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85 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : L uc as M an sin i - d at a KANT Unidade II 5 TEORIA ELEMENTAR DA RAZÃO PURA E PRÁTICA Como já dissemos, publicada em 1788, a Crítica da razão prática, a segunda das três Críticas publicadas por Kant, dá continuidade à sua investigação crítica acerca dos princípios da moral, iniciada em 1784, com a publicação da Fundamentação da metafísica dos costumes. Nela, Kant analisa as condições de possibilidade para uma moral com pretensão universalista e apresenta mais uma vez o imperativo categórico, forma da lei moral para uma vontade imperfeita. O imperativo categórico – agir de tal modo que a máxima da tua ação possa valer como lei universal – é tomado então como um fato da razão, a revelar como essência sua a liberdade da vontade, liberdade que é assim compreendida como autonomia. Saiba mais Leia a obra na íntegra: KANT, I. Crítica da razão prática. Tradução Afonso Bertagnoli. São Paulo: Brasil Editora, 1959. Na crítica prática, Kant se afasta cada vez mais daquela Metafísica dogmática comumente abordada, uma metafísica que considerava insuficiente por tratar de conceitos não naturais dentro do âmbito da natureza, ou seja, por tratar os conceitos que não são naturais da mesma maneira com que eram abordados metodologicamente os conceitos dos objetos encontrados na natureza. Em sua Teoria do Conhecimento, exposta na primeira Crítica, Kant divide as ideias de cunho metafísico, pondo em suspenso tal método pelo qual era formulada essa Metafísica dogmática, ou seja, fica estabelecido que não é possível o tratamento de conceitos como Deus, alma, eternidade e liberdade por meio do conhecimento especulativo teórico da simples razão pura. Lembrete Assim sendo, a Crítica da razão prática – como já mencionado – é uma continuação da primeira Crítica, a Crítica da razão pura. Nesta primeira, Kant deixa alguns conceitos em suspenso por não poderem ser explicados pela simples razão teórica especulativa, tais como Deus, alma e liberdade. 86 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : L uc as M an sin i - d at a Unidade II Na Crítica da razão prática Kant resgata estes temas, buscando fundamentá-los sobre as bases da necessária lei moral. Tais termos não podem ser conhecidos por meio do mesmo método com o qual a razão pura conhece os objetos de sua representação, os objetos da natureza. Assim, uma vez que, não podendo esses objetos ser encontrados nas investigações do conhecimento de nossas representações da natureza física, por intermédio dos conceitos a ela atribuídos, há então nos conceitos de Deus, alma, liberdade e eternidade devida ausência de seu conteúdo, ou seja, há a falta de um objeto que permita à razão fazer dele algum tipo de predicação, como afirma Kant em sua primeira Crítica: “A determinação é um predicado que excede o conceito do sujeito e o amplia. Não deve, pois, estar nele contida” (KANT, 2002, p. 454). Sendo assim, é preciso agora, na Crítica da razão prática, expandir esse conhecimento teórico puro com o fim de que seja obtido um conhecimento prático puro, para que a partir desse conhecimento prático, se possível, venha-se a obter os objetos necessários que até então se encontram ausentes para o conhecimento especulativo ou teórico. Uma vez constatada a insuficiência da razão pura em confirmar o conhecimento daquilo que a transcende ou que lhe é transcendente, como ficou explicado, necessária é agora a sua expansão, pois é sabido que por algum meio, até então desconhecido, tais conceitos de Deus, alma e liberdade existem de algum modo na razão e nesta encontram inquietude. Daí estabelecer-se-á uma amplificação da razão pura por meio de uma expansão desta para aquilo que ele chama de uma razão prática pura, que nada mais é do que um tipo de sistemática diferente daquela primeira, isto é, há uma só razão com duas formas sistemáticas para conhecer as suas representações da natureza e do transcendente. Ora a razão prática e a razão especulativa têm como fundamento um só e único poder de conhecer, enquanto são ambas razão pura. Será necessário, portanto, determinar a diferença entre a forma sistemática de uma e aquela da outra pela comparação das duas e fornecer a razão desta diferença (KANT, 2003, p. 111). Kant, em sua introdução, traz uma afirmação como definição daquilo que ele pretende investigar: para ele, princípios práticos são proposições que encerram uma determinação universal da vontade, subordinando-se a essa determinação diversas regras práticas. São subjetivos, ou máximas, quando a condição é considerada pelo sujeito como verdadeira só para a sua vontade; são, por outro lado, objetivos ou leis práticas quando a condição é conhecida como objetiva, isto é, válida para a vontade de todo ser natural. 5.1 Conceito de um objeto da razão pura prática Entende-se como conceito da razão pura prática a representação de um objeto concebido como um efeito capaz de ser produzido pela liberdade. O conhecimento prático tem, portanto, como objeto desse teor somente a significação da relação de desejar uma ação mediante a qual o móvel ou seu contrário seria realizado e julgar se determinada coisa é ou não objeto da razão pura prática, é discernir singelamente a impossibilidade de querer a ação mediante a qual, se fossemos dotados do poder necessário (o que cabe à experiência ajuizar), seria possível levar a efeito determinado objeto. Se supomos que o objeto 87 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : L uc as M an sin i - d at a KANT constitui o motivo determinante de nossa faculdade de desejar, devemos admitir que, mediante o uso de nossas forças, esse objeto é fisicamente possível, urgindo acolhê-lo antes do juízo que deve estabelecer se é ou não um objeto da razão prática. Por outro lado, se não for dado considerar que a lei a priori é o motivo determinante da ação e, consequentemente, essa ação resultar como determinada mediante a razão pura prática, conviremos que esse juízo independe por completo do nosso poder físico. Dado isso, a questão fica reduzida a saber se nos é permitido querer uma ação que tem como finalidade um objeto, supondo-se que ele esteja dentro do nosso poder; então, se conseguimos isso, é a possibilidade moral da ação a que atua, porque neste caso o objeto não é mais do que a lei da vontade, o motivo que determina a ação. Os únicos objetos de uma razão prática são, portanto, os do bem e do mal. O primeiro é um objeto necessário da faculdade de desejar; o segundo é um objeto necessário da aversão, mas ambos se regem segundo um princípio da razão. Não se origina o conceito do bem de uma lei prática que lhe preceda, devendo, antes, servir de base a esta, só então lhe sendo dado servir de conceito a algo cuja existência faculte prazer, determinando assim a causalidade do sujeito para a produção dessa faculdade de desejar. Como porém é impossível discernir a priori qual representação será acompanhada de prazer e qual será aliada à dor, seria coisa resultante exclusivamente da experiência decidir o que é imediatamente bom ou mau. A propriedade do sujeito, em relação à qual apenas essa experiência pode ser instaurada, é o sentimento do prazer ou da dor, tomados como receptor pertencente ao sentido interno, vindo assim o conceito do que seja imediatamente bom parar apenas naquilo com que se relaciona a sensação de prazer, tendo o conceito do que seja absolutamente mau de reportar-se somente ao que excita imediatamente o sofrimento. Mas isso se contrapõe ao uso da língua, que distingue o agradável do bom, o desagradável do mau, exigindo que o bem e o mal sejam julgados sempre pela razão e, consequentemente,por conceitos passíveis de comunicação no sentido universal – portanto, não por mera sensação que se limita a sujeitos individuais e à receptividade destes. Além disso, um prazer ou uma dor não podem por si mesmos unir-se como qualquer representação imediata de um objeto a priori. Assim, resulta que o filósofo que se julga obrigado a colocar uma sensação de prazer como base do seu juízo prático designaria como bom o que não passa de um meio para chegar ao aprazível, tendo assim por mau aquilo que só é causa, de desagrado ou de sofrimento, porque o julgamento de relação entre os meios e os fins pertence certamente à razão. Porém, quando apenas a razão tivesse o poder de penetrar a conexão dos fins com as suas intenções (de forma tal que também se pudesse definir a vontade como faculdade dos fins, sendo estes fundamentos permanentes de determinação da faculdade de desejar, segundo princípios agentes), também as máximas práticas que, como meios, podiam derivar-se do conceito do bem já aludido, não conteriam nunca, como objeto da vontade, algo que fosse bom por si mesmo, mas encerrariam algo de bom para outra coisa. Então, o bem não seria apenas o útil, e aquele para o qual esse útil fosse útil deveria achar-se sempre fora da vontade, ou, digamos, na sensação. 88 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : L uc as M an sin i - d at a Unidade II Pois bem: se esta, como sensação agradável, tivesse que ser distinguida do conceito do bem, não haveria em parte alguma nada que fosse imediatamente bom, devendo o bem ser procurado só nos meios para alcançar alguma outra coisa, isto é, uma satisfação agradável. 