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10 2. Coesão Cristalina 2.1 - Introdução Neste capítulo, iniciamos nosso estudo dos sólidos cristalinos1 tentando responder a uma pergunta simples: por que átomos isolados se unem para formar sólidos? A resposta também parece simples: devido à atração eletrostática entre elétrons negativos e núcleos positivos. De fato, interação Coulombiana e Mecânica Quântica são suficientes para explicar a coesão cristalina2. Porém, esta aparente simplicidade esconde uma imensa riqueza e variedade de maneiras pelas quais os átomos se ligam entre si para formar um sólido. Neste capítulo, iremos explorar estas diferentes manifestações da coesão cristalina tendo como guia a Tabela Periódica dos elementos, auxiliar indispensável de um físico de Matéria Condensada. Neste passeio pela Tabela Periódica, ficará clara a conexão entre a estrutura eletrônica dos átomos e as formas de coesão cristalina. 2.2 - Cristais de Gases Nobres: A Interação de Van der Waals Começamos pela coluna VIII da Tabela Periódica, a dos chamados gases nobres ou inertes. Estes elementos possuem a última camada eletrônica totalmente preenchida e preferem mantê- la assim, ou seja, permanecem com sua estrutura eletrônica praticamente inerte ou inalterada mesmo na presença de outros átomos. Neste sentido eles forma m o tipo mais simples de sólido, essencialmente uma coleção de átomos neutros, cada qual com sua nuvem eletrônica esférica original. Como então esses átomos neutros se atraem para formar um sólido? A explicação está na chamada interação dipolo-dipolo flutuante, ou interação de Van der Waals (ou ainda interação de London). Em mecânica quântica, dizer que um átomo possui uma distribuição esférica de carga eletrônica só faz sentido em termos de média temporal: flutuações quânticas produzem dipolos elétricos instantâneos nos átomos, que por sua vez induzem a formação de dipolos nos átomos vizinhos. A interação entre estes dipolos causa uma atração entre os átomos. 1 A definição do conceito de cristal ou sólido cristalino será feita de forma mais precisa no próximo capítulo. Por ora, basta dizer que um sólido cristalino é aquele onde os átomos se organizam geometricamente de maneira o rdenada. 2 Interações magnéticas contribuem pouco para a coesão e interações gravitacionais podem ser totalmente desprezadas. 11 Vejamos como isto funciona de forma mais detalhada. Considere dois átomos (1 e 2) separados por uma distância r. Em um dado instante, uma flutuação quântica produz um momento de dipolo elétrico p1 no átomo 1. Este dipolo irá gerar um campo elétrico E proporcional a p1/r 3 na posição do átomo 2. Este campo elétrico, por sua vez, irá polarizar o átomo 2, induzindo- lhe um momento de dipolo p2 proporcional ao campo elétrico: 3 1 2 r p Ep , onde é a polarizabilidade do átomo em questão. A energia de interação entre os dois dipolos p1 e p2 é proporcional ao produto de ambos dividido pelo cubo da distância entre eles: 6 2 1 3 21 r p r pp U . O sinal negativo indica que a interação é atrativa. Existe portanto, a longas distâncias, uma interação atrativa entre os átomos e que decai com r-6. Esta é a chamada interação de Van der Waals, importante não apenas em sólidos de gases nobres como também em outros sistemas moleculares. Apesar de termos usado, na demonstração acima, argumentos puramente clássicos (exceto um! Qual?), a origem da interação de Van der Waals é intrinsicamente quântica, e uma demonstração mais rigorosa da dependência com r-6 será feita no Problema 1 da Lista 1. Uma interação desta forma justifica o termo de correção à pressão na equação de estado de Van der Waals, cuja descoberta, como já vimos, valeu ao físico holandês o Nobel de física em 1910. É uma interação fraca (se comparada às outras interações que veremos neste capítulo), o que explica os baixos pontos de fusão e energias de coesão dos gases nobres (Tabela 2.1). (2.1) (2.2) p1 p2 r Figura 2.1 - Representação clássica de dois átomos neutros interagindo através de seus dipolos (um flutuante e o outro induzido). Os círculos brancos representam os núcleos, e os círculos pretos representam a posição instantânea média dos elétrons. 