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Filosofia Geral

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Sumário
201. Pensamento Mítico	�
402. Nascimento da Filosofia – condições históricas	�
603. A Filosofia: surgimento	�
604. A Filosofia: caracteres gerais e diferenciações	�
805. A Razão	�
906. A busca da completude do direito grego	�
1107. Sofistas	�
1208. Pré-Socráticos	�
1409. Sócrates: a busca do conhecimento	�
1610. Sócrates: ética e julgamento	�
1711. Platão: verdade e ética	�
2012. Platão: a cidade e as leis	�
2213. Aristóteles: filosofia, ciência e práxis	�
2414. Aristóteles: Justiça universal e particular	�
2815. Helenismo: introdução; ceticismo	�
3116. Helenismo: epicurismo	�
3417. Helenismo: estoicismo	�
3818. Roma: Cícero	�
4119. Rompimento judaico-cristão	�
4420. Filosofia patrística e Santo Agostinho	�
4721. Filosofia Medieval e São Tomás de Aquino	�
5022. A Filosofia Moderna – transição e marcos	�
5523. Do capitalismo à filosofia política moderna	�
5924. Hobbes, Locke e Rousseau	�
6325. Kant: conhecimento, ação e direito	�
6826. Hegel: lógica e direito	�
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Filosofia do Direito
Prof. Adriano Ferreira
01. Pensamento Mítico
Por: Prof. Adriano Ferreira
A Filosofia é um modo de pensar específico, que supera, em determinado momento histórico, um outro modo de pensar, até então hegemônico.
Esse modo de pensar superado pela Filosofia chama-se Mito. Em termos genéricos, consiste numa narrativa sobre a origem de alguma coisa. Assim, as histórias que explicavam o origem do mundo, dos seres vivos, do bem e do mal, das guerras etc., eram mitos.
Porém, havia algo de comum a todas essas histórias: sempre explicavam as coisas ou acontecimentos terrenos a partir de deuses ou seres sobrenaturais (ou seja, “fora da natureza”, “fora do mundo”). Os mitos eram histórias narradas por pessoas específicas, escolhidas pelos deuses para transmiti-las aos humanos, e esclarecê-los a respeito da existência de tudo.
Normalmente, tais explicações davam-se de três modos básicos:
1. Encontrando “pai e mãe” de tudo: as histórias míticas podem ser genealogias, ou seja, literalmente, a busca de um discurso que explique a origem das coisas ou dos acontecimentos a partir do deuses.
Um exemplo de explicação mítica: uma pessoa tornou-se apaixonada por outra porque foi ferida pela flecha de um deus, Eros (ou Cupido). Este deus, por sua vez, é filho de Penúria (deusa faminta, miserável e sedenta) e Poros (deus da astúcia, da busca de estratagemas para resolver os problemas).
Desse modo, pessoa apaixonada, ferida por Eros, torna-se faminta e sedenta de amor. Busca diversos estratagemas para ser amado e satisfeito, oscilando entre a tristeza e o desamparo, por um lado, e a alegria e a vivacidade, por outro.
Veja: o comportamento da pessoa apaixonada está satisfatoriamente explicado, graças à “filiação” desse comportamento aos deuses que o causam. Uma pessoa apaixonada fica do modo que a caracteriza porque foi ferida por um deus e carregará consigo as características desse deus, filho de outros deuses.
2. Outra forma de narrar dos mitos é justificando as coisas e os acontecimentos não pela filiação, mas por conflitos e alianças envolvendo os deuses, que interferem na vida terrena. Uma briga entre os deuses pode resultar no apoio ou na imposição de dificuldades aos atos de determinados mortais, conforme esses mortais gozem da simpatia ou da antipatia daqueles envolvidos na briga.
Precisamos destacar que, para as civilizações marcadas pelo pensamento mítico, haveria duas temporalidades distintas: o tempo fraco, típico dos acontecimentos banais, que não duram, são efêmeros; e o tempo forte, marcado por acontecimentos extraordinários, capazes de durar, de permanecer ao longo da história.
Para tais sociedades, os atos meramente humanos são incapazes de extrapolar os limites da temporalidade fraca e de atingir a temporalidade forte, perdurando. Tudo aquilo o que é feito apenas pelos humanos irá durar pouco e se extinguir, como a vida humana se extingue.
Por outro lado, em determinadas situações, os atos humanos podem contar com o apoio dos deuses. Esse apoio é capaz de elevar o ato da temporalidade fraca para a temporalidade forte, dando a ele ou a seus frutos a possibilidade de permanecer na história. Por isso, quando os seres humanos pretendem construir coisas grandiosas, pedem, sempre, o apoio dos deuses.
Um exemplo disso é a Guerra de Troia. Especificamente no tempo fraco, seria um acontecimento banal, incapaz de perdurar: um conflito envolvendo gregos e troianos, que logo seria resolvido. Contudo, a partir do momento que sua existência extrapolou os limites do razoável (chegando a 10 anos!), a mitologia passou a explicá-lo como um ato tocado pelos deuses.
Especificamente, a Guerra de Troia passa a ser justificada não como um mero conflito decorrente de interesses comerciais opostos, mas como um conflito surge após uma controvérsia entre três deusas do Olimpo. Essas deusas se dividem, apoiando gregos ou troianos e levando consigo o apoio de outros deuses.
Agora, o fato de uma Guerra entre humanos ter durado tanto tempo e se transformado em um acontecimento inesquecível pode ser explicado por ter envolvido, em última instância, um conflito suprahumano, entre deuses. A temporalidade da Guerra de Troia tornou-se forte.
3. Além dos modos descritos acima, os mitos podem explicar os acontecimentos terrenos justificando-os como recompensas ou castigos impostos pelos deuses aos mortais.
Coisas excepcionalmente boas ou ruins que acontecem a determinada pessoa são justificadas como uma recompensa ou um castigo decorrente da satisfação ou da insatisfação dos deuses para com seus comportamentos.
Quando uma pessoa padece de males extremos, investiga sua vida pretérita para tentar encontrar algum comportamento que tenha desagradado algum deus. Quando encontra ou pensa encontrar esse comportamento, tentará corrigi-lo oferecendo algo para compensar sua falha. Muitas vezes fará o sacrifício de um animal e até, em casos mais graves, de um ente querido.
No mesmo sentido, mas de modo preventivo, aquele que embarca em uma jornada longa ou perigosa, buscará agradar alguns deuses, por meio das oferendas e dos sacrifícios, a fim de obter seus apoios e tornar-se exitoso. A falta dessas medidas preventivas soará como perigosa e eventual prenúncio de malogro da iniciativa.
O pensamento mítico, portanto, recorrendo a um desses três procedimentos básicos, torna-se capaz de explicar, de um modo satisfatório para determinadas civilizações, os principais fatos e acontecimentos da vida das pessoas. De um modo mais geral, a própria existência do mundo (Cosmogonia) pode ser facilmente compreendida pelas pessoas.
bibliografia sugerida: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. Unidade I, cap. 2, “Mito e Filosofia”.
02. Nascimento da Filosofia – condições históricas
Por: Prof. Adriano Ferreira
A sociedade grega, no final do séc. VII e início do séc. VI a.C., passa por algumas transformações que criam as condições necessárias para o surgimento da Filosofia.
Essas condições modificam as relações do homem grego com seu mundo e com o conhecimento, conferindo-lhe instrumentos teóricos que possibilitam a superação do pensamento mítico. São elas:
1. Viagens marítimas levam os gregos aos extremos do mundo Antigo, chegando a regiões nas quais deveriam habitar deuses e seres extraordinários. Todavia, os navegantes constatam que essas regiões eram habitadas apenas por seres naturais.
Tal circunstância promove um “desencantamento” do mundo, trazendo dúvidas para as explicações mitológicas de um modo geral. A partir de então, os gregos passam a exigir outras explicações para a origem do mundo e para a existência das coisas.
2. Invenções como o Alfabeto, o Calendário e a Moeda representam o mundo a partir de abstrações, permitindo aos gregos desenvolver noções racionais a respeito de temas antes concretos ou presos às explicações sobrenaturais.
O Alfabeto traz consigo uma relação diferenciada com a linguagem, que pode ser reduzida abstratamente a um conjunto de sons que,somados, possibilitam a comunicação. Com isso, as palavras não são mais encaradas como intrinsecamente vinculadas às coisas, mas apenas como sua arbitrária expressão.
O Calendário, por sua vez, revela uma noção diferenciada do tempo, como algo que passa e pode ser medido, desvinculado do devir cíclico da natureza, que traz consigo o constante recomeçar. O tempo torna-se um conceito puro, cujo evoluir pode ser registrado e medido.
A Moeda, por fim, revela o desenvolvimento de outra noção abstrata, o valor econômico. Com sua disseminação, os gregos podem recorrer a um conceito abstrato capaz de medir coisas concretas diferentes, comparando-as e trocando-as.
Todas essas invenções, em última instância, “funcionam” de um mesmo modo: incorporam noções abstratas a coisas concretas ou levam as coisas concretas às noções abstratas. Ora, tal mecanismo “ensina” os gregos a fazer abstrações, afastando-se das características aparentes dos objetos, chegando a ideias racionais e sem recorrer aos deuses. Isso é fundamental, pois esse processo corresponde ao “pensar” do filósofo.
3. Surgimento da vida urbana e do dinamismo comercial das cidades leva a um questionamento às explicações imobilistas dos mitos, típicas de sociedades também pouco dinâmicas, marcadas pela vida rural. No campo, o tempo passa conforme os ciclos naturais, as estações do ano se repetem e a vida transcorre sempre do mesmo modo; nas cidades, o tempo natural perde seu sentido, o ritmo do ano passa a ser ditado pelo comércio e a vida é “agitada” pela vida social intensa. A Razão mostra-se mais adequada a esse dinamismo.
