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Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Educação e Humanidades Instituto de Psicologia Selma Correia da Silva O sofrimento de adolescentes internados: a escuta psicanalítica na clínica do cuidar Rio de Janeiro 2001 Selma Correia da Silva O sofrimento de adolescentes internados: a escuta psicanalítica na clínica do cuidar Dissertação apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em Psicanálise, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Orientadora: Profa. Dra . Sonia Alberti Rio de Janeiro 2001 CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/BIBLIOTECA CEH/A Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta dissertação, desde que citada a fonte. ________________________________ _____________________ Assinatura Data S586 Silva, Selma Correia da. O sofrimento de adolescentes internados : a escuta psicanalílica na clínica do cuidar / Selma Correia da Silva. - 2001. 112 f. Orientadora: Sonia Alberti. Dissertação (mestrado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Psicologia. 1. Psicanálise. 2. Doenças orgânicas crônicas. I. Alberti, Sonia. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Psicologia. III. Título. CDU 159 964 2 Selma Correia da Silva O sofrimento de adolescentes internados: a escuta psicanalítica na clínica do cuidar Dissertação apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em Psicanálise, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Pesquisa e Clínica em Psicanálise. Aprovada em 19 de dezembro de 2001. Banca Examinadora: _____________________________________________ Prof.ª Dra. Sonia Alberti (Orientadora) Instituto de Psicologia - UERJ _____________________________________________ Prof. Dr. Marco Antonio Coutinho Jorge Instituto de Psicologia - UERJ _____________________________________________ Prof.ª Dra. Ana Cristina de Figueiredo Universidade Federal do Rio de Janeiro Rio de Janeiro 2001 DEDICATÓRIA À minha mãe pela sua dedicação amorosa, cuja atenção me confortou neste período de produção. Ao Dr. Frederico W. de B. Baumann, que, ao escutar as queixas clínicas de seus pacientes pode auscultar um sofrimento agudo do coração. Suas histórias trasmitem a sabedoria de um médico que há muito cuida de doenças orgânicas. À Brenda, por retratar o ideal da juventude na beleza da adolescência. À Suzana, irmã e amiga, pela cumplicidade de sempre, principalmente na fase final desta dissertação, quando o aconchego de sua casa favoreceu meus estudos. Ao meu pai, meus irmãos, Sonia, Solange e Sergio, meus cunhados Gilberto e Gloria, pela admiração com que cada um, em sua particularidade, teceu um fio do meu percurso profissional. Às meninas Melina, Clarissa e Bárbara, que torceram para o término desta dissertação. AGRADECIMENTOS Professores do Programa de Pós-graduação em Psicanálise do Instituto de Psicologia da UERJ, pela competência e mérito na constituição do Curso de Mestrado; Faperj, pelo suporte financeiro à minha pesquisa. Professora Sonia Alberti, Coordenadora do Curso de Mestrado, que, ao testemunhar meu desejo de sustentar a clínica psicanalítica no hospital, me incentivou à realização da pesquisa universitária, orientando-me nesta dissertação. Professores Marco Antonio C. Jorge, pela sensibilidade nas aulas, permitindo- me fazer uma ponte entre a escuta psicanalítica do sofrimento e a arte e Ana Cristina Figueiredo, por sugerir a direção de minha pesquisa no eixo psicanálise/medicina. Professor José Henrique W. Aquino, Coordenador da Enfermaria do Núcleo de Estudos da Saúde do Adolescente/NESA, pela ponderação, tolerância e sensibilidade no trato não só com os pacientes, mas também com a equipe de Saúde Mental – atributos essenciais de um profissional que conduz um espaço institucional marcado pelo sofrimento físico e psíquico. Serviço de Saúde Mental do NESA: Marília Mello de Vilhena, Simone Pencak, Suyanna Linhales Barker, pelo respeito ao meu trabalho e pelo impulso na realização deste Mestrado, e Vera Pollo, em particular, pelo apoio na leitura crítica deste texto. Professores José Augusto da S. Messias, pela transmissão dos ensinamentos nas visitas médicas, e Maria Cristina C. Kuschnir, por prestar atenção nas intervenções psicanalíticas trazidas para discussão na Enfermaria do NESA, principalmente nos casos desta dissertação. Professora Eloisa Grossman, Coordenadora da disciplina “Medicina de Adolescentes”, que me possibilitou muitos conhecimentos sobre as doenças orgânicas crônicas, no Ambulatório de Nefrologia. Professora Maria Helena Ruzany, Diretora do NESA, por apreciar meu empenho profissional na clínica com os adolescentes; Mariângela Giana de A. G. Ribeiro, Coordenadora do Ambulatório do NESA, pelo reconhecimento que atribui ao meu trabalho. Luiz André Vieira Fernandes, médico, e Mônica Vicente da Silva, assistente social, pela competência profissional, cuja saída da Enfermaria do NESA deixou saudades; Solange Araújo Câmara, fisioterapeuta, pela parceria nos assuntos pertinentes ao cotidiano hospitalar dos adolescentes internados. Equipe de Enfermagem, com destaque para os mais chegados, e de Recreação do Nível Terciário, pela interlocução do dia-a-dia sobre o ânimo dos pacientes; Equipe Multidisciplinar do Nível Secundário, pelo incentivo à minha permanência no NESA, em especial os médicos Flávio Roberto Sztajnbok e Isabel Cristina da S. Bouzas; Equipe do Nível Primário e Pessoal da Área Administrativa do NESA, pelo carinho dos que se fazem presentes. Mauro Leonardo S. C. dos Santos, amigo a quem atribuo uma significação especial pela incansável escuta durante a fase final do Mestrado e pelas valiosas sugestões dignas de um Doutor na Clínica do Cuidar. Célia Maria dos Santos, Rejane Maurell, Sandra Berardinelli e Simone Pencak, queridas amigas, que souberam, com carinho, esperar o meu retorno aos nossos encontros prazerosos. Georgina Maria R. F. Cerquise e Yara de A. Lemos, pelo companheirismo durante o percurso do Mestrado. Magali S. P. R. Penna, pelas palavras de sensatez nas horas difíceis; Mari de Souza Gomes e Priscila de S. G. Feitosa, pela paciência no auxílio da digitação deste trabalho; Soraya Goulart, pelo refinamento na revisão final do texto. Numa carta escrita em 10 de maio de 1923 a Lou Andréas-Salomé, Freud confessa seu cansaço em relação às agressões físicas sofridas por causa de seu câncer de mandíbula que não cessa de se espalhar e que ainda lhe acarretaria múltiplas operações dolorosas: ‘Partilho completamente da sua opinião sobre o desamparo que experimentamos diante dos males físicos particularmente dolorosos; como você, igualmente, acho-os desesperadores e, se pudéssemos atribui-los a alguém pessoalmente, ignóbeis. Sigmund Freud (cf. MANONI, M. O nomeável e o inomeável: a última palavra da vida.Rio de Janeiro: Zahar, 1995.) RESUMO SILVA, Selma Correia da. O sofrimento de adolescentes internados : a escuta psicanalítica na clínica do cuidar. 112 f. Dissertação (Mestrado em Psicanálise) – Instituto de Psicologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2001. A possibilidade de uma intervenção psicanalítica na “clínica do cuidar”, bem como a escuta de adolescentes cujo sofrimento causado pela doença crônica exige a hospitalização, são as duas questões centrais desta dissertação. Nossa pesquisa tem início na análise da estrutura da clínica psicanalítica que é sustentada na Enfermaria do Núcleo de Estudos da Saúde do Adolescente/NESA/UERJ. Faz-se um percurso pela teoria lacaniana da fase do espelho, como base da identificação especular, para que, em seguida, se possa verificar de que modo o “mandamento do amor ao próximo” está presente no ato de cuidar. Com Freud, coloca-se em primeiro plano a questão libidinal relativa ao processo da doença física. Destaca-se também o conceito freudiano de inibição que fundamenta a explicação das modalidades de retração da libido. O debate psicanalítico sobre a influência do inconsciente e as alterações que ele provoca no quadro da doença orgânica traz uma contribuição à clínica médica. A ausência de investimento libidinal afetivo nas figuras parentais, na clínica com adolescentes cujo corpo está adoecido, é o ponto em que este trabalho se conclui, demonstrando que para alguns adolescentes esta é a principal razão de seu óbito. Palavras-chave: Psicanálise. Doenças orgânicas crônicas. Clínica do Cuidar. Escuta de adolescentes. Tristeza. Equipe multidisciplinar e medicina. RÉSUME SILVA, Selma Correia da. La souffrance de l'adolescent hospitalisé: l'écoute psychanalytique dans la clinique du soin . 