12 Elemento Distância Interatômica (Å) Energia de Coesão (eV/átomo) Ponto de Fusão (K) Parâmetros de Lennard-Jones (10-4 eV) (Å) He líquido a T=0K e pressão nula 8,7 2,56 Ne 3,13 0,02 24 31 2,74 Ar 3,76 0,080 84 104 3,40 Kr 4,01 0,116 117 140 3,65 Xe 4,35 0,17 161 200 3,98 Quando os átomos se aproximam de tal modo que as funções de onda eletrônicas começam a se superpor (overlap), uma interação repulsiva começa a ser importante. A origem desta interação é um efeito combinado da chamada repulsão de overlap, da repulsão Coulombiana entre os elétrons das camadas mais externas e o Princípio de Exclusão de Pauli. Veremos isto em maior detalhe na Seção 2.3, quando tratarmos das ligações covalentes. Não há uma forma analítica exata para o termo repulsivo. Resultados numéricos podem ser obtidos por cálculos de primeiros princípios, mas, em geral, formas empíricas simples podem ser utilizadas com sucesso. A mais popular delas é uma lei de potência repulsiva proporcional a 121 r , que, combinado ao termo atrativo de van der Waals, dá origem ao chamado potencial de Lennard-Jones: 612 4)( rr rvLJ . Os dois parâmetros livres do potencial, e são em geral ajustados para reproduzir propriedades destes materiais no estado gasoso. Os parâmetros para os diversos gases nobres estão listados na Tabela 2.1, e um gráfico do potencial para átomos de Ar está mostrado na Fig. 2.2. O potencial de Lennard-Jones tem a forma típica de basicamente todos os potenciais interatômicos: atrativo a longas distâncias, repulsivo a curtas distâncias, com um mínimo que indica a distância de equilíbrio entre dois átomos. Por isso, e por sua simplicidade analítica, o potencial de Lennard-Jones é bastante utilizado em simulações do movimento atômico, conhecidas como simulações de dinâmica molecular. Um dado interessante da Tabela 2.1 é o comportamento do elemento He. O hélio não se solidifica, mesmo a temperatura de zero absoluto 3. A origem deste efeito está no chamado movimento de ponto-zero: há energia cinética mesmo a temperatura zero, um efeito intrinsicamente quântico. 3 Pode-se obter He sólido somente aplicando pressão hidrostática. TABELA 2.1 – Alguns parâmetros estruturais dos sólidos de gases nobres. Fonte: Kittel, p. 60 (2.7) 13 Como dissemos antes, a interação de van der Waals leva este nome porque contém os ingredientes que justificam a chamada equação de estado do gás de Van der Waals4. Esta equação foi proposta por J. D. van der Waals em sua tese de doutorado em 1873 e é a maneira mais simples de se descrever gases não-ideais e transições de fases: RTbv v a p 2 , onde p é a pressão e v é o volume molar. Os ingredientes são precisamente um potencial fortemente repulsivo a curtas distâncias (responsável pelo termo de volume excluído do potencial) e fracamente atrativo a longas distâncias (responsável pela correção na pressão), que estão contidos no potencialde Lennard-Jones, por exemplo. Mas os expoentes 6 e 12 dos termos atrativo e repulsivo deste potencial não são os únicos a reproduzir a equação de Van der Waals, esta é razoavelmente independente da forma analítica específica do potencial interatômico. 4 Os gases não-ideais ou de Van der Waals são estudados no curso de Termodinâmica. Uma boa referência é o livro de F. Reif, Fundamentals of Statistical and Thermal Physics, (McGraw-Hill, 1988). 0 1 2 3 4 5 6 7 -0.01 0.00 0.01 0.02 U (e V ) R (A) Figura 2.2 – Potencial de Lennard-Jones para o argônio. Repare o curto alcance do potencial atrativo, quando comparado à região “excluída” devido ao forte potencial repulsivo. (2.8) 14 2.3 - Energia de coesão, parâmetro de rede de equilíbrio e módulo de bulk A energia de coesão, o volume de equilíbrio e o módulo de bulk são três quantidades importantes associadas à coesão cristalina. Define-se a energia de coesão como a diferença entre a energia do conjunto de átomos isolados que compõem um sólido e a energia do sólido. É conveniente definir a energia de coesão por átomo, de modo que ela tenha um valor finito mesmo quando tomamos o limite termodinâmico (número infinito de átomos). Quando for possível escrever, ainda que de forma aproximada, a energia total do sólido como