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FACULDADES INTEGRADAS HÉLIO ALONSO CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL Zélia Maria de Melo Lopes ANTROPOLOGIA CIBORGUE: A ONIPRESENÇA DA TECNOLOGIA E A CONDIÇÃO HUMANA NO CIBERESPAÇO Rio de Janeiro 2014 Zélia Maria de Melo Lopes ANTROPOLOGIA CIBORGUE: A ONIPRESENÇA DA TECNOLOGIA E A CONDIÇÃO HUMANA NO CIBERESPAÇO Monografia apresentada ao Curso de Graduação em Publicidade e Propaganda das Faculdades Integradas Hélio Alonso, como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em Publicidade e Propaganda sob a orientação do Professor Luiz Agner. Rio de Janeiro 2014 Lopes, Zélia Maria de Melo. Antropologia ciborgue: a onipresença da tecnologia e a condição humana no ciberespaço / Zélia Maria de Melo Lopes.- Rio de Janeiro: FACHA, 2014. 47 f. Orientador: Luiz Carlos Agner. Monografia (Graduação em Comunicação Social - Publicidade e Propaganda) FACHA, 2014. 1. 1. Antropologia ciborgue. 2. Pós-humanismo. 3. Cibercultura. 4. Internet. 5. Computação vestível I. Agner, Luiz Carlos. II. FACHA. III. Título. ANTROPOLOGIA CIBORGUE: A ONIPRESENÇA DA TECNOLOGIA E A CONDIÇÃO HUMANA NO CIBERESPAÇO Zélia Maria de Melo Lopes Monografia apresentada ao Curso de Graduação em Publicidade e Propaganda das Faculdades Integradas Hélio Alonso, como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Publicidade e Propaganda, submetida à aprovação da seguinte Banca Examinadora: __________________________________ Prof. Orientador __________________________________ Membro da Banca __________________________________ Membro da Banca Data da Defesa: ________ Nota da Defesa: ________ Rio de Janeiro 2014 Agradeço a todos que me incentivaram a concluir o curso após uma longa jornada. Por vocês aprendi o valor do tempo, das etapas, das pausas e dos esforços para seguir em frente, em busca de aprendizados eternos e transformadores. Dedico esse trabalho ao meu pai, que me estimulou a conhecer o irreconhecível e a desvendar fantasias com sagacidade, profundidade e alegria. “A máquina não é uma coisa a ser animada, idolatrada e dominada. A máquina coincide conosco, com nossos processos; ela é um aspecto de nossa corporificação. Podemos ser responsáveis pelas máquinas; elas não nos dominam ou nos ameaçam. Nós somos responsáveis pelas fronteiras; nós somos essas fronteiras.” Donna Haraway RESUMO “É somente por meio das ciências da vida que se pode mudar radicalmente a qualidade desta”. Diante desta afirmação do escritor inglês Aldoux Huxley, vamos entender a tecnologia sob uma abordagem humana. Entenderemos o papel do homem ao ser influenciado pela tecnologia em sua vida, como ele formulou teorias e reformulou hábitos para se transformar através das máquinas. Vamos estudar conceitos como Antropologia Ciborgue, Pós-humanismo, cibernética, ciberespaço, cibercultura, internet das coisas e computação vestível e de que forma eles se aplicam sob a perspectiva da coexistência do ser humano com as máquinas. De que forma a evolução da tecnologia permitiu o nascimento de um ser híbrido, consciente do seu poder sobre as máquinas e de sua fragilidade perante elas. Entenderemos como as novas tecnologias estão afetando positiva e negativamente nossos cérebros e nossos relacionamentos. De que forma a indústria e o Estado inserem a tecnologia nos contextos do capitalismo para dominar a sociedade digital – vamos entender por que os dados que circulam na rede são o que há de mais valioso para a indústria do consumo no momento. Por fim, apresentaremos como exemplo alguns dos aparatos tecnológicos que nos seduzem, facilitam e sublimam nosso tempo e espaço, todos os dias. Palavras-chave: Antropologia ciborgue. Pós-humanismo. Cibercultura. Ciberespaço. Internet das coisas. Computação vestível. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Imagem n° 1 – Capa do livro “Admirável Mundo Novo”, de Aldoux Huxley................ pág. 14 Imagem nº 2 – Capa revista “Superman”. Fonte: http://www.dialbforblog.com/archives/305/......................................................... pág. 16 Imagem nº 3 – Imagem Apocalipse zumbi. Fonte: http://www.9gag.com ..................... pág. 25 Imagem nº 4 – Jovens interagindo com celulares. Fonte: http://www.flickr.com .......... pág. 28 Imagem nº5 – imagem de tela do aplicativo para celular do banco Bradesco. Fonte: https://itunes.apple.com/br/app/bradesco/id336954985?mt=8 ........................................ pág. 29 Imagem nº6 - adesivo do projeto Not available on the App Store. Fonte da imagem: http://notonappstore.com ................................................................................................. pág. 30 Imagem nº 7: Imagem aparatos tecnológicos de 20 anos atrás. Fonte da imagem: http://www.9gag.com ...................................................................................................... pág. 31 Imagem nº 8: Chris Dancy. Fonte da imagem: http://www.tecmundo.com.br/tendencias/53008-conheca-chris-dancy-o-homem-mais- conectado-do-mundo.htm ................................................................................................ pág. 33 Imagem nº 9: gráfico comparativo dos produtos Nike. Fonte da imagem: http://www.nike.com.br ................................................................................................... pág. 33 Imagem nº 10: Apple iWatch. Fonte da imagem: http://www.apple.com ...................... pág. 34 Imagem nº 11: Google Glass. Fonte da imagem: http://apps.oi.com.br/blogapps/saiba-como- funciona-o-google-glass-e-suas-especificacoes-tecnicas ................................................ pág. 35 Imagem nº 12: Uso do Google Glass. Fonte da imagem: http://infocletico.com.br/2014/04/liberada-a-venda-do-google-glass.html ..................... pág. 35 Imagem nº 13: tela do aplicativo Missle Beyond. Fonte da imagem:http://www.glassappsource.com ...................................................................................... pág. 36 Imagem nº 14: tela do aplicativo Blackjack. Fonte da imagem: http://www.glassappsource.com ...................................................................................... pág. 36 Imagem nº 15: tela do aplicativo AR Glass for Wikipedia. Fonte da imagem: http://www.glassappsource.com ...................................................................................... pág. 37 Imagem nº 16: tela do aplicativo CNN iReport. Fonte da imagem: http://www.glassappsource.com ...................................................................................... pág. 37 Imagem nº 17: tela do aplicativo NY Times Glass app. Fonte da imagem: http://www.glassappsource.com ...................................................................................... pág. 37 Imagem nº 18: tela do aplicativo Fullscreen Beam. Fonte da imagem: http://www.glassappsource.com ...................................................................................... pág. 38 Imagem nº 19: tela do aplicativo Elle Glassware app. Fonte da imagem: http://www.glassappsource.com ...................................................................................... pág. 38 Imagem nº 20: diretor do Bradesco. Fonte da imagem: http://www.youtube.com/watch?v=2a2dFr-mFB8 .......................................................... pág. 39 Imagem nº 21: imagem do comercial do aplicativo da Bradesco. Fonte da imagem: http://www.youtube.com/watch?v=6mwoSoydK3A ...................................................... pág. 39 Imagem nº 22: participante do lançamento do aplicativo Bradesco. Fonte da imagem: http://www.youtube.com/watch?v=1iMHjhJ3jwg .......................................................... pág. 40 Imagem nº 23: imagem dos óculos de realidade virtual da Samsung. Fonte da imagem: http://www.samsung.com/global/microsite/gearvr/gearvr_features.html ....................... pág. 41 Imagem nº 24: eleição dos Papas, no Vaticano. Fonte da imagem: http://www.bbc.com .......................................................................... pág. 44 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 12 2 O PENSAMENTO CIBERNÉTICO ................................................................................ 14 2.1 Nietzsche: Metafísica e maquinação ................................................................................. 15 2.2 Aliadas ou Inimigas? Cibernética e dualidade funcional das máquinas ........................... 17 2.3 Ciberespaço e Cibercultura: o advento do universal sem totalidade ................................ 18 3 A ANTROPOLOGIA CIBORGUE .................................................................................. 21 3.1 As Teorias do Ciborgue e o Pós-Humanismo ................................................................... 21 3.2 Donna Haraway e os limites homem-máquina ................................................................. 23 3.3 Amber Case: tecnologia e excesso de informação ............................................................ 27 3.4 Devices e dilemas: fugas e facilidades para o dia a dia .................................................... 