112 f. Dissertação (Mestrado em Psicanálise) – Instituto de Psicologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2001. La possibilite d’une intervention psychanalytique dans la “clinique du soigner”, ainsi que l’écoute des adolescents dont la souffrance causée par une maladie chronique éxige l’hospitalisation sont les deux questions centrales de cette dissertation. Notre recherche commence par l’analyse de la structure de la clinique psychanalytique qui se tient dans l’ Infirmerie du Noyau d’Études sur la Santé de l’Adolescent / NESA/ UERJ. On fait un parcours dans la théorie lacanienne de la phase du miroir comme la base de l’identification spéculaire pour qu’on puisse vérifier ensuite le mode dont le “commandement de l’amour di prochain” est présent dans l’acte du soigner. Avec Freud, on met au premier plan la question libidinale qui tient au processus de la maladie physique. On relève aussi le concept freudien d’ inhibition qui fonde l’explication des modalités du retrait de la libido. Le débat psychanalytique sur l’influence de l’inconcient et les altérations qu’il promeut dans le cadre de la maladie organique apporte une contribution à la clinique médicale. L’absense d’un investissement libidinale affectif sur les figures parentales dans la clinique avec les adolescents dont le corps est malade est le point sur lequel ce travail trouve une conclusion, en démontrant que pour certains adolescents celle-ci est la cause majeure de leur décès. Mots-clés: Psychanalyse. Maladies organiques chroniques. Clinique du soigner. Écoute des Adolescents. Tristesse. Équipe multi-disciplinaire. Medécine. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ....................................................................................... 10 1.1 Psicanálise na Enfermaria de Adolescentes ...................................... 10 1.2 Psicanálise na “reunião das segundas-feiras” .................................. 15 1.3 Alice no reino das pedras .................................................................... 18 2 O AMOR AO PRÓXIMO NA CLÍNICA DO CUIDAR .............................. 25 2.1 Clínica do cuidar ................................................................................... 25 2.2 O cuidar como escuta a doentes jovens ............................................ 27 2.3 O amor ao próximo ............................................................................... 34 2.4 O próximo-estranho: Fábio precisa de um “pai-drinho” .................. 39 3 A TRISTEZA NO LEITO ......................................................................... 46 3.1 Doença e inibição ................................................................................. 46 3.2 Depressão e sua tristeza ...................................................................... 50 3.3 “Mais um caso perdido”: Camila no leito 10 ...................................... 53 4 A DOR QUE PETRIFICA ....................................................................... 58 4.1 Dor física e dor psíquica ...................................................................... 58 4.2 Elisabeth: a dor da conversação ......................................................... 63 4.3 Alice: a dor que petrifica ...................................................................... 71 5 A DEMANDA PELO GRITO ................................................................... 76 5.1 Eritromelalgia: psicossomática e literatura médica .......................... 76 5.2 Eritromelalgia: a sabedoria do corpo e o inconsciente .................... 82 5.3 O grito da eritromelalgia ...................................................................... 84 5.4 O grito aspirado de Ricardo ................................................................ 94 CONCLUSÃO ......................................................................................... 101 REFERÊNCIAS ...................................................................................... 106 10 INTRODUÇÃO 1.1 Psicanálise na Enfermaria de Adolescentes Esta dissertação visa a discutir o possível da intervenção psicanalítica na clínica com adolescentes afetados pelo sofrimento orgânico crônico, internados na Enfermaria do Núcleo de Estudos da Saúde do Adolescente/NESA1, do Hospital Universitário Pedro Ernesto/HUPE, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. Nossos interlocutores são profissionais que trabalham em filosofia de equipe multidisciplinar, tais como: médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, assistentes sociais, nutricionistas e recreadores – todos exercendo suas atividades na clínica do cuidar. A implantação de atividades psicanalíticas na Enfermaria do NESA testemunha uma década de nossa trajetória profissional, que teve início nesse Instituto quando éramos alunas do Curso de Especialização, em Psicologia Clínica, na UERJ. Em 1991, ao freqüentarmos a disciplina “Psicologia Institucional”, tivemos a oportunidade de participar de intercâmbio entre aquele Curso e o NESA. Sob a coordenação da Professora Sonia Alberti, três especializandas2 foram estagiárias de um projeto piloto3, voltado para o público adolescente, que objetivava desenvolver atendimento psicanalítico em nível secundário de assistência – Ambulatório –, sem deixar de considerar a possibilidade de ampliá-lo, num futuro, à assistência terciária – Enfermaria. No final do estágio, fui convidada, por membros do Setor de Psicologia (Dulce Maria Fausto de Castro e Suyanna Linhales Barker), a permanecer na Unidade de Adolescentes, para dar continuidade ao trabalho, bem como a assumir o 1 O Serviço teve origem como Unidade Clínica de Adolescentes/UCA, em 1974, e, em 1995, passou à categoria de Núcleo de Estudos da Saúde do Adolescente/NESA. 2 Selma Correia da Silva, Jane da Rocha Cruz e Hilma H. Silvaestagiaram quatro meses na Unidade Clínica de Adolescentes/UCA. 3 Originalmente, aquele projeto intitulava-se “Estudos de alguns fenômenos que tangem o ato e a inibição, na psicanálise aplicada à clínica institucional do adolescente, visando à área de psicologia do adolescente num curso de especialização”, tendo sido financiado, sob esse título, pela FAPERJ, de novembro de 1990 a outubro de 1991. 11 atendimento nos ambulatórios de especialidades médicas (pré-natal e doenças orgânicas crônicas). Esse convite estendeu-se à Enfermaria, onde havia necessidade da escuta do sofrimento psíquico dos sujeitos adolescentes. Naquela ocasião, a clínica psicanalítica no Ambulatório de Adolescentes já contava com o atendimento de uma profissional da área de psiquiatria (Simone Pencak). Porém, na Enfermaria, em particular, algumas profissionais da área de psicologia e psiquiatria haviam exercido sua clínica, mas lá não permaneceram pelos mais variados motivos: dificuldades de integração com a equipe multidisciplinar e na escuta dos pacientes; falta de vínculo institucional, dentre outros. Fomos instigados, então, a pesquisar, através de levantamento bibliográfico, como foi a inserção do psicanalista no hospital. Constatamos que, tradicionalmente, ele iniciava suas atividades, voltando-se para as áreas da psiquiatria ou para outras muito específicas – pacientes terminais e pediátricos –, como mostram as pesquisas de Raimbault (1977), no seu livro A criança e a morte. O âmbito da pediatria e o da adolescência foram porta de entrada no hospital geral para psicanalistas exercerem sua prática, como na França. Françoise Dolto (1971), por exemplo, dedica aos pediatras o seu livro Psicanálise e pediatria, no qual menciona seus primeiros casos clínicos atendidos na época em que mantinha consultas médico-pedagógicas no hospital geral. Já na Inglaterra, Winnicott (1978) foi divulgador dessa clínica, como registram os textos de seu livro Da pediatria à psicanálise. No Brasil, em Belo Horizonte, um grupo de psicanalistas tem inserção no Hospital Geral Mater Dei, coordenados por Marisa Decat de Moura, também organizadora dos livros Psicanálise e hospital (1996) e Psicanálise e hospital – a criança e sua dor (1999). Nem sempre é tarefa fácil implantar atividades da clínica psicanalítica numa instituição hospitalar, uma vez que exige escuta tolerante, que implica enfrentar resistências, frustrações, e confrontos de impossibilidades. O profissional esbarra com os limites de sua prática, surgindo muitos questionamentos do tipo “o que faz um psicanalista num território alheio ao seu saber?” 12 Em 16 de fevereiro de 1966, em mesa redonda realizada no Colégio de Medicina, na Salpêtrière, Lacan refere-se ao lugar marginal da psicanálise sob o ponto de vista da medicina, que atribui ao psicanalista uma função de ajuda semelhante à do psicólogo. Assim, caberia ao médico convocar o psicanalista quando o seu saber se esgota diante da demanda do enfermo, a qual está para além de qualquer resposta possível da medicina. Dessa maneira, a psicanálise, inicialmente, fez sua entrada nos ambulatórios de especialidades médicas do NESA, sob a ótica da medicina, para “desempenhar sua função” de ajudar o médico e os demais profissionais de uma equipe multidisciplinar de saúde. Porém, coube-nos decifrar que pedido era aquele; só assim poderíamos concernir nossa função não só no Ambulatório, mas também, e em especial, na Enfermaria. O NESA apresentava uma demanda forte para a realização de grupos com os pacientes portadores de doenças orgânicas crônicas. Nossa experiência anterior confirmava que tais atividades se mostram comuns em hospitais da rede pública do Rio de Janeiro. Na própria instituição, encontramos, durante pesquisas, um documento intitulado “Atenção integral ao adolescente” cujo teor se reportava às propostas de realização de grupos informativos e de reflexão com adolescentes cardiopatas. Nos grupos, os sujeitos são identificados a partir do significante que nomeia o diagnóstico – cardiopatia, nefropatia, alergia, etc.; dessa forma, essas intervenções velam a estrutura subjetiva que é particular a cada um, como se pacientes com o mesmo diagnóstico pudessem vivenciar a doença de forma idêntica. Após atestarmos