a soma de interações entre pares de átomos, o cálculo dessa quantidade se simplifica. Este é o caso, por exemplo, dos cristais de átomos de gases nobres que interagem entre si pelo potencial de Lennard-Jones. Desta forma a energia potencial por átomo U de um sistema contendo N átomos é: ji ijLJ ij ijLJ rv N rv N U )( 2 1 )( 1 . (2.8) A notação ij indica o somatório por todos os pares de átomos ij. Já o segundo somatório indica a soma dupla independente por i e j, com a restrição i ≠ j e o fator ½ compensa a contagem dupla de pares. Se o número de átomos N tende a infinito e se os átomos estão arranjados de forma periódica (como veremos de maneira mais rigorosa no próximo capítulo), então cada átomo "enxerga" exatamente a mesma vizinhança local que todos os demais. Desta forma, podemos contabilizar a energia potencial por átomo escolhendo um átomo central (por exemplo i = 0) e somando por todos os vizinhos j deste átomo central: N j jLJ rvU 1 )( , (2.9) onde rj r0j é a distância do íon j ao átomo central (origem). Desprezando os efeitos quânticos, à temperatura zero, a energia cinética será nula, de modo que a energia de coesão será dada simplesmente pelo negativo da energia potencial (supondo, é claro, que o potencial de interação entre pares vai a zero no infinito). Figura 2.3 - Átomos arranjados segundo uma rede cúbica simples. 15 Vamos considerar um exemplo em que os átomos de gases nobres estão organizados segundo uma rede cúbica simples, como mostrado na Fig. 2.35. Seja a a distância mínima entre dois átomos quaisquer, também chamada de parâmetro de rede. Podemos verificar que, neste caso, a energia potencial por átomo é: )3(8)2(12)(6)( avavavaU LJLJLJ (2.10) O primeiro termo desta soma é a contribuição dos 6 vizinhos mais próximos do átomo central (primeiros vizinhos); o segundo termo representa a contribuição dos 12 segundos vizinhos, e assim por diante. Desta forma, fica explícito que a energia potencial é uma função do parâmetro de rede a. Se a pressão sobre o sistema também for nula, o sólido irá adotar o parâmetro de rede a0 que minimiza a energia potencial, ou seja, temos que impor a condição 0 0 ada dU . (2.11) Sabendo que, no caso da rede cúbica, o volume ocupado por átomo é 3av (verifique!), podemos, alternativamente, escrever a energia potencial como função do volume: U(v). Isto nos permite calcular a pressão hidrostática sobre o sólido a um volume qualquer: dv dU vp )( . (2.12) Além disso, a partir da derivada segunda da energia em relação ao volume, podemos calcular o módulo de bulk, ou módulo de compressibilidade volumétrica: 00 02 2 00 vv dv dp v dv Ud vB . (2.13) O módulo de bulk, que tem dimensões de pressão, mede a resistência do sólido a sofrer variações de volume sob ação de uma pressão externa, ou seja, é uma medida da rigidez do sólido. A Tabela 2.2 mostra o módulo de bulk de alguns materiais (inclusive líquidos e gases). O diamante ainda é o material menos compressível da natureza, apesar de existirem propostas teóricas de novos materiais com módulos de bulk ainda maiores6. 5 Na verdade, veremos no próximo capítulo que este não é o arranjo mais favorável energeticamente para os sólidos de gases nobres. 6 "Prediction of New Low-Compressibility So lids", A. Y. Liu e M. L. Cohen, Science 245, 841 (1989). 16 Tabela 2.2 - Módulo de bulk de alguns materiais.Fonte: Wikipedia. Material Módulo de bulk (Pa) Diamante 442 × 109 Aço 160 × 109 Vidro 35-55 × 109 Água 2,2 × 109 Ar 1,01 × 105 2.4 - Cristais Iônicos Investigaremos agora a coesão entre os átomos da coluna IA da Tabela Periódica (os chamados metais alcalinos) com os átomos da coluna VIIA (halogênios). Estes compostos, conhecidos como halogenetos alcalinos, são os protótipos de um tipo de ligação bastante importante em FMC, a ligação iônica. Consideremos o mais estudado destes compostos, o cloreto de sódio (NaCl), vulgarmente conhecido como “sal de cozinha”. O mecanismo de coesão neste material está esquematizado na Fig. 2.3. Considere um átomo de Na isolado (na fase gasosa). Sua configuração eletrônica é 1s22s22p63s1, ou seja, há um único elétron na camada mais externa. É razoavelmente fácil arrancar este elétron e formar um íon positivo Na+. O custo (energia de ionização) é de apenas 5,14 eV 7. Tome agora um átomo de Cl isolado, com sua configuração eletrônica 1s22s22p63s23p5. Com 7 elétrons na última camada, necessita de apenas mais um para formar um íon negativo Cl- de camada fechada. De fato, este elétron extra não custa nenhuma energia adicional, pelo contrário, o íon Cl- é mais estável do que o átomo neutro, de forma que a formação do íon libera uma energia de 3,61 eV (afinidade eletrônica). Esta energia, porém, não compensa a energia para formação do Na+, de tal modo que, até o momento, nosso balanço energético é negativo. 