5.2 Tábua das categorias da liberdade em relação aos conceitos do bem e do mal Kant identifica tal disposição natural para o bem sistematizando-a em três aspectos diferentes. Kant faz uso apenas de um parágrafo para identificar e explicar cada característica da disposição para o bem. Assim, temos os seguintes aspectos dessa disposição para o bem: Animalidade Esse primeiro aspecto da disposição para o bem refere-se ao amor de si físico e sem racionalidade, ou seja, um amor mecânico no qual não se exige razão, no qual há apenas o impulso natural para a vida. É a aptidão natural de sobrevivência enquanto ser vivo. Ele inclui as seguintes características: • conservação de si; • propagação da espécie; • associação com outros homens. A animalidade se dá por meio do instinto sexual e da conservação da união, ou simplesmente do instinto da conservação de sociedade. O filósofo de Königsberg resume então este primeiro aspecto da disposição para o bem como a propensão natural que o ser humano tem para sobreviver enquanto espécie. Ele se refere a sua própria conservação enquanto ser vivo, bem como a daqueles que por ele são gerados a partir do ato de procriação. Tal aspecto não exige esforço reflexivo da razão em virtude de já ser naturalmente uma dinâmica própria de sua natureza que garante a sobrevivência da espécie humana. Dessa primeira forma de disposição o filósofo argumenta que proveem dela também os vícios de “rusticidade” da natureza enquanto necessários à natureza. Humanidade A segunda disposição para o bem acontece quando na comparação com o outro há já certo grau de racionalidade. Esse aspecto implica que a felicidade do homem é em parte dependente do valor que o outro atribui a ele, ou seja, o amor de si aqui é lançado no âmbito da comparação acerca da opinião do outro sobre si, não na esfera de igualdade, mas de superioridade. Desse segundo aspecto da disposição para o bem podem surgir os vícios da inveja e da rivalidade, mas tais sentimentos são gerados como que por iniciativa de defesa devido ao mal dos outros e nos causa temor pelo fato de os temermos como superiores. Tais vícios são chamados de “vícios da cultura” e, quando atingem um alto grau de malignidade, são denominados “vícios diabólicos” (KANT, 2008, p. 36). Assim, tais sentimentos negativos brotam a partir de uma necessidade de defesa; porém, não se encontram na raiz da natureza cuja disposição inicial é sempre benéfica. 89 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : L uc as M an sin i - d at a KANT Personalidade A terceira e última disposição é identificada como disposição natural do homem à lei moral. Neste grau de disposição encontramos a razão como raiz legisladora absoluta. Aqui, enfatiza-se a condição de um caráter bom do livre-arbítrio, ou seja, é a aptidão natural em sentir respeito para com a lei moral enquanto seu motivo suficiente, embora que ainda não seja a efetivação plena, uma vez que para isso faz necessário não haver nada de mau na personalidade em prol da adoção do respeito em nossas máximas. Tal aptidão é o que Kant denomina de “sentimento moral” (KANT, 2008, p. 36). Kant encerra a abordagem das disposições informando que estas são possibilidades da natureza humana, as quais estão relacionadas diretamente com a faculdade apetitiva e com o livre-arbítrio. Em resumo, tais disposições são pré-ordenações originais encontradas na natureza que visam um fim agregador do arbítrio para com a lei moral. 5.2.1 Pendor para o mal na natureza humana: da origem do pendor ao mal Apesar de Kant ser um filósofo que procura investigar e definir os fundamentos primeiros da razão e, consequentemente, das demais coisas, naquilo que se refere à origem do mal ele admite não conseguir identificar tal princípio como objeto; acredita, pois, que tal mal tenha sido de alguma forma imputado no ser racional. Quanto à origem racional desse pendor ao mal, permanece para nós insondável porque deva ser-nos imputado [...] não existe para nós, portanto, razão compreensível para saber de onde o mal moral poderia desde o início ter vindo a nós [...] assim, o começo primeiro de todo o mal é representado para nós como incompreensível (KANT, 2008, p. 54-55). Há, portanto, segundo o filósofo, um desacordo no arbítrio do ser racional, o qual promove a deliberação de adoção de máximas más. Num estado anterior a esse pendor ao mal o ser racional se encontra em uma condição de inocência; contudo, não escapa a uma inclinação inata à transgressão, ou seja, há nesse ser racional uma predisposição natural para o deixar-se seduzir pelo mal apesar de ser fundamentalmente disposto ao bem. 5.2.2 Aspectos ou graus do pendor ao mal Assim como visto anteriormente, referente à disposição para o bem, o pendor para o mal é também caracterizado por três aspectos na religião nos limites da simples razão. São eles: Fragilidade Este grau implica em uma consciência acolhedora para com a máxima da lei, ou seja, ao bem no arbítrio, mas que, de fato, em subjetivo, não há forças na natureza humana para a efetivação desse bem quando se propõe a seguir a máxima em virtude da relação com a inclinação. Kant mais uma vez exemplifica esse grau fazendo uso de uma passagem citada pelo apóstolo Paulo quando este último diz: 90 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : L uc as M an sin i - d at a Unidade II Porque bem sabemos que a lei é espiritual; eu toda via sou carnal, vendido à escravidão do pecado. Porque nem mesmo compreendo o meu próprio modo de agir, pois não faço o que prefiro, e sim o que detesto. Ora, se faço o que não quero, consinto com a lei que é boa. Neste caso, quem faz isso já não sou eu, mas o pecado que habita em mim. Porque eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita bem nenhum, pois o querer o bem está em mim; não porém o efetuá-lo. Porque não faço o bem que prefiro, mas o mal que não quero, esse faço. Mas, se eu faço o que não quero, já não sou eu quem o faz, e sim o pecado que habita em mim. Então, ao querer fazero bem, encontro a lei de que o mal reside em mim. Porque no tocante ao homem interior, tenho prazer na lei de Deus; mas vejo nos meus membros, outra lei que, guerreando contra a lei da minha mente, me faz prisioneiro da lei do pecado que está nos meus membros (ROMANOS, 7:14-23). Apesar de Kant não explicitar a passagem por completo, o filósofo faz uma breve menção em A religião nos limites da simples razão ao discorrer sobre essa fragilidade na natureza humana e que remonta ao texto que acabamos de citar, cuja autoria é atribuída ao apóstolo Paulo, e que, em resumo, constitui o retrato da doutrina moral kantiana, a qual mantém ainda firme a sua evidente e constante busca de conciliação de sua filosofia com aqueles registros encontrados nas Escrituras. Para isso, basta substituir os termos “carne” e “membros” (paulinos) por “inclinações sensíveis” (em Kant) e também “pecado” (em Paulo) por “pendor” (em Kant) ou ainda “lei da minha mente” (em Paulo) por “lei moral” (em Kant). Assim, configura-se a notada compatibilidade do pensamento kantiano com as ideias básicas do cristianismo. Impureza O segundo grau do pendor ao mal é a impureza que consiste na mistura do que é imoral com o que é moral, ou seja, ocorre quando a intenção no coração do homem é a de aplicar máximas boas em relação ao objeto da lei, mas que, contudo, não aprecia única e exclusivamente a santidade da lei como motivo absoluto e suficiente dessa intenção e enxerta outros subsídios para incremento sobre a lei, isto é, além da lei, carece de outros artifícios para a realização final da caracterização subjetiva do ato no arbítrio. Para Kant, a intenção subjetiva deve concordar em máxima por pura subordinação ao dever e não apenas em conformidade com o dever, isto é, quando a intenção acrescenta outro motivo que não seja a obrigatoriedade no reconhecimento do cumprimento da lei, torna-se então impura. Adoção de máximas más Neste terceiro grau do pendor ao mal, fica caracterizada em definitivo a maldade, corrupção ou perversidade do coração humano, quando enfim ocorre a deliberação no arbítrio da adoção de máximas más. É o modo de pensar em sua raiz que inverte as motivações do verdadeiro livre-arbítrio. Kant explica que subjetivamente há uma razão determinante, um motivo anterior operante no livre-arbítrio que precede ao ato não sendo ainda ato. De modo que ainda que o homem exteriormente aparente exercer ações legais, em conformidade com a lei, toda sua maneira de pensar é contrária a ela. Este é, portanto, um princípio inerente que falseia a intenção original que, neste caso, é má. 91 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : L uc as M an sin i - d at a KANT Após essas primeiras noções das inerências quanto à disposição do bem e do pendor para o mal na natureza humana – ainda que publicadas posteriormente à Crítica da razão prática e à Crítica do juízo – pode-se concluir que para Kant o homem já nasce cercado por outros homens, que por sua vez já estão também corrompidos pela maldade, e não demora para que este ser, que nasce e vai adquirindo consciência, logo se torne também mau. Contudo, há em subjetivo a predisposição natural para que se aceite a maldade, ou seja, o homem é mau por natureza e ao ser colocado diante daquilo que é contrário à lei tenderá inevitavelmente para o erro. Este é um princípio empírico encontrado por Kant para o problema teológico da transmissão do mal, que alguns atribuíam a um problema hereditário. Nessa perspectiva, apenas uma sociedade santa poderá favorecer o homem na busca do ideal do bem. Dessa forma, o fundamento do mal tem de residir no uso subjetivo da liberdade que se antecipa ao arbítrio e a toda e qualquer ação, uma vez que tal liberdade é regida sobre leis morais objetivas. Este fundamento subjetivo não é um ato da liberdade, mas corresponde às máximas adotadas pelo sujeito racional. Há, portanto, um