4. Invenção da Política traz consequências marcantes para a sociedade grega e soma-se aos fatores que negam força aos mitos. A Política, em suma, consiste na organização da vida comum, que se passava nas cidades (Pólis). Essa organização materializava-se nas leis (normas). Os gregos, a partir dessa atividade de organizar suas cidades por meio de leis, passam a conceber o mundo como uma estrutura que possui regras. Justamente uma das funções do filósofo é descobrir as leis que estruturam o mundo.
Além disso, a política traz consigo um modo de funcionar que pressupõe o uso público da palavra. O discurso mítico é um discurso que não pode ser questionado pelo homem comum, derivado de pessoas escolhidas pelos deuses e marcado pelo segredo. Ao contrário, o discurso político deve ser questionado, pode ser elaborado por qualquer pessoa e busca abolir os segredos.
Assim, os gregos habituam-se, aos poucos, a um discurso que pode, inclusive, ser ensinado aos jovens, levando a um ideal de educação voltado ao uso da palavra.
Somados os fatores acima, constata-se que havia, no mundo grego do período, um ambiente extremamente favorável para o surgimento da filosofia. Trata-se de um modo de pensar que parte de um mundo desencantado, requer a capacidade de se fazer abstrações, discute a mobilidade e a imobilidade do ser e necessita do discurso livre e racional para se materializar.
bibliografia sugerida: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. Unidade I, cap. 1 e cap. 2.
03. A Filosofia: surgimento
Por: Prof. Adriano Ferreira
Na passagem do século VII para o VI a.C., a sociedade grega passa por algumas transformações históricas que levam à crise do pensamento mítico.
Alguns gregos, oriundos de colônias localizadas no Mar Egeu e suas adjacências, começam, então, a buscar novas formas de pensamento que expliquem a origem do mundo sem o recurso aos Deuses. Essa busca pressupõe a constatação de que o discurso pode levar à verdade, não mais considerada um privilégio secreto e misterioso, revelada apenas aos sacerdotes, mas sim algo público, suscetível de ser descoberta, ensinada e transmitida a todos.
No século V a.C., Pitágoras de Samos inventa a palavra que designará, até hoje, a postura adotada por essas pessoas: FILOSOFIA. Literalmente, significa a amizade (FILO) pela sabedoria (SOFIA), indicando que a sabedoria completa e plena não é propriedade de qualquer ser humano, mas que todos podem e devem amá-la e desejá-la.
O filósofo deseja, assim, incessantemente, encontrar a sabedoria. Sabe que nunca a possuirá integralmente, mas sempre precisará buscá-la. Aquele que se considera seu possuidor e deixa de procurá-la, dela começa a se afastar. Perde o desejo e deixa de ser um filósofo.
bibliografia sugerida: CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. Unidade I, cap. 1 e cap. 2.
04. A Filosofia: caracteres gerais e diferenciações
Por: Prof. Adriano Ferreira
O novo modo de pensar que surge entre os gregos, chamadoFilosofia, “funciona” a partir de alguns mecanismos peculiares. Ofilósofo “pensa”, naquele momento, seguindo um mesmo roteiro básico.
A busca pela verdade deve problematizar toda a qualquer explicação preestabelecida, questionando-as. As explicações míticas, aceitas por força da tradição, precisam ser submetidas a uma reavaliação, pois não satisfazem mais os novos critérios que norteiam o pensamento. As aparências nem sempre revelam a realidade fundamental de alguma coisa, e aquelas explicações que se limitam a encontrar essa aparências também precisam ser descartadas.
O novo procedimento filosófico, de busca incessante, elege a RAZÃOcomo critério para se chegar à verdade, negando importância a outros critérios que se pretendam superiores a ela. Assim, por exemplo, o já citado pensamento mítico é desconsiderado, por submeter a razão às narrativas envolvendo seres sobrenaturais.
O grande desafio do filósofo é encontrar explicações que se bastem na própria razão, sendo satisfatória sem a necessidade de recorrer a fundamentos sobrenaturais ou irracionais. Para vencê-lo, deve constantemente demonstrar e fundamentar (racionalmente) suas afirmações, apresentando argumentos e submentendo-as às dúvidas e às discussões.
O bom filósofo consegue formular teorias cujos argumentos racionais podem ser submetidos a severas discussões, que questionam sua estrutura e seu fundamento, sem perderem sua força de convencimento.
Além disso, o discurso filosófico opera com dois mecanismos típicos: a generalização e a diferenciação. O filósofo deve ser capaz de vencer a ilusão causada pelas aparências e encontrar, racionalmente, o que há de comum entre objetos ou fenômenos (que parecem diferentes entre si), catalogando-os em um único grupo geral. Ou ainda deve ser capaz de fazer o oposto, mostrando que a semelhança entre alguns objetos ou fenômenos é apenas aparente e demonstrando as características próprias de cada um deles.
Convém constatar que a Filosofia diferencia-se do Mito sob alguns aspectos.
Inicialmente, a explicação mítica volta à origem das coisas e dos fenômenos, encontrando, nessa origem, uma narrativa que recorre aos deuses. Já a explicação filosófica, por sua vez, não se limita a buscar a origem dos fenômenos, embora também se preocupe com isso. A Filosofia busca a explicação sobre tudo, em todos os tempos, durante todo o tempo.
Ainda podemos diferenciá-los alegando que o Mito explica a origem, conforme dito, recorrendo aos seres divinos. Todas as coisas derivam de atos que envolvem deuses. Já a Filosofia limita-se a explicar as coisas e os fenômenos a partir de elementos naturais e de seus movimentos, sem o recurso ao sobrenatural (que estaria fora da natureza e, portanto, seria inexplicável racionalmente).
Um exemplo de explicação filosófica é a tentativa de reduzir todos os objetos aos quatro elementos naturais (água-úmido, ar-frio, fogo-calor, terra-seco) e seus movimentos de combinações e repulsas. Os seres são reduzidos a tais elementos e suas características explicadas pelo predomínio de um deles ou por suas combinações.
Por fim, convém acrescentar que a explicação mítica não é racional, ou seja, não se preocupa com a eliminação de contradições ou com o esclarecimento do incompreendido. Trata-se de um discurso movido pela autoridade de quem o revela, cercado de mistérios e sem a necessidade de um encadeamento lógico.
A explicação filosófica não aceita tais “irracionalidades”.Seu discurso precisa ser coerente, não podendo justificar-se na autoridade de quem o profere, mas precisando submeter-se, reiteradamente, à prova das discussões públicas. As contradições precisam ser eliminadas, assim como o incompreendido torna-se inaceitável e precisa ser esclarecido.
Podemos constatar, dadas as colocações anteriores, que a Filosofia é um modo de pensar que possui características próprias e diferenciadoras, delimitando-se como um mecanismo de pensamento novo e inovador no momento em que surge.
bibliografia sugerida: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. Unidade I, cap. 1 e cap. 2.
05. A Razão
Por: Prof. Adriano Ferreira
O principal instrumento de que se vale o filósofo para estruturar seu pensamento e para medir o grau de veracidade de sua tese é aRAZÃO.
Duas palavras da cultura antiga, ratio, de origem latina, e lógos, de origem grega, dão o significado original para nossa palavra razão: ao mesmo tempo, significam pensar e falar, de um modo organizado e proporcional, construindo um discurso claro e compreensível para outros.
Podemos considerar que razão designava, assim, ao mesmo tempo, o encontro, no plano do pensamento, com a ideia fundamental sobre alguma coisa e a transformação dessa ideia em um discurso, em uma fala que pudesse ser comunicada de modo compreensível a outras pessoas.
Também podemos considerar que a palavra designa o próprio mecanismo de descobrir o princípio de organização de alguma coisa, ideal ou concreta, de tal sorte que essa coisa, depois de vista como organizada “racionalmente”, pode ser mais facilmente compreendida pelas pessoas.
Assim, a Razão consiste no princípio último de organização da realidade, que, se descoberto pelo filósofo, revelará a ele a verdadeira estrutura do ser, compreensível e comunicável.
Nesse movimento de busca da verdade, a Razão precisa vencer alguns obstáculos, que desviam o filósofo de seu encontro. Um grande obstáculo é a aparência ou a ilusão que, trazida pelos costumes, pelos preconceitos, pelo imediatismo das pessoas, revela apenas uma falsa organização do ser e impede o acesso a sua estrutura mais profunda e verdadeira, também chamada de sua essência.
Outros obstáculos são as paixões, forças cegas, caóticas, desordenadas e contraditórias, que afastam o filósofo da postura prudente e controlada que deve nortear o pensamento.
Também a religião se opõe à Razão enquanto critério da verdade. A postura religiosa valoriza a autoridade de quem produz o discurso, derivando-a de uma revelação divina. Isso é inaceitável sob o ponto de vista racional, pois a verdade deve ser buscada pelo filósofo, tornando-se fruto de seu trabalho intelectual, sendo muito mais transpiração do que inspiração.
Da religião deriva também a crença de que a verdade pode derivar de um êxtase místico, de uma relação direta entre o ser divino e seu profeta, sem passar pelo intelecto da pessoa “iluminada”. Tal estado é quase o oposto da postura racional, pois traz uma sensação de encontro com a verdade não comunicável, que somente pode ocorrer naquele que entrou em contato com os deuses.
O filósofo luta contra os obstáculos acima, movimentando seu pensamento em busca da verdade, que consiste, conforme afirmado, no encontro com o princípio de organização ou de constituição das coisas e dos fenômenos. Ou seja, no encontro da Razão, do lógos de cada coisa.
bibliografia sugerida: CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. Unidade II, cap. 1.
06. A busca da completude do direito grego
Por: Prof. Adriano Ferreira
Com o fim das fundamentações míticas para explicar os fenômenos, os gregos deparam-se com o problema de encontrar fundamentos racionais (lógicos) que os expliquem. Trata-se de um verdadeiro desafio: explicar ou justificar todas as coisas sem recorrer ao sobrenatural ou ao divino.