28 4 ESTUDO DE CASO: GOOGLE GLASS ........................................................................ 31 4.1 Corpo e ciberespaço .......................................................................................................... 31 4.2 Computação vestível ......................................................................................................... 32 4.3 Aplicativos para Google Glass .......................................................................................... 34 4.4 Análise................................................................................................................................41 5 CONCLUSÃO .................................................................................................................... 43 6 REFERÊNCIAS ................................................................................................................. 46 12 1 INTRODUÇÃO O presente trabalho pretende mostrar a presença absoluta da tecnologia nas nossas vidas e em que situações nos colocamos a partir de suas convergências. A condição humana - influenciada por informações, condicionada a reflexões e transformada a partir da influência das máquinas – será a abordagem principal desse estudo. Falar sobre tecnologia abrange um universo tão grande quanto subjetivo; tão rico quanto misterioso; tão revolucionário quanto dominador. Mergulhamos, no início do século XX, num universo totalmente novo a partir da criação das máquinas - em virtude da coexistência delas conosco. A partir daí, fomos entendendo que era preciso nos reconhecer enquanto seres humanos. Quem nos tornamos ao coexistir com elas? Quais os cenários formados à nossa volta a partir da tecnologia e quais fantasias criadas a partir do novo mundo cibernético que passamos a habitar? Vamos entender como Nietzsche delimitou a temática antes mesmo das revoluções industriais, nos aprofundar sobre a cibercultura e a riqueza de suas manifestações sociais a partir das influências tecnológicas, perceber o ciberespaço e as possibilidades infinitas de trânsito de dados, que abrem margem para o estudo da Antropologia Ciborgue, o Pós-humanismo e a presença da mobilidade em nossas vidas. Será que a evolução do ciberespaço pressupõe a evolução da civilização? De que forma a tecnologia afeta a cultura? Quais os limites entre o homem e a máquina? E qual a real necessidade de nos mantermos conectados ao ciberespaço o tempo todo? O objetivo desse estudo é contextualizar o leitor sobre a evolução da tecnologia sob uma visão humanista, dando a ele a oportunidade de perceber o universo ciborgue, ao entender os meios de desvendar dominações e colaborações ao mesmo tempo, por meio do estudo da bibliografia relacionada aos temas abordados. A dualidade estará presente em vários momentos ao longo desse trabalho. Seremos induzidos a ser condutores e receptores em relação às máquinas, a coadjuvantes e protagonistas, a atuações ora técnicas, ora estratégicas nessa coexistência. Resta a nós entendermos ou não que somos parte delas e elas de nós, sendo o homem a peça principal e vital do circuito maquínico da sua própria natureza. A metodologia baseou-se em leitura e análise de livros, publicações e palestras, relacionadas aos temas em questão. Autores renomados do meio acadêmico foram exaustivamente citados e confrontados, de forma a induzir o pensamento crítico do leitor. 13 No decorrer do trabalho vamos entender que o desenvolvimento da tecnologia elevou o estudo da cibernética, que levou o homem a se aprofundar no conhecimento das máquinas. Surgia, no início do século XIX, uma nova ordem social: o homem passara a entender o universo das máquinas como determinante para a transição evolucional da raça humana. A tecnologia começava a ser entendida como catalisadora dos limites humanos. A energia das máquinas passa a ser usada a favor do homem. Tornam-se facilitadoras do progresso social. É inevitável perceber o culto à novidade desse universo sedutor da tecnologia, que se alimenta de inovações e proporciona no homem o culto às máquinas desdea primeira revolução industrial. Surge o medo de que os níveis de automatismo façam o homem perder o controle sobre as máquinas – Hollywood comercializa este tema com a trilogia “Matrix” no início dos anos 2000, um dos melhores filmes do gênero. O universo da tecnologia promove o advento do ciberespaço, que determina uma nova ordem de linguagem para a humanidade: comunicação, conhecimento e percepção humanas são reinventados sob influência da cibercultura. O tempo e o espaço se comprimem, vantagens e desvantagens da aplicabilidade da tecnologia nas nossas vidas. A convergência das máquinas no nosso cotidiano – brilhantemente vislumbrada por Steve Jobs nos anos 90 – permitiu que assumíssemos uma relação simbiótica com a tecnologia: os dispositivos móveis se tornaram a extensão física dos nossos corpos, nossa mente e nossos desejos. O mote de Jobs no comando da inovadora Apple - “Stay hungry. Stay foolish”(“Permaneça faminto. Permaneça tolo”) - se tornaria o slogan das gerações posteriores à influência do universo digital: quanto mais informação, mais temos a aprender. Entenderemos como o dispositivo Google Glass se tornou um revolucionário artefato que mudou a forma como usamos a tecnologia e como a percebemos em nossas vidas. Ao alcance dos olhos e dos comandos de voz, veremos como marcas inovadoras lançaram aplicativos para o dispositivo e se posicionaram com pioneirismo no mercado – como o banco brasileiro Bradesco, a revista francesa Elle e as gigantes redes de comunicação norte- americanas CNN e The New York Times. O caminho do mundo digital é uma trilha sem volta, então a jornada dessa leitura pretende ser interativa, dedutiva e conclusiva. Vamos partir rumo ao ciberespaço. Onde a navegação por dados é o que faz o melhor marinheiro na rede. 14 2 O PENSAMENTO CIBERNÉTICO “Eu vos anuncio o Super-homem”1 Foi no século XX que o homem começou a experimentar a tecnologia em sua vida e a usar as máquinas para seu progresso pessoal e social. As heranças das revoluções industriais trouxeram muito mais do que máquinas para o cotidiano do ser humano: a força física do homem foi sendo substituída gradativamente pela energia das máquinas. Esse foi apenas o primeiro passo de uma série de caminhos trilhados pela tecnologia com o ser humano. O prenúncio da realidade que experimentamos hoje foi vislumbrado nos anos 40 pelo escritor inglês Aldoux Huxley, na qual a condição humana de coadjuvante em relação à tecnologia projetara um futuro surpreendente e ameaçador, onde cultuaríamos as máquinas e a racionalização: a predominância de uma sociedade que promove uma falsa liberdade individual com impossibilidade de fuga do sistema. “Uma paz rica e viva” (HUXLEY, 1941, pág. 52). O estímulo frequente e vital à novidade seria uma das formas de dominação do Estado e está nesse padrão exposto por Huxley, no qual o conhecimento é vedado em nome do consumo padronizado. O homem passa a conhecer múltiplas realidades como num imenso leque de possibilidades ilusórias. Assim, passa a “escolher” viver em paz com as máquinas – uma forma sublime de dominação do Estado. Figura 1: Capa do livro “Admirável Mundo Novo”, na qual Huxley anuncia o cenário de dominação dos humanos pelas máquinas e suas influências vitais sobre nossas vidas. 1 NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falava Zaratustra. São Paulo: Ebooks Brasil, 1886. 536 p. 15 A tecnologia, em constante evolução, elevou a capacidade das máquinas de forma a sublimar a capacidade motora do homem. Percebemos uma nova cultura, sem precedentes de avanços tecnológicos na história da vida humana, que traz a informação, a transformação e a reflexão como pilares de atuação na raça humana. Nesse capítulo vamos conhecer a origem do pensamento relacionado à influência das máquinas na vida humana: a hipótese do “super-homem” de Nietzsche, o nascimento do pensamento cibernético – de que forma permeou as ideologias modernas com suas influências após as grandes revoluções industriais, e o nascimento da cibercultura com a imensidão de canais convergentes e estruturas de pensamento hiperconectado. 