princípio primeiro no ser racional, o qual não podemos descrever, que o capacita ou permite que adote boas ou más máximas, sendo as máximas más aquelas contrárias à lei. Então, segundo Kant “um bem-estar não é um conceito da razão, mas um conceito empírico de um objeto da sensação” (KANT, 2003, p. 83). Kant chama a atenção – na segunda Crítica – para a diferença entre o bem e o bem-estar, como também o mal e os males. Assim, o prazer próprio é considerado um bem-estar que constitui aquilo que é agradável sensivelmente e empiricamente para o ser racional. Mas a busca de Kant é pelo bem puro, que acredita estar a priori. Bem/mal ≠ Bem-estar/males (Conceitos da razão pura) (Conceitos empíricos) A questão que podemos subliminarmente indagar é a seguinte: para que praticar o bem? Segundo Kant, a prática do bem tem um fim recompensador, assim como também a prática do mal. Fazemos o que é bom por dever, mas tal cumprimento ou negligência desse dever tem que necessariamente promover uma recompensa futura, caso contrário, fica sem sentido qualquer forma de explicação para o conceito de justiça. Como já foi citado anteriormente, Kant não explica a origem do mal, apenas apresenta o homem em um estado de inocência, estado este que é anterior à condição de um pendor ao mal. Além disso, descarta a possibilidade hereditária da transmissão desse mal, ou seja, do pecado original. Vejamos o que nos diz em A Religião nos limites da razão, no qual ele aborda a questão da origem do mal: Quanto à origem racional desse pendor ao mal, permanece para nós insondável porque deva ser-nos imputada [...] não existe para nós, portanto, razão compreensível para saber de onde o mal moral poderia desde o início ter vindo a nós [...] assim, o começo primeiro de todo o mal é representado para nós como incompreensível de uma maneira geral (KANT, 2008, p. 54-55). 92 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : L uc as M an sin i - d at a Unidade II A sensação de prazer, por sua vez, não pode ser considerada como base para a razão prática, pois por força da linguagem há uma distinção entre bem e prazer, como também entre mal e dor. Kant está buscando aqueles conceitos que são exclusivos de uma razão pura, ou seja, isentos dos conteúdos empíricos, mas que interferem, fazem referência ou incidem sobre os sentimentos empíricos. É mais uma busca do sintético a priori, só que, agora, no sentido prático dentro do campo da representação. Por fim, no que se refere a essas questões acerca do bem e do mal, podemos concluir com as palavras do próprio filósofo, as quais em muito se assemelham ao que escrevia Tomás de Aquino acerca deste tema: “Assim no homem que, apesar da corrupção do seu coração guarda ainda a boa vontade, permanece a esperança de um retorno ao bem, do qual se afastou” (KANT, 2008, p. 55). Dessa forma, existe ainda uma faísca de luz no coração humano, qual seja essa disposição original para o bem que pode ser reencontrada. Basta apenas que o ser racional em seu íntimo encontre o caminho de concordância, em suas máximas, com a lei da razão prática pura. 5.3 Impulsionadores da razão pura prática Derivam-se todos estes do princípio da moralidade, o qual não constitui nenhum postulado, mas sim uma lei por meio da qual a razão determina imediatamente a vontade. Essa vontade, precisamente por ser assim determinada, como vontade pura que é, exige essas condições necessárias na observância dos seus preceitos. Esses postulados não são dogmas teóricos, mas pressuposições em sentido necessariamente prático; portanto, se não distendem em verdade o conhecimento especulativo, dão, contudo, realidade objetiva às ideias da razão especulativa em geral (por meio de sua relação com o que é prático), autorizando-a a formular conceitos sem os quais não poderia intentar nem sequer a afirmativa desua possibilidade. Estes postulados são os da imortalidade, da liberdade, considerada positivamente (como a causalidade de um ser enquanto pertence ao mundo intelectivo) e da existência de Deus. O primeiro é derivado da condição praticamente necessária da adequação da durabilidade ao cumprimento integral da lei moral; o segundo, da necessária suposição da independência do mundo sensível e da faculdade da determinação da sua vontade, segundo a lei de um mundo inteligível, isto é, da liberdade; o terceiro, da necessidade da condição que exige esse mundo inteligível para ser o sumo bem, mediante a suposição do sumo bem independente, ou seja, a existência de Deus. O valor moral das ações depende em sua essência do fato de que a lei moral determine imediatamente a vontade. Se a determinação da vontade, todavia, nesse caso todo particular, evidentemente, também se efetua em conformidade com a lei moral, mas só mediante um sentimento de qualquer espécie que seja, é necessário pressupô-lo para que esse sentimento possa vir a ser um fundamento de determinação suficiente para a vontade, não ocorrendo, portanto, a ação exclusivamente mediante a lei moral, ação esta que encerrará, certamente, legalidade mas não conterá moralidade. Para a finalidade da lei moral e para proporcionar-lhe um influxo sobre a vontade, não há necessidade de buscar qualquer motor estranho que substituísse o da lei moral, pois isso tudo resultaria em pura e inconsistente hipocrisia, sendo até perigoso (bedenklich) deixar que alguns outros motores 93 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : L uc as M an sin i - d at a KANT (como o do proveito) cooperem com a lei moral, ainda que seja apenas paralelo a ela; disso resulta, portanto, que não resta mais do que determinar cuidadosamente de que modo a lei moral resulta em motor, ou, quando o seja, o que ocorre com a faculdade humana de desejar, como consequência de tal fundamento determinante dessa faculdade. A questão de como uma lei possa ser, imediatamente e por si mesma, o motivo determinante de uma vontade (que é essencial de toda a moralidade) é um problema insolúvel para a razão humana e idêntico ao de como seja possível uma vontade livre. Desse modo, devemos assinalar a priori não o fundamento pelo qual a lei moral em si proporciona um motor, mas o que ela, sendo motor, leva a efeito no espírito (ou, para dizer-se com mais propriedade, o que deve levar a efeito). Qualquer determinação da vontade mediante a lei moral tem alguma coisa essencial e que, como vontade livre, sem cooperação, portanto, não só de impulsos sensíveis, mas, ainda, com exclusão de todos eles e em prejuízo de todas as inclinações quando contrárias a essa lei, apenas pela lei é determinada. Nesta medida, portanto, o efeito da lei moral como motor é só negativo e, como tal, esse motor pode ser conhecido a priori. Mas, na verdade, toda a inclinação e todo o impulso sensível tem como base um sentimento, sendo o efeito negativo sobre tal sentimento (pelo dano que infere às inclinações) também um sentimento. Por conseguinte, podemos constatar a priori que a lei moral, como fundamento de determinação da vontade, deve produzir um sentimento ao prejudicar as inclinações, ao qual poderemos denominar dor; e aqui temos agora o primeiro e quiçá, também, o único caso em que podemos determinar por conceitos a priori a relação de um conhecimento (neste caso, de uma razão pura prática) com o sentimento do prazer ou da dor. A união de todas as inclinações (que podem ser reduzidas a um sistema vulgar, ao qual se denominaria felicidade) constituem o egoísmo (solipsismus). É este o do amor de si mesmo, de uma benevolência excessiva para consigo mesmo (philautia) ou da satisfação de si mesmo (arrogantia). Aquele denominamos particularmente amor-próprio (Eigenliebe) e este, presunção (Eigendünkel). A razão pura prática infere prejuízo ao amor-próprio pelo fato de apenas conceder-lhe os limites estritamente justos e que correspondem à lei moral, estando, ainda antes de ela manifestar-se, natural e vivo em nós mesmos; então, é chamado de amor-próprio racional. Todavia, é completamente subjugada pela presunção, sendo todas as pretensões da estimativa de si mesmo, que precedem à coincidência com a lei moral, ocas e destituídas de qualquer direito (ohne alle Befugnis), pois a certeza precisa de uma intenção que coincide com essa lei é a condição primordial de todo o valor da pessoa (como logo veremos com mais clareza), sendo toda a pretensão anterior a ela falsa e contrária à lei. A tendência à estimativa de si mesmo pertence às inclinações a que a lei moral causa dano, enquanto essa estimativa só assenta na sensibilidade. Com isso, a lei moral aniquila a presunção. Convenhamos, porém, que sendo essa lei moral alguma coisa positiva por si mesma, isto é, a forma de uma causalidade intelectual, ou seja, da liberdade, resulta que, ao debilitar a presunção, opondo-se à resistência subjetiva, a saber, às inclinações que se 94 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : L uc as M an sin i - d at a Unidade II manifestam em nós mesmos, é, ao tempo, objeto de respeito (Achtung), e, ao derrotá-la completamente ou, então, humilhando-a, resulta um objeto de sumo respeito, sendo portanto também o fundamento de um sentimento positivo, que não é de origem empírica e que é conhecido a priori. Desse modo, pois, o respeito para com a lei moral é um sentimento que se produz por um fundamento intelectual, sendo esse sentimento o único que nos é dado conhecer anteriormente a priori e cuja necessidade podemos ter como evidente. Anteriormente, vimos que tudo aquilo que se apresenta como objeto da vontade antes da lei moral resulta excluído dos fundamentos de determinação da vontade que levam o nome do bem incondicionado, mediante essa mesma lei como condição suprema da razão prática e, ainda, que a mera forma prática, consistente na aptidão das máximas para a legislação universal, determina em primeiro lugar o que é absolutamente bom em si, fundamentando a máxima de uma vontade pura que é boa em todos os sentidos. Julgamos, todavia, que a nossa natureza, como seres sensíveis que somos, constituindo-se de tal modo que a matéria da faculdade de desejar (objetos da inclinação, da esperança ou do temor) logo se impõe, antes de qualquer outra coisa, resultando o nosso eu (Selbst) patologicamente determinável, ainda que seja mediante as suas máximas totalmente desconforme à legislação universal; contudo, como se constituísse todo o nosso eu, esforça-se em fazer valer anteriormente as suas pretensões à guisa de principais e de mais genuínas na sua origem. 