No mesmo momento histórico, as cidades gregas começam a ser estruturadas a partir de normas laicas e positivas. Até então, concebia-se que toda a ordem do universo e da Pólis derivava de situações míticas. Com a crise na crença nos mitos, as normas tornam-se frutos das discussões políticas e não de atos de revelação religiosa.
As normas, assim, passam a ser consideradas laicas, pois não são criadas pelos deuses, mas pelos humanos. Elas são positivas, ou seja,postas ou criadas por um ato de vontade coletiva, por uma decisão política dos cidadãos.
Trata-se de um rompimento significativo, sobretudo para a história do Direito. A partir de então, falar de direito é falar de algo criado pelos seres humanos para os seres humanos. As normas correspondem a um momento político, materializando a vontade coletiva da cidade grega.
Surge, porém, o desafio descrito inicialmente: se as normas são criadas apenas por seres humanos e não pelos deuses, como podem ser justificadas? Em outras palavras, em sendo os seres humanos meros mortais, são falíveis, podem errar. Como saber se as normas laicas e positivas são boas ou justas? Haveria um critério para medir a qualidade de uma norma?
Podemos considerar que a filosofia do direito comece com a busca a tais respostas, com a necessidade de superar o desafio de fundamentar o próprio direito sem recorrer aos deuses.
Esse é o impasse que vive Creonte, na tragédia Antígona: não consegue encontrar um fundamento para suas decisões mais forte do que os mitos, aos quais ele se recusa a submeter-se. Antígona, que pode simbolizar o ideal aristocrático decadente, refuta a possibilidade de uma norma laica e positiva ser mais forte do que uma norma derivada dos deuses. Mas o momento da peça não mais permite o predomínio mítico, levando ao fim trágico dos personagens.
A superação ao desafio de fundamentar as normas envolve o encontro de respostas que situem o direito em um contexto mais amplo, colocando-o em harmonia com as regras do universo (kosmos) e da natureza (physis), demonstrando a completude da vida. Haveria a necessidade de se demonstrar, racionalmente, que a Pólis encontra-se em um espaço dentro da natureza e do universo e que as leis que regem a cidade estão em sintonia com as leis que regem esse ambiente.
Além disso, também devemos considerar que, dentro da Pólis, o direito é apenas uma faceta da existência completa do homem grego. Há uma complementaridade trazida pela facetas política e ética da existência. Em linhas gerais, politicamente os gregos criam a norma (o direito) e estabelecem os espaços éticos de cada cidadão.
A busca da completude do direito grego é a busca da fundamentação racional de suas normas. Demonstrando-se que a norma está em harmonia com o universo e a natureza, por um lado, e com a política e a ética, por outro, resolve-se a questão de se saber se ela é boa ou não, justa ou injusta.
Uma grande dificuldade sempre enfrentada pelos filósofos envolve a questão de situar a Pólis em relação à natureza. Será que as normas criadas na cidade devem simplesmente reproduzir, em um tom humano, o teor das normas pré-existentes na natureza? Ou uma norma humana pode radicalmente transformar as normas naturais, como o homem transforma a natureza para produzir a cultura?
As diversas respostas a essa última questão revelam a constante preocupação dos filósofos de fundamentar o direito e a liberdade humana sem desprezar sua primordial condição natural.
Em suma, com a crise do mito, os filósofos precisam justificar o direito. Essa justificativa espera situá-lo, sempre que possível, de um modo harmônico na totalidade da existência física e moral.
07. Sofistas
Por: Prof. Adriano Ferreira
Um dos primeiros grupos de pensadores na Grécia Antiga foi chamado de sofistas. Seus pensamentos eram diversificados, mas, essencialmente, convergiam para a superação da fundamentação mítica do universo e das sociedades humanas.
Muitos sofistas dominavam, entre outras técnicas, a “arte da palavra” ou do “discurso”. Estudavam os mecanismos de argumentação e convencimento utilizados nas discussões e cobravam para ensiná-los. Alguns afirmam que foram os primeiros professores particulares dahistória.
Pensando no contexto da democracia ateniense, a importância dos sofistas cresce significativamente. É interessante ter em mente que a base da política de Atenas era a participação dos cidadãos na Assembleia em igualdade de condições (isegoria), ou seja, todos tinham o mesmo direito de falar em público. Se o peso inicial da palavra era o mesmo, destacar-se-ia aquele cidadão que pudesse fazer o melhor discurso.
Pois bem, os sofistas, entre outras coisas, ensinavam técnicas para se fazerem discursos convincentes. Daí muitos cidadãos passarem a procurá-los, pagando altas somas, para educarem seus filhos, na expectativa de que se tornassem ótimos oradores e, por consequência, atenienses memoráveis.
Mas, se eram procurados e cobravam caro por seus ensinamentos, estavam também sujeitos a críticas. Por um lado, os cidadãos tradicionais, dotados de um pensamento aristocrático (governo dos melhores), questionavam os ensinamentos sofísticos. Segundo eles, os sofistas ensinavam a persuadir, mas não ensinavam as virtudes cívicas, que dependiam de outros fatores, como a estirpe e o caráter. Assim, os jovens educados pelos sofistas seriam ótimos oradores, mas não necessariamente teriam os outros requisitos indispensáveis para serem bons cidadãos.
Por outro lado, os sofistas eram criticados pelos filósofos adeptos de Sócrates (socráticos). O foco da crítica estava no fato de a maioria dos sofistas não acreditarem na existência de uma verdade universal (alethéia), mas apenas de uma verdade relativa derivada do debate e do convencimento (doxa).
Independentemente das críticas, o papel dos sofistas é dos mais relevantes na formação da cultura democrática ateniense. Seja atuando enquanto professores, seja participando de infindáveis discussões públicas, eles disseminam entre os jovens e os cidadãos uma grande paixão pelo debate e pelo questionamento, incentivando o uso da palavra e da argumentação. Tal ambiente culmina nas discussões realizadas na Assembleia, moldando democraticamente a cidade de Atenas.
Também devemos ressaltar que os sofistas problematizam acompletude do mundo grego. Não acreditam, no geral, que seja possível encontrar um fundamento na natureza (phýsis) para a existência humana na cidade (Pólis), sob a égide das normas (nómos).
Enquanto o desafio dos filósofos era demonstrar que as normas criadas pelos gregos derivavam harmonicamente do universo e da natureza, os sofistas negavam tal derivação.
Dois grandes grupos de sofistas podem ser apontados. Os sofistas naturalistas não acreditavam que as normas humanas pudessem corresponder às normas naturais, por incapacidade dos homens. Já os sofistas convencionalistas, por sua vez, não acreditavam que as normas humanas tivessem que corresponder às normas naturais, sendo autônomas e construindo uma realidade própria.
Infelizmente, durante séculos, os sofistas foram considerados pensadores menores e desprezados por uma tradição socrática que sequer os nomeia como filósofos. Há um movimento no sentido de reabilitarmos seus pensamentos e os problemas que trouxeram à busca da verdade que não recorre aos mitos.
Referência bibliográfica:
BILLIER, Jean-Cassier e MARYIOLI, Aglaé. História da Filosofia do Direito. Barueri: Manole, 2005, cap. 1 e cap. 2 (item 2) – pp. 57 a 67.
08. Pré-Socráticos
Por: Prof. Adriano Ferreira
Os filósofos pré-socráticos não viveram necessariamente antes de Sócrates. Muitos deles foram contemporâneos a ele, ou viveram posteriormente. Todavia, ao contrário dos filósofos “socráticos”, não colocaram o ser humano como tema central de suas reflexões.
Podemos, assim, agrupar tais filósofos sob o ponto de vista das questões que seus pensamentos enfrentam: são questões universais, preocupadas com os temas gerais que explicam a existência de todos os objetos, como, por exemplo, a qualidade essencial do SER. O filósofos pré-socráticos, assim, discutem a essência do cosmos(universo) e da phýsis (natureza).
Anaximandro de Mileto, nesse sentido, afirma que existe algo único que dá origem e causa o desaparecimento de todas as coisas. Podemos chamar esse “algo” de uma força ou uma energia, que dá um curso para o desenvolvimento dos seres na natureza.
Devemos notar uma característica do pensamento pré-socrático, que, de certa forma, também se conserva no pensamento socrático: a busca da completude. A mesma força de Anaximandro movimenta o universo, a natureza e a cidade.
Entre os pré-socráticos, torna-se célebre a divergência entre Heráclito e Parmênides, cada um dos quais afirmando que o SER, em essência, poderia ser explicado a partir de uma constatação oposta à feita pelo outro.
Heráclito de Éfeso considera o SER, em sua essência universal, como o constante movimento, a eterna mudança. Usando como exemplo os rios, cujo fluxo contínuo aparece sob a forma de uma imobilidade, afirma que todas as coisas, não obstante uma possível aparência de imobilidade, são, em verdade, móveis.
Um pensador que deseje chegar à verdade, assim, deve negar a ilusão causada pela aparência e constatar a mobilidade essencial de tudo. A chama de uma vela, noutro exemplo, parece imóvel; sua essência, porém, é um processo contínuo de combustão, um movimento, portanto.
Parmênides de Eleia, por sua vez, defende a tese oposta. Considerado por muitos o criador da lógica tradicional, desenvolve seu pensamento a partir de um raciocínio inflexível: o ser é; o não ser não é.
Partindo dessa constatação, jamais admite a hipótese de que algo que seja, deixe de ser, tornando-se o que não era (o não ser). Também refuta a ideia de que algo que não é transforme-se naquilo o que não seja (algo que era uma coisa se torne outra, que não era). O ser, portanto, sempre será; e o não ser, nunca será.
Seu pensamento considera que todas as coisas, em sua essência, são imóveis e imutáveis. O movimento e a mutabilidade consistem em formas aparentes do SER, que devem ser negadas pela razão, na busca da essência que explica o fenômeno.