2.1 Nietzsche – Metafísica e maquinação O filósofo alemão Friedrich Nietzsche usou uma metáfora em 1885 para anunciar a transição evolucional entre o humano e o animal: ao dizer que o homem é uma corda estendida sobre o abismo, pretendeu teorizar que o ser humano está posicionado entre o animal e o além-do-humano na escala evolucional – derivando que a espécie não deve durar para sempre, mas a heresia política que não há razão (moral e metafísica) para sermos eternos como homens (RUDIGER, 2002, pág. 77). A tendência do homem ser híbrido com as máquinas existe à medida de que elas o catalisam além de suas limitações, definindo assim a sobrevivência humana. Dessa forma, Nietzsche teve por objetivo despertar no homem a necessidade de ter coragem para se superar enquanto ser insuperável na natureza e despertar nele o amor à terra para nela investir o melhor de si, já que o ser humano é o sentido da vida no planeta. O filósofo criou a figura do Übermensch (Além-Homem), mostrando que existem novas possibilidades para o ser humano que rejeita a imposição do bem e do mal. O homem de Nietzsche é o novo legislador, tem muita vontade de viver e constrói sua própria moral, sendo ele senhor de si, o que impede que seja julgado por Deus. Ele se sente constantemente incompleto, tendo assim a possibilidade infinita de superação - por perspectiva e anseio ao poder, sem apego à moral cristã, fatores determinantes para essa evolução. Esse novo homem de Nietzsche rejeita o céu cristão, mas deseja a eternidade. Toda sociedade deveria se preparar para a chegada desse “homem evoluído”, entendendo que o culto à ciência é fundamental para construir e reconstruir a figura humana. Para formar esse novo ciclo social, a moral de Nietzsche eleva os que entendem sua filosofia e rebaixa os considerados inferiores por ainda serem dominados pela doutrina cristã e tocados pela compaixão pelos oprimidos – seriam 16 esses os homens que estariam avessos à tecnologia, oferecendo rejeição à influência das máquinas no cenário atual. Nietzsche era avesso à democracia, ao socialismo, ao liberalismo, ao feminismo e ao cristianismo, considerados por ele manifestações de debilidade de homens fracos e de covardes - portanto, inferiores. Ele se manifestou de forma visionária com o objetivo de pregar um novo evangelho sem os dogmas cristãos e demais valores que, segundo ele, enfraqueciam o potencial humano. Sua crítica à modernidade criou uma nova ordem social, onde o humano passa a ser metafísico, submetido a uma maquinação tecnológica desenfreada. Nietzsche enxergava que poderíamos usar o melhor das máquinas a nosso favor, elevando a raça humana a uma evolução sem precedentes. O advento do “Super-homem” de Nietzsche permite vislumbrar o homem do futuro. Mudar a essência humana, conferindo a ela autonomia completa e apagando a fragilidade do homem abre uma hipótese dúbia: ou o homem vai fundir-se com as máquinas ou vai desintegrar-se em meio ao aparato tecnológico (RUDIGER, 2002). Figura 2: Em destaque, o personagem de poderes extraordinários “Superman”, criado pelo ilustrador norte-americano Jerry Siegel em 1933, logo após a ascensão de Hitler ao poder na Alemanha – ilustrando a soberania de um homem superior (ideologia dominante do nazismo). O sentido original do “super-homem” de Nietzsche estava completamente adulterado e canibalizado pelas massas. Fonte da imagem: http://www.dialbforblog.com/archives/305/17 2.2 Aliadas ou Inimigas? Cibernética e dualidade funcional das máquinas O homem, com sua genialidade e inestimável capacidade de observação, aprendeu a reconhecer que os sistemas cibernéticos construídos por ele tinham os mesmos sistemas de retorno que a natureza constrói - ambos em conformidade sob o mesmo modelo de atuação. A partir desta constatação, nasceu o estudo da cibernética, fundada em 1894 pelo matemático estadunidense Norbert Wiener. Consta como base e diferencial do seu pensamento a atenção ao automatismo: devemos observar o que é automático nas máquinas e o que não é, assim como revelar nos animais e nos homens também. Somente desta forma podemos entender os níveis de maquinação para mantê-los a nosso favor. A cibernética nasceu quando o homem aprendeu a refletir a partir do seu poder sobre as máquinas (IDATTE, 1972). A finalidade da aplicação da tecnologia em benefício do homem tem interpretações dúbias desde a criação das máquinas. Para explicar esta afirmação, analisemos as duas primeiras Revoluções Industriais e suas ideologias: a Primeira (1780- 1830) pretendeu substituir a energia física do homem ou do animal pelas máquinas, enquanto a Segunda (1850-1870) substituiu o homem - figura decisória e processadora da informação capaz de corrigir desvios dos sistemas projetados - por dispositivos reguladores programados para esta finalidade (WIENER, apud EPSTEIN, 1986). Esse mecanismo de interação da segunda revolução industrial foi o ajuste perfeito para equilibrar o sistema social, permitindo adaptabilidade para constantes transformações. Ou seja, o homem entendia as máquinas como facilitadoras para a evolução social, cuja premissa desse fator está associada à busca de estabilidade do sistema – o movimento oriundo da perturbação do equilíbrio desse sistema permite que o progresso aconteça. As máquinas têm um papel facilitador para que sejamos capazes de atingir nossos objetivos. Esta proposta já havia sido concebida por Ampère (1775-1836), quando definiu a cibernética como a arte de guiar um navio (AMPÈRE, apud EPSTEIN, 1986), como todas as suas engrenagens maquinistas guiadas pelas hierarquias humanas e suas relações de poder, permitindo que cada ato dessa interação funcionasse em conjunto, em prol de uma meta. Um ideal claramente Iluminista, que atribui às máquinas a capacidade de conduzir a sociedade à sua evolução. Em uma era determinada pela razão, o conhecimento humano foi aplicado sem medo do novo, ou seja, a ação visando a evolução permanente da sociedade. Fazendo uma analogia à gestão de um Estado, como bem observou Isaac Epstein (1986, pág. 9), são atribuídas às máquinas balizas para sua operacionalidade pela própria natureza dos sistemas sócio-político-econômicos, restando para os centros de decisão alguma 18 margem de manobra. As máquinas realizarão tais operações às quais estarão previamente demandadas pelos homens, desde que estes saibam retirar delas o melhor que as máquinas puderem fazer por eles. Neste sentido, a dualidade homem versus máquina e suas convergências colocam uma outra sintonia em voga, premissa da Terceira Revolução Industrial (1970 até hoje): a inteligência artificial pode ser criativa no sentido de descobrir novos caminhos num sistema pré-delimitado. Os momentos criativos ocorrem de forma tão arrebatadora na sociedade que não há poder suficiente no campo do saber para frear a evolução latente. Ela pode infringir regras vigentes, já que, segundo Epstein, o conflito entre estas ocorre na arena da plenitude pragmática do social, do cultural e do econômico. A cibernética foi o estopim para um cenário amplo que se originou a partir dela: o ciberespaço e a cibercultura anunciaram um novo mundo virtual, com identidade própria e sem fronteiras ou antecedentes históricos, que abriu as portas para uma revolução de conhecimento, comunicação e percepção nos seres humanos. 2.3 Ciberespaço e Cibercultura: o advento do universal sem totalidade Para que seja possível compreender os conceitos de ciberespaço e cibercultura – heranças de uma nova sociedade cibernética após as transformações citadas anteriormente - primeiro é preciso contextualizar sobre os signos da linguagem, sob a ótica das novas redes de comunicação. As relações com o saber mudaram com a influência dos novos meios conectados em rede e isso afetou diretamente a forma como a comunicação acontece entre os indivíduos. Um grande paradoxo se instaura quando pensamos no conceito de universal: a totalidade tradicionalizada anteriormente - pela possibilidade de padronizar formatos – se restringe ao poder de alcance, sem fronteiras no mundo. O cenário da cibercultura – devido às mutações do ciberespaço – não se totaliza mais pelo sentido, e sim pelo contato, pela interação geral dos envolvidos (LÉVY, 1999). Ou seja, passamos a assimilar informação com mais velocidade sob o risco dela sofrer mutações do que guardamos com mais rapidez, devido à natureza cíclica do que predomina nas redes. E essas informações assumem graus de relevância conforme ciclos criados na própria rede: a informação passa a ter o valor que damos a ela, já que o conceito de colaboração constrói e destrói cenários na rede com a mesma velocidade. O conceito de ciberespaço foi usado pela primeira vez pelo escritor estadunidense William Gibson em 1984 em seu romance “Neuromancer” e pretendia significar “universo de 19 redes digitais, campo de batalha entre multinacionais, palco de conflitos mundiais, nova fronteira econômica e cultural”. É no ciberespaço que os dados da sociedade conectada em redes circulam com grande velocidade ao redor do planeta, no espaço invisível da geografia móvel dos dados. O filósofo francês Pierre Lévy conceitualiza ciberespaço como um novo meio de comunicação que surge da interconexão mundial dos computadores, contemplando não apenas a infraestrutura material da comunicação digital, mas também o universo de informações que ele abriga e os seres humanos que navegam e alimentam esse universo (que rompe conceitos de significação, provocando a descontextualização de signos). Esse ambiente até então inédito passa a proporcionar novas redes de comunicação para a vida social e cultural das sociedades. O homem aprende a tecer relações entre dados, adaptando-se à mutação da forma tradicional de comunicação que estava acostumado a lidar. Surge um novo universal, independente do conteúdo recebido ou de significações, construído pela interconexão de mensagens entre si por meio das redes. Nascem novos sentidos, em renovação permanente. A interação passa a ter recepção passiva e isolada – o individual funciona no ciberespaço, já que cada um pode criar conteúdo e transformar sua realidade virtual com a máxima