5.4 Dialética da razão pura prática Veremos a seguir a dialética da razão pura na determinação do conceito de sumo bem. “Sumo” pode significar supremo ou perfeito. No primeiro caso, condiciona a si mesmo e não está subordinado a nenhum outro (originarium), enquanto no segundo é aquele todo que não é parte alguma de um todo maior da mesma classe (perfectissimum). Ainda tratando-se do sumo bem, na visão epicurista, ter a consciência da máxima que leva a felicidade é a felicidade em si. A virtude é todo sumo bem, e a felicidade é a consciência da posse dessa virtude como inerente ao estado do sujeito. Já na visão estoica, ter consciência da virtude é a felicidade, só a moralidade é a verdadeira sabedoria, o princípio baseia-se no lado lógico e há uma independência da razão prática relativamente a todos os princípios sensíveis de determinação, ou seja, a felicidade é todo o sumo bem, e a virtude é a forma máxima para adquiri-lo, isto é, o uso racional dos meios para obtê-la. O sumo bem só é praticamente possível tendo em vista que a possibilidade do sumo bem não se fundaem nenhum princípio empírico. A dedução desse conceito deverá ser necessariamente transcendental: “É, a priori (moralmente) necessário produzir o sumo bem pela liberdade da vontade. Assim, a condição da possibilidade do sumo bem deve se fundar também em princípios a priori do conhecimento” (KANT, 2008, p. 124). No que trata sobre o primado da razão pura prática em sua união com a razão pura especulativa, primeiro deve-se entender o que “primado” significa: 95 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : L uc as M an sin i - d at a KANT Por primado entre duas ou mais coisas sobre a razão, entendo a vantagem que uma tem de ser o primeiro princípio de determinação de conexão com as demais. Dentro de um sentido prático, mais restrito, significa a preeminência do interesse de uma enquanto o interesse das outras está subordinado a esse (KANT, 2008, p. 130). Agora, devemos entender quais e como são os postulados da razão pura prática em geral. Primeiramente, deve-se deixar claro que todos, sem exceção, se derivam do princípio da moralidade, o qual não constitui nenhum postulado, mas uma lei por meio da qual a razão determina imediatamente a vontade. Também não possuem o uso especulativo, pois sempre serão subjetivos e impossíveis enquanto realidades práticas. Esses postulados têm seu uso sempre unicamente em relação ao exercício da lei moral, não podem ser demonstrados pela razão especulativa e muito menos refutados por ela. Esses postulados são três: • O primeiro é o da imortalidade derivado da condição praticamente necessária da conformidade da duração como cumprimento integral da lei moral. • O segundo é o da liberdade (considerada como a causalidade de um ser enquanto ele pertence ao mundo inteligível), derivado da suposição necessária da independência em relação ao mundo sensível e da faculdade da determinação da sua vontade, segundo a lei de um mundo inteligível, ou seja, da liberdade. • O terceiro e não menos importante que os postulados anteriores é o da existência de Deus (Deus como forma pura da visão kantiana), determinado da necessidade da condição exigida para faculdade da determinação da sua vontade, segundo a lei de um mundo inteligível, ou seja, da liberdade. Os princípios (do homem) devem fundar-se em conceitos. Sobre qualquer outro fundamento só podem estabelecer-se movimentos passageiros que não proporcionam nenhum valor moral, nem mesmo a confiança de si mesmo, sem a qual a consciência da sua disposição moral e de um tal caráter, o sumo bem no homem, não pode se efetivar praticamente de maneira subjetiva, ou seja, de maneira subjetivamente prática. A lei moral exige a sua observância por dever e não por uma predileção, o que não se deve nem se pode pressupor. A ação deve também se realizar “subjetivamente” em virtude da lei moral e segundo sua máxima, a retidão (retidão, do latim rectitudine, qualidade de conformidade com a razão, integridade de caráter) moral, não apenas como ato, mas também como intenção, valor moral. A liberdade interior alcançada pelo ser através da razão pura prática se dá pela libertação da violência das inclinações até o ponto que nenhuma possa ter influência sobre uma resolução em que se deve fazer uso da razão. A lei do dever, pelo valor positivo que a sua observância nos faz sentir, encontrará fácil acesso em nosso recôndito (interior), graças ao respeito por nós mesmos, que se origina na consciência da nossa liberdade. Kant assume que duas coisas enchem a alma de uma admiração e de uma veneração sempre renovadas e crescentes quanto com mais frequência e aplicação delas se ocupa a reflexão: o céu estrelado sobre todos e a lei moral nos seres. O primeiro é o lugar que cada ser ocupa no mundo 96 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : L uc as M an sin i - d at a Unidade II exterior dos sentidos, estende a conexão em que o indivíduo se encontra até o imensamente grande, com mundos sobre mundos, e de sistemas de sistemas, nos tempos ilimitados do seu movimento periódico, de seu começo e de sua duração. Também apresenta uma inumerável multidão de mundo que causa uma aniquilação a importância do ser como criatura animal. Deve-se devolver ao planeta a matéria que lhe foi feita, depois de ter sido dotado, não se sabe porque, por um curto tempo, de força vital, enquanto o segundo é o invisível eu, a personalidade, expondo-se em um mundo que tem a verdadeira infinidade, porém que só é penetrável pelo entendimento e com o qual o ser se reconhece em uma conexão universal e necessária (não somente contingente), como em relação ao próximo. A razão realça infinitamente o valor do ser como inteligência por meio de sua personalidade (a lei moral liberta da animalidade e também de todo o mundo sensível). Essa lei não está limitada a condições e limites desta vida, mas sim estende-se ao infinito. 5.5 Postulados da razão pura prática em geral: metodologia da razão pura prática Por metodologia da razão pura prática não se deve entender o modo (tanto na reflexão como na exposição) de proceder com princípios puros práticos, em relação a um conhecimento científico destes, o que se denomina, além disso, no conhecimento teórico, método propriamente dito. Isso porque o conhecimento vulgar necessita de um modo, porém, a ciência, de um método, isto é, um processo por princípios da razão, mediante o que apenas o múltiplo de um conhecimento pode chegar a ser um sistema. Neste caso, entretanto, devemos entender por metodologia principalmente o modo como se pode proporcionar às leis da razão pura prática um acesso ao ânimo do homem, incutindo-lhe influência sobre as suas máximas, ou seja, para tornar subjetivamente prática a razão objetivamente prática. Pois bem, é evidente que os princípios determinantes da vontade, que tornam por si mesmos propriamente morais as máximas, dando-lhes um valor moral, a representação imediata da lei e a observância objetivamente necessária dela, como dever, têm de ser representadas como os verdadeiros móveis da ação, porquanto, de forma diversa, seria observada a legalidade das ações, mas não a moralidade das intenções. Não é porém tão evidente, sendo até inverossímil, à primeira vista que também subjetivamente aquela representação da virtude pura possa ter, sobre o ânimo do homem, também subjetivamente, mais poder e dar-lhe um motor muito mais forte ainda para realizar aquela legalidade das ações e produzir decisões mais enérgicas, de forma a preferir a lei no seu respeito, sobre qualquer outra coisa que possa resultar de todas as soluções oriundas do reflexo dos prazeres e, em geral, de tudo o que se possa computar à felicidade, ou também às ameaças de dores e de males. Contudo, isso acontece, e se a natureza humana não estivesse assim constituída, jamais um modo de representar a lei mediante circunlóquios e meios de recomendação poderia produzir a moralidade da intenção. 97 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : L uc as M an sin i - d at a KANT Observação Razão prática: busca estabelecer o uso da razão não baseada na intuição sensível, nem na experiência, isto é, do tipo numênico. Razão pura: busca limitar a razão cognoscitiva à esfera da experiência. Ao tratar da metodologia da razão pura prática (Methodenlehre), Kant (1996) afirma que ela constitui “o modo como se pode proporcionar às leis da razão prática pura acesso ao ânimo humano, de modo a provocar uma influência sobre as máximas do mesmo, isto é, como se pode fazer a razão objetivamente prática também subjetivamente prática”. Ainda aí, Kant abre o caminho para suas obras que versam sobre a ética aplicada, como Doutrina da virtude e Sobre a Pedagogia,anotando que quis referir-se somente às máximas mais gerais da “doutrina do método” acerca de uma cultura e exercícios morais. E conclui assegurando que sua segunda Crítica é apenas um exercício preliminar e que a multiplicidade dos deveres requer ainda determinações particulares para cada espécie deles, algo que implica ainda uma vasta tarefa posterior. Segundo Kant, sua ética se divide entre a ética propriamente dita e a antropologia prática ou moral. Nosso objetivo é nos fixarmos na segunda, uma vez que ela institui-se pelo Direito e pela educação. Aqui, privilegiamos a educação. Dessa forma, é necessário entendermos a primeira divisão. 