Tornam-se famosas as aporias criadas por Zenão de Eleia, que demonstram, defendendo a posição de Parmênides, a impossibilidade lógica do movimento.
Conforme uma dessas aporias, um objeto em um ponto A jamais atinge um ponto B, pois para fazê-lo precisa percorrer infinitas metades entre os pontos, sendo necessário um tempo infinito para percorrê-las. Ou seja, o movimento do objeto de A para B é uma ilusão.
Outra aporia consiste em afirmar que uma flecha atirada contra o alvo, se focada em cada instante de seu aparente movimento, será vista como estando em repouso. Ora, o movimento é a soma desses instantes, sendo que em cada instante o espaço percorrido é zero, resultando num movimento final igual a zero. A chegada da flecha ao alvo também é ilusória.
Para finalizar, devemos destacar novamente o caráter das preocupações dos filósofos pré-socráticos: o SER em suas manifestações universais. São discussões abstratas que buscam os fundamentos últimos da completude.
Referências:
CHAUÍ, Marilena. Introdução à História da Filosofia.
MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do Direito. São Paulo: Atlas, 2009.
09. Sócrates: a busca do conhecimento
Por: Prof. Adriano Ferreira
Sócrates é considerado o fundador de uma nova tradição na filosofia ocidental, não por acaso chamada de tradição “socrática”. A partir dele, a filosofia deixa de preocupar-se com questões mais amplas, como o fundamento universal do SER e caracteres gerais da natureza, para focar o ser humano, ainda que situado na cidade (Pólis), como seu grande tema.
Duas frases ilustram o espírito filosófico de Sócrates:
1. “Conhece-te a ti mesmo” – tal frase, inscrita no templo de Apolo Delfo, foi tomada como uma missão por Sócrates. Ele considerava fundamental que todos, inclusive ele, antes de tudo, conhecessem a verdadeira essência de si. Só conhecendo suas limitações e suas potencialidades as pessoas poderiam pensar e, consequentemente, viver felizes. Seu papel, assim, torna-se ajudar as pessoas a encontrarem o auto-conhecimento;
2.“Sei que nada sei” – Sócrates constantemente afirmava que só possuía uma única certeza: que nada mais sabia. Em consequência, ele nunca se apresentou como uma encarnação divina da verdade, nem mesmo como seu porta-voz. Ao contrário: consciente de sua ignorância, sempre buscava o conhecimento; consciente de suas limitações, sabia que nunca alcançaria todo o conhecimento.
A vida de Sócrates mudou radicalmente quando recebeu uma revelação do Oráculo de Delfos, afirmando que ele era o mais sábio dos homens. Isso o espantou: como ele, que somente sabia que nada sabia, seria o mais sábio dos homens?
Seu espanto transformou-se em obsessão, e ele passou a procurar, em praça pública, aqueles cidadãos atenienses que eram considerados sábios. Convidava-os para uma “conversa”, formulando perguntas a fim de verificar se realmente possuíam o conhecimento que alegavam ter. O resultado de suas investigações confirmou o oráculo: todas as pessoas com quem conversara mostraram-se falsos sábios, pois não conseguiam sustentar racionalmente suas convicções, fatalmente caindo em contradições.
Assim, Sócrates compreende que era, de fato, o mais sábio dos homens, ainda que possuindo um único conhecimento certo e seguro, qual seja, o de que nada mais sabia. E conclui que o verdadeiro sábio parte do reconhecimento da própria ignorância, condição para empreender-se a busca da verdade.
Para ele, o conhecimento não é um estado da alma, ou um objeto que se possui, mas um processo, uma busca constante. A verdade plena existe, mas é muito maior do que qualquer humano. O sábio aproxima-se dessa verdade ao constatar que cada nova verdade parcial descoberta suscita um vasto e infinito campo de dúvidas, que levam a outras verdades parciais, resultando numa busca ininterrupta.
É preciso deixar claro que Sócrates, durante sua vida, sempre buscou diferenciar-se de outro grupo de pensadores, os Sofistas. Primeiro, conforme mencionado acima, ele acredita na existência de uma verdade plena; os Sofistas, por sua vez, acreditavam apenas nas verdades derivadas do consenso discursivo (se as pessoas concordarem quanto a algo, esse algo torna-se uma verdade). Além disso, Sócrates não vende seus ensinamentos nem apresenta respostas às perguntas de seus discípulos. Ao contrário, seu papel é formular perguntas, instigar as dúvidas, abalar as certezas. Os Sofistas eram considerados professores, pois “ensinavam” respostas e certezas a seus alunos, úteis nos momentos de discussão.
Sócrates considera-se apenas um parteiro das almas, uma pessoa que auxiliava outras a terem ideias. Sua convicção era a de que todas as pessoas podiam ter ideias, pois possuíam uma capacidade inata para tanto. Seu papel não seria o de transmitir suas ideias às pessoas, mas de ensiná-las a terem suas próprias. Daí sua postura de “parteiro”: as ideias estão na alma das pessoas e ele apenas mostrará o caminho para que elas venham ao mundo.
Justamente o que Sócrates desenvolve e ensina é seu método (a palavra, originariamente, significa “caminho”) de busca da verdade. Esse método consiste num diálogo entre Sócrates e seu interlocutor, pelo qual mostrará a este o caminho que deve percorrer para descobrir a verdade de algo.
É interessante notar que, ainda hoje, recorremos ao método socrático quando temos uma “conversa séria” com alguém. Chamamos uma pessoa para uma conversa particular e tentamos mostrar a ela que suas opiniões divergem da verdade e que seus atos precisam ser modificados.
Com relação a Sócrates, talvez, a grande diferença está no fato de suas conversas serem, muitas vezes, em espaços públicos de Atenas e não necessariamente “em particular”.
O método socrático inicia-se com a exortação, ou seja, o convite ao interlocutor para o diálogo. Uma vez que o convite é aceito, começa a segunda fase, a indagação. Primeiro, durante a conversa, Sócratesironiza as opiniões de seu interlocutor, ou seja, mostra, por meio de perguntas, que ele está iludido pelas aparências e pelos preconceitos.
Caso a ironia seja bem sucedida, Sócrates desperta a dúvida na alma de seu interlocutor e ele está preparado para, sozinho, pensar e chegar às ideias verdadeiras sobre algo. Esse último momento é amaiêutica, ou, literalmente, o parto das ideias. Embora os caminhos tenham sido mostrados por Sócrates, é indispensável que o interlocutor os percorra sozinho, aprendendo, por si, a duvidar de suas descobertas e a incessantemente “parir” novas ideias.
Podemos perceber, pelas palavras acima, que Sócrates foi um filósofo admirável. Sua atuação, ao contrário daquela desenvolvida pelos sofistas ou pelos adeptos do mito, não traz respostas ou conhecimentos para as pessoas. De um modo mais profundo, tudo o que ele sempre pretendeu fazer foi transmitir o maior ensinamento que alguém pode receber: a arte de pensar.
Referências:
CHAUÍ, Marilena. Introdução à história da filosofia.
10. Sócrates: ética e julgamento
Por: Prof. Adriano Ferreira
A postura de Sócrates de ensinar as pessoas, antes de tudo, a pensar, torna-se mais bela se verificarmos que se soma à sua concepção de ética.
A ética pode ser resumida como a busca do aperfeiçoamento do indivíduo. Uma pessoa age eticamente quando seu ato pode levá-la a uma melhoria em seu caráter.
Para Sócrates, as pessoas agem de um modo correto, de um modo ético, porque sabem o que estão fazendo, porque efetivamente pensaram e entenderam o significado e as consequências de seu ato. Para ele, se uma pessoa conhece o bem, por meio do pensamento, irá agir no sentido de concretizá-lo.
Por outro lado, as pessoas fazem coisas erradas, ou “besteiras”, como diríamos hoje, porque não pensaram o suficiente antes de agir. O ser humano deveria controlar suas paixões, investigar os fatos sem se iludir com as aparências ou os preconceitos, buscando conhecê-los verdadeiramente.
Sócrates considera, assim, haver uma relação direta entre o pensamento e a ética, sendo aquele pressuposto desta. Também poderíamos concluir que a busca socrática do conhecimento possibilita uma ação ética que leva, por consequência, à felicidade. Assim, pensar permite ao indivíduo, em última instância, ser feliz.
Não obstante as inferências sobre a ética feitas acima, sabemos que Sócrates foi levado, em Atenas, a julgamento. Os cidadãos o acusaram de corromper a juventude e de cultivar novos deuses, violando a religião da cidade. Alguns diálogos escritos por Platão contam essa história: Eutífron, Apologia, Críton e Fédon.
Sócrates foi considerado culpado e condenado à morte. Ele poderia ter proposto uma pena alternativa e, depois, poderia ter fugido. Escolheu, todavia, morrer. Preferiu cumprir a lei a desobedecer. Qual a razão disso?
Em sua vida, ele sempre deu exemplos de cumprimento às normas políticas de Atenas, mesmo quando isso poderia causar constrangimentos perante os demais cidadãos. Ao obedecer à pena de morte, daria mais uma mostra de suas concepções cívicas, deixando para seus contemporâneos o exemplo do respeito aos preceitos normativos, ainda quando injustos.
Por outro lado, podemos focar não seus contemporâneos, mas os pósteros. A interpretação seria outra: Sócrates sempre duvidara da verdade consensual, derivada das discussões, em nome de uma verdade superior, somente acessível ao pensamento racional. A decisão que o condenara foi fruto de um consenso entre os cidadãos atenienses, que o julgaram culpado.
Ele, todavia, considerava seus atos louváveis. Fizera toda uma geração de jovens pensar. Ensinara o valor inestimável da dúvida eterna e constante. Questionara a autoridade dos “falsos sábios”. Ao aceitar a condenação à morte, mostrava para as gerações futuras os perigos de uma verdade meramente consensual e, portanto, equivocada. Nem sempre a verdade da maioria corresponde à verdade absoluta, que somente pode ser descoberta por quem se disponha a pensar.