a importância da escuta individual, tanto no nível secundário quanto no terciário, começamos o atendimento. Daí, os grupos que têm sua eficácia terapêutica ficaram a cargo do Serviço Social. Essa questão marca uma posição diferenciada do que propomos no NESA. Ressaltamos que a ética da psicanálise – a do bem dizer – diz respeito ao sujeito do inconsciente, ou seja, à escuta de sua particularidade. A colocação de Clavreul (1983) sobre a significação da palavra “sofrimento” vem ao encontro de nossas proposições: ela permite abarcar dor física e psíquica, pois não há como separá-las. O autor (idem) faz um alerta quanto ao que a medicina 13 não pode ler no corpo para além do olhar médico, o que levou à indagação com a qual iniciamos esta pesquisa: o que é um corpo a partir da psicanálise? A partir do conceito de pulsão, a psicanálise concebe a questão do corpo referido ao desejo; este não se reduz às necessidades biológicas. Freud (1915) teoriza a pulsão como situada entre o psíquico e o somático; ela seria o representante psíquico de forças somáticas e de estímulos orgânicos. Em textos posteriores, diferencia a pulsão de seu representante psíquico. Lacan, nos anos 50, localiza a pulsão em termos de significante, ao dizer que o inconsciente é estruturado como uma linguagem. Em 1953, no “Discurso de Roma”, o autor faz menção ao corpo como linguagem: esta antecede ao corpo próprio, pois habita os órgãos e lhes dá uma função. O corpo é definido como algo que traz a marca do significante. Portanto, a psicanálise tornou possível não confundir corpo com organismo. Se o corpo é linguagem, possui a mesma estrutura do inconsciente. O cotidiano da Enfermaria do NESA vem corroborar tal assertiva lacaniana: as doenças, ao irromperem no organismo, afetam o corpo da linguagem, o que implica dizer que o sujeito, ao vivenciar o mal físico, experimenta a influência do inconsciente. A clínica psicanalítica no hospital, principalmente com pacientes portadores de doenças orgânicas crônicas, confronta-se com a dificuldade de esses sujeitos fazerem demanda de análise. O surgimento de uma doença aliado à internação são fatores que interferem, na maioria dos casos, no surgimento das idéias espontâneas do paciente, isto é, da associação livre. Freud (1924), no texto “O problema econômico do masoquismo”, alerta que “uma neurose poderá desvanecer-se se o indivíduo se envolve na desgraça de um casamento infeliz, perde todo o seu dinheiro ou desenvolve uma doença orgânica perigosa” (Freud, S., idem: 207). Essa afirmação merece um esclarecimento: se, por um lado, a doença afasta os sintomas neuróticos, por outro lado, não deixa de causar sofrimento psíquico no sujeito, como o luto ou a depressão – formas de dor psíquica que podem falar de um sujeito neurótico, mas não sintomas neuróticos. Em outros sujeitos, porém, a neurose não desvanece no ato de um adoecimento. Ao contrário da observação de Freud, a doença propicia o 14 desencadeamento de sintomas neuróticos, principalmente quando acrescidos de situações de impasse. Alberti e Silva (1994), no texto “A demanda do sujeito no hospital”, abordam as relações familiares como fator de perturbação na vida do adolescente. É o caso de sujeitos que sofrem pela falta de investimento afetivo dos pais. Tal situação conflitiva – tão comum na Enfermaria– poderá levá-los a fazer sintoma e, inclusive, a alterar o prognóstico do quadro clínico orgânico. Essa evidência exigiu a realização de entrevistas com os pais, as quais se constituíram de importância fundamental para a continuidade do atendimento aos adolescentes. No decorrer de uma década, várias são as demandas avaliadas; por isso, conseguimos visualizar a constituição de um trabalho que se faz a cada dia. Sem dúvida, o fato de o NESA pertencer a uma Universidade acabou por impulsionar a articulação da assistência ao ensino, de modo que a presença de alunos, tanto de graduação quanto de pós-graduação, se faz necessária para a transmissão da psicanálise no hospital. Como o Ambulatório já contava com um mínimo de condições para a estruturação de uma clínica psicanalítica, concentramos nossos investimentos na Enfermaria, sem deixarmos de estendê-los ao nível secundário. Constituiu-se uma equipe, denominada “Saúde Mental4”, composta por estagiários, residentes e treinandos de psicologia, que participam das seguintes atividades da Enfermaria: Atendimento clínico individual a vinte leitos de ambos os sexos; Atendimento aos familiares; Supervisão clínica; Leitura e discussão de textos psicanalíticos; Visitas médicas diárias (supervisão dos médicos); Reunião multidisciplinar. Porém, dentre tantas atividades das quais participamos na Enfermaria, uma, em especial, merece destaque por possibilitar a interlocução entre os diversos saberes vigentes: a reunião multidisciplinar – o próximo subitem aqui destacado. 4 A equipe de Saúde Mental da Enfermaria (nível terciário) integra o Serviço de Saúde Mental do NESA, composto também pelos níveis de atenção primário (Comunidade de Vila Isabel) e secundário (Ambulatório). O Serviço reúne-se, mensalmente, para intercâmbio entre os profissionais. Participam desse Serviço: Dulce Maria Fausto de Castro, Marília Mello de Vilhena, Selma Correia da Silva, Simone Pencak, Sonia Alberti, Suyanna Linhales Barker e Vera Pollo. 15 1.2 A psicanálise na “reunião das segundas-feiras” Legitimada pelo NESA desde os seus primórdios, a reunião denominada multidisciplinar tem seu espaço na Enfermaria de Adolescentes todas as segundas- feiras, no horário das 11:00 às 12:00h, sendo coordenada, semanalmente, por um diferente representante de cada Setor. Segundo Messias (1999), essa reunião tomou como modelo a dos grupos Balint, cuja formação se deu na Quarta Clínica Médica da UERJ. Os grupos Balint discutiam a relação médico/paciente-adolescente, com a participação de médicos (staffs, internos e residentes) e duas psicólogas. A expansão desses grupos deveu- se às idéias de equipe multidisciplinar, difundidas nos anos 70 e assimiladas pelos interessados na abordagem de atenção integral ao adolescente. Assim, a reunião multidisciplinar foi ganhando corpo ao longo dos anos, até constituir-se em atividade fundamental para o bom funcionamento da Enfermaria; sua origem foi anterior à própria fundação do Serviço, possibilitando mesmo os seus primeiros alicerces. Através de seus representantes, a psicanálise, desde 1991, tem sua participação efetiva na reunião, muito embora enfrente resistências na transmissão de seu discurso – o que não se constitui em novidade. Essas resistências têm longa data: o próprio Freud já teve de lidar com elas em seu tempo e no decorrer da história do movimento psicanalítico. Porque a intervenção psicanalítica faz-se presente, é possível identificarmos, nos discursos dos profissionais, a função que desempenha o ato de cuidar de doentes, principalmente de jovens. Não poderíamos deixar de remeter a Freud (1895), que alerta sobre o ato de cuidar, quando se refere aos cuidados que Elisabeth, uma de suas pacientes, prestou ao pai: “Há bons motivos para o fato de que cuidar de doentes desempenhe papel tão significante na pré-história de casos de histeria. Alguns dos fatores em ação são óbvios: a perturbação da saúde física, decorrente do sono interrompido, o desleixo de sua própria pessoa, o efeito da constante preocupação com função vegetativa de outra pessoa. Mas, em minha opinião, deve-se procurar o determinante mais importante em outra parte. Qualquer um cuja mente esteja ocupada pelas inúmeras tarefas de velar pelos enfermos, tarefas essas que se seguem uma as outras, em sucessão interminável, por um período de semanas e meses, adotará, por outro lado, 16 o hábito de suprimir todos os sinais de sua própria emoção, e por outro, desviará sua atenção de suas próprias impressões, visto não ter nem tempo, nem vigor para apreciá-las” (Freud, S., idem: 211). A citação de Freud revela que o ato de cuidar exige certas condições de renúncia daquele que desempenha a árdua função. O autor sublinha a ligação entre o ato de cuidar e a histeria. Conforme indica a escuta psicanalítica, podemos ampliar as observações freudianas no sentido de que, para alguns membros da equipe de saúde do hospital, o cuidar se expressa pelo “mandamento do amor ao próximo”, entendido aqui como um sintoma neurótico. Aventamos a possibilidade de que certos profissionais se valem desse mandamento para suportar o ato de cuidar, pois esta é a maneira mais fácil de exercer sua função profissional com doentes jovens. A fim de explanarmos mais claramente nossa hipótese, dedicamos, no Capítulo II – O AMOR AO PRÓXIMO NA CLÍNICA DO CUIDAR –, as considerações tecidas sobre o caso clínico Fábio. Fábio, dezoito anos, foi personagem constante trazido pelo discurso de muitos para as “reuniões das segundas-feiras”. Despertara, inicialmente, sentimentos de piedade por estar paraplégico. Foi “amado” e, posteriormente por não corresponder ao amor recebido, foi “odiado”. O desfecho do caso de Fábio, causa de muita tensão na Enfermaria fora anunciado, exaustivas vezes, pela psicanálise. Ao nos vermos diante da compaixão de alguns, tentávamos intervir com o propósito de expressar os possíveis efeitos de “um amor dado sem reflexão”, tal como Freud denuncia, em 1930. No Capítulo III – A TRISTEZA NO LEITO –, fazemos um contraponto: enquanto alguns pacientes ficam em evidência na reunião por serem “rebeldes e agressivos” como Fábio, outros podem ficar no anonimato, como é o caso de Camila. A moça, vinte anos, foi internada na Enfermaria aos quinze anos para tratar de complicações secundárias à sua paraplegia. Durante os dois últimos anos de hospitalização, defrontou-se, certo dia, com uma perda real, causa de muito sofrimento: a morte do pai. “Camila é boa moça, pois não causa tumultos na instituição” – discurso mais freqüente a refletir seu estado de ânimo no leito, uma vez que dorme mais do que 17 deveria. Alegavam os médicos que seu estado era terminal e, por isso, a equipe a mantinha afastada de ser falada na reunião. Porém, a “psicanálise reivindicou” o retorno da paciente para a “reunião das segundas-feiras”, quando poderia ser discutido se a paciente apresentava uma tristeza ou uma depressão. Se a tristeza de Camila é razão de dúvida quanto o significado da sua dor psíquica, certamente as dores conversivas de Elisabeth também o seriam, acaso pudéssemos transpor, imaginariamente, a paciente de Freud para a Enfermaria. Discorremos sobre Elizabeth no Capítulo IV – A DOR QUE PETRIFICA –, ao mesmo tempo em que acrescentaremos algumas considerações sobre o caso Alice – um dos temas desta introdução. Elisabeth tinha vinte e quatro anos quando foi atendida por Freud, em 1892, com quadro de dores conversivas que tinham origem em um reumatismo muscular crônico comum. Mais uma vez, levantamos a hipótese de que,se o caso da jovem fosse discutido nas “reuniões das segundas-feiras”, ela seria tratada como uma “pitiática” e inscrita como aquela que “não tem nada”. O diagnóstico médico de “piti” exigiria uma mediação psicanalítica, pois está situado no campo do sintoma histérico. Elisabeth, provavelmente, receberia alta o mais breve possível, pois suas dores não se enquadrariam na fenomenologia da dor orgânica, como é o caso de Ricardo. Tema principal do Capítulo V desta dissertação – A DEMANDA PELO GRITO –, Ricardo, treze anos, apresentava as conseqüências de ser portador de doença orgânica crônica pouco conhecida pela medicina. Sofria fortes dores físicas em queimação e também psíquicas. Demandava, em gritos, pela presença da mãe, que pouco respondeu ao seu chamado. Mais uma vez, perguntamos sobre a função da psicanálise na “reunião das segundas-feiras”, frente a um caso em que manifestações fenomenológicas davam margem à duvida quanto ao diagnóstico de psicose ou de histeria. Sem dúvida, uma questão perpassa todo este trabalho: a escuta psicanalítica na clínica do cuidar. A fim de sintetizarmos nosso objetivo maior, não poderíamos deixar de discorrer sobre o caso de Alice; ele abarca os temas principais vividos no cotidiano da Enfermaria de Adolescentes, onde o sofrimento físico é objeto primeiro de intervenção dos profissionais. 18 1. 3 As dores de Alice no reino das pedras O caso Alice talvez tenha sido um dos mais discutidos e exigiu exaustiva “presença” psicanalítica. Deram-lhe muita ênfase na “reunião das segundas-feiras”, e a psicanálise teve sua participação de imediato, pois, como veremos, uma questão ética se impunha. Alice estudou até a terceira série do primeiro grau e, após algumas reprovações, desligou-se da escola aos treze anos. Deu início às suas atividades laborativas como babá, desempenhando a função até casar-se. Aos dezessete anos decidiu viver com Marcelo e fez a opção de demitir-se do emprego para cuidar do marido e da casa. Aos dezoito anos (1995), foi internada na Clínica de Ortopedia do HUPE, sendo posteriormente transferida para a Enfermaria de Adolescentes. Queixava-se de fortes dores na perna esquerda; a descrição detalhada dos sintomas não deixava dúvida quanto à fenomenologia da dor orgânica. Estava grávida, no terceiro mês, de uma gestação planejada e desejada. Na Enfermaria, foi submetida, pela equipe médica, a uma série de exames sofisticados e a inúmeras sessões clínicas, das quais participamos. Os resultados registraram que o problema não era ortopédico; o diagnóstico diferencial da Clínica Oncológica confirmou trombose venosa profunda (obstrução de um grande vaso) e câncer do tipo sarcoma de partes moles da coxa esquerda. O sarcoma era de alto grau de malignidade e invadia o corpo da paciente, alojando-se na parede do útero, ao mesmo tempo em que o feto se desenvolvia. A partir do diagnóstico com um prognóstico desfavorável para a adolescente, Alice entrou numa via crucis de tratamento que passou a fazer parte de uma rotina hospitalar. A interrupção da gestação facilitaria o tratamento, no sentido de poder ser instituído de forma mais “agressiva”, inclusive, com radioterapia associada. Também facilitaria melhor investigação e acompanhamento com métodos radiológicos. Instaurou-se, dessa maneira, uma questão ética: o que seria o melhor para a paciente, do ponto de vista da medicina, sem deixar de levar em consideração o desejo de Alice em manter a gravidez. 19 Sugerimos que a medicina deveria “recalcar o sujeito” para obter o diagnóstico da doença orgânica. Isso significa tratar e curar o paciente: a prática médica faz essa exigência. Nessas horas de impasse, é função da psicanálise deixar falar o sujeito junto à medicina. No caso de Alice, foi revelada uma situação, que se constituiu num paradoxo entre câncer e desejo. Além disso, tivemos também de escutar, com muita atenção, o discurso dos médicos. Marcelo, desempregado, acompanhava Alice diariamente na Enfermaria; sua presença contribuiu para que ambos tomassem ciência das eventuais complicações e riscos que a manutenção da gravidez poderia ocasionar. Porém, não hesitaram, ao redigir uma declaração, em manifestar seu consentimento quanto à quimioterapia – opção de tratamento menos agressivo. Assim, o desejo de ter o filho foi anunciado e ratificado em ato escrito. A escuta psicanalítica teve início logo após a conclusão do diagnóstico médico. O único caminho a seguir era o que orientava para o bem dizer da paciente: ao falar, ela se mostrava desejante pela maternidade. Mas como desejar frente a uma experiência tão avassaladora, como o sofrimento de ter um câncer? O caso da adolescente não correspondeu integralmente à concepção psicanalítica de Freud (1914), quando este menciona a retirada do investimento libidinal dos objetos de amor do sujeito, ao ser afetado por uma doença orgânica. Por outro lado, ratifica-se sua observação sobre o narcisismo dos pais ou, melhor dizendo, sobre o narcisismo de algumas mulheres: “Mesmo para as mulheres narcisistas, cuja atitude para com os homens permanece fria, há um caminho que leva ao amor objetal completo. Na criança que geram, uma parte de seu próprio corpo as confronta como um objeto estranho, ao qual, partindo de seu próprio narcisismo, podem então dar um amor objetal completo” (Freud, S., idem: 106). O “amor objetal completo”, acima referido por Freud, vinha para Alice representado no ideal da maternidade, favorecendo sua adesão ao tratamento médico. Podemos dizer que houve uma prevalência da maternidade sobre a doença, como ilustra o esquema a seguir: Alice SM (SUJEITO MATERNIDADE) SD (SUJEITO DOENÇA) 20 Apesar disso, a libido dividiu-se entre a luta contra o câncer e o desejo de ser mãe. Uma vez identificado à maternidade, o sujeito não deixou de amar enquanto sofria. Houve, durante a internação, um enorme gasto de energia psíquica: a paciente sofria tanto por dores do câncer, como também por manter-se desejante. Ao decidir-se pelo nome de menina, optou por homenagear uma de suas médicas, cujo nome lhe fazia lembrar a dedicação da profissional no período em que foi tratada de um grande sofrimento. Por saber da gravidade da sua doença, expressava-se culpada, ao dizer que não poderia prestar os cuidados maternos à criança, juntamente com o marido que tanto amava. Apresentava-se em privação diante de um dano real. Sua tristeza acentuou-se ao ter conhecimento de que a criança poderia nascer e que ela, provavelmente, não exerceria a maternidade. A escolha não lhe passou impune: tomava posse de um desejo que, segundo suas palavras, se realizaria “pela metade” – causa de um grande conflito. O sofrimento provocado pelas dores do câncer não estava dissociado nem da fala da paciente, nem da nossa escuta. Acentuamos ser a função do psicanalista escutar o que um sujeito diz para além de uma dor física; porém, quando as queixas de sintomas somáticos se repetem com freqüência em nossa escuta, temos de remeter os pacientes aos médicos. No caso, isso foi uma constatação, significando que, em ocasiões como essa, não temos como escutar um paciente devido à intensidade do quadro álgico que faz calar o sujeito. Na tentativa de realizar o ideal da maternidade – o “amor objetal” –, a paciente esbarrou com a rapidez cronológica de um câncer que levava vantagem sobre o tempo lógico do seu desejo. É a partir da clínica que constatamos a improbabilidade de um sujeito fazer um câncer, pois se o quisesse desfazer não conseguiria. Tal hipótese está voltada para uma visão confusa da abordagempsicossomática e pensamos ser devida à falta de experiência clínica de alguns profissionais, no hospital, com pacientes portadores de doenças orgânicas. Com o avançar das terapêuticas invasivas, Alice passou a sofrer todas as conseqüências de uma quimioterapia. Os cabelos caíram e a paciente os guardou num saco plástico; alegou assim proceder por receio de perder o companheiro. Os cabelos podiam representar a máscara da feminilidade, que a moça tentava, de toda a maneira, preservar. Necessitava, também, reter algo diante de tantas perdas. 