6 METAFÍSICA DOS COSTUMES Na introdução à Metafísica dos costumes, Kant volta a esclarecer sobre a função e especificidade da antropologia prática, agora chamada de antropologia moral. Kant a chama de “o outro membro da divisão da filosofia prática” (KANT, 2002, p. 417) e ressalta que ela se ocupa do desenvolvimento, da difusão e do fortalecimento dos princípios morais, tanto na educação escolar quanto na instrução do povo. A antropologia moral é “indispensável”, mas não deve preceder uma Metafísica dos Costumes ou ser a esta mesclada. Seu lugar é paralelo, mas orientada pelos preceitos dados a priori somente na razão pura, na qual está enfocada a metafísica dos costumes. E em suas preleções sobre ética, especificamente nas anotações feitas pelo seu aluno C. C. Mrongovius, encontramos mais uma elucidação sobre a antropologia moral: A metafísica dos costumes, ou metaphysica pura, é apenas a primeira parte da moralidade; a segunda parte é a philosophia moralis appliccata, antropologia moral, à qual os princípios empíricos pertencem. [...] A filosofia prática geral é propedêutica. A antropologia moral é a moralidade aplicada ao homem. Moral pura é baseada em leis necessárias, e assim ela não pode ser fundamentada na constituição particular do homem, e as leis baseadas nisso ficaram conhecidas na antropologia moral sob o nome de ética. Na filosofia prática geral, a metafísica dos costumes, ou metaphysica pura, é também apresentada em um modo mesclado (KANT, 2002, p. 378). 98 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : L uc as M an sin i - d at a Unidade II Ao reconhecer a preferência dos seus contemporâneos por uma filosofia prática popular sobre uma metafísica da moral, Kant nota que tal fato é provocador. Entretanto, acredita que a moralidade deve ser qualificada pelos princípios da razão pura articulados de modo que a doutrina moral seja baseada na metafísica. Assim, Kant assegura que mesmo no uso prático popular, especialmente naquele da instrução moral, seria impossível fundar a moral nos seus princípios genuínos e assim cultivar bons caracteres morais. Isso porque a moralidade para os seres humanos é, na visão de Kant, o resultado pretendido de um processo educacional extensivo, já que “atrás da educação repousa o grande segredo da perfeição da raça humana” (KANT, 1999, p. 444). A própria moralidade, ao menos no que concerne aos seres humanos, desse modo, pressupõe a educação. A moralidade não pode simplesmente ser um produto causal da educação, mas ela pressupõe a educação como uma pré-condição necessária, uma vez que “por natureza o ser humano não é um ser moral em absoluto” (KANT, 1999, p. 492). Em Sobre a Pedagogia, Kant descreve os estágios e divisões da educação. O primeiro estágio é o cuidado (KANT, 1999, p. 441), que é uma parte da educação física oposta à educação prática, e forma aquela parte da educação “que o ser humano tem em comum com os animais” (KANT, 1999, p. 455). Uma vez que Kant abre Sobre a Pedagogia anunciando que o ser humano “é a única criatura que precisa ser educada” (KANT, 1999, p. 441), existe realmente um sentido no qual o cuidado também se coloca fora dos parâmetros da educação tal como o próprio Kant, de início, a constrói. O segundo estágio da educação é a disciplina ou o treinamento. Como o cuidado, a disciplina também é entendida como um estágio preliminar da própria educação. Segundo Kant, “a disciplina transforma a animalidade em humanidade” (KANT, 1999, p. 441). Mas sabemos que “transformar” não significa “erradicar”. Na realidade, disciplinar “significa procurar evitar que a animalidade cause danos à humanidade. [...] A disciplina é, portanto, meramente domar a selvageria” (KANT, 1999, p. 449). Em um sentido mais amplo, essa tarefa é compartilhada com o que Kant em outro lugar chama de “cultura negativa” ou “libertar a vontade do despotismo dos desejos” (KANT, 1999, p. 433). O terceiro estágio é geralmente chamado de cultura. Por vezes, os termos “formação” e “cultura” são usados como sinônimos por Kant, e esse estágio inclui uma variedade de processos mais específicos, tais como a instrução (KANT, 1999, p. 441), o ensino (KANT, 1999, p. 449) e a orientação (KANT, 1999, p. 452). Kant frequentemente faz uma distinção adicional entre a cultura geral e “um certo tipo de cultura, que é chamada de civilização” (KANT, 1999, p. 450). A “civilização” tem como objetivo não apenas a habilitação, mas também a prudência, e assim representa um estágio mais alto. Toda a prudência pressupõe habilidade. A prudência é a faculdade de alguém usar suas habilidades de um modo socialmente efetivo para alcançar seus objetivos. Kant afirma que o resumo da Antropologia Pragmática com referência ao destino do ser humano e as características da sua educação é o seguinte: o ser humano é destinado através da sua razão a estar em sociedade com outros seres humanos e a se cultivar, a se civilizar e a se moralizar nessa sociedade através das artes e das ciências. 99 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : L uc as M an sin i - d at a KANT A civilização conduz ao último estágio da educação, que é a moralização. A moralização, tal como posta em Sobre a Pedagogia, não pode ser uma simples adição da cultura e da civilização. Ela envolve também uma passagem para o reino da liberdade que, logicamente, pressupõe os passos preparatórios da cultura e da civilização. Para Kant, a humanidade está ainda muito distante do estágio final da moralização, pois vivemos em um tempo de treinamento disciplinar, de cultura e de civilização, mas de modo algum em um tempo de moralização. Mas qual é o grande fim da moralização? Para Kant, em última instância, o fim da moralização e, portanto, de toda a educação moral é a formação do caráter do homem. O primeiro esforço da cultura moral deve ser lançar os fundamentos do caráter. Para Kant, o caráter consiste no hábito de agir segundo certas máximas. Estas são, em princípio, as da escola e, mais tarde, as da humanidade. Em Sobre a Pedagogia, Kant mostra que quando se quer formar o caráter das crianças, urge mostrar-lhes em todas as coisas um certo plano e certas leis que elas devem seguir fielmente. Isso porque Kant acredita na educação moral como fomentadora da confiabilidade entre os homens. Para ele, os homens que não se propuseram certas regras não podem inspirar confiança; não sabemos como nos comportar com eles. Kant está certo, entretanto, que o entendimento pleno do estudante sobre o agir por dever somente será possível com o passar dos anos e, assim, sua obediência, a cada dia, será aperfeiçoada. Para formar um bom caráter, é preciso domar as paixões, mas não as erradicar. Para aprender a se privar de alguma coisa são necessárias coragem e uma certa inclinação. É preciso acostumar-se às recusas e à resistência. Mas não é só com abstinências que se forma um caráter. Kant assegura que este é formado também na sociabilidade. Ele diz que o educando deve manter boas relações de amizade, uma vez que apenas um coração contente é capaz de encontrar prazer no bem. SegundoKant, a etapa suprema da educação é a consolidação do caráter, que consiste na resolução firme de querer fazer algo e colocá-lo realmente em prática. Essa mesma ênfase dupla em transformar o “modo de pensar” e fundar solidamente o caráter de alguém está presente tanto em passagens de A religião nos limites da simples razão quanto em Sobre a Pedagogia. Assim, esse emprego do conceito de formação moral não é metafórico, mas direto e claro: Kant acredita que há um tipo de educação que pode ultrapassar as causas naturais e as circunstâncias temporais e chegar ao modo do agente pensar e fundar seu caráter moral. A educação moral é bem sucedida à medida que alcança esse objetivo. 6.1 Transição do conhecimento moral da razão vulgar para o conhecimento filosófico No prefácio da sua Fundamentação da metafísica dos costumes, Kant divide a obra em três seções. À primeira corresponde a transição do conhecimento moral da razão vulgar para o conhecimento filosófico, e o método a ser utilizado é o método analítico. No início dessa seção afirma-se que: “Neste mundo, e até fora dele, nada é possível pensar que possa ser considerado como bom sem limitação a não ser uma só coisa; uma boa vontade (KANT, 1980, p. 87). No entanto, essa proposição não parece expressar o tipo de conhecimento com o qual a razão vulgar comumente se ocupa. 