Independentemente das interpretações possíveis, o comportamento de Sócrates resulta em algo admirável, seja enquanto lição para os demais atenienses, seja enquanto liçãopara nossa geração do presente. Sua ética, que liga a razão ao bom comportamento, é outra herança que nos enriquece. Só o pensamento racional leva à busca da verdade; só a busca da verdade permite a felicidade.
Referências:
CHAUÍ, Marilena. Introdução à história da filosofia.
MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do Direito. São Paulo: Atlas, 2009, cap. 4.
11. Platão: verdade e ética
Por: Prof. Adriano Ferreira
Platão foi o mais ilustre discípulo de Sócrates. Graças a ele, inclusive, conhecemos o pensamento socrático. Suas teorias levam adiante a missão do mestre, buscando a sabedoria de modo incessante e consolidando a crença de que a descoberta da verdade leva à ação correta.
Devemos duas grandes obras a Platão: a Academia e os diálogos. Quanto à primeira, o filósofo construiu uma escola que é considerada o primeiro instituto de investigação filosófica do ocidente. Constituída por salas de aula, uma biblioteca e um auditório, foi frequentada pelas principais personalidades gregas, como matemáticos, astrônomos, políticos e filósofos (Aristóteles estudou na Academia por vinte anos).
A Academia combatia outra escola, a Escola de Retórica, fundada pelo sofista Isócrates, que ensinava valores éticos e políticos. Seguindo a linha socrática, os alunos da Academia aprendiam a pensar, a buscar a verdade e a autodeterminação ética e política.
Havia dois cursos: o curso básico (“exotérico”, voltado para o público externo) e o curso avançado (“esotérico”, voltado para o público interno, composto por filósofos). Para facilitar a compreensão do primeiro curso, Platão escreveu os diálogos.
Por meio desses textos, portanto, Platão expõe os conceitos básicos da filosofia e revela muitas das ideias de seu mestre, Sócrates. São muito bem escritos, constituindo-se não apenas documentos filosóficos, mas também literários. Porém, revelam tão somente a face “exotérica” do autor, não permitindo o conhecimento dos conteúdos ministrados no curso “esotérico”. Ainda assim, perfazem uma herança de valor inestimável.
Devemos destacar a postura platônica e de sua escola de combater aos sofistas e sua “retórica”. Conforme a perspectiva de Platão, a Retórica ensinaria aos jovens a arte do convencimento por meio da sedução e do prazer causados pelas palavras e pelos argumentos pré-elaborados. Não teria a capacidade de convencer pela força racional de suas teses, única capaz de levar à verdade. Assim, a retórica tornar-se-ia a arte do logro e do engano, afastando seus adeptos do conhecimento.
Chegamos, aqui, à concepção platônica de verdade. Haveria dois planos ou “mundos” em nossa existência: um plano superior, onde estão as ideias, e um plano inferior, onde está o real. Nós viveríamos no plano da realidade, rodeados por coisas e fenômenos aparentes, aos quais podemos detectar por meio dos sentidos. Nesse plano, todavia, obtemos apenas um conhecimento deformado, ilusório, que afasta da verdade. O consenso obtido pela retórica estaria preso a este plano, sendo, assim, indesejável.
A verdade situar-se-ia no plano das ideias, sendo compreendida pelo intelecto, por meio de um processo, chamado de dialética. Os seres humanos, portadores da capacidade intelectual, deveriam afastar-se da ilusão trazida pelos sentidos e pelas opiniões consensuais, compreendendo racionalmente a ideia e chegando, assim, à verdade.
Em sendo Platão discípulo de Sócrates, reafirma a tese de que o conhecimento verdadeiro leva ao Bem, pois faz com que as pessoas ajam de maneira correta. Em última instância, os sábios tornam-se felizes, pois não se iludem e não agem de modo errado.
A concepção platônica de Ética, todavia, torna-se um pouco mais refinada se considerarmos que pressupõe a Teoria da Alma. Conforme essa teoria, nossa alma estaria dividida em três partes, cada qual cuidando de determinadas funções do organismo:
1. Alma apetitiva – esta parte da alma cuidaria da manutenção e da reprodução do corpo vivo. Situada na região abdominal, causaria no ser as sensações apetitivas de fome, de sede e de desejo sexual, por exemplo.
2. Alma colérica – esta parte da alma cuidaria da segurança do corpo vivo. Situada na região toráxica, causaria, por seu turno, as sensações de medo e de fúria ou coragem.
3. Alma racional – esta parte da alma, situada na cabeça, corresponderia à capacidade intelectual do ser, colocando-o em contato direto com o mundo das ideias e permitindo a descoberta da verdade.
Cada função da alma, assim, corresponde a uma necessidade do ser humano. Enquanto as funções apetitiva e colérica cuidam de manter e proteger o corpo vivo, sendo, portanto, mortais, a função racional é imortal e permite ao ser abstrair-se do plano real. O nosso conceito atual de alma corresponderia a essa função específica.
A Teoria da Alma seria plena e harmônica se as partes de nossa alma atuassem em um sentido cooperativo. Mas não é o que observa Platão. Haveria uma verdadeira disputa entre elas para controlar o corpo vivo, cada qual buscando sobrepor-se às demais.
É impressionante o vigor da análise platônica para detectarmos, inclusive, males do presente. Se numa pessoa prevalece a parte apetitiva da alma, então sua vida estará pautada por apetites exagerados, como o desejo por comida, por bebida e/ou por sexo. Atualmente ainda podemos acrescentar o desejo insaciável pelo consumo de mercadorias e pela acumulação de riquezas.
Por outro lado, se numa pessoa prevalece a parte colérica da alma, notaremos um excesso de medo ou um excesso de coragem ou fúria pautando seus atos. Tratar-se-á de uma pessoa que não tem iniciativa por tudo temer, ou de uma pessoa extremamente impaciente e irritada, muito agressiva em seus atos.
O ideal, para Platão, seria que a parte racional da alma governasse as outras duas, impedindo que o indivíduo agisse motivado por razões coléricas ou apetitivas. O controle exercido pela razão sobre a função apetitiva é a moderação; já o controle exercido sobre a função colérica é a prudência. Os homens, antes do mais, deveriam ser moderados e prudentes, permitindo à parte racional investigar o mundo das ideias em busca do conhecimento e nortear a conduta.
Se vimos que Sócrates considerava indispensável o indivíduo pensar antes de agir, buscando sempre conhecer seus atos, para ser uma pessoa ética, Platão traz contornos mais específicos para essa crença. Só o indivíduo moderado e prudente pode agir racionalmente, praticando o Bem e sendo feliz. Também de um modo socrático, poderíamos dizer que se trata da concretização do “conhece-te a ti mesmo”, em termos mais específicos: identifica teus impulsos coléricos e apetitivos e os controla com tua razão.
Referências:
BILLIER, Jean-Cassier e MARYIOLI, Aglaé. História da Filosofia do Direito. Barueri: Manole, 2005, cap. 2 (item 3) – pp. 67 a 79.
CHAUÍ, Marilena. Introdução à história da filosofia.
MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do Direito. São Paulo: Atlas, 2009, cap. 4.
12. Platão: a cidade e as leis
Por: Prof. Adriano Ferreira
No texto República, Platão discorre sobre a organização ideal das cidades. Sua análise parte da constatação de que existem grupos de pessoas responsáveis por funções similares àquelas que vislumbra naalma humana. Haveria, pois, um paralelo entre as funções da alma e da cidade: função apetitiva – função econômica; função colérica – função militar; função racional – função legislativa.
Do mesmo modo como na alma, as funções urbanas não estariam em harmonia. Haveria constante disputa entre elas, para controlar a cidade. A maioria da população exerceria atividades econômicas-apetitivas: artesãos, comerciantes e agricultores. Outra parcela exerceria a função militar, sendo composta pelos guerreiros, em menor número. Por fim, haveria uma classe de legisladores, responsáveis pela feitura das leis.
Nas cidades reais, a função legislativa é conquistada pelos grupos econômicos ou militares, levando à elaboração de leis com o predomínio dessas características. Segundo Platão, o ideal seria que os legisladores fossemfilósofos e pudessem criar livremente as leis, que seriam prudentes e moderadas.
Sabendo que as normas trazem limites aos atos humanos no sentido da concretização de valores, uma norma elaborada por um mercador ou uma norma elaborada por um guerreiro buscariam a concretização de valores econômicos ou militares, moldando uma cidade que se oporia à concretização dos ideais ligados à justiça. Em outras palavras, quanto mais a cidade for construída em desacordo com os princípios ideais de justiça e do Bem, mais difícil torna-se para cada cidadão ser uma pessoa prudente e moderada, chegando verdadeiramente à felicidade.
Uma cidade governada por filósofos será regida por normas que limitam os fatos no sentido da concretização da justiça e do Bem. Viver em conformidade com tais normas significa viver de um modo prudente e moderado, levando as pessoas a um passo da felicidade.
A utopia platônica de uma cidade governada por filósofos leva a dois problemas:
1. As normas criadas pelos filósofos devem corresponder ao ideal de justiça e do Bem. Por um lado, por uma necessidade concreta de trazer parâmetros de conduta aos grupos econômicos e militares, essas normas devem ser escritas. Porém, ao escrever uma norma, o filósofo afastar-se-ia do ideal, que não pode ser escrito. Assim, por mais geral e abstrata que seja a norma do filósofo, nunca será tão geral e abstrata quanto a ideia.
Tendo-se em vista a insegurança que a ausência de normas escritas causaria, Platão opta pela sua existência. Se feitas por filósofos, ao menos, essas normas escritas atingiriam o grau máximo de abstração e generalidade suscetível de ser alcançado por elas. Isso, por outro lado, causa outro problema: ainda que menos gerais e abstratas do que as ideias, tais normas são, por vezes, distanciadas em excesso dos fatos concretos, não correspondendo, por vezes, às necessidades reais de uma cidade.