21 Os atendimentos psicanalíticos mantiveram-se mais de uma vez por dia, mesmo com a dificuldade de sermos freqüentemente interrompidos pelos vários especialistas que atuavam no caso – fato comum no cotidiano hospitalar e desafio ao psicanalista para encontrar a melhor estratégia de efetivar-se a escuta. O quadro clínico da paciente evoluiu progressivamente com aumento das dores, coincidindo, inclusive, com os períodos de ausência do marido que voltou às atividades de trabalho e, por isso, não pôde mais participar do tratamento de Alice. Um aspecto muito discutido em reuniões clínicas foi a alteração no quadro álgico associada a essa ausência. Apesar da gravidade da doença, havia como pensar na relação dor-histeria. Lembramos que Freud (1895), no caso Elisabeth, menciona alguns quadros orgânicos comuns como passíveis de sofrerem alteração, devido à condição subjetiva do paciente. Acrescentamos aos ditos freudianos que todo e qualquer quadro de dor poderá ser alterado, seja por diminuição, seja por intensificação. Já em 1926, no texto “Inibições, sintomas e angústia”, Freud amplia suas pesquisas e verifica o desaparecimento até mesmo das “dores físicas mais intensas”, caso haja “desvio psíquico por algum outro interesse”. Tais elaborações teóricas remetem a outra questão igualmente importante: se “a dor é imperativa”, como poderá deixar de surgir? As dores de Alice nunca cederam, mesmo com “desvio psíquico” representado pelo desejo da maternidade. Em alguns momentos, foram alteradas e, através da fenomenologia da dor, os médicos davam subsídios para pensarmos nos mecanismos psíquicos da histeria interferindo na dor física. Levantamos, assim, uma hipótese: Alice, talvez, estivesse recusando-se a ver os riscos que existiam também para o feto. Dar continuidade à gestação significava modificar o protocolo de tratamento para esquemas alternativos, além de submeter o feto aos riscos de baixo peso, prematuridade, alteração no desenvolvimento psicomotor, dependência a opiáceos ou até o óbito. Mais uma vez, cabe-nos perguntar: caso essa hipótese fosse confirmada, haveria a possibilidade de aparecimento de um sintoma psíquico desencadeado pelo conflito entre ter o filho e recusar-se a assumir os possíveis riscos para o feto? 22 Devido à intensa dor física apresentada pela paciente, foi necessária a colocação de um cateter no espaço peridural para analgesia, com morfina e marcaína. Os protocolos de quimioterapia eram realizados sem qualquer resposta. Perturbada pela dor, num quadro de muita angústia, Alice ora chorava, ora se calava. Poderíamos dizer que ela se encontrava diante de um real sem sentido. Na verdade, havia uma exigência premente de sentido. Certa feita exclamou: “É tudo insuportável”, fazendo um apelo ao Outro, como um tradutor a sustentar seu sofrimento: dores físicas e psíquicas misturavam-se numa manifestação de tristeza, na vertente de um luto irremediável. Alice, embora tenha deparado com várias perdas, não abriu mão de seu desejo; pelo contrário, revelou-se como sujeito da enunciação, tentando uma saída para a questão que se apresentou de imediato com o diagnóstico de um câncer durante a gravidez. O processo de luto iniciou-se no momento em que fora comunicada das possíveis perdas conseqüentes. Sua tristeza era uma resposta subjetiva, traduzida no olhar de despedida para as pessoas queridas e para a vida. A adolescente, ao estar ligada amorosamente aos seus ideais, em especial à gravidez, foi experimentando uma profunda decepção e prejuízos psíquicos. Ao atingir idade gestacional de trinta semanas, com o feto no peso de um quilo, foi-lhe indicada cesariana, em precisão e sabedoria dignas de médicos com “mãos de mestres”. A filha nasceu necessitando de prótese ventilatória e apresentou sinais de dependência à morfina; ficou um período na incubadora, impossibilitando à mãe amamentá-la, o que significava mais uma perda. Ratificamos, na ocasião, a necessidade de dar continuidade à escuta, mesmo que a paciente só se expressasse por monossílabos. Estava muito triste e, por isso mesmo, insistíamos em escutá-la: o falar possibilita, como sabemos, o “ancoramento” da angústia. Embora em quadro de profundo sofrimento, a paciente ainda anunciou orientação psíquica, com objetivo de concordar com mais uma intervenção invasiva: a cordotomia – secção de um dos cordões laterais da medula para fins de analgesia. Esse fato remete a uma situação vivida por Freud: ao ser submetido a ato cirúrgico, devido ao câncer na mandíbula superior, necessitou da implantação de uma mandíbula mecânica. Ao ser entrevistado por George S. Vierek, em 1930, disse que detestava aquela mandíbula, mas preferia ter aquele aparelho a não ter 23 mandíbula, ter sobrevivência à extinção. Encerrou sua prática, após cinqüenta e três anos de trabalho, enfrentando o câncer. Esgotados todos os recursos médicos a seu favor, Alice viu-se diante de uma clínica paliativa, o que nos faz indagar qual a referência psicanalítica diante de uma prática médica que passa a ter, como único objetivo, a função de atenuar o irremediável de um estado terminal. A palavra paliativo, de origem latina, palliatu, apresenta etimologia cuja significação é ”coberto com capote”, num indício de disfarce das aparências (Ferreira, A. B. H., 1975: 1021). Conseqüentemente, podemos aludir aos cuidados paliativos como um “disfarce” necessário para mascarar e amenizar um sofrimento que não tem remédio. A doença, em sua fase terminal, indicou a proximidade da morte que enclausurou a paciente, silenciosamente, no leito. O câncer é um exemplo muito claro da necessidade dos cuidados paliativos. Malengreau (1993) aborda o tema no artigo “Para uma clínica dos cuidados paliativos”: “A proximidade de uma morte anunciada é acompanhada de uma restrição semântica das palavras; estas tomam uma consistência imaterial que, dizem esses pacientes, se impõem a eles numa prova sem recurso” (Malengreau, p., idem: 87). A “morte anunciada” presentifica as perdas que, antes de tudo, foram de cada dia na existência do sujeito. No hospital, o paciente depara com a impossibilidade de responder; os profissionais confrontam-se com um desafio ético: o que fazer? Falar pelo sujeito, já que este quase nada fala? Com certeza, a posição mais imediata de alguns membros da equipe de saúde é a assumir a voz do sujeito para tentar dar uma significação ao sofrimento dele e isso tem uma eficácia terapêutica na instituição. A esta posição Malengreau (1993), na clínica dos cuidados paliativos, nomeou como “humana”, contrapondo-a a outra: aquela “aberta ao humano”, que se assemelha à proposta psicanalítica. Acrescentamos que, enquanto a primeira postura é verificada na clínica do cuidar em geral e os profissionais ficam sujeitos ao “mandamento do amor ao próximo”, a segunda, referida ao bem dizer e “aberta ao humano”, não deixa de possibilitar o alívio do mal-estar. A psicanálise, portanto, não abandona sua 24 orientação ética, por mais que sejam dolorosas as ocasiões. Empenha-se em testemunhar a fala do sujeito, apartir dos significantes outrora pronunciados pelo paciente. A ética do bem dizer não adere à significação, quer na clínica do cuidar, quer em seu momento mais crítico: quando do período paliativo. Porém, o analista deve saber quais os limites de sua clínica, a partir do grau de afetação dos efeitos – reais ou subjetivos – da doença sobre o paciente, para que não espere de alguém atormentado por dor e mal estar orgânico “grandes produções inconscientes”. Não encerraremos aqui o caso Alice; deixaremos para fazê-lo no Capítulo IV. Sua história merece ser particularizada pela expressão dos sintomas de dor – tema tão comum e importante para quem lida com a pesquisa de doenças orgânicas crônicas, principalmente no hospital. Entretanto, damos por finalizado este capítulo introdutório, sublinhando a relevância da interlocução da psicanálise na “reunião das segundas-feiras”, no que tange aos temas pertinentes ao ato de cuidar, à dor física e dor psíquica, ao diagnóstico, à demanda, ao corpo pulsional, entre outros, ao trazer o sujeito com o corpo adoecido como principal objeto de discussão de todos aqueles que exercem suas atividades clínicas na Enfermaria de Adolescentes. 25 2 AMOR AO PRÓXIMO NA CLÍNICA DO CUIDAR “28. Aproximou-se dele um dos escribas que os tinha ouvido disputar, e sabendo que lhes tinha respondido bem, perguntou- lhe: Qual é o primeiro de todos os mandamentos? 29. E Jesus respondeu-lhe: O primeiro de todos os mandamentos é: Ouve, Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor. 30. Amarás, pois, ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu entendimento, e de todas as tuas forças: este é o primeiro mandamento. 31. E o segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Não há outro mandamento maior do que estes. 32. E o escriba lhe disse: Muito bem, Mestre, e com verdade disseste que há um só Deus, e que não há outro além dele; 33. E que amá-lo de todo o coração, e de todo o entendimento, e de toda a alma, e de todas as forças, e amar o próximo como a si mesmo, é mais do que todos os holocaustos e sacrifícios. 