autonomia, sem necessitar de um receptor para validar seu experimento. O neologismo “cibercultura” compreende um conjunto de técnicas materiais e intelectuais práticas, atitudes, modos de pensamento e valores que se desenvolvem em conjunto com o ciberespaço, conforme leitura de Lévy (1999). O conceito de universal na cibercultura não possui centro nem linha diretriz. Possui conteúdo particular, indeterminado, gerado sob a ótica do internauta e seus princípios e julgamentos, a ser difundido para milhões de pessoas ou para ninguém. Segundo Lévy, torna-se inviável separar o ser humano de seu ambiente material e de seus signos e a tecnologia passa a ser produto das sociedades e das culturas. A aceleração generalizada do material que circula no ciberespaço propicia menor efeito de exclusão à informação, porém ameaça um dos principais motores da cibercultura, a inteligência coletiva – com sua formulaçãodo saber compartilhado, que dificulta a formação de consenso. A informação circulante no virtual possui capacidade de abrangência ilimitada, ao mesmo tempo que pode ser difundida e deturpada com mais facilidade ao ser compartilhada na rede, que elege autores particulares para tudo o que nela circula. O ciberespaço é o instrumento da inteligência coletiva ao ser um ambiente propício para a comunicação interativa e comunitária – possibilita o feedback entre emissor e receptor, fenômeno interativo inédito em demais meios de comunicação. Ou seja, a evolução do ciberespaço e suas redes pressupõe a evolução da civilização. Sendo esta condicionada por 20 técnicas, demonstra estranheza para proporcionar o aprendizado, dada a velocidade de transformação constante do ciberespaço - onde a informação digital é fluida, em constante mutação. Quanto mais se amplia o ciberespaço, mais universal se torna a informação e menos generalizado se torna o padrão comunicacional. Percebemos o ciberespaço com um olhar caótico, desprovido de um significado central. Um sistema de desordem e uma transparência labiríntica, sendo estes os prismas do conceito do universal sem totalidade – a informação que “cai” na rede e pretende ser unificada é inevitavelmente personalizada no ambiente virtual e assimilada “conforme demanda” de quem a procura – eis a essência paradoxal da cibercultura, conforme abordagem de Pierre Lévy. 21 3 A ANTROPOLOGIA CIBORGUE A tradicionalidade da antropologia e a inovação dos ciborgues – dois temas aparentemente opostos – formam a Antropologia Ciborgue, estudo sobre a interação entre humanos e tecnologia e de que forma a tecnologia afeta a cultura (CASE, 2012). Ambos são temas recheados de ideologias, talvez por isso sejam formas encantadoras de entender o ser humano em seu meio sob a influência das máquinas. O termo “ciborgue” é originário dos anos 60, quando buscava descrever o “homem ampliado”, numa época em que o homem iniciava aventuras espaciais. Ele só poderia ir ao espaço mediante aparatos tecnológicos específicos (dispositivos externos) que permitissem desafiar a falta de gravidade, realizando as suas funções fisiológicas com normalidade. Dessa forma, o corpo humano começava a ser modificado ciberneticamente para adaptar-se a um ambiente hostil. Nascia o ser humano híbrido. As análises a seguir abordarão as problemáticas sociais e visões de futuro sob a perspectiva de uma herança histórica tão familiar quanto consideramos hoje nossos celulares. As origens da tendência da entrega cotidiana do homem ao dispositivo móvel movem – sobretudo – a necessidade de conectar-se para pertencer ao nosso meio. As ciências da comunicação e a biologia caracterizam-se como construções de objetos tecnonaturais de conhecimento, nas quais a diferença entre máquina e organismo torna-se totalmente borrada; a mente, o corpo e o instrumento mantêm, entre si, uma relação de grande intimidade. (HARAWAY, 2000, pág. 67) As semelhanças entre máquinas e humanos vão desaparecendo cada vez mais, mantendo o homem e a máquina em uma simbiose constante. A inteligência humana se relaciona com as máquinas e com elas transcende seus limites físicos e psicológicos, criando uma relação quase vital de colaboração e evolução mútua. 3.1 As Teorias do Ciborgue e o Pós-Humanismo Para a professora Lucia Santaella (2007), o “pós-humano” refere-se à convergência geral dos organismos com as tecnologias até o ponto de tornarem-se indistinguíveis. As tecnologias pós-humanas apresentam-se em variedade: a realidade virtual, a comunicação global, a prostética e nanotecnologia, as redes neurais, os algoritmos genéticos, a manipulação genética e vida artificial representam uma nova era no desenvolvimento humano: a formação da era pós-humanista. Ela reforça que ao reivindicar a existência de corpos pós-humanos pretende-se deslocar, tirar do lugar as velhas identidades e orientações hierárquicas, 22 patriarcais, desestabilizando o homem de suas seguranças. Essa instabilidade tende a crescer, à medida que o estudo da cultura da mobilidade (fruto das mídias de comunicação móveis) cita a presença mediada, telepresença, presença ausente, distância virtual e ubiquidade - todas elas expressões que colocam em questão antigas certezas sobre a nossa corporeidade. Para Rudiger (2007), considera-se “pós-humano” a pessoa que possui capacidades físicas e intelectuais sem precedentes. Sendo potencialmente imortal, é “pós-humana”, seja ciborgue ou máquina de inteligência artificial. Outra forma apropriada de traduzir o conceito de “pós-humano” é tratar de Sociologia da Tecnologia. Como pensamos o futuro do humano? O sociólogo Laymert Garcia dos Santos (2005) defende que devemos considerar as maquinações, ou seja, a técnica e não a máquina. Ele questiona as relações entre o humano e o não-humano e que transformações poderiam ser atualizadas no humano. Sendo assim, o humano não pode ser considerado obsoleto, ou seria inviável capitalizar a tecnologia – esta ainda é uma questão política, já que está ligada à comercialização dos bens de consumo. O sociólogo reforça que o que importa é pensar a tecnologia como um processo de individualização. Cita o termo “realidade pré-individual” para questionar em que ponto nos identificamos e diferenciamos das máquinas: de que forma, ao nos individualizarmos, atualizamos uma potência virtual com as máquinas? Uma competição intrínseca a essa relação é gerada, e move a dinâmica existente. Um ponto de vista muito interessante do sociólogo é a relação entre o Xamanismo (conjunto de práticas para estabelecer contato com o mundo espiritual) e a tecnologia. Talvez uma forma precisa de demonstrar a tradição e a inovação citadas na introdução desse capítulo. Ele acredita que estamos vivendo uma era de ausência de mitos, ou seja, temos um problema para o futuro, pois já não imaginamos mais novos mitos. Cita que ouvira de dois pajés de tribos diferentes que foram eles que inventaram a tecnologia que temos hoje, só que não se interessaram em desenvolvê-la. O conhecimento da natureza dos índios é infinitamente maior do que o do homem social, ou seja, por esse prisma, não podemos nos considerar tecnologicamente mais desenvolvidos do que eles. A capacidade dos índios viverem com muito menos material os coloca num papel mais sofisticado do que o homem que vive em sociedade. Por fim, ele defende que a busca do mito está menos na movimentação arqueológica e mais na troca entre os povos, entre as diferentes chaves e temporalidades. A professora Lucia Santaella (2007) adota o termo “biocibernético” ao invés de “ciborgue”. Segundo ela, o significado torna-se mais amplo para expor o cenário híbrido entre o biológico e o cibernético de maneira mais explícita. O termo “biocibernético” não está culturalmente tão sobrecarregado quanto “ciborgue”, com as conotações triunfalistas ou 23 sombrias do imaginário midiático, expostos em filmes hollywoodianos como “Mad Max” (1980) e “Exterminador do Futuro” (1984). Sobre o pós-humano, ela enuncia que o termo significa a superação das fragilidades e vulnerabilidades da nossa condição humana através da ajuda das máquinas para tornar os humanos indestrutíveis, sobretudo pelo nosso destino físico que envolve o envelhecimento e a morte. Francisco Rüdiger (2011) cita que o conceito do híbrido homem-máquina originou-se nos anos 60, entre as vanguardas tecnocráticas engajadas nos planos de ação e projetos de pesquisa do complexo econômico-militar norte-americano. Com o surgimento dos computadores pessoais e as redes temáticas de comunicação, combinadocom os progressos avançados da engenharia genética e ciências médicas, o tema alcançou os meios de comunicação. A tecnocultura trabalhou o tema de remodelagem do corpo humano e difundiu o modelo de homem-máquina como sendo a evolução da espécie e a salvação da raça humana no planeta Terra. 