7 Analise na tabela periódica a energia de ionização dos diversos átomos. Note que os metais alcalinos são os átomos dos quais se pode mais facilmente arrancar um elétron. Na + 5,14 eV Na+ + e- e- + Cl Cl- + 3,61 eV Na+ + Cl- Na+ Cl- + 7,9 eV Figura 2.3 – Mecanismo de coesão dos cristais iônicos, exemplificado para o NaCl. Veja detalhes em Kittel, p. 67. 17 Porém, este déficit energético, calculado a partir da ionização de cada íon isolado, é mais do que compensado pela atração eletrostática das espécies iônicas: ao trazermos os íons de Na+ e Cl- desde o infinito até a as posições que ocupam no cristal de NaCl há um ganhoenergético de 7,9 eV por par de íons. Portanto, a energia de coesão do NaCl a partir dos átomos neutros é de (7,9 - 5,1 + 3,6) = 6,4 eV (por par), o que representa uma coesão extremamente forte, típica dos cristais iônicos. Veja na Tabela 2.2 a energia de coesão dos diversos halogenetos alcalinos e compare com os valores da Tabela 2.1 para os sólidos de gases nobres. Li Na K Rb Cs F 10,49 9,30 8,24 7,68 7,49 Cl 8,61 7,93 7,18 6,93 Br 8,24 7,55 6,87 6,62 I 7,68 7,05 6,49 6,30 Assim como nos cristais de gases nobres, a interação atrativa de Van der Waals e a repulsão devido ao Princípio de Exclusão também estão presentes em cristais iônicos, mas a atração eletrostática entre os íons é responsável pela maior parte da energia de coesão. A contribuição eletrostática para a energia de coesão é também conhecida como energia de Madelung, e seu cálculo nos põe em contato pela primeira vez com algumas sutilezas e dificuldades associadas ao potencial Coulombiano ( ~ /1 r ). Por simplicidade, consideremos um cristal iônico unidimensional de cargas iônicas +q e -q. O íons positivos e negativos se alternam na cadeia unidimensional infinita, como está mostrado na Fig. 2.4, e a distância entre íons é R. Queremos calcular a energia eletrostática deste sistema infinito de cargas iônicas. Cada par de íons contribui com uma energia de ij rq 0 2 4 , onde o sinal + (-) corresponde a cargas de sinal igual (oposto) e rij é a distância entre as cargas. A energia potencial eletrostática por íon é portanto 0 2 0 2 0 4 1 4 1 2 1 j jji ij r q r q N U . + + + + + + _ _ _ _ _ R Íon de referência Figura 2.4 - Cadeia unidimensional de íons separados por uma distância R. As linhas tracejadas marcam os limites das camadas neutras, úteis para cálculos rapidamente convergentes da constante de Madelung. Tabela 2.2 – Energia de coesão (em eV) de diversos halogenetos alcalinos a partir dos íons isolados. Fonte: Ashcroft, p. 406. (2.14) 18 O segundo somatório envolve novamente a definição de um íon de referência (veja Fig. 2.4) que escolhemos como origem, de modo que rj r0j é a distância do íon j à origem. O índice j é um inteiro diferente de zero que vai de a . Portanto, a energia por íon é R q jR q U j 2 00 2 0 4 11 4 1 , onde 00 || 11 jj j jr R é a chamada constante de Madelung. A primeira igualdade é a definição geral, enquanto que a segunda corresponde ao caso específico de nosso cristal 1D. Note que a constante de Madelung é um número adimensional específico da geometria da estrutura cristalina8 em que os íons estão localizados, não dependendo das cargas dos íons q e nem mesmo da distância mínima entre os íons, R. Deve ser um número positivo se o cristal iônico é estável ( U 0 ). Note ainda a mudança na convenção de sinal: + (-) corresponde agora a pares de cargas de sinal oposto (igual). Figura 2.5 – Convergência numérica da constante de Madelung, dependendo da maneira como os termos são somados. Os