100 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : L uc as M an sin i - d at a Unidade II A seguir, veremos como pode ser considerada esta frase dentro da estrutura argumentativa dos primeiros sete parágrafos da seção correspondente, de maneira que se conforme com o proceder analítico sugerido pelo autor e não represente uma contradição à afirmação de que o ponto inicial dessa seção é o conhecimento moral da razão vulgar. Por meio da leitura do texto original, reforçada pela leitura de comentadores da filosofia moral kantiana, buscou-se formular uma interpretação capaz de desfazer essa aparente contradição. Levando em conta que o método a ser usado na primeira seção é o método analítico, resulta que, por um lado, podemos considerar a primeira frase como a proposição inicial da análise da estrutura dos juízos expressos pelo conhecimento moral da razão vulgar, sem necessidade de que ela mesma seja um juízo desse tipo; e por outro lado, dentro da estrutura argumentativa dos parágrafos de um a sete, ela se encontra em estrita dependência da conclusão que será estabelecida no sétimo parágrafo, a saber, que se a razão cumpre algum papel prático, este deve ser necessariamente a produção de uma vontade boa em si mesma. Em vista disso, o que compete ser elucidado no futuro dessa pesquisa é a natureza da relação sistemática vigente entre vontade internamente boa e vontade ilimitadamente boa. Observação O que Kant quer dizer com o título Transição do conhecimento moral da razão vulgar para o conhecimento filosófico? Kant se propõe tão somente a um esclarecimento daquilo que se apresenta confusamente nas premissas do discurso moral ordinário. Uma passagem deste para um discurso propriamente filosófico é necessária, segundo Kant, para que os conceitos morais em questão sejam esclarecidos. A Lógica trata do conhecimento formal do entendimento, da razão em si e das regras universais do pensamento, sem distinguir objetos. A Física, ou teoria da natureza, trata do conhecimento racional da matéria, segundo leis da natureza. A Ética está relacionada com o conhecimento material dos objetos submetidos às leis da liberdade. A Lógica não tem parte empírica. A Física, ao contrário, determina as leis da natureza como objeto da experiência, enquanto a Ética determina as leis da vontade humana, que é afetada pela natureza. A Filosofia empírica baseia-se em princípios da experiência. A Filosofia pura apoia-se em princípios a priori, sendo a Lógica simplesmente formal e a Metafísica ligada a objetos do entendimento. A Física, como Metafísica da Natureza, tem uma parte empírica e outra racional. A Ética, como metafísica dos costumes, tem na Antropologia prática sua parte empírica e na Moral a parte racional. A Física e a Ética devem separar os elementos empíricos do racional e descobrir as fontes a priori de seus princípios. Na Filosofia Moral, para uma lei valer moralmente como obrigação, ela deve ter em si uma necessidade absoluta. O princípio de obrigação deve ser buscado nos conceitos da razão pura a priori. Os princípios baseados na experiência, ainda que universais, apoiam-se em móbil empírico e não podem ser considerados leis morais, mas apenas regras práticas. A Filosofia Moral está na sua parte pura e não 101 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : L uc as M an sin i - d at a KANT depende em nada do conhecimento da natureza humana, mesmo que se aplique a este, lhe fornecendo como ser racional as leis a priori. Estas exigem uma faculdade de julgar alinhada pela experiência, a fim de adequar suas aplicações e o acesso à vontade humana em sua prática eficaz. As inclinações impedem ao homem aplicar a ideia de uma razão pura prática que ele mesmo concebe. A metafísica dos costumes é necessária para fornecer os princípios a priori a fim de evitar as perversões dos costumes. O que é bom moralmente está conforme a lei moral e se cumpre por amor à lei. A pureza e autenticidade da lei moral surgem da metafísica dos costumes. Deve-se distinguir os motivos morais de determinação, que se apresentam a priori só à razão, dos motivos empíricos que o entendimento eleva a conceitos universais só pela experiência. A crítica da razão pura prática exige que se demonstre sua unidade com a razão especulativa num princípio comum, o que a fundamentação não pode fornecer. A fundamentação é uma preparação para a metafísica dos costumes. Ela visa fixar o princípio supremo da moralidade, considerando por si mesmo sem levar em conta as consequências. Transição do conhecimento moral da razão vulgar para o conhecimento filosófico B 1 [Boa vontade] – Só a boa vontade é boa sem restrição. O espírito, o temperamento e o caráter só são bons se a vontade também for. Até a felicidade é corrigida pela boa vontade. Sem os princípios duma boa vontade, qualquer disposição humana pode tornar-se má. A boa vontade é boa apenas pelo querer, em si mesma. A ideia do valor absoluto da vontade é estranha e deve ser posta à prova. [Razão] – O instinto tem mais exatidão do que a razão para indicar a regra de comportamento em função da felicidade. Tendo em vista a felicidade, a natureza escolheria os fins através do instinto e não da razão. Na base dos juízos contrários ao bem-estar, está uma condição suprema à qual a razão se destina, sem ser a felicidade. A razão é uma faculdade prática que influencia a vontade e produz uma vontade boa em si. Essa vontade é o bem supremo de toda aspiração de felicidade. [Dever] – O conceito de dever contém em si o de boa vontade e a faz realçar por contraste às limitações e obstáculos. É fácil distinguir a ação por dever da intenção egoísta, mas não o é se além do dever ela é acompanhada por uma inclinação imediata. É preciso separar a ação conforme ao dever, da ação por dever. O conteúdo da moral de uma ação está na prática por dever e não por inclinação. O valor do caráter consiste em fazer o bem por dever e não por inclinação. A felicidade é a soma de todas inclinações, mas há uma lei que a promove independente das inclinações, somente por dever. O amor prático reside na vontade e o amor das paixões, patológico, depende da sensibilidade. Uma ação praticada por dever tem o valor moral determinado pela máxima e pelo princípio do querer, segundo o qual ela foi executada. A vontade encontra-se entre o princípio formal a priori o móbil material a posteriori. Uma vezretirado o princípio material, resta apenas o princípio formal do querer em geral para que seja praticada por dever. 102 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : L uc as M an sin i - d at a Unidade II Dever é a necessidade de uma ação por respeito à lei. Só pode ser objeto de respeito o princípio que está ligado à vontade e nunca o seu efeito. Sem a influência da inclinação e de todo objeto da vontade, esta só pode ser determinada objetivamente pela lei e subjetivamente pelo puro respeito à lei prática e a máxima que manda lhe obedecer contra todas inclinações. A máxima é o princípio subjetivo do querer e o princípio objetivo é a lei prática de todos seres racionais. Só a representação da lei em si mesma, feita pelo ser racional, determina a vontade e não suas consequências. O sentimento de respeito à lei produz-se por si mesmo por intermédio do conceito de razão. Ele é a representação de um valor superior ao amor-próprio. O respeito à pessoa é derivado da lei que essa pessoa possui. O interesse moral é o respeito pela lei. [A lei moral] – A lei universal das ações em geral manda agir de acordo com a máxima que a vontade quer que se torne uma lei universal. A máxima não moral, na condição de lei universal, destrói-se necessariamente. A necessidade das ações por puro respeito à lei prática é o que constitui o dever. A essa necessidade, todos outros motivos cedem. O dever é a condição de uma vontade boa em si, cujo valor é superior a tudo. O conhecimento do que cada um deve fazer pertence a cada homem, mesmo o mais vulgar. O entendimento vulgar só adquire capacidade de julgar quando exclui todos motivos sensíveis das leis práticas. A razão impõe suas prescrições sem prometer nada às inclinações. Assim, a razão vulgar, por motivos práticos, sai de seu domínio e vai ao campo da filosofia prática em busca de instruções claras sobre a fonte do seu princípio, opondo as máximas às inclinações. Desse modo, a razão vulgar encontra na filosofia o refúgio para suas dificuldades e sutilezas de uma dialética natural. Fonte: Kant (1980, p. 179). Saiba mais Leia esse texto na íntegra: KANT, I. Crítica da razão pura. Tradução Valério Rohden e Udo Baldur Moosburger. São Paulo: Abril Cultural. 1980. (Coleção Os Pensadores). 6.2 Transição da filosofia moral popular para a Metafísica dos Costumes A fundamentação metafísica dos costumes tem por objetivo expor os fundamentos da moralidade e a sua crítica (KANT, 1995). O prefácio define o lugar que a moral devia ocupar na Filosofia. A primeira seção trata da transição do conhecimento moral da razão vulgar para o conhecimento filosófico. Suas ideias fundamentais são: • O bem é, desde Aristóteles, o conceito central da ética. Kant começa por afirmar que a única coisa que merece a denominação de bom é a boa vontade. Só a boa vontade fundamenta o valor moral 103 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : L uc as M an sin i - d at a KANT de uma ação. Uma boa vontade é definida como uma vontade pura, sem qualquer determinação ou influência sensível. É uma vontade desinteressada. • Devem ser rejeitadas todas as teorias morais que se baseiam em qualquer motivo inferior ao absoluto desinteresse e independência da vontade. Kant parte do conceito de bem, para afirmar que existe um bem ilimitado, incondicionalmente bom. Tudo o que não é bom em si mesmo, mas é-o por uma determinada finalidade ou num determinado contexto, ou seja, é condicionado pela circunstâncias, não serve para caracterizar a moralidade. • A vontade boa não é determinada por tendências e está subordinada apenas ao dever. Uma vontade boa não é boa por o fim que pretende, ou por o bem que consegue, é boa em si mesma. Agir moralmente é agir por dever, sem ter em conta as consequências da própria ação. • O dever é uma necessidade interna de realizar uma dada ação