Se levado ao extremo o ímpeto racional dos filósofos, todas as cidades terminariam por se reger pelas mesmas normas, dado o seu teor de proximidade das ideias, que são universais. Isso poderia levar a situações particulares de injustiça.
2. Outro problema verificado na utopia platônica ocorre na ausência do pré-requisito para a elaboração de uma boa norma: o legislador ser um filósofo. Caso as normas sejam elaboradas por legisladores filósofos, aproximar-se-ão o máximo possível dos ideais e do Bem; se não forem feitas por filósofos, porém, serão injustas e prejudicarão a devida organização da cidade.
Platão é claro, neste momento, ao defender que uma norma feita por grupos econômicos e militares distancia-se do justo e não deve ser obedecida. Sua postura pode causar sérios transtornos, trazendo perspectivas sérias de desobediência civil.
Os dois problemas ora apontados são, de certa forma, solucionados na última obra platônica, As leis. Podemos notar uma modificação no pensamento do filósofo, que passa a exigir, digamos, um grau menor de generalidade e abstração para as normas.
Nesse texto, ele valoriza os costumes de cada cidade em particular. Embora tais costumes correspondam a hábitos reais e, portanto, distante das ideias, ele passa a reputá-los importantes para a identificação de um justo não mais ideal, mas meramente adequado para a cidade em específico. Esse justo político não se coloca em um grau de generalidade e abstração somente acessível a filósofos; agora, ao contrário, está em um patamar que pode ser atingido por qualquer pessoa, bastando, para tanto, ser minimamente prudente e moderado.
Os problemas citados acima podem ser resolvidos. Por um lado, a forma escrita da lei é mais do que suficiente para exprimir o justo político; por outro, as normas deixam de ser excessivamente gerais e abstratas para trazer justiça aos problemas concretos da cidade.
Além disso, o segundo problema é superado pois as normas não precisam ser feitas exclusivamente por filósofos para atingir o justo político. Como afirmado, mesmo comerciantes, artesão, agricultores e militares, agindo com prudência e moderação, podem fazer boas normas para suas cidades. Desaparece o fundamento para a desobediência civil.
As reflexões acima revelam que Platão, longe de ser um filósofo cujo pensamento pode-se reduzir a um sistema completo e coerente, é marcado pelas tensões. Seu pensamento é tenso ao opor o real ao ideal e a norma a ambos. Também é um pensamento que se modifica ao longo de seus diálogos, revelando um constante movimento em busca da verdade. Há, em seu último texto, a busca de um equilíbrio já próprio de seu mais ilustre discípulo, Aristóteles, o filósofo do justo-meio.
Referências:
BILLIER, Jean-Cassier e MARYIOLI, Aglaé. História da Filosofia do Direito. Barueri: Manole, 2005, cap. 2 (item 3) – pp. 67 a 79.
CHAUÍ, Marilena. Introdução à história da filosofia.
MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do Direito. São Paulo: Atlas, 2009, cap. 4.
13. Aristóteles: filosofia, ciência e práxis
Por: Prof. Adriano Ferreira
Aristóteles afirmaria que todas as pessoas desejam, por natureza, saber. Quase literalmente, escreve: os homens começam a filosofar movidos pelo espanto. Quando se depara ante uma dificuldade, o homem se espanta, se surpreende, e, afirma Marilena Chauí, se enche de admiração, constatando sua ignorância.
Ora, admirar significa contemplar. Contemplar deriva do gregotheoría, que também significa observar, examinar. Os seres humanos sentiriam prazer ao ver as coisas e esse prazer estaria na raiz do filosofar. Ao constatar sua ignorância, as pessoas começam a pensar e buscam o conhecimento apenas pelo prazer de encontrá-lo. Assim, a filosofia é livre, pois trata-se da busca do conhecimento pelo mero prazer de conhecer, que liberta da ignorância.
Segundo Aristóteles, o objeto de estudo da filosofia é o Ser, que “se diz de muitas maneiras”. Ou seja, a filosofia deve estudar tudo o que é, tudo o que existe, em todas as suas formas de manifestação. Um objeto bastante ambicioso, portanto: estudar TUDO.
Para conseguir satisfazer a essa ambição, o filósofo reflete sobre o papel das ciências, afirmando que elas investigam os princípios, as causas e as naturezas do Ser. Cada ciência, por seu turno, concentra-se na análise de uma manifestação específica do Ser, havendo, portanto, uma ciência para cada gênero de Ser.
As ciências teoréticas, assim, investigam os princípios e as causas de seres e coisas que existem na natureza independentemente do ser humano. Tais coisas somente podem ser contempladas pelo homem, que busca conhecê-las verdadeiramente.
São ciências teoréticas: 1. física: estuda os seres que se movimentam e se transformam por si, dividindo-se em biologia, ciência natural e psicologia; 2. matemática: estuda os seres imóveis, separados da matéria, que possuem apenas formas abstratas (superfícies, figuras, volumes…), dividindo-se em aritmética, geometria, música, astronomia; 3. filosofia primeira: estuda os primeiros princípios de todos os seres, o ser universal.
As ciências produtivas, por sua vez, estudam a ação humana cuja finalidade é a fabricação de algo (poíesis), ou seja, cujo fim está na obra a ser fabricada. Cada coisa a ser fabricada possui seu paradigmaou sua tecnologia, ou seja, conjunto de procedimentos técnicos que permite a correta produção de algo, conforme os modelos aceitos, que será estudado por uma ciência. Dividem-se, pois, conforme os objetos a serem produzidos: agricultura, metalurgia, tecelagem, pintura, escultura, engenharia, medicina, poesia…
As ciências práticas, por fim, estudam a ação humana que busca a concretização de um bem valorativo, ou seja, cuja finalidade última não é a produção de alguma coisa, mas a realização de um valor, e cuja causa é a escolha voluntária do ser humano.
Dividem-se conforme a abrangência do bem buscado: 1. ética: estuda a ação humana cuja finalidade é o bem individual, tornando-se virtuosa e permitindo a vida dentro da cidade; 2. política: estuda a ação humana cuja finalidade é o bem comum da cidade, permitindo sua organizaçãocoletiva.
É importante ressaltar que, embora não exista uma ciência específica para estudar o direito, este surge como um dos frutos da ação política. O processo político, que leva à construção do bem coletivo, muitas vezes resulta na elaboração de normas, as quais trazem os limites para a ação individual (ética). Portanto, o aspecto normativo do direito manifesta-se na intersecção entre a política e a ética, derivando da primeira e limitando a segunda.
Nesse sentido, podemos vislumbrar a manifestação da ideia dacompletude, sob o ponto de vista interno à Pólis: a ação individual, se ética, será jurídica e levará ao bem comum. O direito é parte integrante da práxis, congregando o bem individual ao bem comum.
Se, nesta postagem, refletimos, conforme o pensamento de Aristóteles, sobre a filosofia, sua divisão em ciência e terminamos apresentando as ciências práticas, devemos, na sequência, discuti-las um pouco mais, sobretudo destacando a vertente valorativa do direito, qual seja, a Justiça.
Referência:
Chauí, Marilena. Introdução à história da filosofia.
14. Aristóteles: Justiça universal e particular
Por: Prof. Adriano Ferreira
Há, em Aristóteles, uma complementaridade entre a política, o direito e a ética. Estudar uma dessas instâncias, assim, exige a referência às demais. Comecemos pela ética.
A ética é, ao mesmo tempo, a conduta humana que busca o bemindividual e a ciência que a estuda. O bem máximo a que as pessoas aspiram é a felicidade, segundo Aristóteles. Trata-se de um bemperfeito, pois buscado por si próprio, transformando outros bens em meios para se chegar à felicidade.
Os seres humanos seriam compostos por duas forças: a vontade racional, que permite agir conforme o conhecimento, e a paixão (páthos), que impulsiona para a prática de atos que causam prazer e evitam a dor. Como a paixão nem sempre conduz a prazeres duradouros ou verdadeiros, a missão da ética seria educar as pessoas para que ajam com a dose certa de paixão, que não impeça a vontade racional de se manifestar.
Devemos notar que Aristóteles não elimina a paixão da conduta humana, mas tenta transformá-la, com a intervenção da vontade racional, em virtude. A ação governada pela paixão leva a uma submissão a objetos exteriores a nós mesmos, transformando-se em passividade (veja que o radical páthos deu origem a passivo e patológico). Uma ação sem paixão, contudo, não leva em consideração os objetos exteriores e não leva à felicidade, pois é feita sem desejo.
A ação ética, ou seja, virtuosa, deve ser governada pela vontade racional, que traz moderação para a paixão. A razão permite ao agente identificar quais atos levam à dose desejável de prazer passional sem desviar do fim último da conduta, qual seja, o bemindividual, que causa felicidade. Os homens devem, portanto, agir movidos por um desejo racional.
As ações humanas, ao buscarem objetos diversos que podem levar à felicidade, são movidas por paixões diferentes, que precisam ser moderadas pela vontade racional. Assim, cada conduta requer uma análise própria, a fim de identificarem-se as paixões que nela devem estar presentes em uma dose moderada.
Se o homem age com moderação, se deseja racionalmente as coisas, agirá com virtude. A virtude é a moderação de uma paixão, que estará presente no ato em sua justa medida. Ora, aqui chegamos à primeira noção aristotélica de justiça, a justiça universal.
Trata-se de uma noção que o ser humano desenvolve, graças a sua vontade racional, e traz o equilíbrio necessário para alcançar a medida de paixão que deve existir em cada ato. A justiça universal é a virtude de todas as virtudes. Graças a ela, as pessoas atingem as demais virtudes.