3.2 Donna Haraway e os limites homem-máquina “Prefiro ser uma ciborgue a ser uma deusa”2 Quais são os limites entre o homem e a máquina? Ao pensar no mito do ciborgue, trocamos a pergunta: ao invés de querer descobrir a natureza das máquinas, queremos descobrir quem somos nós. Passamos a perceber os ciborgues como uma forma de saída do labirinto do dualismo por meio do qual temos explicado nossos corpos e nossos instrumentos para nós mesmos. O ciborgue gera identificação do humano e passa a ser o álibi perfeito para descrever nossa presença social e nossos comportamentos, a sós e no meio em que vivemos. A renomada bióloga e ativista política estadunidense Donna Haraway, nascida em 1970, ascende ao tema da antropologia ciborgue a partir da década de 80, persistindo como grande referência atual nos estudos sobre ciborgues e sobre a relação entre eles e a transformação da natureza humana através das máquinas. Ela define o ciborgue como um organismo cibernético, um híbrido de máquina e organismo, uma criatura de realidade social e também uma criatura de ficção. Produto de um mundo pós-gênero, com o ciborgue a natureza e a cultura são reestruturadas – uma não pode mais ser incorporada ou apropriada pela outra, dadas as suas particularidades e complementaridades entre si. 2 HARAWAY, Donna; KUNZRU, Hari; TADEU, Tomaz. Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós- humano. 2. ed. Belo Horizonte: Autentica, 2000. 128 p. 24 Haraway foi uma veterana da contracultura na década de 60, pioneira no estudo sobre as influências da biotecnologia na construção dos corpos humanos. Apontou o viés masculinista da cultura científica e a questão da aplicação da ética na engenharia genética. Tornou-se ícone de uma geração que se intitulou “ciberfeministas”, enxergando a relação entre a tecnologia da informação e a libertação das mulheres – a sublimação do gênero na busca da objetividade científica tem como consequência a perda de significados, que onera o papel social da mulher pela atribuição de sentido ao homem enquanto referência humana para a ciência. Adotou o termo “promíscuo acoplamento” para caracterizar o ambíguo: de um lado, a mecanização e a eletrificação do componente humano, que se dissolve como unidade; de outro, a humanização e a subjetivação das máquinas, originando os ciborgues. “A ideia do ciborgue, a realidade do ciborgue, tal como a possibilidade da clonagem, é aterrorizante, não porque coloca em dúvida a origem divina do humano, mas porque coloca em xeque a originalidade do humano” (HARAWAY, 2000, pág. 14). A bióloga afirma que a nossa relação íntima com a tecnologia não permite delimitarmos onde terminam nossos corpos e começam as máquinas. Somos seres híbridos, os ciborgues nos incorporam. E a clonagem é uma possibilidade muito próxima para que o ser humano se torne imortal e eterno (já que o corpo deixa de cumprir seus ciclos vitais e com isso não envelhece), características que a engenharia genética atribuiu aos seres humanos para que se tornem cada vez mais perfeitos. O avanço dos estudos nos campos da medicina, robótica e inteligência artificial tem aproximado o que um dia foram simples sonhos de ficção científica a realidades não mais tão paralelas assim. O texto Manifesto Ciborgue (HARAWAY, 1991) expõe com naturalidade a imersão do humano na tecnologia, a relação do homem com seu ciclo e com seus objetos. Desde o início da década de 90, a autora já identificara a surpreendente predisposição do homem para se compreender como criatura conectada por meio de redes. Ciência, tecnologia e sociedade estão cada vez mais convergentes e influentes. Com a interligação em redes, os seres humanos se tornaram ciborgues. Alguns anos depois, Haraway (2000) defende que o sistema imunológico humano é um exemplo de consciência de rede na era do ciborgue – nosso corpo está todo interligado e o funcionamento depende de cooperação entre os órgãos e da nossa própria colaboração. É justamente o que nos diferencia das máquinas, por termos capacidade analítica perante nosso sistema imunológico. A intensificação das relações máquina-corpo se relacionam com a reprodução e aos fenômenos de estresse. Surgem novas doenças, historicamente específicas. É essencial citar também a defesa da autora sobre política estar dentro da tecnocultura – a 25 definição de quem vive e quem morre é crucial nesse movimento, uma responsabilidade do Estado e uma forma de dominação amplamente difundida conforme objetivos de dominação. Adota o termo “orgia ciborguiana” para falar das guerras modernas, um misto de comando, controle, comunicação e inteligência. As relações entre organismo e máquina determinam uma guerra de fronteiras, uma disputa pelos territórios de produção, da reprodução e da imaginação (com a indústria do entretenimento, sobretudo). Cita como principal problema dos ciborgues eles serem filhos ilegítimos do militarismo e do capitalismo patriarcal, explicando que o mito ciborgue compreendido por ela significa fronteiras transgredidas, potentes fusões e perigosas possibilidades. A teoria de Haraway expõe que a ciência e a tecnologia provocam sentimentos dúbios no ser humano: o extremo prazer que estão capacitadas a proporcionar e a dominação extremamente complexa que submetem por essa sedução. Um mundo de ciborgues significa a imposição de dominação maquínica sobre o planeta, em contrapartida, pode significar também a concessão humana de permitir identidades temporais, posições contraditórias e afinidades entre animais e máquinas. Tal cenário hipotético é perfeitamente compreendido ao olharmos para cenas comuns de nosso dia-a-dia, quando percebemos a influência dos dispositivos móveis nas nossas vidas cotidianas. Figura 3: Uma cena cotidiana da atualidade, com a legenda “aqui está nosso apocalipse zumbi”. As máquinas tornaram-se perturbadoramente vivas, enquanto os seres humanos, assustadoramente inertes” (HARAWAY, 2000). Fonte da imagem: http://www.9gag.com O feminismo é um tema amplamente relevante para Haraway, que fala sobre a “feminização da pobreza” (as mulheres passam a ocupar camadas sociais menos favorecidas), oriunda da influência dos novos arranjos econômicos da sociedade. As mulheres passaram a ser pressionadas para que assumissem o sustento da vida cotidiana - tanto para elas quanto 26 para seus dependentes. A sexualidade, a reprodução, a família e a vida em comunidade formam um ciclo econômico que produz interferências em gêneros e raças humanas. Este cenário gera uma projeção de desemprego como consequência das novas tecnologias – geração de subempregos como influência das máquinas substituírem a qualificação de mão de obra. Uma questão feminista muito relevante para Haraway (2000) é a delimitação das fronteiras do corpo da mulher – vide manifestos nos anos 70, quando as mulheres retomaram o controle dos seus corpos. Ela fala sobre a necessidade de regeneração para a reconstituição da mulher como sonho utópico de um mundo sem gênero e a construção de uma “política socialista-feminista” para alocar as mulheres em categorias ocupacionais privilegiadas e na produção de ciência e tecnologia (responsável pela construção de discursos, processos e objetos tecnocientíficos). Haraway (2000) cita que tecnologias como videogamese “aparelhos de televisão extremamente miniaturizados” (vislumbrando os futuros smartphones) seriam cruciais para as formas modernas de “vida privada”, já que a cultura dos videogames incita a competição individual e a guerra espacial, gerando uma imaginação que pode vislumbrar a destruição do planeta com um cenário de ficção científica. Essas tecnologias permitem a mobilidade e a troca perfeita, encaixando nesse cenário o crescimento voraz da indústria do turismo – pela possibilidade de divulgar territórios terrestres por via das conexões em rede e interatividade entre as pessoas. Com este cenário, a “informática da dominação” (manobra de poder do Estado visando seus interesses econômicos e sociais) se caracteriza com a aguda intensificação do empobrecimento cultural e da insegurança do povo, que se torna cada vez mais vulnerável e permissivo. A sociedade é manipulada para aderir ao consumo desenfreado de tecnologia, enquanto outros bens de consumo que visam bem-estar perdem relevância. Francisco Rudiger (2011) contextualiza que, para Donna Haraway, a tecnologia contemporânea se presta às empresas de controle e exploração conduzidas pelos sistemas de poder vigentes, mas também pode nos ajudar a transformar em sentido libertário nossas experiências com nossa cultura, nosso trabalho, nosso modo de vida, nossas relações sociais e nossas identidades individuais. 