34. E Jesus, vendo que havia respondido sabiamente, disse- lhe: Não estás longe do reino de Deus. E já ninguém ousava perguntar-lhe mais nada”. (cf Bíblia Sagrada; Marcos 12: 28-34) 2.1 Clínica do cuidar Os profissionais de saúde que trabalham no hospital, espaço institucional que acolhe sofrimentos como os males físicos, a dor, a morte e o abandono familiar, dentre outros, podem assumir, no exercício de suas atividades, diferentes posturas, as quais são determinadas por diversas escolhas éticas. 26 A psicanálise, ao orientar-se pela ética do bem dizer, isto é, pela ética do desejo, encontra muitas barreiras para exercer sua clínica no hospital, pois esta instituição faz um apelo forte para a prática de um certo bem querer do paciente. O bem dizer, ao contrário do bem querer, exige do sujeito trabalho psíquico e não promete a felicidade nem a resolução rápida dos conflitos, tão bem vindos no hospital. Lacan, no Seminário, livro 7: a ética da psicanálise (1960: 266-7), levanta a questão do bem e elucida-a como causa de turbulências, por estar “próxima de nossa ação”. Sugere, assim, que, a cada dia, questionemos quanto ao “desejo de fazer o bem, o desejo de curar”. Define, entretanto, a prática psicanalítica como um “não-desejo de curar”. Ao fazer esse alerta, coloca-nos frente ao engodo de querer o bem do sujeito. A psicanálise caminha em contramão à posição dos bens, pois, só em sua articulação significante, o sujeito emerge como efeito para dizer sobre seu “bem maior”: o seu desejo. Difícil tarefa para o analista – sustentar, na clínica do cuidar, a ética da psicanálise, tão diferenciada das demais. Lembramos que todos os profissionais que escutam no hospital já foram convocados à ordem da compaixão5. Se o psicanalista não desconhece a compaixão nem mesmo é isento totalmente dela, a ética da psicanálise, por sua vez, enquanto ética do desejo, não é referida à compaixão. Mas qual lugar da ética da psicanálise na clínica do cuidar? Para respondermos a essa questão, faz-se necessário abordar o ato de cuidar no hospital. Partiremos do texto “A ética do cuidar”, onde Figueiredo (1999) refere-se ao cuidar sob duas perspectivas: “cuidar como diferente de tratar” e “cuidar como sinônimo de tratar”. Como exemplo do primeiro caso, a autora cita a figura do médico: cabe-lhe examinar, medicar e traçar condutas terapêuticas para o paciente, sem, contudo, 5 Uma leitura diacrônica do vocábulo compaixão, de acordo com Santos (2001: 17), “permite, sem dúvida, a interpretação dúplice de sentido que se espraia à família de palavras do mesmo etmo. Por um lado, compadecer é padecer com, sofrer com, e por outro é apaixonar-se por, apiedar-se de. O vocábulo compaixão integra-se, formal e semanticamente, à família de palavras cujos termos geradores possuem dois radicais: padecer e paixão, o primeiro de base erudita; o segundo de base vernácula. Em compaixão (cf. compadecimento), lêem-se não só piedade, para, como também, sofrimento com. Abre-se ainda a interpretação do vocábulo, com entrosamento filosófico ao sentido de ter paixão por, ou melhor sofrer paixão por. O que parece ser interessante é o fato de haver, em quaisquer das interpretações, um traço de passividade, ou voltando ao vocábulo erudito, de padecimento”. 27 conviver com ele no cotidiano hospitalar. Por outro lado, quem cuida são os profissionais que convivem com o paciente, como o enfermeiro, o assistente social e o psicólogo. No segundo caso, o significado de cuidar torna-se mais abrangente: quem trata é quem convive, ao prestar cuidados ao doente, como a equipe que exerce suas funções com filosofia multidisciplinar. Assim, Figueiredo (idem: 130) discorre sobre alguns “significados correntes” do ato de cuidar. Para esta pesquisa, tomaremos apenas um: o “cuidar como escuta”. A partir de nossa clínica no hospital, incluiremos o tratamento do médico de adolescentes como um ato de cuidar, já que “convive” com o paciente no cotidiano do processo de internação. 2.2 O cuidar como escuta a doentes jovens Escutar não é um privilégio da psicanálise. Contudo, o que anunciamos como questão é saber o que os demais profissionais fazem na clínica do cuidar com o que escutam, principalmente em se tratando de doentes jovens. Dentro da realidade com a qual trabalhamos, o cotidiano de uma enfermaria de clínica médica e/ou cirúrgica revela que um estado de adoecimento é sempre vivido como uma experiência subjetiva que pode alcançar intensidade drástica na vida do paciente. As doenças orgânicas crônicas verificam tal fato, pois fazem exigências imperiosas de sentido na vida do sujeito. Alguns fragmentos de discursos de pacientes internados na Enfermaria de Adolescentes corroboram essas observações: “Doença dá em poste? Não. Dá em coisa que fala, em coisa que late, em coisa que mia. Dá em coisa que tem vida” (Bárbara, dezoito anos – diagnóstico: esclerose múltipla). “O que eu queria ser mesmo era doutora da minha doença, estudar o que sinto” (Júlia, dezoito anos – diagnóstico: lúpus eritematoso sistêmico). “Sonhei com minha própria morte” (Regina, dezoito anos – diagnóstico: lúpus eritematoso sistêmico). 28 As falas destacadas sinalizam que a irrupção de uma doença introduz um real na vida do sujeito que se soma à relação com a castração – falta fundamental da dor de existir –, a qual o orienta em suas relações com a vida. O sofrimento queveio de fora intensifica a dor da existência, produzindo questionamentos. Eis um campo fértil para a clínica psicanalítica: o que poderá ser escutado da subjetividade do paciente em contrapartida ao que não é auscultado em medicina. A palavra auscultar tem origem “no latim auscultare, isto é, aplicar o ouvido a (peito, o ventre, as costas etc.) para conhecer os ruídos que se produzem dentro do organismo” (Ferreira, A. B. H., 1975: 161). Ao encostar o ouvido, o médico obterá informações sobre o órgão do corpo humano em disfunção. No sentido popular, auscultar é escutar. Auscultar, portanto, é escutar de maneira dirigida. A partir da etimologia da palavra auscultar, podemos deduzir, numa imagem metafórica, que seria de bom alvitre que o médico escutasse, primeiramente, as queixas clínicas de seu paciente, já que indicarão o que deverá ser auscultado e, conseqüentemente, diagnosticado, tratado e curado. Porém, um cardiologista, por exemplo, poderá auscultar uma disfunção do coração não compatível com a escuta das queixas clínicas do paciente. Diante desse fato, o médico deveria, inclusive, pensar em causas subjetivas que poderiam estar contribuindo para a expressão da disfunção. Freud, no texto “Inibições, sintomas e angústia” (1926), identifica o coração como um dos órgãos que mais recebem as descargas motoras do afeto de angústia, o que pode indicar um enorme estado de desprazer, despertado no sujeito por ocasião de uma experiência de dor psíquica. Pensamos nessa constatação do autor como um alerta aos médicos quanto à importância da participação do inconsciente no corpo. Isso não quer dizer que, caso o médico levante essa hipótese, deva possibilitar o surgimento da escuta da subjetividade a qual não está habilitado em seu ofício. A escuta do médico tem um objetivo e depende de seu conhecimento em anatomia associado ao de fisiologia e fisiopatologia, o que lhe possibilita identificar o sintoma orgânico e, conseqüentemente, distingui-lo de um psíquico. Portanto, um sintoma como signo de uma doença é sempre patológico e tem uma significação para o médico a partir de seu saber prévio. Dessa maneira, a escuta em medicina e a eficácia terapêutica de um médico não dependem da escuta da subjetividade do 29 paciente – esta não é fator relevante para o esclarecimento de uma doença orgânica. Ousaríamos dizer que “recalcar a subjetividade” de seu paciente deveria ser um exercício do médico em sua escuta. Mas essa tarefa não é tão simples assim: um sofrimento físico sempre vem acompanhado de sofrimento psíquico, e ambos não são vivenciados separadamente no ato de adoecimento. Isso significa que o paciente emite suas queixas orgânicas “permeadas de subjetividade”. Porém, um “médico experimentado” 6 poderá conduzir seu atendimento de maneira que não deixe “emergir a subjetividade” do paciente em detrimento às queixas relacionadas ao sofrimento orgânico. Caso contrário, sua ausculta terá interferências e poderá desviar-se da excelência de uma prática médica clínica que tem como objetivos diagnosticar, tratar e curar. A escuta do psicanalista, ao contrário da do médico, não é dirigida; deve deixar emergir a subjetividade do paciente para que ele possa falar de seu sofrimento psíquico, que pode ter expressão num sintoma, como o que lhe paralisa diante de seus laços sociais. O sintoma, em psicanálise, é constituinte da estrutura neurótica e, segundo Freud (1926), representa a substituição de uma satisfação pulsional que sofreu o processo de recalque, quando o eu, por uma ordem externa, não se associou a uma catexia pulsional oriunda do id. Para Lacan (1956), o neurótico fabrica, com seus sintomas, o recalque, que é “uma língua”. Esta língua poderá ser traduzida pela escuta da linguagem inconsciente dos sintomas, os quais revelam a particularidade de cada sujeito: a sua verdade. Além dos sintomas, os sonhos, os atos falhos e os chistes são efeitos da formação do inconsciente, que expressam a divisão do sujeito ao deparar com a castração, da qual não quer nada saber. A escuta do sintoma como verdade do inconsciente, ou seja, da subjetividade, é peculiar à psicanálise, pelo estabelecimento da relação transferencial – fato que exige, segundo Freud (1912), a atenção flutuante do lado do analista em contrapartida à associação livre do lado do analisando. A partir da suspensão dos motivos que dirigem a atenção do analista, sua intervenção implica um “escutar calado”, o que significa que ele não deve destacar nem priorizar elementos dos enunciados do paciente. Essa recomendação técnica tem como conseqüência a 6 Expressão utilizada por Freud no texto “Cinco lições de psicanálise” (1910: 14). 