quadrados (convergência lenta) correspondem à soma expressa na Eq. (2.12), enq uanto os círculos (convergência rápida) correspondem à Eq. (2.13). Vamos então calcular a constante de Madelung para o nosso cristal iônico unidimensional. Agrupando os termos +j e -j na soma, temos: 8 Aguarde a definição mais rigorosa deste conceito para o próximo capítulo. Por ora, entenda c omo estrutura cristalina o conjunto de posições espaciais que os íons ocupam. (2.15) (2.16) 0 2 4 6 8 10 1.0 1.2 1.4 1.6 1.8 2.0 2 ln2 Termos 19 2 1 1 1 2 1 3 1 4 . Se tentássemos realizar numericamente esta soma exatamente na ordem descrita acima notaríamos uma convergência bastante lenta para o resultado final (Fig. 2.5). Para este caso simples unidimensional, a série pode ser somada exatamente usando-se a expansão ln( )1 2 32 3 x x x x , de modo que 2 2ln . Porém, em cristais de 2 ou 3 dimensões a soma deve ser realizada numericamente, e aí nos deparamos com a dificuldade associada ao fato de que este tipo de série é condicionalmente convergente, significando que a convergência depende da ordem em que os termos são somados. Há um método bastante útil para convergir a soma rapidamente. O truque consiste em somar por camadas neutras do cristal, indicadas por linhas tracejadas na Fig. 2.4. A primeira camada inclui o íon de referência e metade de cada um dos vizinhos mais próximos de modo que a carga total da primeira camada é 1 1 2 1 2 0 . Para cada metade de carga inclui-se um fator adicional de ½. Considerando todas as células, obtemos 1 1 1 1 1 2 1 2 1 3 1 3 1 4 . Uma breve inspeção nos faz concluir que esta série é idêntica à da Eq. (2.11). O reagrupamento dos termos desta maneira, porém, permite uma rápida convergência da mesma, como mostrado na Fig. 2.5. Na lista de exercícios deste Capítulo, aplica-se o método de Madelung para um cristal bidimensional. A Fig. 2.6 mostra a densidade eletrônica em um plano do cristal de NaCl. Nota-se que os íons são praticamente esféricos. Figura 2.6 - Densidade eletrônica em um p lano do cristal de NaCl. Fonte: Ashcroft e Mermim. (2.17) (2.18) 20 Dissemos que, em um cristal iônico formado por elementos das colunas I-VII existe uma transferência de 1 elétron do cátion para o ânion. Na realidade, esta transferência eletrônica nunca é completa: quando os íons se juntam para formar o sólido, existe ainda uma certa probabilidade de que este elétron passe uma fração de seu tempo em orbitais do cátion. De fato, é impossível associar rigorosamente uma carga a um íon específico em um sólido ou molécula. No entanto, há algumas receitas que são usadas para estimar a quantidade fracionária de carga eletrônica que é transferida do cátion para o ânion9. Esta quantidade de carga está também associada à ionicidade ou caráter iônico de uma ligação química. A Tabela 2.3 apresenta o caráter iônico de vários compostos. Note que os halogenetos alcalinos apresentam uma ionicidade bem próxima de 1, indicando uma transferência quase completa de um elétron. Cristal Ionicidade Cristal Ionicidade Cristal Ionicidade Si 0,00 CdSe 0,70 AgBr 0,85 SiC 0,18 CdTe 0,67 AgI 0,77 Ge 0,00 InP 0,42 MgO 0,84 ZnO 0,62 InAs 0,36 MgS 0,79 ZnSe 0,62 InSb 0,32 MgSe 0,79 ZnTe 0,63 GaAs 0,31 LiF 0,92 CdO 0,79 GaSb 0,26 NaCl 0,94 CdS 0,69 AgCl 0,86 RbF 0,96 Consideremos agora os compostos II-VI, ou seja, formados por elementos das colunas IIA e VIA da Tabela Periódica (por exemplo, MgS, MgO, etc.). A Tabela 2.3 mostra que estes compostos têm ionicidades menores que as dos halogenetos alcalinos. Isto ocorre porque os compostos II-VI apresentam menor diferença de eletronegatividades entre seus constituintes. Como regra geral, quanto menor a diferença entre eletronegatividades, menor a transferência de carga eletrônica. Deste modo, espera- se que os compostos III-V (GaAs, InP, etc.) tenham ionicidade ainda menor, e que os sólidos formados por elementos do grupo IV (C, Si, Ge, etc) tenham ionicidade nula. Istoé confirmado pelos dados da Tabela 2.3 e está ilustrado pictoricamente na Fig. 2.7. Nestes compostos, um novo tipo de coesão, onde os elétrons são compartilhados ao invés de transferidos, passa a atuar: as ligações covalentes. 