Podemos, por exemplo, agir motivados pela busca do prazer que um objeto nos causa. Graças à justiça universal, podemos encontrar a justa medida de prazer que deve nortear nossa escolha, que fará de nós pessoas temperantes. Se a vontade racional não impuser a justa medida à busca do prazer, podemos agir de modo libertino, valorizando excessivamente essa paixão, ou de modo insensível, eliminando o prazer de nossa conduta. Nessas duas situações, nossa ação não será virtuosa e não nos levará à felicidade.
O mesmo raciocínio pode ser aplicado a outras paixões, cuja virtude está no equilíbrio entre o excesso e a falta, conforme demonstra a tabela acima. Ser virtuoso, portanto, exige que as pessoas guiem suas decisões pela vontade racional, a qual estabelece a justa medida (conforme a justiça universal) de cada paixão.
Para que cada indivíduo tenha a condição de agir racionalmente, encontrando a justiça universal e moderando suas paixões, há a necessidade de que ele viva em um ambiente no qual possui todas as coisas que o mantém vivo. Há a necessidade de que outra justiça se concretize, a justiça particular.
Se a justiça, no seu sentido universal, é a medida de todas as virtudes que derivam da paixão, existe uma outra noção de justiça, em seu sentido particular, que é, em si, uma virtude: a virtude da distribuição, a virtude de “dar a cada um o seu”. A justiça particular consiste numa ação distributiva, na qual se descobre o que é de cada um e se consuma tal distribuição, concretizando-a.
Essa justiça, como veremos, requer a política e a norma, que determina o que é de cada um. Convém destacar que, ao pensar assim, Aristóteles consuma a completude no seu sentido amplo, inserindo a cidade no contexto da natureza e do universo. Para demonstrar isso, façamos uma reflexão.
Conforme Aristóteles, a natureza é a organização (formal) de uma matéria. Naturalmente as coisas estão organizadas dentro de proporções que lhes são próprias e respeitam suas regras (normas) particulares. Assim, por exemplo, uma árvore é composta por folhas, ramos, tronco e raiz, estruturados conforme uma regra proporcional (algumas raízes, um tronco, alguns ramos e muitas folhas) que lhe dá forma. Se essa regra não fosse respeitada, a árvore deixaria de ser uma árvore.
Quando os seres humanos se reúnem e criam regras para a distribuição de benefícios, honrarias e riquezas, estão dando forma à cidade, organizando-a. O direito (conjunto das normas), nesse sentido, reproduz a estrutura da natureza ao estabelecer as proporções que configuram tal cidade. A completude se dá não pelo conteúdo das normas, mas pelo fato de, tal e qual na natureza, elas estabelecerem proporções que organizam algo.
Pois voltemos à justiça particular. Ela se materializa, inicialmente, como justiça distributiva, organizando a cidade. Sua finalidade é consumar o ideal de “dar a cada um o seu”, distribuindo, para os cidadãos, os benefícios, as honrarias e as riquezas. Essa distribuição compara as pessoas e se consuma mediante proporções que levam em consideração os méritos e as necessidades de ambas.
Se uma cidade pretende distribuir cargos públicos a cidadãos, irá compará-los conforme os méritos que possuem para ocupá-los e distribuí-los àqueles mais meritosos. Por outro lado, caso sejam distribuídos alimentos, o critério de comparação passa a ser a necessidade: aquele que possuir maior necessidade receberá mais alimentos. Em ambos os casos, a justiça distributiva se concretiza.
Ora, como afirmado, a justiça distributiva pressupõe a política. Aristóteles instaura paradigmas filosóficos políticos que perduram até o presente. Afirma que o Estado justo deve buscar o bem comum e que os governantes devem ser pessoas virtuosas, jamais exercendo o governo em busca de bens particulares.
Nesse sentido, um governo de um, de alguns ou de todos, pode ser bom ou mau, conforme o caráter desses governantes. Uma pessoa pode governar procurando o bem comum, numa realeza, ou corromper-se e afastar-se desse ideal, transformando-se em um tirano. O mesmo se aplica à aristocracia, que pode corromper-se na oligarquia (governos de alguns) e no governo popular que pode corromper-se na “democracia” (governo de todos).
Para atingir o bem comum, a política deve enfrentar um grande problema: a distribuição dos bens na Pólis, conformeos critérios da justiça distributiva. Sua finalidade pode ser vista como a criação dos iguais, tratando desigualmente os desiguais, na medida de suas desigualdades. Para tanto, estabelece os critérios, por meio de normas gerais, que trazem os parâmetros de distribuição dos bens.
As desigualdades entre os cidadãos devem ser evitadas, pois causam revoltas e levam à corrupção. Ao realizar a distribuição de bens, a política, gradativamente, as eliminam e, por consequência, levam aobem comum, criando as condições para que os cidadãos exerçam sua vontade racional, moderem suas paixões e sejam felizes.
O fato de a cidade estabelecer a proporção para a distribuição de bens por meio de normas gerais não significa que isso ocorra sem falhas. Aqui surge a justiça corretiva, cuja finalidade é corrigir os desequilíbrios persistentes mesmo após a distribuição política dos bens.
Sua primeira vertente é a justiça comutativa, que norteia o processo de troca. Os cidadãos, que já foram politicamente igualados conforme os padrões da justiça distributiva, podem trocar entre si produtos que possuam em excesso por outros que faltem. Como esses cidadão são iguais, a proporção da troca deve respeitar a equivalência, sob pena de gerar uma desigualdade. Assim, o valor de um produto trocado deve ser equivalente ao do outro produto trocado, mantendo-os na igualdade e satisfazendo as necessidades de ambos.
Note-se que a proporção comutativa até hoje norteia as relações contratuais de troca em nossa sociedade. Todavia, ao contrário do que deveria ocorrer, a política contemporânea não consegue promover a igualdade entre todos os membros da sociedade, de tal sorte que tal proporção termina, muitas vezes, por perpetuar uma situação social de desigualdade. Exigir que uma pessoa muito pobre dê um produto de mesmo valor por outro de uma pessoa muito rica, numa relação contratual, é perpetuar a desigualdade e não corrigi-la.
Pensando no direito, somente no século XIX alguns ramos surgem, trazendo novas proporções para as relações de troca, tendo-se em vista a desigualdade real entre os contratantes: direito do trabalho e direito do consumidor. Ainda assim, essas proporções não são suficientes para abolir as desigualdades sociais.
Mas outra vertente de justiça corretiva pode se fazer necessária: ajustiça judiciária. Em alguns casos, a igualdade criada pela política pode ser rompida pela ação voluntária ou culposa de alguém. Então, o Estado deve intervir, por meio de um julgamento que leve ao restabelecimento da igualdade, condenando o responsável à indenização dos danos causados e, eventualmente, punindo-o.
Convém destacar que, novamente, o ponto de partida é a igualdade. Primeiro a política torna os cidadãos iguais; depois irá punir aqueles que violarem as normas, pois essas pessoas abalam a igualdade criada. Não faz sentido uma prática punitiva como a adotada na sociedade contemporânea, na qual impera a desigualdade. As pessoas mais miseráveis já são punidas por nascerem em condição de inferioridade se comparadas a pessoas filhas de pais em situação financeira melhor, tendo menos oportunidades, como demonstram dados estatísticos, de se igualarem às outras. Dada a omissão estatal que não as igualou no nascimento, muitas dessas pessoas praticam atos que só poderiam ser considerados criminosos (como os crimes contra o patrimônio) se a sociedade fosse igual e são punidas novamente, agora pelo Estado, que, dessa vez, em se tratando de miseráveis, não se omite.
A justiça judiciária procura corrigir a injustiça criada pelo ato culposo ou voluntário do agente estabelecendo uma proporção entre o desequilíbrio que o ato causa e o grau da punição que será aplicada. Quanto maior o desequilíbrio social resultante do ato, maior será a punição ao autor. Mas esse raciocínio punitivo, insistimos, somente faz sentido em uma sociedade em que reine a igualdade. Senão, de justiça judiciária transforma-se em injustiça, camuflada ou não.
A concepção Aristotélica, assim, é louvável. O bem individual, ético, somente será plenamente realizado em uma sociedade que, politicamente, concretize, por meio de normas gerais, a justiça distributiva, tornando os cidadãos iguais. Tal condição permitirá a felicidade de todos e levará ao bem comum. Eventuais desequilíbrios podem ser corrigidos pela justiça corretiva comutativa ou judiciária.
Mas o filósofo suscita uma questão: se o fim último da justiça distributiva é, em concreto, dar a cada um o seu, consumando a igualdade material, será que as normas gerais permitem ao Estado identificar critérios válidos para os casos particulares? Como uma norma pode ser geral e resolver todos os problemas particulares de seu gênero ao mesmo tempo?
O problema é sério e pode inviabilizar todo o projeto político aristotélico. Para resolvê-lo, o filósofo propõe ao funcionário responsável pela aplicação ou concretização da norma geral o uso daequidade.
Precisamos tomar cuidado com o uso dessa palavra. Hoje, é comum associarmos equidade ao julgamento realizado conforme o “bom senso” de um juiz, sem o recurso à lei, pois há uma lacuna. Para Aristóteles, não se trata de uma lacuna. Apenas a norma é genérica demais e sua interpretação literal causaria ou perpetuaria uma desigualdade.
Assim, equidade, nesse sentido, transforma-se na adaptação, pelo membro do Estado, da norma geral ao caso particular, respeitando a proporção que estabelece e permitindo, efetivamente, “dar a cada um o seu”. Vejamos um exemplo banal: suponhamos uma norma que estabeleça que cada cidadão deve receber dez moedas de ouro, para suprimir as desigualdades. Pela equidade, o aplicador da norma deveria adaptá-la a cada caso, distribuindo as dez moedas a quem não possui qualquer, mas um número menor àquele que possuir algumas.
Permeando o pensamento exposto surge uma virtude individual que não se liga às paixões, chamada prudência. Trata-se da capacidade humana de avaliar as situações de um modo global, encontrando um equilíbrio que permita a felicidade total. A prudência coloca o ser humano em contato com a justiça universal e leva à justa medida ética.