27 3.3 Amber Case: tecnologia e excesso de informação A antropóloga ciborgue norte-americana Amber Case, em palestra no evento sobre interatividade “South by Southwest” no Texas (2012), pediu para que a plateia de 3200 ouvintes levantasse seus smartphones. Um mar de telas aparecia na sua frente. “A tecnologia nos tornou ciborgues”, completou. E ela não se referia aos personagens Robocop ou Exterminador do Futuro, onde a ficção científica personifica o “super-homem de Freud”. Não eram apenas telefones em riste. Eram e são muito mais do que isso. A tecnologia está em nossas mãos, no nosso cotidiano, nos nossos desejos. Nossa relação com nossos telefones é simbiótica, eles tornaram-se uma extensão física dos nossos corpos, completa. Suas descobertas influenciaram a arquitetura da informação, usabilidade e produtividade. Ela pesquisou o comportamento humano e sua relação com a tecnologia, com foco em como será o futuro da interface. Segundo ela, estamos progressivamente sedentos que a tecnologia se adapte a tudo. Com isso, notamos cada vez menos a interferência da tecnologia nas pequenas coisas, já que a criatividade aplicada permite que ela nos chegue através de uma usabilidade tão precisa que nos adaptamos ao meio imposto sem perceber. Amber Case palestrou sobre Antropologia Ciborgue no TED (2010), falando sobre como os humanos e a tecnologia interagem em conjunto, como projetamos nossa personalidade, nos comunicamos, trabalhamos, jogamos e compartilhamos ideias e valores, através das redes de computadores. Ela observou que estamos vivendo um momento sem precedentes na comunicação devido à convergência de tecnologias, que nos propicia um aprendizado rápido e inédito na história. Com isso, estamos nos tornando uma versão de Homo sapiens olhadores de telas e clicadores de botão. Diante desse cenário, dependemos de “cérebros externos” (celulares e computadores) para nos comunicar, lembrar e até mesmo para viver vidas secundárias (queremos interagir quando não estamos presentes fisicamente). O tempo e espaço se comprimiram. Este contraponto de realidade permite a criação de novos rituais, a extensão mental (podemos viajar mais depressa, nos comunicar de forma diferente), pressupõe sentimentos de perda (ao lidarmos com a tecnologia de forma simbiótica, assumimos uma relação visceral com o virtual). Somos uma sociedade de novos paleontólogos – ao invés de buscarmos por registros biológicos do nosso passado no planeta, passamos a buscar coisas que perdemos em nossos cérebros externos, que carregamos em nossos bolsos. 28 Figura 4: Um tradicional encontro entre jovens e suas interações com telas, ao invés das interações pessoais, cena muito comum atualmente. Fonte da imagem: http://www.flickr.com Case observou também que os browsers (navegadores do ciberespaço) permitem estruturar uma arquitetura do pânico: estamos agarrados à linha de montagem de informação que não conseguimos acompanhar. Não temos tempo para a reflexão mental, não estamos mais sozinhos ou em silêncio. Isso causa efeitos psicológicos, nos sentimos constantemente ansiosos por um volume assustador de informação que não conseguimos consumir – o efeito chamado “information overload” (sobrecarga de informação) trazendo isso para o espaço social. O ritmo cotidiano força que nossos cérebros se transformem em processadores de computador na “era da informação”- herança da Terceira Revolução Industrial que estamos vivendo – estamos sedentos por informação acreditando que quando a dominamos, teremos mais poder. Porém o processo é inverso. Segundo Wurman (2001), “O exagero na quantidade de informação começa a nublar as diferenças marcantes entre dados e informação, entre fatos e conhecimentos fazendo com que nossos canais de percepção entrem em curto-circuito”. 3.4 Devices e dilemas: fugas e facilidades para o dia a dia Continuando com a abordagem defendida pela antropóloga Amber Case (2010), ela demonstra que a tecnologia móvel facilita estar quase em qualquer lugar do mundo, sussurrarmos algo e ser ouvido em outro lugar. Estes dispositivos que vivem em nossos bolsos precisam ser alimentados a cada noite e exigem nossa atenção frequente. Em apenas alguns anos, esses dispositivos tornaram-se costurados no tecido das nossas vidas diárias. Ela aborda um tema muito em voga no momento, a chamada “internet das coisas” (internet of things), que nos faz entender que todos os dispositivos móveis são sensores de realidade – sons, barulhos, temperaturas, imagens, localizações, qualidade do ar, etc. Temos a 29 possibilidade de “tirar uma radiografia” de como está nossa saúde. E todos esses dados são interessantes por si só. Segundo Case, se um dispositivo é capaz de identificar um estado de espírito, um estado de fome e localização em um determinado momento do dia, poderia descobrir se um determinado humor fez uma pessoa querer comer, ou se foi infeliz no trabalho e induz um desejo de procurar um emprego diferente. Os dados cruzados são capazes de correlacionar a quantidade de sono com o ganho de peso, e assim por diante. O que precisamos é de uma linguagem comum que permite que todos esses dispositivos se comuniquem uns com os outros e conosco. Ao capturarmos uma quantidade de dados em mapas, podemos realmente começar a compreender a realidade de diferentes maneiras, como onde construir uma casa para aumentar a felicidade das pessoas em seu interior, rotas que evitem acidentes e como criar melhores sistemas urbanos. Desta forma, o ciberespaço ganha o trânsito das ruas e as pessoas se conectam a vários lugares simultaneamente com o mínimo deslocamento físico. Com o mundo cada vez mais conectado em rede, os dados se tornaram imensamente importantes para entender o consumidor e essenciais para facilitar sua decisão de compra. É possível entender cada vez mais claramente os hábitos das pessoas e transformar dados em produtos adequados que facilitem seu cotidiano. Dados estão presentes em todos os momentos e ofertados de volta para as pessoas em forma de produtos e serviços. Figura 5: Exemplo de oferta via captura de dados: imagem do aplicativo para dispositivos móveis do banco Bradesco: ao clicar nobanner “Precisa de dinheiro? Contrate agora”, é possível conseguir um empréstimo após efetuar o login na conta corrente. Fonte da imagem: https://itunes.apple.com/br/app/bradesco/id336954985?mt=8 30 Uma iniciativa crítica à fuga humana em direção aos devices foi criada por dois brasileiros que moram na Suécia. “Not Available on Apple Store” (“Não disponível na Apple Store”) é um site que disponibiliza adesivos criados para colar em brincadeiras e situações que não podem ser adquiridas pelo tablet ou smartphone. Figura 6: Modelo de adesivo do projeto que incentiva que as pessoas saiam mais do mundo virtual e vivam os momentos fora do ciberespaço. Fonte da imagem: http://notonappstore.com A ideia do grupo surgiu ao observar pessoas em situações cotidianas, onde é comum encontrá-las mergulhadas em aparelhos eletrônicos, deixando de lado as brincadeiras do dia a dia. Até abril a iniciativa já tinha atingido mais de 50 países e mais de 7.000 adesivos estavam espalhados pelos espaços urbanos. Um dos melhores feedbacks citados pelos idealizadores do projeto foi a de um pai que estava prestes a comprar um iPad para o filho, mas viu o site e desistiu. Para concluir o capítulo sobre Antropologia Ciborgue, Amber Case (2010) afirmou que não estamos ligados a todas as pessoas o tempo todo, mas a qualquer momento podemos nos conectar a quem quisermos. As máquinas estão nos ajudando a nos tornar mais humanos, nos ligando uns aos outros, independente da geografia. Case afirma que é a primeira vez na história da humanidade que interagimos desta maneira. Se estamos experimentando um momento sem precedentes na história humana, é natural que estejamos nos enxergando uns aos outros sob a ótica dos dispositivos móveis, com toda deturpação e encanto que isso possa causar. Só vamos entender as consequências disso à medida que o tempo passar – e a tecnologia interceder ainda mais sobre nós. 31 4 ESTUDO DE CASO: GOOGLE GLASS Para contextualizar o estudo de caso abordado nesse capítulo, vamos antes entender a relação do corpo com o ciberespaço e suas influências no contexto da convergência de tecnologias e dispositivos móveis em que estamos vivendo. As condições corporais proporcionadas pela mobilidade permitem que a percepção seja avaliada de forma inédita e que mude definitivamente a forma como as pessoas interagem com tecnologia, que já esteve ao alcance das nossas mãos e hoje está ao alcance dos nossos olhos - permitindo que a informação esteja em todos os lugares, facilitando nosso dia a dia. Há apenas 20 anos, fazíamos uso da tecnologia com enormes aparatos tecnológicos. Hoje, podemos carregar o que precisamos nos nossos bolsos. Figura 7: Principais aparatos tecnológicos comuns nos anos 90, quando ainda não se pensava sequer em convergência digital. Fonte da imagem: http://www.9gag.com 4.1 Corpo e ciberespaço As concepções de tempo e espaço foram intimamente influenciadas pela mobilidade, pois o aparelho sensorial humano está em interação constante com o meio ambiente e por ele é influenciado. Se a realidade percebida apresenta múltiplos níveis, a realidade simulada integra-se ao ecossistema como um de seus níveis, principalmente porque ambientes simulados constituem- se em um novo tipo de ambiente ao qual a percepção, como um sistema evolutivo, se adapta. 