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Pontes de Miranda TRATADO DE DIREITO PRIVADO Tomo II Bens. Fatos jurídicos Atualizado por Vilson Rodrigues Alves 1a edição 2000 P arte G e ra l Capítulo IX Atos Jurídicos stricto sensu § 227. Conceito de ato jurídico stricto sensu 1. Ato humano e ato jurídico. Ato ou fato humano é o fato dependente da vontade do homem. Já aí o direito excluiu todos os atos que os animais ou vegetais praticam. Tal eliminação pe neira os atos, de modo que muitos seres que agem, para satisfa ção de seus prazeres (no sentido mais largo), foram abstraídos, radicalmente. Tivemos ensejo de ver que, ainda a respeito de atos do homem, pôde o direito abstrair da vontade humana, para os considerar, como aos atos que os animais ou vegetais praticam, atos-fatos, fatos puros, de que apenas provêm fatos jurídicos stricto sensu ou atos-fatos jurídicos. Os atos jurídicos stricto sensu e os negócios jurídicos são o campo psíquico dos fatos jurídicos. São os meios mais eficientes da atividade inter-humana, na dimensão do direito. Neles e por eles, a vontade, a inteligência e o sentimento inserem-se no mundo jurídico, edificando-o. Para trás ficaram os atos ilícitos (atos jurí dicos ilícitos), os atos-fatos jurídicos e os fatos jurídicos stricto sensu, como o nascimento, a morte, a aparição da ilha, a inun dação, a frutificação e o incêndio ocasional. O Código Civil, no art. 81, contém definição de ato jurídico: “Todo o ato lícito, que tenha por fim imediato adquirir, resguardar, transferir, modificar ou extinguir direitos, se denomina ato jurídi co.” Aí, ato jurídico é o ato jurídico lícito. Reminiscências alógicas e não atentas ao que em verdade se passa quando o fato, físico ou humano, entra no mundo jurídico, mantiveram a denominação “ato jurídico” somente para o ato jurídico lícito. O ato ilícito também entra no mundo jurídico. Também é fato jurídico, como 502 Pontes de Miranda o nascimento, a morte, a avulsão, a comunicação de conhecimen to e o contrato. Se ato jurídico somente fosse o ato lícito, o ato conforme a direito, não se poderia falar de ato jurídico nulo, nem se teria como ato jurídico o ato infrator de obrigação. Se o ato ilícito é ato jurídico, exatamente por isso se distingue do nasci mento, da morte, ou da avulsão, por ser ato, e não fato. 2. Distinção entre atos jurídicos stricto sensu e negócios jurídi cos. A distinção entre negócios jurídicos e atos jurídicos stricto sensu é assente na boa doutrina. Mas, quando se procura mostrar em que consiste a diferença, o mesmo engano e hábito, que levaram a definir-se o negócio jurídico pela escolha de efeitos, conduz a caracterizá-la por serem, nos negócios jurídicos, resul tantes da vontade os efeitos e, nos atos jurídicos stricto sensu, da lei. No ato jurídico stricto sensu, a vontade é sem escolha de categoria jurídica, donde certa relação de antecedente a conse qüente, em vez de relação de escolha a escolhido. Toda caracte rização do negócio jurídico como regulador de relações jurídicas, normativo, preceptivo, ou algo semelhante, deriva de engano, que é o de se crer na edicção de normas jurídicas pelas pessoas. Tal não se dá; e o próprio conteúdo-/ei dos tratados internacionais, quando o há, e o próprio chamado contrato normativo, não seriam prova de que os negócios jurídicos pudessem estabelecer qualquer regra jurídica. 3. Conteúdo e efeitos; direção da vontade. Muitas dificuldades resultam de se haver pensado, quando se trata de negócio jurídico, em direção da vontade aos efeitos jurídicos, de modo que se partia, a priori, de que, quando se compra, se quer que o ven dedor preste a coisa, omitindo-se, no tempo, o conteúdo do contrato, que é a promessa e eliminando-se quase a diferença entre o negócio jurídico de venda e compra e o negócio jurídico de transmissão. Porém não é menos nociva a teoria que o con ceitua como endereçado a efeitos práticos. Esquece-se, com isso, de que foi a categoria jurídica que se quis, ou que, se se escolheu, foi porque se deve entender ter sido o que se quis. Os efeitos Tratado de Dlralto Privado jurídicos - inclusive os efeitos práticos - vêm daí; ou não sc> produzem. Se alguns resultaram de manifestações de vontade intra autonômicas (= dentro da autonomia da vontade ou auto-regula ção), nem por isso é menos o que as regras jurídicas cogcnl.es concernentes à categoria não deixaram ao agente. Há ponto que merece toda atenção: quando se declara n vontade, o conhecimento, ou o sentimento, tem-se de esperar qu<! a pessoa, a quem se dirige ou que há de conhecer o que foi declarado, confie no que é o significado exterior, objetivo, da declaração de vontade, de conhecimento ou de sentimento. Quem mal declara, pois que fez claro o que queria, ou o que conhecia, ou o que sentia, acarreta com o bem e o mal da declaração. Sc: errou, ou há outra razão de discordância entre o declarado e o querido, ou o enunciado como conhecimento, ou o que