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POLÍTICA SISTEMA JURÍDICO E DECISÃO JUDICIAL - 2ª EDIÇÃO Sumário Abertura Créditos PREFÁCIO Agradecimentos INTRODUÇÃO A) O DIREITO, A POLÍTICA E A TEORIA DOS SISTEMAS B) DIREITO, JUSTIÇA E DECISÃO JUDICIAL C) EVOLUÇÃO DO DIREITO E POLITIZAÇÃO DOS TRIBUNAIS NA PERSPECTIVA DA TEORIA DOS SISTEMAS Capítulo 1 - DEMOCRACIA E MAGISTRATURA A) SISTEMA POLÍTICO E PODER JUDICIÁRIO B) QUATRO MODELOS TÍPICO-IDEAIS DE JUIZ C) POLITIZAÇÃO DO DIREITO E “JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA” Capítulo 2 - SISTEMA JURÍDICO E SISTEMA POLÍTICO: A DIFERENCIAÇÃO FUNCIONAL A) SISTEMA SOCIAL E AUTOPOIESE B) O SISTEMA POLÍTICO C) O SISTEMA JURÍDICO D) AS LIGAÇÕES COMPLEXAS E) A DIFERENCIAÇÃO DO DIREITO F) INTERDEPENDÊNCIA, ACOPLAMENTO E “CORRUPÇÃO” DE CÓDIGOS Capítulo 3 - MAGISTRATURA, POLÍTICAS PÚBLICAS E CRÍTICA JURÍDICA A) O SISTEMA JURÍDICO E AS POLÍTICAS PÚBLICAS B) PROGRAMAS CONDICIONAIS E PROGRAMAS TELEOLÓGICOS C) OS LIMITES DA CRÍTICA JURÍDICA Capítulo 4 - A FUNÇÃO DO SISTEMA JURÍDICO E DOS TRIBUNAIS A) TEORIA DOS SISTEMAS E TEORIA DA DEMOCRACIA B) PARSONS E A FUNÇÃO INTEGRATIVA DO DIREITO C) BREDEMEIER E OS TRIBUNAIS COMO MECANISMO DE INTEGRAÇÃO D) LUHMANN, OS TRIBUNAIS E OS PARADOXOS DO DIREITO E) A POSIÇÃO DOS TRIBUNAIS NO CENTRO E NA PERIFERIA DO SISTEMA MUNDIAL OBSERVAÇÕEO FINAIS BIBLIOGRAFIA PREFÁCIO A escolha do caráter disciplinar ou interdisciplinar, como estratégia à construção do discurso científico, além de opção incontornável, continua sendo tema discutido nos círculos epistemológicos, juntamente com a própria amplitude da inter-relação das disciplinas, conteúdo de outra decisão a ser tomada pelo cientista. Tudo para perseguir aquele quantum de objetividade que pretende ter contraparte na carga mínima de subjetividade. Tem-se como certo, nos dias de hoje, que o conhecimento científico do fenômeno social, seja ele qual for, advém da experiência, aparecendo sempre como uma síntese necessariamente a posteriori. Ele, o fato social, na sua congênita e inesgotável plurilateralidade de aspectos reivindica, enquanto objeto, uma sequência de incisões que lhe modelem o formato para a adequada apreensão do espírito humano. Estão presentes nessa atividade tanto a objetivação do sujeito como a subjetivação do objeto, em pleno relacionamento dialético. Isso impede a concepção do “fato puro”, seja ele econômico, histórico, político, jurídico ou qualquer outra qualidade que se lhe pretenda atribuir. Tais fatos, como bem salienta Lourival Vilanova, são elaborações conceptuais, subprodutos de técnicas de depuração de ideias seletivamente ordenadas. Não acredito ser possível, por isso mesmo, isolar-se, dentro do social, o fato jurídico, sem uma série de cortes e recortes que representem, numa ascese temporária, o despojamento daquele fato cultural maior de suas colorações políticas, econômicas, éticas, históricas etc., bem como dos resquícios de envolvimento do observador, no fluxo inquieto de sua estrutura emocional. Sem disciplinas, é claro, não teremos as interdisciplinas, mas o próprio saber disciplinar, em função do princípio da intertextualidade, avança na direção dos outros setores do conhecimento, buscando a indispensável complementaridade. O paradoxo é inevitável: o disciplinar leva ao interdisciplinar, e este último faz retornar ao primeiro. A relação de implicação e polaridade, tão presente no pensamento de Miguel Reale, manifesta-se também aqui, uma vez que o perfil metódico que venha a ser adotado sê-lo- á, certamente, para demarcar uma porção da cultura. Dois outros obstáculos, na forma de desafios, estarão no caminho do estudioso, mesmo que se admita superada aquela situação paradoxal: (i) quais as proporções do corte e (ii) que critérios utilizar para a condução do raciocínio no trato com o objeto já constituído (digamos, recortado)? Aquilo que podemos esperar de quem empreenda a aventura do conhecimento, no campo do social, a esta altura, é uma atitude de reflexão, de prudência, em respeito mesmo às intrínsecas limitações e à própria finitude do ser humano. Essa tomada de consciência, contudo, não pode representar a renúncia do seguir