9 http://en.wikipedia.org/wiki/Partial_charge Tabela 2.3 – Ionicidade de vários materiais. Fonte: Kittel, p. 76. 21 2.5 - Ligações Covalentes Ligações covalentes ocorrem em uma grande variedade de sólidos e moléculas. Entre os sólidos, os exemplos típicos são os elementos da coluna IVA (C, Si, Ge, Sn). Iniciaremos nosso estudo deste tipo de coesão pela molécula mais simples da natureza, a H 2 , composta por apenas 2 prótons e 1 elétron, como mostra a Fig. 2.7 (a). No estado fundamental de um átomo de hidrogênio isolado, temos o único elétron ocupando o orbital atômico 1s. É razoável imaginar, portanto, que se os dois átomos de H estiverem bastante afastados um do outro, o único elétron deverá estar em um dos dois orbitais 1s. Isto faz com que estes dois orbitais, que denominamos 1s e 2s , correspondendo aos átomos 1 e 2 que irão formar a molécula (Fig. 2.7(b)), representem uma boa escolha de base para descrevermos a função de onda da molécula. Assim, fazemos o ansatz 2211 susu . Figura 2.7 – Desenho esquemático da distribuição espacial dos 8 elétrons de valência (por par de átomos) em NaCl, MgO, GaAs e Si. Note a mudança do regime de coesão, desde completamente iônico (NaCl), até completamente covalente (Si), passando por regimes intermediários onde a coesão é parcialmente iônica e parcialmente covalente. Ashcroft, p. 388. (2.19) Cl7 + Cl7 + Mg2+ O6+ Na 1+ Na1+ O6+ Mg2+ Ga3+ As5+ Ga3+ As5+ Si4+ Si4+ Si4+ Si4+ 22 Os valores dos coeficientes u1 e u2 são obtidos minimizando-se a energia H E com relação a 1u e 2u , onde H é a Hamiltoniana do elétron na molécula. Encontram-se (lista de exercícios) dois auto-estados: 21)1(2 1 , ssSal , com energias SVVE sal , . Para simplificar a discussão, vamos ignorar inicialmente o termo SV (repulsão de overlap), 21 ssS . Isto corresponde, na prática, à aproximação S<<1, ou seja, overlap pequeno. O termo 2211 sHssHss é aproximadamente10 a energia do orbital 1s do hidrogênio e V é a energia covalente (a ser calculada também na lista de exercícios), e representa o decréscimo de energia associada à formação da ligação covalente. Portanto, o nível s se divide em dois, como mostra a Fig. 2.8(c), o de mais baixa energia conhecido como estado ligante e o de mais alta energia como estado anti- ligante. Note que o estado fundamental (ligante) corresponde a um acúmulo de carga eletrônica na região entre os átomos, ao contrário do estado anti- ligante, que apresenta um mínimo de carga eletrônica ( 2 ). 10 A energia s é na verdade menor que a do estado 1s do H devido ao potencial atrativo do segundo núcleo. (a) e- H+ H+ 1 2 s1 s2 (b) 21)1(2 1 ss Sl 21)1(2 1 ss Sa s s + V s - V (c) Ligante Figura 2.7 – Ligação covalente na molécu la de H 2 . Por simplicidade, estamos ignorando a repulsão de overlap, que será discutida mais adiante. Anti-ligante 23 O termo SV é positivo (S é positivo se as funções de onda têm o mesmo sinal). Representa portanto uma repulsão, e será tanto mais importante quanto maior for a superposição entre os orbitais atômicos, ou seja, quanto menor for a distância entre os átomos. Esta é a chamada "repulsão de overlap" e tem origem puramente quântica. Note que está presente mesmo que o sistema tenha apenas um elétron, como no caso da molécula de H 2 , ou seja, pode ser claramente diferenciada da repulsão Coulombiana entre elétrons (que estaria presente também se a molécula tivesse mais que 1 elétron). Se o sistema for composto por mais de um elétron, o Princípio de Exclusão de Pauli passa a exercer um papel importante. Cada nível eletrônico pode ser ocupado por no máximo 2 elétrons com spins opostos. De maneira muito aproximada, poderíamos calcular o decréscimo de energia eletrônica como mostrado na Fig. 2.8: -V, -2V, -V e 0 para 1, 2, 3 e 4 elétrons, respectivamente. Este argumento é aproximado porque ignora não apenas a repulsão de overlap como também, como já adiantamos, um termo extra na Hamiltoniana que aparece quando mais de um elétron está presente no sistema: a repulsão Coulombiana entre os elétrons, que aumenta a energia e portanto diminui a estabilidade da ligação covalente. Portanto, para um sistema com 4 elétrons (por exemplo, dois átomos de He), há 2 elétrons