sentia, somente por meio de anulação pode o declarante pleitear que se decrete a invalidade do ato jurídico. Quanto às manifestações de vontade, de conhecimento, ou de sentimento, não declaradas, falta-lhes essa aclaração, essa luz que fixa o significado das mani festações de vontade declaradas; por isso mesmo, o que se ma nifestou é o que foi querido, o que o manifestante conhecia, ou sentia. Isso não quer dizer que, sabido o que foi que se manifes tou, possa o agente impor como elemento volitivo o que não foi manifestado. Apenas é mais fácil provar-se o erro, ou o dolo, a violência; não se elimina a necessidade da ação de anulação se não se mostra que não houve a vontade, embora manifestada com erro, dolo, ou violência. No direito brasileiro, não há essa diferen ça entre o declarado e o manifestado, que se procurou insinuar noutros sistemas jurídicos (e.g., A. von Tuhr, Der Allgemeine Teil, II, 407 s.). A anulação somente não é de mister quando se ataca a própria pretendida manifestação; porém isso se passaria se estivesse em causa, em vez de manifestação de vontade, decla ração. E preciso que se não confundam os domínios da interpre tação e os domínios da validade. Se houve, ou se não houve manifestação de vontade, declarada ou não, é questão de interpre tação; se, apesar de haver manifestação de vontade, declarada ou não, é inválida, ou válida, é questão posterior à afirmação de existência. 504 Pontes de Miranda As manifestações de vontade, declaradas ou não, podem ser diretamente conhecidas ou indiretamente conhecidas. Se A escreve a B, ou diz, frente a frente, a B que quer comprar a casa b de B, tal manifestação de vontade é direta. Ainda é direta se A o diz por telefone a B. Se C se interpõe na linha e imita a voz de B para aceitar, ou se C altera o preço oferecido, abrindo a carta e transformando três em treze, ou mil em sete mil, o que resultou não foi manifestação de vontade de B, ou de A. Trata- se de falsidade, ou, precisamente, no segundo caso, de falsifica ção, e a proposição negativa é, no próprio plano da existência dos atos jurídicos, pela afirmação da falta de suporte fático sufi ciente. Não se precisa de ação de nulidade, nem de anulação. Nas manifestações de vontade indiretas, há fato de que se deduz a manifestação de vontade de alguém. Por exemplo: mani festações de vontade por núncio ou mensageiro; telegramas; publicações em jornais; notificações por meio de oficial de justiça. O erro de transmissão não impede a formação do negócio jurídi co, ou do ato jurídico stricto sensu. Se A entende que não foi transmitido o que ele disse ao núncio ou mensageiro, ou que ele escreveu no despachotelegráfico, ou o oficial de justiça devia notificar, cabe-lhe alegar e provar o erro. Foi ele quem escolheu o núncio ou mensageiro. Foi ele que redigiu o despacho telegrá fico, ou mandou que outrem redigisse e ele assinasse. Foi ele ou o seu advogado que redigiu a petição ou requerimento. Não há, aí, em qualquer das espécies, questão de identidade do manifes tante. Se houve falsificação, a ponto de ter chegado a B o que A não queria (“alugo”, em vez de “compro”, ou vice-versa), houve manifestação de vontade. O problema é mais delicado, sem, to davia, poder ter duas soluções, se A passou telegrama de felicita ções por algum negócio que B fechou e B, que antes ofertara a A outro negócio, chegando a oferta a A antes do telegrama de A, recebe: “Fechado negócio; felicitações”, em vez de “Felicitações por negócio fechado com D ”. Se o erro foi do escritório de A, ou de núncio de A, cu do telégrafo, A está vinculado; salva a ação de anulação. Foi A quem escolheu o meio de transmissão. Muito diferente é o que se passa se A não ordenou ao núncio, ou Tratado de Direito Privado empregado de escritório, ou ao telégrafo, qualquer manifestaçk) de vontade, conhecimento, ou sentimento. Tem A ação contra quem passou o telegrama, ou escreveu a carta, ou transmitiu o que entendeu, sem que A o incumbisse disso. A manifestação de vontade, de conhecimento, ou de senil mento, ou é em escrito, ou em gravação, ou em telegrama, rc putando-se escrito o impresso assinado, ou o disco ou película fonográfica, que apresente os requisitos de ligação à assinatura. Tais manifestações são ditas materializadas, ou fixadas. As ou tras são não-materializadas, ou não-fixadas, como a que set ftiü de viva voz, frente a frente ou por telefone. Nada impede que! B(l façam entre presentes as manifestações materializadas ou flX«M; são tão usadas quanto as outras. Por serem fixadas, não deixam ser, se o instrumento se perde, ou se destrói. Se B destról o testamento de A, com a morte de A o testamento começou du produzir efeitos; ainda que B, sem assentimento de A, o houvesso destruído antes de morrer A. Se foi destruído o título de crédito por fogo, ou outro agente físico, ou por terceiro, não fica o credor ou portador dele sem os meios de prova ou sem o procoü so chamado de amortização. A com-sorte