apenas por respeito à lei moral (lei prática). O dever liberta o homem das determinações a que está submetido, substitui a necessidade natural. O dever impõe ao homem a limitação dos seus desejos e obriga-o a respeitar as leis morais da razão. • A lei moral não é algo concreto, mas uma forma pura que se pode aplicar a qualquer situação, garantindo dessa forma a sua validade universal. Na segunda seção, é feita uma transição da filosofia moral popular para a metafísica dos costumes, de acordo com as seguintes ideias: • A natureza atua segundo leis; o homem, segundo a ideia de lei. As máximas ou leis impõem-se à razão como regras de ação imperativas. Uma máxima é uma regra de ação subjetiva que o indivíduo estabelece para si próprio, como “Diz sempre a verdade”. Uma lei moral tem, pelo contrário, uma validade universal idêntica às leis que regem a natureza. • A lei moral é assumida como algo absoluto, não pode ser obedecida sob condições. É um dever que decorre da razão e só nela tem o seu fundamento. Kant recusa que ela possa ser extraída a partir de exemplos concretos. Sendo assim, qual a origem da lei moral? Segundo Kant (1995), a lei moral: • Nasce diretamente da própria razão. Não é uma lei imposta do exterior, mas da própria constituição do homem como um ser inteligente. O homem como ser racional é o único ser que determina o seu fim. É essa dimensão que o distingue da natureza da qual faz parte na sua dimensão corpórea. • Não contém nenhum elemento empírico. A lei moral é independente de todos os fins ou motivos. É uma pura forma e a sua validade é universal. 104 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : L uc as M an sin i - d at a Unidade II A lei moral apresenta-se, pois, como um imperativo categórico que ordena uma ação como objetivamente necessária por si mesma, sem qualquer relação com qualquer outra finalidade. É uma exigência interior da razão. As ações só são moralmente boas se satisfazem os critérios formais do imperativo categórico. Têm que ser constituídas de uma forma que possam ser válidas para todos os seres humanos. Na terceira seção, é feita a passagem da metafísica dos costumes para a crítica da razão prática, na qual Kant diz que: • A liberdade é um pressuposto essencial da moral. Sem liberdade não se pode pensar em moral. Liberdade é a ausência de qualquer determinação (condicionante) externa, mas não de uma lei moral decorrente da razão. • O homem como ser moral é um ser livre nas suas decisões. Se o homem não fosse livre, não havia moral, mas apenas submissão, e nesse sentido não poderia ser responsabilizado pelos seus atos. A liberdade é pressuposta pela própria moral. • A razão prática (ou a vontade de um ser racional) é, por isso, autônoma, e ao contrário da natureza, não depende de nada a não ser dela mesma. Isso significa que a razão prática é a causa incondicionada de si mesma. Tal fato pressupõe a liberdade como uma propriedade dessa causalidade. 6.3 Princípios fundamentais da teoria kantiana A Teoria Ética de Kant fala-nos de um princípio moral que pode ser aplicado a todas as questões morais, de um modo geral. Para que esse princípio possa ser entendido, Kant enunciou vários princípios que não são nada mais nada menos do que o princípio da Lei Moral expresso de várias maneiras, com o objetivo de esclarecê-lo sob várias formas, e que passamos a descrever de forma muito resumida. Como já dissemos, o princípio fundamental da lei moral, segundo Kant, é: “Age de tal forma que trates a humanidade, na tua pessoa ou na pessoa de outrem, sempre como um fim e nunca apenas como um meio” (KANT, 1980, p. 87). Os outros princípios que Kant utilizou para explicar o princípio fundamental da lei moral passam pelo princípio do desinteresse, no qual Kant diz: “Age desinteressadamente”(KANT, 1980, p. 89). A verdadeira virtude consiste em praticarmos o bem, não por inclinação, mas por dever, agindo com desinteresse sobre o que poderá dar origem ao praticar esse bem. E é nesse agir desinteressadamente que resulta a dificuldade dessa ação. Dentro desse princípio surge a distinção entre imperativos hipotéticos e imperativos categóricos. Segundo Kant, os imperativos hipotéticos apresentam uma ação como meio para alcançar um determinado fim, enquanto os imperativos categóricos pressupõem uma ação como boa e necessária em si mesma. Kant também nos fala do princípio da imparcialidade: “Decide com imparcialidade” (KANT, 1980, p. 92), o que significa decidir independentemente de quaisquer interesses. Segundo Kant, o progresso 105 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : L uc as M an sin i - d at a KANT moral também ajuda a felicidade e os interesses dignos das pessoas, mas a harmonia entre a moral e a felicidade não é certa, e se a ação moral gerar felicidade, será por acréscimo ou efeito secundário. De acordo com o princípio do dever, Kant enuncia o seguinte: “Age apenas por dever e não segundo quaisquer interesses, motivos ou fins” (KANT, 1980, p. 94). Segundo esse princípio, a pessoa não deve agir por interesse, mas por dever, que vem corroborar o princípio do desinteresse. Outro princípio enunciado por Kant fala-nos dos deveres morais e as convenções sociais: “O dever é uma regra estipulada por uma razão desinteressada, imparcial” (KANT, 1980, p. 95). Os princípios do desinteresse, da imparcialidade e do dever dizem a mesma coisa e têm praticamente as mesmas implicações, permitindo dessa forma esclarecer o que são deveres morais. Segundo o princípio da Universalidade, Kant diz: “Age apenas segundo uma máxima tal que possas querer ao mesmo tempo que essa máxima se torne uma lei universal” (KANT, 1980, p. 99). Uma máxima é uma regra que deve valer para certos tipos de ações e será moral ou imoral consoante esteja ou não de acordo com o princípio moral, que será uma regra que deve valer para todas as ações e todos os indivíduos (universal). Kant enuncia o princípio da autonomia assim: “Age como se a máxima da tua ação se devesse tornar, pela tua vontade, em lei universal da natureza” (ibidem, p. 102). Age de tal maneira que a vontade pela sua máxima se possa considerar a si mesma ao mesmo tempo como legisladora universal. O sujeito deve obedecer a regras que criou, ao mesmo tempo, para si e para todos os seres. Juntando o princípio da universalidade e o esclarecimento da origem dos deveres, facilita a compreensão da ideia de Kant, em que nas decisões morais nós somos os próprios legisladores, criando regras válidas para todos os seres racionais. Por fim, Kant fala-nos também do princípio do respeito pela pessoa: “Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa, como na pessoa de outrem, sempre e simultaneamente como fim e nunca apenas como um meio” (KANT, 1980, p. 104). Uma pessoa, ao cumprir um dever, respeita todos os seres racionais, incluindo ela própria como pessoa. O mesmo quererá dizer que essa pessoa se respeita e respeita todos os seres racionais, tornando-os como fins da sua ação e não como um meio para atingir determinada ação. 6.3.1 Transição da filosofia moral popular para a Metafísica dos Costumes O conceito de dever tirado do uso vulgar da razão prática não é um conceito empírico. Entretanto, não há um caso na experiência que seja conforme o dever com motivos morais. O valor moral não está nas ações visíveis, mas nos seus princípios íntimos ocultos. O que interessa é saber se a razão por si mesma, independentemente de todos os fenômenos, ordena o que deve acontecer. O dever em geral reside na ideia de uma razão que determina a vontade por motivos a priori. Só a ideia que a razão traça a priori é que une a perfeição moral ao conceito de vontade livre. Pode-se distinguir a pura filosofia dos costumes (metafísica) da moral aplicada (à natureza humana). 106 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : L uc as M an sin i - d at a Unidade II A respeito da origem dos conceitos morais, a pura representação do dever e da lei moral em geral tem uma influência mais poderosa do que todos os outros móbiles empíricos sobre o coração humano. Os motivos empíricos misturados aos racionais podem levar tanto ao bem como ao mal. Todos os conceitos morais têm a sua sede e origem a priori na razão, seja a vulgar, seja a filosófica. As leis morais devem valer para todo o ser racional em geral. É do conceito universal de um ser racional em geral que se devem deduzi-las. A metafísica dos costumes torna possível fundar os costumes sobre os seus autênticos princípios e criar disposições morais puras, implantando-as no uso vulgar e prático, além de permitir a instrução moral. A faculdade prática da razão deve ser descrita, partindo de suas regras universais de determinação, até o ponto em que dela brota o conceito de dever. A respeito dos imperativos, só o ser racional tem vontade e capacidade de agir segundo a representação das leis, por princípios. A vontade é a razão prática que deriva as ações das leis. Ela é a faculdade de escolher só o que a razão reconhece como necessário e bom, independentemente da inclinação. Entretanto, a vontade não é em si totalmente conforme a razão. As ações que são necessárias objetivamente são também contingentes no plano subjetivo. A determinação da vontade, segundo leis objetivas, é uma obrigação. O mandamento da razão é a representação de um princípio objetivo que obriga a vontade. O imperativo é a fórmula do mandamento. Todos os imperativos exprimem-se pelo verbo dever. Eles são a relação de uma lei objetiva da razão com uma vontade que não é necessariamente determinada por ela. Bom é tudo o que determina objetivamente a vontade por meio de representações