Ela ressurge agora, pois é condição indispensável para o uso da equidade. Somente as pessoas prudentes conseguem adaptar a norma geral ao caso concreto, encontrando uma medida individual que efetive a distribuição.
A justiça termina, assim, em uma ação artesanal praticada por homens prudentes. Se a política dá forma à cidade, distribuindo os bens por meio de normas gerais, a equidade permite sua formatação individual, caso a caso, revelando o justo em cada um deles e evitando a má formação social decorrente da generalidade normativa.
Não poderíamos finalizar a postagem sem destacar que, embora possamos fazer uma leitura profundamente crítica do pensamento de Aristóteles, o filósofo nunca ultrapassou os limites de seu tempo histórico. Suas propostas não rompem a barreira que separava o grego do bárbaro e o homem livre do escravo. A igualdade proposta por ele limita-se aos cidadãos: homens, nascidos na cidade, livres, maiores, proprietários e chefes de família. A justiça se concretiza entre tais pessoas.
Referências:
BILLIER, Jean-Cassier e MARYIOLI, Aglaé. História da Filosofia do Direito. Barueri: Manole, 2005, cap. 2 (item 4) – pp. 79-90.
CHAUÍ, Marilena. Introdução à história da filosofia.
MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do Direito. São Paulo: Atlas, 2009, cap. 5, pp.  62 a 89.
15. Helenismo: introdução; ceticismo
Por: Prof. Adriano Ferreira
Após a consolidação da tradição socrática, com filósofos de excepcional qualidade como Platão e Aristóteles, seria natural supor que outras correntes filosóficas subsequentes fossem desvalorizadas pelos estudiosos. Essa desvalorização, contudo, esconde um período bastante rico e cujas escolas deixam influências marcantes até o presente.
De um modo genérico, podemos designar por helenismo o período que se inicia com Alexandre Magno (ou depois de sua morte, em 323 a.C.) e termina com o fim da República Romana, em31 a.C.. Nesse período, a língua e a cultura gregas tornam-se hegemônicas no mundo ocidental e nas terras conquistadas por Alexandre. Na filosofia, usa-se o termo para designar as três correntes filosóficas que se tornam predominantes: ceticismo, epicurismo e estoicismo.
Embora sejam escolas bastante distintas entre si, há alguns traços comuns, segundo Marilena Chauí:
1. Muito embora coloquem-se como adversários de Platão e Aristóteles, os filósofos do helenismo adotam a tripartição do estudo da filosofia proposta por Xenócrates, filósofo socrático que dirigiu a Academia platônica entre 339 e 314 a.C.: a) Lógica: estudo do raciocínio, do discurso racional, do conhecimento; b) Física: estudo da Natureza; c) Ética: estudo da natureza humana, da conduta e da vida feliz.
2. Enquanto Platão e Aristóteles adotavam as normas criadas pela política como fundamento para a ação ética, levando à completude entre a política, a ética e o direito, os filósofos epicuristas e estoicos defendem que a ação ética deve respeitar as normas naturais, rompendo a completude. Ambos transformam a natureza no fundamento da ética, exigindo o conhecimento da phýsis para a descoberta da vida feliz, e afastando a política da conduta humana. Elaboram, assim, um “naturalismo ético”.
3. As filosofias helenistas (sobretudo epicurismo e estoicismo) são materialistas, ou seja, recusam-se a explicar os fenômenos naturais e éticos a partir de entidades imateriais ou incorporais. Todos os fenômenos devem ser explicados a partir das características da própria natureza, não havendo um kósmos universal ou sobrenatural. A natureza torna-se o universo, sendo sua composição a explicação de tudo.
4. As filosofias tornam-se “sistemas”, ou seja, um conjunto coeso e coerente de saberes, havendo uma profunda articulação entre a física, a lógica e a ética. Dado o materialismo acima exposto, a compreensão da física (natureza) leva, necessariamente, aos aspectos fundamentais da lógica e explicita as normas que devem ser seguidas pelo indivíduo em sua ação ética.
5. Seguindo o exemplo de Platão e Aristóteles, formam-se escolas filosóficas para disseminar os ensinamentos epicuristas e estoicos.
6. O filósofo torna-se uma figura serena, acima do turbilhão dos acontecimentos cotidianos, um sábio que não se deixa abater pelo infortúnio ou corromper pela boa fortuna. Seus ensinamentos tornam-se medicamentos que podem ensinar as pessoas a também serem serenas, promovendo uma terapia da alma e levando à verdadeira felicidade.
7. As correntes filosóficas são marcadas por um acontecimento histórico fundamental: o fim da Pólis (cidade)  livre e democrática. Até então, a cidade, soberana e independente, era o referencial filosófico e existencial dos gregos. A condição de habitar em sua cidade natal e participar da vida coletiva era essencial para transformar o ser humano, de animal, em um ser superior e livre. Isso diferenciava, inclusive, os gregos dos bárbaros. Com o desaparecimento da Pólis, os filósofos adotam a natureza universal como paradigma, fundindo nela o kósmos e a antiga Pólis, estabelecendo um novo conceito, a kosmópolis, ou o cosmopolitismo. A partir de então, o fundamento para a diferenciação entre o grego e o bárbaro desaparece e o ser humano pode ser considerado um cidadão do mundo, surgindo as condições para a defesa da universalidade do gênero humano.
Talvez em virtude do clima geral de decepção, entre os gregos, decorrente da perda da liberdade, surge, com Pirro (n. 365 a.C.) e Tímon (n. 325 a.C.), um movimento que será denominado de ceticismo. O ponto de partida dos céticos é o da inexistência de qualquer base sólida para os seres humanos chegarem ao verdadeiro conhecimento ou à fé verdadeira.
Relativamente ao conhecimento verdadeiro, as pessoas podem chegar a ele por meio dos sentidos (empiricamente), pelo consenso das convenções ou pela razão. Todavia, afirmam os céticos, nenhum desses caminhos é, efetivamente, seguro.
Os sentidos são muito subjetivos, cada indivíduo experimenta uma mesma sensação de modos bem diversos: o que para um é quente, para outro é frio; o que para um é escuro, para outro é claro. Isso inviabilizaria um conhecimento verdadeiro sobre a coisa analisada.
Os consensos, que derivam das discussões e das convenções, por seu turno, são muito inseguros e variáveis. Um consenso obtido em determinado local sobre um assunto pode ser o oposto daquele obtido em outro local. Ainda podemos admitir que os participantes de uma discussão, algum tempo após terem chegado a um consenso, mudem de opinião, causando maior insegurança. Assim, também não podemos tomar o consenso como suscetível de levar ao verdadeiro conhecimento.
Quanto à razão, ou lógos, também não é considerada, pelos céticos, como um caminho infalível que leva à verdade, pois possuiria muitas limitações e contradições. Haveria coisas inexplicáveis racionalmente, por um lado. Haveria também situações em que o raciocínio lógico se revelaria contraditório ou insuficiente. Um exemplo é a afirmação “eu minto”. A razão não conseguiria resolver o problema de afirmar se a pessoa mente ou diz a verdade relativamente à própria frase.
Constatando que o cético não acredita que o ser humano possa chegar ao verdadeiro conhecimento, sua atitude se transforma em um questionamento incessante, para mostrar aos demais as parcialidades dos conhecimentos atingidos. O ponto final desse questionamento, ao contrário do que pode parecer, é justamente uma postura serena e de tranquilidade, assumindo as limitações racionais e pacificando o espírito.
Dada a postura do cético da dúvida constante, fica difícil admitir que se forme, propriamente, uma “escola” para transmissão de seu pensamento. Devemos encarar o ceticismo como aquela atitude cética que inspira novos filósofos, buscando curar o ser humano do dogmatismo e impedindo-o de fazer julgamentos precipitados.
Tendo-se em vista as características gerais das filosofias helenistas, ainda assim, é possível inserir o ceticismo como uma de suas correntes. Ainda hoje encontramos pessoas que afirmam assumir tal postura, mesmo que nem sempre com a profundidade de seus inspiradores mais remotos.
Referência:
CHAUÍ, Marilena. Introdução à história d afilosofia 2 – as escolas helenistas. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. (pp. 13-69)
16. Helenismo: epicurismo
Por: Prof. Adriano Ferreira
Entre os filósofos helenistas, Epicuro (341-270 a.C.) talvez seja aquele cuja imagem seja a mais negativa. Seu pensamento rompe com os pressupostos tradicionais da filosofia clássica grega e, talvez por isso, tenha causado tanta ira em seus contemporâneos e até em filósofos posteriores, como os cristãos.
Entre outras coisas, Epicuro retoma o atomismo como fundamento de suas teorias físicas, desenvolvendo a ideia de que tudo é composto por átomos que se chocam. Afasta, com isso, a perspectiva de a natureza ser regida por uma razão superior ou pelos deuses, defendendo que o movimento dos átomos poderia explicar todos os fenômenos. Ainda, afirma que o verdadeiro conhecimento é sensorial e defende que as ações devem ser norteadas pela busca do prazer.
Suas ideias foram disseminadas na Escola do Jardim, criada em sua residência, em local afastado do centro de Atenas. Essa localização física reflete a postura dos epicuristas: buscam o afastamento da vida pública, esperando da cidade apenas a garantia da paz e da segurança, e isolam-se no jardim.
A filosofia epicurista rompe com a noção dos filósofos socráticos de que deveria haver uma identidade entre o indivíduo e o cidadão, sendo a política condição para transformar o animal no ser humano. Para Epicuro, ao contrário, a política é inútil e o filósofo, que busca a felicidade, deve viver em isolamento. Assim, o indivíduo não se preocupa com a política e não assume a condição de cidadão para se tornar humano.
O ponto de partida para a compreensão do epicurismo é sua física, ou seja, sua noção de natureza. Epicuro afirma que tudo é composto de átomos, desde os

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