adiante, expressa nas decisões que lhe parecerem mais sustentáveis ao seu projeto descritivo. Pois bem. É o que faz o autor deste livro ao encarar o problema metodológico de frente, declarando ostensivamente sua proposta de aproximação com o tema Política, sistema jurídico e decisão judicial, título original do trabalho que já revela muita coisa a respeito de seus propósitos. As relações entre os subdomínios do direito e da política, no âmbito funcional dos tribunais judiciários, constituem o núcleo central de seu interesse, expandindo-se numa visão sistêmica, segundo a concepção luhmanniana. Aliás, penso residir nesse ponto a satisfação daquela segunda exigência metodológica, vale ressaltar, o modo de ver e de descrever os vínculos que presidem a junção desses setores num todo de maiores proporções. O primeiro item exauriu-se com a eleição dos subsistemas jurídico e político, significando um pôr entre parênteses outros relacionamentos intersistêmicos, perfeitamente autorizados na multiplicidade do real-social, mas que tornariam impraticável a efetiva busca dos objetivos pretendidos. Mesmo assim, não deixa o autor de discutir o cabimento e as vantagens do método escolhido, com uma linguagem sóbria, comedida, mas retoricamente forte, sem adjetivos ou advérbios desnecessários e sem interpolações de excessivo entusiasmo ou de ingênua euforia: expõe e oferece os fundamentos de sua decisão inicial e aproveita para antecipar-lhe aquilo que poderia representar uma crítica apressada de eventuais censores. Desse modo, circunscrevendo a análise aos dois indicados segmentos do mundo social, fechados operacionalmente, porém abertos em termos cognitivos, vai orientando seu pensamento, sempre atento à direção apontada pelas categorias do modelo de Luhmann, que faz sentir ao leitor com grande intensidade, para mostrar que o sistema jurídico e o sistema político, conquanto autorreferenciais, funcionam como estruturas acopladas. É importante que isso fique bem claro, principalmente porque o dado conhecido e a observação mesma, de acordo com o humanista alemão, são construções de quem observa, o que desde logo insere a Ciência do Direito na esfera do sistema jurídico. Não se trataria mais de mera metalinguagem, falando da linguagem-objeto, todavia da “função metalinguística”, exercitada num único estrato de linguagem. Trata-se, na verdade, da tese com que o Professor Celso Campilongo obteve, brilhantemente, cumpre dizê-lo, o título de livre-docência na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Julgo ser esta, entre as conquistas acadêmicas, a mais difícil das titulações, se bem que não a de mais elevada hierarquia. As provas de capacitação que acompanham a defesa oral exigem muito do candidato, subordinando-o a rigorosa avaliação didática. Quero consignar, por outro lado, que venho seguindo a carreira acadêmica desse ilustre professor, admirando sua vocação especulativa, a seriedade com que se entrega às tarefas inerentes ao magistério e o modo vigoroso como escolhe e defende as teorias que adota, jamais se conformando com a fraca dieta cultural de certas concepções tradicionais, porém não hesitando em submeter suas próprias posições doutrinárias ao crivo de uma crítica rigorosa. Acrescento, ainda, que poucos estudiosos estariam tão credenciados, como ele, a versar essa matéria. Não é de hoje que Celso Campilongo vem se dedicando, intensamente, à reflexão sobre os escritos de Luhmann, sendo já internacionalmente reconhecido como grande conhecedor do assunto. O registro dá autoridade ao seu discurso, legitimando-o para influenciar de maneira positiva os leitores que se dispuserem a conhecê-lo. Na pressa de uma síntese, penso que nada mais teria de agregar ao exposto, a não ser a honra de prefaciar esta obra e a circunstância de o programa de Pós-graduação em Direito da PUCSP poder contar, já há dois anos, com figura de tão elevado nível. São Paulo, 3 de setembro de 2001. Paulo de Barros Carvalho Titular de Direito Tributário da PUCSP e da USP. Advogado. AGRADECIMENTOS O presente trabalho foi escrito, em sua maior parte, na Itália, entre 1995 e 1997. O convite para um soggiorno na Universidade de Lecce partiu