30 espontaneidade do discurso do paciente que poderá falar sobre “o que lhe vier à cabeça”, regra fundamental da psicanálise, anunciada por Freud (idem). Ressaltamos, porém, que o psicanalista deve ficar atento para os sintomas somáticos que se repetem no discurso de determinados sujeitos em tratamento. Esse fato deve trazer incômodo à escuta do psicanalista que deverá levantar hipóteses quanto à possibilidade de haver alguma disfunção orgânica. Sobre este fato, pensamos que Freud (1900) também faz um alerta aos psicanalistas, ao comentar uma passagem de sua clínica. Certa feita, Freud (1900: 320-1) recebeu uma paciente que estava em tratamento há anos com diagnóstico de histeria (sofria de algias e de marcha anormal). A partir das indicações que a clínica psicanalítica lhe permitiu conhecer sobre as neuroses, pôde excluir a possibilidade de histeria. Procedeu a um rigoroso exame físico, diagnosticando um estágio muito avançado de tabes – quarto estágio da sífilis, posteriormente tratado por um médico. Os resultados do tratamento, segundo Freud, foram bons. No NESA, identificamos uma questão muito comum, relacionada à escuta, causa de confusões no cotidiano hospitalar: a “escuta paralela” que se destaca e se diferencia daquela necessária ao ato de cuidar – a que particulariza o significante adolescência como sinônimo de “período de crise do indivíduo”, perda da imagem corporal, conflitos em relação à sexualidade, formação de grupos etc. A especialidade adolescência “clama” pela escuta ao abrir um flanco sobre os aspetos subjetivos da vida do paciente. Constatamos que, desde as origens da Medicina de Adolescentes e à história de fundação do NESA, existe uma valorização da “escuta paralela” dos adolescentes. O vocábulo Hebiatria é um sinônimo de Medicina de Adolescentes; em grego, hebe significa mocidade, derivando-se daí o termo. Para a Organização Mundial de Saúde, a segunda década da existência humana, de dez a vinte anos, situa o período da adolescência. Segundo Coates (1993: 3), as origens dessa especialidade são obscuras. No final do século XIX e início do século XX, alguns médicos já demonstravam “interesse especial no crescimento e desenvolvimento” de pacientes adolescentes e de suas doenças. Um estudo clássico de crescimento dessa faixa etária foi 31 publicado em 1887, por Bowditch, e, em 1888, Dabney descreveu uma epidemia de pleurodinia (dor na pleura) entre estudantes. Os médicos ingleses foram os primeiros a ter sua atenção despertada para adolescentes nas escolas. A eles devem-se o reconhecimento das particularidades dos problemas e a responsabilidade pelos cuidados com a saúde daqueles jovens, na tentativa de melhoria da qualidade do ambiente das escolas, da assistência médica e da prevenção das doenças e dos acidentes. Em 1885, publicaram um código de regras, que teve a sua última edição em 1975, vigorando, até hoje, sob o título“Manual de Saúde Escolar”. Aqueles médicos eram generalistas e dedicavam grande parte de sua prática aos adolescentes, fato que possibilitava a “escuta”. Felix Heald (1992), ao pesquisar informações sobre a origem da Medicina de Adolescentes, encontra a primeira publicação clássica do psicólogo G. Stanley Hall7 (1904), intitulada Adolescência – sua psicologia e relação com a fisiologia, a antropologia, a sociologia, sexo, crime, religião e educação. Hall (idem) baseia seus estudos a partir de uma teoria genética, inspirada no conceito de evolução biológica de Darwin. Segundo o psicólogo, o organismo humano, ao desenvolver-se, passaria por estágios similares àqueles, “recapitulando” os que ocorreram durante a história da espécie da evolução humana. Assim, preconiza estágios de desenvolvimentos, nomeando a adolescência (doze anos ao status adulto final – vinte e dois a vinte e cinco anos) como um período da “Sturm and Drang” – “tempestade e tensão”. Voltadas para um vasto estudo sobre a adolescência, as pesquisas de Hall (idem) influenciam na formação dos médicos interessados na “escuta” dos 7 Hall era um homem erudito e discorria sobre vários assuntos, caracterizando-se por um certo ecletismo, como podemos observar pelo título de sua obra. Pensamos esse ecletismo como um ponto de impasse com Freud. Hall até tentou aproximar-se das idéias de Freud e, em 1908, fez-lhe, pela primeira vez, um convite para discursar na Clark University, Massachusets, Estados Unidos, por ocasião do vigésimo aniversário da instituição. O encontro entre ambos aconteceu em 6 de setembro de 1909, quando Freud pronunciou as “Cinco lições de psicanálise”. O psicólogo entusiasmou-se com a psicanálise, fato que o fez ministrar cursos sobre o assunto. Num primeiro momento, foi evidente a admiração de Freud (idem: 27) pelo Presidente da Clark University, ao qual se referia como “o nosso honrado presidente”. Hall tinha sido extremamente gentil com o homem que trouxera a “peste” aos americanos. Porém, seus interesses psicanalíticos não vingaram por muito tempo, ao voltar-se para a escola de psicologia individual de Alfred Adler, primeiro dissidente da história do movimento psicanalítico. 32 adolescentes. O psicólogo foi reconhecido como o primeiro a produzir uma obra científica sobre adolescência. Verificamos, através da origem da Medicina de Adolescentes, a preocupação dos médicos quanto à extensão dos cuidados aos pacientes, fato que possibilitou a criação de alguns serviços. Segundo Coates (1993: 4), na década de 40, centros pediátricos começaram a atender pacientes até dezesseis anos, dedicando-lhes “atenção especial”. Em 1951, foi fundada a Unidade de Adolescentes no Hospital Infantil de Boston, que integrou, nos anos 50 e 60, um centro acadêmico para desenvolvimento de programa de treinamento, cujas diretrizes foram “a individualidade e as diferenças dos adolescentes, com relação aos outros estágios de desenvolvimento durante a vida”. O médico convidado para chefiar a Unidade, Dr. Gallagher, era autoridade em Medicina de Adolescentes e enfatizou a “escuta” dos jovens: “A abordagem da Medicina de Adolescentes é semelhante à pediatria e à geriatria, generalizada e multidisciplinar em que o médico leva em consideração o estágio de desenvolvimento, características, necessidades e ambientes de seus pacientes, assim como suas doenças. Também se tornou evidente que a maioria dos adolescentes responde favoravelmente a médicos que os respeitem e que estão querendo escutá-los” (cf. Coates, idem: 6). Destacamos, na fala do Dr. Gallagher, a atenção dispensada, primeiramente, para os aspectos da vida do adolescente, diferenciados dos da doença, evidenciando a importância da “escuta”. Questionamos: que escuta é essa tão valorizada pela Medicina de Adolescentes? Messias e colaboradores (1999) narram que o Serviço de Adolescentes da UERJ surgiu a partir da “escuta dos aspectos psicológicos” dos pacientes. No início dos anos 70, alunos de medicina e de enfermagem, ao escutarem “as angústias geradas pela hospitalização” de adolescentes internados nas diversas enfermarias do HUPE, deram origem a atividades recreativas com aqueles pacientes. Esse fato exigiu, para sua continuidade, supervisão e orientação teórica, que ficaram sob a responsabilidade do Dr. Lindemberg Rocha, psiquiatra, e de Maria Tereza da Costa Barros, estagiária de psicologia. Posteriormente, outros psiquiatras e estagiários de psicologia aderiram ao grupo inicial. Conforme Messias (idem), naquela fase em que o Serviço dava seus primeiros passos, uma ocorrência teve destaque fundamental 33 para que os estudantes reivindicassem um “cuidado especial aos adolescentes”: um surto esquizofrênico de um paciente de dezesseis anos, portador de esquistossomose mansônica8, após intervenção cirúrgica, causou muita inquietação, com destaque para o aspecto psíquico do quadro clínico. A relevância atribuída aos fatores psicológicos impulsionou a criação do Serviço de Adolescentes da UERJ, em julho de 1974, na Quarta Disciplina de Clínica Médica, chefiada pelo professor Aloysio Amâncio da Silva (clínico geral). Desde então, o NESA conta com a participação de profissionais da área de psicologia e psiquiatria, que formaram, em 1994, um Serviço de Saúde Mental. Se, por um lado, a criação de um Serviço específico voltado para a adolescência é fundamental para os cuidados dessa faixa etária, por outro, a “escuta paralela” na clínica do cuidar pode levar alguns médicos e demais técnicos da área de saúde a “escutarem mais do que deveriam”, como se fossem “psicólogos dos pacientes”. Chamamos atenção que esse procedimento é fator de