em estados ligantes e 2 elétrons em estados anti- ligantes, o que torna a ligação covalente efetivamente nula e, levando-se em conta a repulsão Coulombiana entre os elétrons, ocorre de fato uma repulsão entre os átomos. É este efeito combinado do Princípio de Pauli e da interação entre os elétrons, somado com a repulsão de overlap e a repulsão Coulombiana entre os núcleos (que também começa a ser importante a curtas distâncias) que dá origem à repulsão a curtas distâncias entre átomos de camadas fechadas como os gases nobres. Portanto, uma ligação covalente é mais forte quando contém exatamente 2 elétrons. Em sólidos do grupo IV, há 4 elétrons de valência que podem portanto formar 4 ligações covalentes por átomo. Como veremos nos próximos capítulos, a estrutura típica destes materiais é a chamada estrutura do diamante , na qual cada átomo fica no centro de um tetraedro formado por seus 4 primeiros vizinhos, com os quais forma ligações covalentes. Analogamente à molécula de H 2 , há um acúmulo de elétrons ao longo da direção que une os átomos. Isto fica claro na Fig. 2.9, que mostra a densidade de elétrons das camadas de valência em um plano de um cristal de Si, calculada por métodos de primeiros princípios. Note que, ao contrário das interações iônica e de Van der Waals que Figura 2.8 – Variação de energia com relação a s em função do número de elétrons na ligação covalente, ignorando-se os efeitos de repulsão Coulombiana entre os elétrons. U = -V U = -V U = -2V U = 0 s s + V s - V 24 são esfericamente simétricas, a ligação covalente é extremamente direcionada. Já a Fig. 2.10 mostra a densidade eletrônica de sólidos formados por átomos das colunas III-V e II-VI da tabela periódica, onde as ligações são parcialmente iônicas e parcialmente covalentes. Figura 2.10 - Densidade eletrônica dos elétrons de valência em um composto III-V (GaAs) e outro II-VI (CdTe). Note que as ligações são parcialmente iônicas e parcialmente covalentes. Fonte: T.Kajitani et al., J. Crystal Growth 229, 130 (2001). 2.6 - Coesão Metálica No que diz respeito às propriedades elétricas, todas as três classes de sólidos discutidas até agora (cristais de gases nobres, cristais iônicos e cristais covalentes do grupo IV) são classificados como isolantes, ou seja, apresentam baixa condutividade Figura 2.9 – Contribuição dos elétrons de valência para a densidade eletrônica em um plano do cristalde Si. As posições atômicas estão marcadas com um . A escala de cinza varia desde branco (altas densidades) até preto (baixas densidades). Note o acúmulo de elétrons ao longo da direção que une os átomos. 25 elétrica. Metais formam uma classe diferente e importante de materiais, apresentando diversos fenômenos inexistentes nos isolantes. Mais de 2/3 dos elementos puros são metais, apresentando configurações eletrônicas distintas e portanto distintos mecanismos de coesão. Iremos considerar três classes representativas: os metais alcalinos, os metais de transição, e os metais nobres. Os metais alcalinos formam o tipo mais simples de metal. São formados pelos elementos da coluna IA da Tabela Periódica (Li, Na, K, etc.). Como descrito na discussão sobre halogenetos alcalinos, estes elementos possuem um elétron facilmente ionizável no orbital s da última camada. Ao formar-se o sólido, estes elétrons tornam-se deslocalizados e podem mover-se quase livremente pelo cristal, ocupando todas as regiões entre os átomos (veja Fig. 2.11) e são os responsáveis pela condução de eletricidade nestes materiais. Além disso, participam de forma importante na coesão cristalina ao exercerem uma blindagem bastante efetiva dos íons. Veremos nos capítulos seguintes que, em inúmeras situações, os metais alcalinos são o sistema físico mais próximo do modelo idealizado de gás de elétrons livres, que estudaremos no Capítulo 6. Na ocasião, estudaremos com um pouco mais de detalhe a coesão metálica. Os metais de transição ocupam uma boa parte da Tabela Periódica: as 3 fileiras que se estendem desde a coluna IB até à VIIIB. Nestes metais, além dos elétrons quase- livres derivados dos orbitais s da ultima camada, que exercem função semelhante à dos metais alcalinos, há os