de Raffaele De Giorgi. Sabedor da minha curiosidade e, também, das minhas reservas e resistências em face da Teoria dos Sistemas, o chamado se deveu a uma mescla de generosidade e provocação. A hospitalidade meridional, a beleza barroca da cidade e, especialmente, a receptividade da Facoltà di Giurisprudenza e do seu Centro di Studi sul Rischiopara com estudiosos latino-americanos criaram um clima propício e estimulante para o debate e a observação. Com o risco de esquecimento de algum nome, estiveram em Lecce, naquele período, os professores Menelick de Carvalho Neto, Juliana Magalhães, Paulo Bonavides, Willis Santiago Guerra Filho, José Eduardo Faria, José Reinaldo de Lima Lopes, Renato Janine Ribeiro, Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer, Leonel Severo Rocha, Luis Alberto Warat, além de uma comitiva de mais de 30 professores da Unisinos (RS), dentre os quais Sandra Vial e meu saudoso amigo Maurício Berni. Ao lado dos docentes brasileiros, vários professores argentinos (Oscar Correas, Carlos Cárcova, Alícia Ruiz, Santos Colabella) e mexicanos (Fernando Castañeda, Angélica Cuéllar Vázquez) juntaram-se aos incontáveis colegas italianos e do restante da Europa que estiveram em Lecce naqueles anos. Entre eles, vale destacar a presença, em duas ocasiões, de Niklas Luhmann. A todos esses colegas, que voluntária ou involuntariamente estimularam meu trabalho, deixo registrados meus agradecimentos. O debate político italiano foi profundamente marcado, entre 1995 e 1997, pelo desdobramento da Operação Mãos Limpas. Depois de atingir a classe política e o empresariado, Mani Pulite, notadamente o Pool di Milano , começava a investigar a própria magistratura italiana, em especial o “Porto da Neblina”, vale dizer, o Tribunal de Roma. Toghe rosse e toghe sporche protagonizaram o noticiário que serviu de pano de fundo para as reflexões deste livro. Aqueles fatos não são aqui descritos nem analisados. Contudo, não há dúvida de que eles influenciaram na seleção e no tratamento dos problemas teóricos levantados no presente estudo. Tive a oportunidade de escrever sobre o Judiciário em ocasiões anteriores à redação deste livro. Vale lembrar de alguns trabalhos: Magistratura, sistema político e sistema jurídico (in José Eduardo Faria (org.), Direito e justiça: a função social do Judiciário, São Paulo: Ática, 1988), Os desafios do Judiciário: um enquadramento teórico (in José Eduardo Faria (org.), Direitos humanos: direitos sociais e justiça, São Paulo, Malheiros, 1994) e O Judiciário e a democracia no Brasil (Revista da USP, n. 21, 1994, Dossiê Judiciário, organizado por Sérgio Adorno). A menção é importante por uma razão básica: o enfoque aqui adotado é bastante distinto, do prisma teórico, da postura assumida nos estudos anteriores. Trata-se menos de incompatibilidade ou ruptura metodológica com o período precedente e mais de uma gradativa incorporação do arsenal de conceitos da teoria dos sistemas para a descrição da posição dos tribunais no interior do sistema jurídico. Ainda em Lecce, tive a oportunidade de discutir algumas passagens do livro com Raffaele De Giorgi, Santos Colabella, Giancarlo Corsi e Mariano Longo. O capítulo sobre os tribunais na “periferia da modernidade” foi debatido na UNAM (México), em 1997, em seminário organizado por Angélica Cuéllar Vázquez e Fernando Castañeda. A convite da Sociedade Brasileira de Direito Público, particularmente dos professores Carlos Ari Sundfeld e Oscar Vilhena Vieira, ministrei um seminário, composto por três sessões com debatedores previamente designados. Foram eles os professores Eurico Diniz De Santi, Laurindo Dias Minhoto e Ronaldo Porto Macedo Jr. Devo a José Eduardo Faria a possibilidade de ter apresentado o trabalho, na forma de um conjunto de aulas, no curso de Sociologia Jurídica da pós-graduação em Direito da USP, em 1998. Além disso, Faria foi o responsável por um rico conjunto de comentários. A todos esses colegas, na Itália, no México e no Brasil, minha gratidão pelas críticas construtivas e contribuições percucientes e fundamentais para a confecção da versão final do trabalho. A Fernando Aguillar e Floriano Azevedo Marques Neto, que