBERTADA Em decisão que reafirma a liberdade de expressão como fundamento da democracia, oSTF derrubou a exigência de autorização prévia para a publicação de biografias JERÔNIMO TEIXEIRA Em uma leitura superficial daquase sempre incolor letra jurí-dica, a decisão do Supremo Tri-bunal Federal na quarta-feira 10 pode até parecer modesta em seu alcance. O julgamento da ação direta de inconstitucionalidade (ADI) movida pela Associação Nacional de Editores de Livros dizia respeito à interpretação de dois artigos do Código Civil que res- tringiam apenas um gênero literário em particular. O princípio de fundo que movia a ação, porém, é basilar para a democracia moderna, como bem de1l- niu, em seu voto, o ministro Luís Ro- berto Barroso: a liberdade de expres- são. Nove ministros (Teori Zavascki es- tava ausente) consideraram, de forma unânime, que esse princípio não pode continuar sendo esmagado nos tribunais 72 117 DE JUNHO, 2015 I wja expressão não é, garantia de ,verdade ou de justiça. Ela é uma garantia da democracia ..,., brasileiros. Várias obras biográficas, sobre personagens fundamentais da história e da cultura brasileira - Lam- pião, Noel Rosa, Manuel Bandeira, Garrincha, Guimarães Rosa, Roberto Carlos -, tiveram sua circulação proi- bida. Com base no direito à intimidade garantido pelos artigos 20 e 21 do Có- digo Civil, os juízes entendiam que, pa- ra publicar uma obra do gênero, era necessária a prévia autorização do bio- grafado ou de seus herdeiros. Esse bei- ja-mão acabou: o STF declarou "inexi- gível" o consentimento prévio. A pes- quisa histórica e o direito à informação respiram com mais folga. A ministra Cármen Lúcia, relatora da ação, definiu a ressonância 'histórica da decisão com uma frase das cirandas de sua infância: "Cala boca já morreu". A corte julgou a ADI procedente, mas sem "redução de texto". Vale di- zer, o Código Civil segue inalterado, mas a leitura censória dos artigos 20 e 21 fica desautorizada. "O erro não es- tava nos artigos, mas na sua interpre- tação discricionária,' que feria o exer- cício pleno dos direitos constitucio- nais", diz o advogado Manuel Alceu Affonso Ferreira, que atuou na defesa de Estrela Solitária, biografia de Gar- rincha escrita por Ruy Castro, quando a obra foi judicialmente proibida, em 1995, em um processo movido pelas filhas do jogador de futebol. O mais emblemático caso de censura a uma biografia foi o de Roberto Carlos em Detalhes, de Paulo Cesar de Araújo, ,em 2007. Os advogados do cantor con- seguiram que Araújo e a editora Pla- neta assinassem um acordo que levou ,ao vergonhoso recolhimento da obra das livrarias. O fato de a proibição ter se dado não por decisão do juiz, mas por um acordo assinado pelo próprio autor, complica um tanto a perspecti- va de reedição. Mas Araújo diz que vai consultar seu advogado para publicar uma versão atualizada da obra. "Não quero ser Moisés, que tirou o povo do Egito mas foi impedido de cruzar o Rio Jordão", diz. veja 117 DE JUNHO, 2015 I 73
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