da razão e por princípios válidos para todo ser racional. Agradável é tudo que influi na vontade por meio da sensação por causas subjetivas, válidas só para a sensibilidade do indivíduo. Interesse é a dependência da vontade contingente determinável em face dos princípios da razão. O interesse prático da ação é a dependência da vontade em relação aos princípios da razão em si. O interesse patológico é a dependência ligada aos princípios da razão em proveito da inclinação. No primeiro caso, o interesse é pela razão. No segundo, é pelo objeto da ação, o que é agradável; uma vontade boa está submetida a leis objetivas. Por isso, os imperativos não valem para a vontade divina, pois o querer coincide com a necessidade da lei. Os imperativos exprimem a relação entre leis objetivas do querer e a imperfeição subjetiva do ser racional e da vontade humana. Os imperativos hipotéticos representam a necessidade prática de uma ação como meio de alcançar outra coisa do querer. O imperativo categórico representa uma ação como objetivamente necessária por si mesma, independente de qualquer fim. Todos os imperativos são fórmulas de determinação da ação que é necessária, segundo o princípio de uma vontade boa. Se uma ação é boa como meio para uma coisa, o imperativo é hipotético. O imperativo é categórico se a ação é representada como boa em si e necessária numa vontade em si conforme o princípio de sua vontade. O imperativo diz qual ação é boa e representa a regra prática em relação com uma vontade. O hipotético diz que a ação é boa em vista da intenção possível, como princípio problemático, ou real, como princípio assertórico prático. O imperativo categórico é um princípio apodíctico prático, sem qualquer fim ou intenção. Os imperativos da habilidade indicam o que se deve fazer para alcançar um fim bom ou não. 107 Re vi sã o: N om e do revi so r - D ia gr am aç ão : L uc as M an sin i - d at a KANT A felicidade é o fim que se deve admitir a generalidade por uma necessidade natural. O imperativo hipotético assertórico visa praticar ações em favor da felicidade. A prudência é a habilidade para escolher os meios para atingir o maior bem-estar. O imperativo categórico não se relaciona com a matéria da ação e o seu fim, mas com a forma e o princípio do qual a ação deriva. A disposição caracteriza o que é bom na ação. O imperativo categórico é o imperativo da moralidade. Os três princípios impostos à vontade diferenciam-se como regras da habilidade, conselhos da prudência ou leis da moralidade. A lei é um conceito de necessidade incondicionada, objetiva e geral. O conselho é uma necessidade que só vale sob condição subjetiva e contingente. Os imperativos da habilidade são técnicos; os da prudência são pragmáticos, pertencem ao bem-estar; e os categóricos são morais, pertencem aos costumes em geral. Os elementos do conceito de felicidade são empíricos e por isso esse conceito é indeterminado. Logo, não se pode agir por princípios determinados para ser feliz, só por conselhos empíricos. O imperativo que manda querer os meios para chegar a um fim é uma proposição analítica e possível. O imperativo categórico busca sua possibilidade a priori, fora da experiência. Ele é uma proposição sintética-prática a priori. O único imperativo categórico é aquele que manda agir segundo uma máxima que pode ao mesmo tempo desejar se tornar uma lei universal. Deste, podem-se derivar todos os imperativos do dever. A universalidade é a natureza dessa lei e, segundo esse conceito, ela também pode ser expressa assim: “age como se a máxima de tua ação devesse tornar-se, pela vontade tua, em lei universal da natureza”. O dever perfeito não permite qualquer exceção em favor da inclinação, de outro modo será um dever imperfeito. Temos que poder querer que uma máxima da ação se transforme em lei universal. As exceções provam o reconhecimento da validade do imperativo categórico, havendo apenas uma resistência da inclinação às prescrições da razão. A verdadeira legislação só pode exprimir-se em imperativos categóricos. Os seres racionais são os únicos que podem aplicar o imperativo categórico. A Filosofia deve provar que nada se pode esperar da inclinação dos homens e tudo do poder supremo da lei e do seu respeito. Tudo o que é empírico prejudica a pureza dos costumes. A virtude verdadeira representa a moralidade despida de toda mescla com elementos sensíveis ou amor-próprio. Na filosofia prática, para descobrir-se a lei objetiva prática, basta a relação da vontade consigo mesma, enquanto for determinada só pela razão. Tudo o que é empírico desaparece, pois a razão por si só determina esse procedimento a priori. O fim dado pela razão vale para todos os seres racionais. O meio é o princípio da possibilidade da ação. O impulso é o princípio subjetivo do desejar, e o motivo o princípio objetivo. Os princípios práticos são formais, sem fim subjetivo. São materiais quando se baseiam em fins subjetivos e em impulsos. Os efeitos da ação relativos aos fins materiais servem de base apenas aos imperativos hipotéticos. O fim em si mesmo está na base de um possível imperativo categórico. Todo ser racional existe como fim em si. O desejo universal de todos os seres racionais deve ser o de libertar-se de todas inclinações. Os seres irracionais, cuja existência depende da natureza, têm valores relativos e chamam-se coisas. Os seres racionais são pessoas e, por natureza, fins em si. Estes são os fins objetivos e que não podem servir como meios, pois têm valor absoluto. 108 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : L uc as M an sin i - d at a Unidade II O imperativo categórico é um princípio objetivo da vontade que serve de lei prática universal e tem a natureza racional como fim em si. A existência humana é um postulado subjetivo das ações humanas que serve como princípio objetivo para outro ser racional. Nesse sentido, o imperativo prático pode ser relido assim: “age de tal maneira que a humanidade em qualquer pessoa seja usada como fim e nunca como meio”. A natureza racional como fim em si não é extraída da experiência, pois é universal; representa um fim objetivo e não subjetivo. É a condição suprema que limita todos os fins subjetivos. A legislação prática reside objetivamente na regra e na forma da universidade que a torna capaz de ser uma lei da natureza. Subjetivamente, ela reside no fim em si. A ideia da vontade de todo ser racional é concebida como vontade legisladora universal. A vontade é legisladora de si mesma e por isso está submetida à lei da qual é autora. Ela não depende de um interesse qualquer. É, por isso, o único imperativo possível como incondicional. O imperativo categórico incondicionado é um princípio de autonomia da vontade. O conceito de ser racional como legislador universal leva ao conceito de reino dos fins, em que vários seres racionais se ligam sistematicamente por meio de leis comuns. Essas leis têm em vista a relação desses seres uns com os outros como fins e meios. A moralidade é a relação de toda ação com a lei que torna possível um reino dos fins e meios. A moralidade é a relação de toda ação com a lei que torna possível um reino dos fins. Quando as máximas não são, por natureza, de acordo com o princípio objetivo dos seres racionais legisladores, a ação decorre do dever, que atinge os membros do reino dos fins e não ao legislador. A razão relaciona a máxima da vontade legisladora com as outras vontades e ações conosco em virtude da ideia de dignidade de um ser racional. A dignidade não permite equivalência a qualquer preço, pois está acima deste. Os objetos das inclinações e necessidade do homem têm um preço venal. O preço da afeição está ligado àquilo que não tem necessidade. A dignidade tem um valor íntimo e não relativo. A humanidade que é capaz de moralidade é a única coisa digna. A capacidade de o ser racional participar da legislação universal e do reino dos fins proporciona a esse um valor incondicional à dignidade que só o respeito pode exprimir. A autonomia é o fundamento da dignidade da natureza humana e racional. Todas as três fórmulas da lei têm uma forma nas leis universais da natureza; na matéria, o ser racional como fim em si, e uma determinação completa de todas as máximas, de acordo com a ideia de um reino dos fins como reino da natureza. Há três categorias: da unidade da forma universal da vontade, da pluralidade da matéria dos fins e da totalidade do sistema dos mesmos fins. Pelo método rigoroso, o juízo moral deve proceder sempre pela fórmula universal do imperativo categórico: “agir segundo a máxima que por si possa ser uma lei universal”. Porém, para aproximar-se da intuição, deve-se passar pelos três conceitos relativos a cada formulação do imperativo. O imperativo categórico é a fórmula de uma vontade boa absoluta. A natureza racional distingue-se por dar um fim em si. Esse fim é a matéria de toda boa vontade. Assim, o ser racional não deve nunca ser o meio, mas a condição suprema restrita dos meios, como fim. A moralidade é a relação das ações com a autonomia da vontade, com a legislação possível por meio das suas máximas. A vontade santa concorda com as leis da natureza. A vontade que não é boa em absoluto é obrigada em relação ao princípio da autonomia. A necessidade objetiva de uma ação por obrigação é o dever. A pessoa sublime é legisladora da lei moral e por isso está subordinada a ela. A dignidade da humanidade está em ser legisladora universal e subordinada a suas leis. 109 Re vi sã o: N om e do re vi so r - D ia gr am aç ão : L uc as M an sin i - d at a
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