absoluta da promessa com o título (cártula, instrumento) é rara; depende de lex speclaUs § 228. Conceito e lugar na classificação dos fatos jurídicos 1. Ato humano e classificação dos fatos jurídicos. O ato hurtui no pode entrar no mundo jurídico como ato, ou como fato. JA *il está a dicotomia do suportes fáticos em atos, que entram no mundo jurídico, como atos jurídicos, e atos, que só entram HO mundo jurídico, como fatos jurídicos. Se não se quis o ato jur I dico que resultou, não se pode pensar em negócio jurídico. Sc l< )t querida a juridicização do ato ccmo ato e daí resulta a sua entrada no mundo jurídico, ou os efeitos são os efeitos queridos ou p< ) dem ser diferentes. Donde ter-se pensado em considerar nfto negociais todos os atos jurídicos cuja eficácia não corresponda o« > conteúdo da vontade. Assim, arbitrariamente se diminuiria .i 506 Pontes dc Miranda abrangência do conceito de negócio jurídico, atitude que se fun dava nos Motive (I, 126) do Código Civil alemão e tem sido automaticamente imitada, sem se proceder à crítica que seria de mister. Uma vez que a repelimos, resta-nos o problema de se saber se, adotado o conceito exato, há atos jurídicos (lícitos) não- negociais, isto é, se, entre os negócios jurídicos e os atos que somente entram no mundo jurídico como atos-fatos jurídicos, há classe terceira, que seria a dos atos jurídicos não-negociais (atos jurídicos stricto sensu). § 229. Classificação dos atos jurídicos stricto sensu 1, Bases para a classificação. As manifestações de vontade, que, entrando no mundo jurídico, se fazem atos jurídicos stricto sensu, ou a) reclamam, b) somente comunicam vontade, positiva ou negativa mente, ou c) integram atos ou omissões, ou d) comunicam fato (inclusive sentimento), ou e) mandam (impõem ou proíbem). 2. Casuística, a) As reclamações ou provocações (Aufforderungen) querem do reclamado ação ou omissão: ou clamam que faça, ou que não faça; ou clamam que se preste o que se prometeu (inter pelação, inter, pellere, interpulsar, empurrar), ou que se ratifique ou que se eleja; ou clamam emprazamento (fixação de prazo). b) As comunicações de vontade (Willensmitteilungen) con têm querer, e comunicam-no. São, de ordinário, manifestações de vontade, que servem para determinar prestação, ou prazo, se a favor do devedor (escolha, fixação de tempo), ou de recusa por parte do credor: a não-ratificação do contrato concluído sem poder de representação (e.g., pelo dono do negócio, se alguém se fez gestor de negócios), a permissão de sublocar (art. 1.201), se o contrato de locação fez dependente dela a sublocação, o consen timento para a cessão (art. 1.201, parágrafo único). A manifesta ção do devedor de que não quer prestar, ainda que contenha Tratado de Direito F’rlvado 507 enunciado de não-existência do crédito, ou de ineficácia, ou de existência de exceção, e a do credor de não pretender a presta ção, entram na mesma classe; comunica-se vontade, ainda que somente se refira a momento futuro. c) As manifestações de vontade não-autônomas, ou, me lhor, não bastantes em si, têm a particularidade de não serem, só por si, negócios jurídicos, nem atos jurídicos stricto sensu: o ato jurídico stricto sensu é constituído por suporte fático em que são elementos necessários a manifestação de vontade e ato ou omis são do manifestante da vontade. Tal é que se passa com a cons• tituição de domicílio (vontade de se estabelecer com ânimo de finitivo + o fato de se estabelecer, arts. 31-42), a gestão de negócios alheios (vontade de se ocupar de negócio alheio + ges’ tão efetiva, arts. 1.331, 1.334-1.345), a restituição da coisa empenhada (vontade de restituir materialmente + entrega mate rial; art. 803, quando não se trata de conseqüência da remissão de dívida, art. 802, I, ou de renúncia ao penhor, art. 802, III, que seria negócio jurídico unilateral). d) As exteriorizações de representação, ou de sentimento ou são receptícias ou não são, tais como: o perdão [e.g., não- receptício, art. 319, II, e parágrafo único, antes da Lei n9 6.515, de 26 de dezembro de 1977, art. 54); a notificação da cessão de crédito (art. 1.069); a de ter alienado a coisa locada (art. 1.197); a de ter outorgado procuração a terceiro (aliter, ao mandatário) ou de tê-la revogado (arts. 1.316, I, l 3 parte, - 1.319); o aviso dos herdeiros do mandatário quanto à morte desse (art. 1.322); a comunicação de ter chegado tarde ao oferente a aceitação (art. 1.082); a notificação ao alienante de vício redibitório (art. 1.101, por isso mesmo o pedido na ação de rescisão contém essa comunicação de fato e leva em si o exercício de pretensão constitutiva negativa); o reconhecimento, de que trata o art. 172, V (interrupção da prescrição), inconfundível com o negócio jurídi co de reconhecimento, que é negócio jurídico. e) As manifestações de vontade mandamentais nem ape nas comunicam vontade, nem reclamam: mandam.
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