32 A professora Lucia Santaella (2009) destaca que para revisitar o corpo na era da mobilidade é fundamental usar a semiótica para abordar a diferença entre corpos reais e virtuais, redefinindo os conceitos para “corpos carnais” e “corpos alternativos”. Segundo ela, não existe oposição epistemológica mais equivocada do que aquela que opõe o virtual ao real ou o virtual ao físico, como se as representações virtuais não fossem também físicas e reais. A diferença não está mais em ser real ou não-real, mas nos tipos de realidade e de fisicalidade que são distintas nesses casos. Ou seja, para falarmos de percepção na era da mobilidade é preciso entender o corpo e os múltiplos canais alternativos e suas projeções no ciberespaço. Para o julgamento de percepção, há duas distintas e simultâneas representações do corpo: o corpo carnal e os corpos alternativos (ou dispositivos móveis), não importa quantos nem quais sejam, nas projeções fora do corpo. As fronteiras do corpo no ciberespaço apresentam constantes mutações: não há mais distinções nem limitações entre o real e o virtual. Sendo assim, a percepção humana não deve mais ser julgada enquanto influenciada por meios distintos (real ou virtual) pois os meios são híbridos entre si. 4.2 Computação vestível A chamada wearable computing (“computação vestível”) se refere a dispositivos ou equipamentos movidos por computador que podem ser usados por um usuário, incluindo roupas, relógios, óculos, sapatos e itens semelhantes. Estes dispositivos mais avançados de computação wearable geralmente podem permitir ao utilizador tirar e ver fotos ou vídeos, ler mensagens de texto e e-mails, responder a comandos de voz, navegar na web e demais funcionalidades. Uma pesquisa publicada pela consultoria Strategy Analytics (2014) constatou que 27% dos desenvolvedores de TI estadunidenses têm intenção de criar um aplicativo para dispositivos vestíveis ainda este ano. Para compreender o alcance da tecnologia vestível, podemos considerar o cotidiano do homem mais conectado do mundo: o desenvolvedor de softwares norte-americano Chris Dancy está plugado em rede através de 11 dispositivos, os quais funcionam para rastrear grande parte das informações da sua vida: são capturadas e transmitidas via lembretes por e- mails ou avisos recebidos nos dispositivos móveis. Assim, tornam-se dados organizados, graças a um serviço digital chamado Google Agenda. Alguns dados são monitorados em tempo real e no fim de cada dia, Chris faz uma avaliação de seu desempenho. Se ele acordar estressado ou com algum mal-estar, a iluminação da casa fica de determinada forma e uma música agradável pode ser executada para melhorar seu humor. Graças a essa exaustiva rotina 33 digital, conseguiu perder mais de 45 kg apenas monitorando seus hábitos de sono e alimentação e tomando medidas corretivas. Segundo ele, todos estamos caminhando para essa realidade, é só uma questão de tempo. Figura 8: Chris Dancy, considerado o homem mais conectado do mundo. Fonte da imagem: http://www.tecmundo.com.br/tendencias/53008-conheca-chris-dancy-o-homem-mais-conectado-do- mundo.htm A tecnologia vestível influencia diretamente uma indústria poderosa: a do bem-estar. Objetos super modernos nos conectam para medir desempenhos nos mais variados dispositivos e controlam rirmos e rotinas de treinamentos, oferecendo uma visão detalhada para que o desempenho e a saúde estejam sempre o mais sintonizados possíveis. Figura 9: a marca norte-americana Nike e o cenário comparativo de desempenho dos seus dispositivos digitais: exemplo de inovação multiplataforma. Fonte da imagem: http://www.nike.com.br 34 Ao tratarmos de convergência digital, foi graças à Steve Jobs e seu mote “pensar diferente” que foi possível criar o “hub digital” em 2001, quando o fundador da Apple lançou um dispositivo que coordenava uma variedade de dispositivos - aparelhos de música, gravadores de vídeo e câmeras. O iPod revolucionou o início do século XXI ao ser o dispositivo precursor do iPhone, iPad e iWatch, este a ser lançado em 2015. Figura 10: Apple iWatch, que pretende ser uma ferramenta de fitness para os usuários,ao capturar características biométricas para serem compartilhadas diretamente com o médico do usuário.Além da usabilidade característica da Apple, deverá ser desenvolvido com a resistente tela de safira. Fonte da imagem: http://www.apple.com Estamos tão sedentos de informação que percebemos objetos como extensão dos nossos corpos. Precisamos que eles tenham um desempenho tão preciso que criamos conexões emocionais com eles. Além da aparência refinada e sedutora que estimula o consumo, percebemos os dispositivos como facilitadores do nosso cotidiano, ainda mais se pudermos comandá-los por voz, com o mínimo esforço: os projetos de óculos vestíveis do Google e da Samsung anunciam os super poderes que estão ao alcance dos nossos olhos e dos nossos desejos, como veremos no estudo de caso a seguir. 4.3 Aplicativos para Google Glass O Google, empresa de serviços online e softwares norte-americana, lançou de forma pioneira no mercado em 2013 o óculos interativo, o chamado Google Glass, que permite obter informações diretamente na nossa linha de visão por um minúsculo computador acoplado em um dos seus lados. Tudo ao alcance dos olhos, permitindo mais do que nunca que subvertamos o tempo e permitindo a convergência digital sem fronteiras. 35 Figura 11: Google Glass: um pequeno projetor libera uma imagem através de um prisma que coloca a imagem diretamente na retina do usuário, criando uma pequena camada sobre a realidade em segundo plano. Fonte da imagem: http://apps.oi.com.br/blogapps/saiba-como-funciona-o-google- glass-e-suas-especificacoes-tecnicas O dispositivo deve ser usado da seguinte forma: precisa ser apoiado na parte frontal da cabeça e funciona por meio de conteúdos de realidade aumentada. Permite tirar fotos a partir de comandos de voz, enviar mensagens instantâneas, realizar videoconferências e demais funcionalidades já disponíveis nos dispositivos móveis. Figura 12: A posição do dispositivo também é ajustável, tornando a camada de tela capaz de ser posicionada em várias zonas dentro do campo de visão de quem o utiliza. Fonte da imagem: http://infocletico.com.br/2014/04/liberada-a-venda-do-google-glass.html O dispositivo permite ao usuário experimentar comandos inovadores e muito interativos, com isso os aplicativos desenvolvidos para o Glass chegam no mercado com um diferencial de funcionalidade e experiência. Jogos como o Missle Beyond (com mira ocular para atingir “alvos” celestes) e Blackjack (jogo de cartas com ambientação visual de um 36 cassino) trazem muito mais entretenimento do que outros dispositivos móveis anteriores ao Google Glass. Figura 13: tela do aplicativo Missle Beyond. Fonte da imagem: http://www.glassappsource.com Figura 14: tela do aplicativo Blackjack. Fonte da imagem: http://www.glassappsource.com O Google Glass é considerado uma plataforma de comunicação inovadora, por oferecer mobilidade instantânea e colaboração interativa por geolocalização com os usuários. O AR Glass for Wikipedia (dados da enciclopédia virtual gerados por geolocalização) permitem que os usuários explorem o dispositivo de forma inovadora e bastante funcional: os dados são mostrados por demanda e localidade real, com a interatividade ocular do usuário. 37 Figura 15: tela do aplicativo AR Glass for Wikipedia. Fonte da imagem: http://www.glassappsource.com A rede de notícias norte-americana CNN lançou seu aplicativo colaborativo para o Google Glass: com ele, o usuário pode contribuir com histórias cotidianas via fotos e vídeos para o aplicativo e fomentar informação na rede e também pode receber informações da rede diretamente no aplicativo. Figura 16: tela do aplicativo CNN iReport. Fonte da imagem: http://www.glassappsource.com O jornal norte-americano The New York Times - que ingressou no universo digital em 1996 e desde então se posicionou como referência em jornalismo online – também está presente no Google Glass, com a missão de levar informação ao usuário onde quer que ele esteja, usando as ferramentas do dispositivo para melhorar a usabilidade da informação. Figura 17: tela do aplicativo NY Times Glass app. Fonte da imagem: http://www.glassappsource.com 38 Seguindo o mesmo contexto jornalístico, o aplicativo Fullscreen Beam permite que os vídeos capturados pelo Glass do usuário sejam direcionados para seu próprio canal no Youtube. Figura 18: tela do aplicativo Fullscreen Beam. Fonte da imagem: http://www.glassappsource.com Um aplicativo voltado para beleza e moda deixaria Donna Haraway satisfeita, ao ver mulheres interativas com seus óculos estilosos do Google usando o aplicativo da revista ELLE - interagindo com os conteúdos de maior audiência da revista e também os mais compartilhados online pelos leitores. Com o aplicativo, a publicação se posiciona com inovação no mercado, uma das diretrizes da marca. Figura 19: tela do aplicativo Elle Glassware app. Fonte da imagem: http://www.glassappsource.com A saúde e a mobilidade caminham juntas, como vimos anteriormente, e a tecnologia dos óculos interativos já permite que pacientes se conectem a médicos com rapidez e precisão. O aplicativo Remedy 3 permite que os especialistas vejam através dos olhos do médico para 3 Mais informações disponíveis em: http://www.proxxima.com.br/home/mobile/2014/08/20/App-para-Google- Glass-conecta-medicos-e-pacientes.html 39 recomendar um procedimento, plano de tratamento ou diagnóstico. A interatividade acontece através da rede de dados dos dispositivos conectados: médico e paciente se veem e conversam, além de poderem usar as demais funcionalidades que forem