elétrons originários de orbitais d da penúltima camada. Estes orbitais são gradualmente preenchidos desde a coluna I até a VIII. Os elétrons d contribuem ativamente na coesão destes materiais formando ligações covalentes entre átomos vizinhos. Isto faz com que os metais de transição tenham energias de coesão e temperaturas de fusão mais altas do que os metais alcalinos. Os metais nobres (Cu, Ag, Au) possuem os orbitais d da penúltima camada totalmente preenchidos e portanto não formam ligações covalentes entre si. Mas contribuem na coesão cristalina através de interações de Van der Waals entre átomos vizinhos. Na1+ Na1+ Na1+ Na1+ Na1+ Na1+ Na1+ Na1+ Na1+ Figura 2.11 – Distribuição eletrônica esquemática (região cinza) em um metal alcalino. Neste tipo de material, os elétrons se distribuem quase uniformemente pelas regiões intersticiais. 26 Na Tabela 2.4, energias de coesão e pontos de fusão para alguns metais alcalinos, de transição e nobres. Elemento Tfusão(K) Ecoesão (eV/átomo) Elemento Tfusão(K) Ecoesão (eV/átomo) Li 453 1.63 Mn 1518 2.92 Na 371 1.113 Fe 1808 4.28 K 337 0.934 Ni 1726 4.44 Ti 1933 4.85 Pt 2045 5.84 Nb 2741 7.57 Cu 1356 3.49 Cr 2130 4.10 Ag 1234 2.95 W 3683 8.90 Au 1337 3.81 2.7 - Pontes de Hidrogênio O hidrogênio ocupa uma posição única entre os elementos. Pode compartilhar seu único elétron em uma única ligação covalente, mas isso não é de muita utilidade em sólidos que necessitam uma conectividade tridimensional da rede. Por outro lado, por ter apenas 1 elétron de valência, se poderia esperar um comportamento similar aos demais elementos da coluna IA, ou seja, a constituição de um sólido metálico (como os metais alcalinos) ou a formação de cristais iônicos com halogênios. Com relação ao sólido metálico, esta fase já foi predita teoricamente para ocorrer a altíssimas pressões, mas ainda não foi observada experimentalmente11. Há, porém, uma outra peculiaridade do átomo de hidrogênio que impede este comportamento: ao perder seu elétron, o íon de hidrogênio é nada mais que um próton, 105 vezes menor do que qualquer outro íon. Isto permite uma aproximação grande entre dois íons negativos, com o íon H+ fazendo uma “ponte” entre os dois (Fig. 2.12). Esta aproximação, porém, impede que outros íons negativos se aproximem. A ponte de hidrogênio é portanto uma ligação essencialmente iônica entre dois átomos apenas, em geral átomos de alta eletronegatividade (F, N, O, etc). Exerce um papel importante em sistemas biológicos (por exemplo, é responsável pela ligação entre cadeias do DNA) e em gelo (veja Fig. 2.13) e água. 11 A fase mais estável do hidrogênio a pressões ambientes é um sólido molecular, onde molécu las de H2 formam as unidade básicas (H.-K. Mao e R. J. Hemley, Rev. Mod. Phys. 66, 671 (1994)). Tabela 2.4 - Temperaturas de fusão e energias de coesão de diversos metais. Fonte: Kittel e Ashcroft. 27 Leituras Complementares: Kittel, Capítulo 3. Ashcroft-Mermim, Capítulos 19 e 20. O método da soma por camadas neutras para a constante de Madelung está bem discutido aí. Ibach-Lüth, Capítulo 1. Uma boa introdução ao conceito de ligação covalente se encontra em W. A. Harrison, Electronic Structure and The Properties of Solids, (Dover, 1989), Capítulo 1. F. Reif, Fundamentals of Statistical and Thermal Physics, (McGraw-Hill, 1988). No Cap. 10 há uma discussão detalhada dos gases de Van der Waals. Uma descrição mais detalhada da molécula de H2 + está em B. H. Bransden e C. J. Joachain, Physics of Atoms and Molecules, (Longman, 1990), Cap. 9. Uma outra abordagem, também detalhada, para a ligação covalente (especificamente para a molécula de Li2 +, bastante semelhante à molécula de H2 +), está em W. A. Harrison, Elementary Electronic Structure, (World Scientific, 1999), Cap. 1. F- F- H+ Figura 2.12 – Ponte de hidrogênio na molécula de HF2 - . Note que o pequeno tamanho do próton permite uma grande aproximação entre os dois ânions, o que por sua vez impede a aproximação de demais ânions. Veja Kittel, p. 77. Figura 2.13 – Desenho esquemático bidimensional da estrutura do gelo (H2O). As linhas tracejadas representam as pontes de hidrogênio.
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