interferência na clínica psicanalítica, o que nos faz indagar: quem é esse sujeito “chamado” adolescente de que trata a psicanálise? Alberti (1996) indica que, durante alguns anos, a adolescência foi tratada pela psicanálise como um “período de crise do indivíduo”. A autora comenta o erro de Marie Bonaparte, discípula de Freud, que, ao traduzir a frase “wo es war soll ich werden” como “o ego deve desalojar o id”, contradiz o verdadeiro sentido da expressão: “onde isso era devo advir”. A tradução errônea deu margem ao tratamento da Psicologia do ego, em que a eficácia terapêutica se baseava no apaziguamento da crise pelo fortalecimento do ego. Um ego forte impediria os impulsos do id – causa de mal-estar no sujeito. Assim, essa abordagem não considera a possibilidade de surgimento do sintoma como revelador da verdade do sujeito; se o adolescente tem “crise”, é porque esta crise sinaliza sua divisão, condição de sujeito do inconsciente. A “crise” poderá emergir no momento do despertar das pulsões que tomam força de tempestade no final da latência e início da genitalidade: a adolescência. Segundo Freud (1905), nessa fase da existência humana (a qual se referiu como puberdade), o sujeito depara com “o buraco da sexualidade” que não faz sentido e, 8 Doença causada por protozoário que é adquirido no contato com água contaminada e transmitido através do caramujo, que é seu hospedeiro. 34 por isso mesmo, gera angústia. Em termos lacanianos, podemos dizer que o Outro do sexo – fonte imaginária de garantias do sujeito –, ao revelar-se incompleto, causa decepção. Diante desse “desencontro sexual”, a psicanálise, contrária à teoria de reforço do ego, propõe que o adolescente deixe falar sua “crise”, possibilidade de bem dizer seu desejo. Em nossa experiência no NESA, observamos que a “escuta paralela” ao ato de cuidar é baseada na teoria de reforço de ego, que consideraaqueles jovens como indivíduos in-divisos, que não comportam a divisão do inconsciente; são constituídos pelo desenvolvimento de fases que tendem ao fechamento, conforme Hall (1904). A escuta do indivíduo, portanto, difere radicalmente da escuta do sujeito da psicanálise. Quando é acrescentado aos “indivíduos em crise” o sofrimento da doença, os profissionais podem ser convocados, como já ressaltado, à ordem da compaixão que vem do Outro – representada seja pela máxima cristã, seja pela direção de um Serviço de Saúde. O “cuidar como escuta” a doentes jovens é razão para alguns sofrerem paixão, expressando-se pelo que identificamos como “o mandamento do amor ao próximo9”. 2.3 O amor ao próximo A Bíblia, em algumas de suas referências, confere ao próximo extrema proteção, atribuindo-lhe um ideal de amor. No Velho Testamento, Deus ordenou a Moisés que falasse aos filhos de Israel sobre as diversas leis, dentre as quais a do “amor ao próximo”. Disse o Senhor a Moisés: “Não te vingarás, nem guardarás ira contra os filhos de teu povo; mas amarás o teu próximo como a ti mesmo: eu sou o Senhor” (Levítico, 19: 13). 9 Nos anos de 1996 e 1997, participamos das aulas do Seminário de Romildo do Rego Barros, na Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Rio, cujo tema “narcisismo” levou-nos à reflexão e à pesquisa psicanalítica sobre o mandamento bíblico “Amarás a teu próximo como a ti mesmo”. 35 No Novo Testamento, por sua vez, o “amor ao próximo”10 vem como o segundo mandamento cristão mais importante, semelhante ao primeiro, o do “amor a Deus”. Na passagem bíblica intitulada “O Grande Mandamento”, Jesus foi interrogado por um fariseu, doutor da lei, sobre qual seria o grande mandamento da mesma, ao qual respondeu: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu pensamento. Este é o primeiro e grande mandamento. E o segundo semelhante a este é: ‘Amarás o teu próximo como a ti mesmo’. Destes dois mandamentos dependem toda a lei e os profetas” (cf. Mateus, 22: 36-40). Mas quem é o próximo do mandamento cristão? O irmão? O estrangeiro? Através da “Parábola do Bom Samaritano” (Lucas, 10: 26-37), Jesus, de acordo com a história, contou ao fariseu que um homem, ao sair de Jerusalém com destino a Jericó, foi roubado e espancado por salteadores que quase lhe retiraram a vida. Todavia, um sacerdote, ao passar pelo mesmo caminho, no qual vira o homem quase morto, não foi capaz de socorrê-lo. Da mesma forma procedeu um levita. Porém, um samaritano, ao aproximar-se, moveu-se de “íntima compaixão”, prestando os cuidados necessários ao judeu. É interessante ressaltar que o benfeitor, excluído por definição do direito a ser próximo ao judeu, era um herege – homem considerado errado, tanto na doutrina, como na prática da religião. O próximo, de acordo com a história, era um estranho e alguém fora do grupo que não partilhava a mesma religião do judeu; mesmo assim, usou de misericórdia para com o necessitado. A partir da leitura psicanalítica, faz-se necessário analisar se é possível a realização desse amor preconizado pela Bíblia. Freud (1930) retorna ao mandamento “Amarás teu próximo como a ti mesmo” para criticá-lo com muita indignação, porque, de um lado, ele é impossível e, de outro, narcísico ao extremo, razão de ser um paradoxo. Segundo ele, o amor não deve ser dado sem reflexão, devendo ser fonte de interrogação. Mais adiante (idem: 131), contesta a exigência do preceito que não leva em consideração a face oculta do próximo e propõe, então, 10 Mandamento também encontrado em outros livros da Bíblia, tais como Lucas (10: 26), Marcos (12: 31). 36 que o amor seja retirado do plano geral, pois não deve ser partilhado com todos. Apenas determinados seres humanos merecem nosso amor e este não é universal. Quando amamos é porque o outro nos atraiu com um “valor” ou “significação”; caso contrário, não conseguiríamos amar um “estranho”. O mandamento, segundo Freud (idem: 132), deveria ser escrito de uma outra maneira: “Ama teu próximo como este te ama”. Além disso, amamos o igual que também comporta o estranho, fato que o ”mandamento do amor ao próximo” desconsidera. Sobre o termo estranho, Freud (1919) tece um exame lingüístico, para além da equação “estranho não familiar”, estudo que auxilia a esclarecer o significado da face desconhecida do mandamento. O estranho11 tem relação com o que é assustador, com o que causa medo ou horror; pode, ainda, assumir uma característica diferenciada do uso corrente da palavra, ou seja, é aquele traço do assustador que provoca o conhecido, velho e familiar. O exame lingüístico explicita que: 1º) Nem tudo o que é não familiar é assustador; 2º) Algumas novidades são assustadoras; 3º) Algo tem de ser acrescentado ao que é novo e não familiar para torná-lo estranho. Em alemão, o termo Unheimlich significa o que não é doméstico; isso vem a ser o oposto de Heimlich, que tem o sentido de lar, familiar. A palavra Heimlich tem diferentes conotações ou significados, dentre os quais um revela-se igual ao seu oposto: Unheimlich. Portanto, algo Heimlich é também Unheimlich. Algo que é Heimlich tem o significado de familiar e agradável e, também, o que está oculto e se mantém escondido, fora do alcance da visão. Mas o termo Unheimlich é apenas usado como o oposto do primeiro significado de Heimlich e não do segundo. Porém, Unheimlich é tudo o que deveria ter permanecido oculto, mas veio à luz12. Podemos inferir, através desse estudo freudiano, que o próximo é, ao mesmo tempo, o familiar e o estranho. 11 Segundo a Bíblia, os hebreus foram estrangeiros no Egito. O estranho para os hebreus e árabes pode ter conotação de demoníaco e horrível. 12 Freud refere-se a Schelling, que deu um novo conceito a Unheimlich (estranho). 37 Anunciado pela Bíblia13, o mandamento do “amor ao próximo como a si mesmo” proclama a anulação da diferença e universaliza os homens como iguais. A psicanálise subverte o preceito bíblico a partir da segunda característica do próximo: o estranho. A intolerância ao próximo reside no ponto que revela uma dessemelhança em relação ao que era igual ao outro especular e que foi excluído no processo identificatório. Julien (1996: 106) faz referência ao mandamento bíblico, quando menciona que “amar ao próximo como a si mesmo” é explorar seu espaço até o fim. O autor nomea algumas “zonas do próximo”, com as quais o sujeito depara ao longo de sua existência. A primeira é aquela na qual o eu se constitui pela imagem do outro especular. É na “fase do espelho”14 que encontramos o primeiro próximo, de acordo com a imagem e a semelhança. A imagem é constituinte, sede das identificações imaginárias pela equivalência entre o eu e o outro, sustentada pela configuração da mesma, lugar dos enganos e ilusões. Se o sujeito ama o outro é porque ele se ama na imagem desse outro. Julien (1996) dirá que, nessa fase, o “bem do outro é uma extensão do amor próprio, e o amor próprio é uma garantia do bem do outro”. Nela, um dia, o sujeito vai experimentar a queda da imagem do semelhante, revelando a face oculta do próximo. A dessemelhança nessa zona demonstra uma delimitação de espaço, que desvela a estranheza do próximo. O outro não quer só o bem do sujeito; também almeja o seu mal. Verifica-se, na descompletude da imagem, a hostilidade do próximo, na qual o sujeito vê-se frente ao horror do qual tem de se defender. Seguir adiante
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