necessárias para que seja possível se aprofundar em informações médicas. Dessa forma, uma consulta de uma hora é feita em apenas dois minutos. A necessidade de inovar num mercado progressivamente competitivo levou o Banco Bradesco, um dos 50 maiores bancos do país em 2013, conforme pesquisa da Revista Exame, a investir de forma pioneira no mercado financeiro mundial num aplicativo para o óculos interativo do Google. O aplicativo do banco permite ao usuário acessar lista de agências bancárias, máquinas de auto-atendimento e hospitais referenciados da empresa. A tecnologia de geolocalização indica os locais mais próximos através da funcionalidade Google Maps, que demonstra a rota do caminho a ser percorrido. Figura 20: o diretor do Bradesco Maurício Machado de Minas fazendo uma demonstração do projeto para a mídia no lançamento do aplicativo, em novembro de 2013. Fonte da imagem: http://www.youtube.com/watch?v=2a2dFr-mFB8 O projeto pretende gerar mais interação da empresa com seus clientes, aproximar a marca do cotidiano das pessoas de forma funcional e melhorar o atendimento com seus clientes através da inovação. Figura 21: imagem do comercial do aplicativo do Bradesco para Google Glass. Fonte da imagem: http://www.youtube.com/watch?v=6mwoSoydK3A 40 Além do aplicativo, a estratégia de lançamento da empresa contemplou dois óculos interativos disponíveis para clientes e não clientes na agência-conceito de tecnologia e referência em inovação do banco, a Bradesco Next, situada no shopping JK Iguatemi, em São Paulo. Figura 22: participante do evento de lançamento do aplicativo na agência Bradesco Next. Fonte da imagem: http://www.youtube.com/watch?v=1iMHjhJ3jwgEnquanto o mercado aguardava que, em setembro de 2014, num evento de tecnologia da Alemanha, fosse lançado o Samsung Galaxy Glass - que seria o concorrente dos óculos do Google - a marca coreana de tecnologia pausou este projeto e preferiu mudar os rumos de seu posicionamento no mercado digital: foi pioneira e apresentou este mês ao mercado o Gear VR 4 , o primeiro óculos de realidade virtual de todos os tempos. O usuário encaixa no dispositivo o smartphone e os próprios óculos interagem com ele. A amplitude angular de visão do usuário com o dispositivo é de 96°, ou seja, a realidade projetada não deixa praticamente nada a desejar em relação à vida real. 4 Mais informações disponíveis em: http://mashable.com/2014/09/03/samsung-gear-vr/ 41 Figura 23: imagem dos óculos de realidade virtual da Samsung e projeção sobre a visão que ele proporciona. O dispositivo foi lançado em outubro de 2014. Fonte da imagem: http://www.samsung.com/global/microsite/gearvr/gearvr_features.html A tendência do mercado para os próximos anos é lançar dispositivos que proporcionem à nossa percepção uma tendência híbrida a confundir cada vez mais os espaços físicos com os virtuais. Esses objetos vão nos permitir realizar tarefas cotidianas com progressiva rapidez e proporcionar cada vez mais interatividade entre nossos corpos e os dispositivos - por meio de dados disponíveis na rede – uma oportunidade inedita para que a indústria conheça desejos do consumidor com análise dos seus comportamentos de navegação no ciberespaço. 4.4 Análise O aplicativo do Bradesco para Google Glass foi uma grande inovação no mercado nacional de mobilidade como um todo. O banco se posicionou com pioneirismo e deu bastante visibilidade para os serviços que oferece no aplicativo, com ainda mais praticidade de acesso à informação, graças aos requisitos funcionais do dispositivo – a geolocalização permite a mobilidade total do usuário para localizar serviços e ser guiado até o local que deseja chegar. Estar ao lado do cliente quando ele mais precisar é o grande objetivo desse projeto. O lançamento foi uma grande “jogada de marca”, já que foi uma manobra pioneira no mercado. Ainda que o Google Glass não esteja amplamente comercializado no País, marcar presença num dispositivo tão inovador e objeto de desejo das pessoas foi uma iniciativa estratégica da empresa, a fim de sair à frente da concorrência e ser lembrada no 42 quesito inovação. As funcionalidades oferecidas possibilitam a busca de médicos, agências e terminais de autoatendimento e oferecem grande praticidade aos usuários. Permitem que os clientes ganhem tempo para usar os serviços, o que provoca dinamismo na interação com o banco e consequentemente, elevado índice de satisfação dos clientes. O lançamento é considerado a primeira fase do projeto: o banco pretende desenvolver o aplicativo de forma a agregar outras funcionalidades presentes no ambiente digital – como programação de transferências de valores e saques em máquinas de autoatendimento. Reforçar a segurança das transações, utilizar outros requisitos como a biometria para proteger dados e assegurar a presença do cliente no momento das transações são próximos passos que o banco pretende considerar para deixar o aplicativo ainda mais interessante. Considerando que o dispositivo responde a comandos que dispensam que mudemos o que estamos fazendo para fazer outra atividade – a exemplo do que são os smartphones – marcar presença nesse dispositivo do Google significa muito mais do que se pretender uma empresa inovadora: significa se posicionar de forma cognitiva ao lado do cliente, reforçando de forma singular o relacionamento com seus consumidores. Os aplicativos disponíveis para os óculos do Google são bastante inovadores, pois aproveitam a usabilidade do dispositivo para proporcionar alta funcionalidade para seus usuários. Estamos diante de um dispositivo que mudou a forma como percebemos a influência da máquina na vida do homem e ao entendermos ainda mais a tecnologia como facilitadora do nosso dia a dia, a tendência é que ela contribua progressivamente para nossas funções cotidianas. 43 5 CONCLUSÃO As máquinas trouxeram uma nova identidade ao ser humano que - desde os primórdios da criação das primeiras máquinas, e quando se lançou no espaço sideral usando aparatos tecnológicos para superar a falta de gravidade do ambiente - se mostrou com coragem essencial para mover a sociedade rumo à transformação. Conviver com as máquinas de forma pacífica e inspiradora exigiu desde o início que o homem interpretasse as diferenças de forma a usar, a favor dele, o que as máquinas tinham e ele não, ignorando a possibilidade de ameaça às suas imperfeições pelas qualidades das máquinas (que as limitações físicas do homem o impediam de transcender). O discernimento humano possibilitou a criação de uma realidade paralela, onde circulam dados e rastros que os olhos não podem ver se não se pretendem a observar. O homem se encantou pelas máquinas e a partir delas conseguiu evoluir sua qualidade de vida, convivendo com a tecnologia em sua vida real. A Antropologia Ciborgue, campo de estudo abordado inicialmente pela pesquisadora norte-americana Donna Haraway, permite entender as influências da tecnologia no homem à medida que ele se transforma por ela. Os cenários da cibernética – o ciberespaço e a cibercultura - definiram a releitura do ser humano. O chamado pós-humanismo nos denominou ciborgues e isso não causa mais o estranhamento utópico dos personagens hollywoodianos dos anos 90, como o Exterminador do Futuro ou Robocop: nos tornamos robôs sem precisar de próteses - basta estarmos conectados em rede por meio de dispositivos móveis. Vamos analisar a seguir dois momentos históricos muito interessantes que demonstram a mudança da relação humana com os dispositivos móveis: são eles as eleições dos Papas Bento XVI (2005) e de Francisco (2013) na Basílica de São Pedro, em Roma. 44 Figura 24: eleição dos Papas, no Vaticano: a realidade capturada pelos dispositivos móveis e enxergada pelas telas das máquinas. Fonte da imagem: http://www.bbc.com Na imagem inferior da montagem acima, as pessoas preferiram registrar o momento histórico através dos seus dispositivos, ao invés de presenciarem com seus olhares sem intervenções externas, como retratado na imagem superior. Quanto mais tempo passamos olhando para telas, mais adiamos a presença e é justamente aí que a tecnologia alcança seu objetivo. Priorizamos o registro digital em detrimento do nosso próprio olhar. Passamos a lidar com uma nova perspectiva de tempo e a enxergar a vida através dos nossos dispositivos. Como afirmou o filósofo e sociólogo francês Jean Baudrillard (1992), “There is no aphrodisiac like innocence”(“Não existe afrodisíaco melhor do que a inocência”) - ao nos mantermos inquestionáveis, somos sedutoramente dominados pelas máquinas. Porém, ao questionarmos a coexistência das máquinas conosco, refletimos e reagimos ao que nos afeta e não somos dominados pelo lado oculto da manipulação de dados que circulam na rede. As consequências desse movimento digital em relação à influência da tecnologia nas nossas percepções ainda são hipóteses, como a ansiedade da informação (WURMAN, 2001), a evolução da civilização pela tecnologia (CASE, 2012) e os limites entre mundos real e virtual (SANTAELLA, 2007). Já entendemos bastante sobre os benefícios da tecnologia
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