assumiram minhas turmas durante o período em que estive na Itália, e a Laurindo Minhoto, Gustavo Valverde e Fábio Barbalho Leite, que, de 1997 a 2000, em diferentes momentos, dividiram comigo a responsabilidade pela condução dos cursos de TGE na graduação da PUC, registro meu reconhecimento pela amizade e competência demonstradas, que foram apoio decisivo para a realização deste estudo. O mesmo deve ser dito em relação ao Prof. Maurício Portugal Ribeiro, que colaborou para a realização de vários seminários nos meus cursos de Teoria Geral do Direito na pós-graduação da PUCSP. Apresentado como tese de livre-docência na Faculdade de Direito da PUCSP, este trabalho contou com a avaliação precisa e acadêmica de uma banca que muito me honrou, presidida pelo Professor Wagner Balera e integrada também por Diva Malerbi, Luiz Antonio Rizzatto Nunes (todos da PUCSP), Helio Borghi (UNESP) e Dalmo de Abreu Dallari (USP). Ainda na Faculdade de Direito da PUCSP, devo agradecer ao Professor Paulo de Barros Carvalho, coordenador do curso de pós-graduação, pelo fato de ter me convidado, logo após meu retorno da Itália, para ministrar cursos de Teoria Geral do Direito no seu Programa. Nas pessoas de Carolina Cadavid e Guilherme Leite Gonçalves, meus ex-alunos e revisores deste trabalho, registro minhas homenagens aos estudantes da Faculdade de Direito da PUCSP. Agradeço, igualmente, a Bianca Tavolari, revisora desta edição. Finalmente, dedico este trabalho, no plano acadêmico, a José Eduardo Faria e Raffaele De Giorgi e, no plano familiar, a Eliana, Vítor e Beatriz. São Paulo, 11 de agosto de 2010. INTRODUÇÃO A) O DIREITO, A POLÍTICA E A TEORIA DOS SISTEMAS Qual o status atual da Teoria do Estado no conjunto das disciplinas jurídicas? Será que o vigor e o brilho atingidos pela disciplina na passagem do século XIX para o século XX – basta lembrar a contribuição do direito público gêrmanico desse período, com autores que vão de Gerber, Laband, Jellinek e, depois, Kelsen, Heller e Schmitt, apenas para mencionar alguns nomes – desapareceram? A propalada “crise do Estado” – expressão ambígua e incompatível com a relevância que a instituição possui, inclusive no período atual, marcado por termos igualmente imprecisos, como globalização e neoliberalismo – aponta para a mesma indagação. E, se assim for, o que estará ocorrendo com a regulação jurídica? Estará perdendo o caráter estatal? Está sendo “privatizada”, para seguir o modismo “eficientista”? E, finalmente, qual o papel do Poder Judiciário nesse contexto? Aqui estão, resumidamente, os termos da equação apresentada neste trabalho: Estado e sistema político, de um lado; direito e sistema jurídico, de outro. A questão é saber qual a função dos tribunais nesse processo. Que relações o Judiciário estabelece com o sistema político? Qual a posição da magistratura no interior do sistema jurídico? O tema é clássico: as relações entre a teoria do poder e a teoria do direito. A abordagem escolhida – exame dos limites e, principalmente, potencialidades da teoria dos sistemas para redescrever esses problemas –, ao contrário, é pouco usual entre nós. O conteúdo mínimo dos cursos jurídicos inclui, por determinação legal (art. 6° da Portaria MEC n. 1.886/94), o ensino da “Ciência Política (com Teoria do Estado)”. Para a legislação, trata-se de uma disciplina “fundamental”. Porém, com a informação de que a questão com o maior percentual de respostas erradas no 1° Exame Nacional de Cursos – o Provão – versaria sobre a distinção entre Estado Liberal e Estado Social1, pensa-se logo que, nas Faculdades de Direito, o tema Estado ou, de modo mais abrangente, Sistema Político não vem merecendo a atenção didática, pedagógica e teórica que lhe confere a legislação. É evidente que a afirmação não pode ser generalizada. Alguns cursos, sensíveis à expansão e importância do direito público para as sociedades democráticas, continuam reservando à Teoria Geral do Estado e à Ciência Política um importante papel2. Pode-se dizer, sem receio, que o direito constitucional e o direito administrativo, de modo particular, e o direito moderno, como um todo, nunca serão compreendidos de maneira aprofundada sem uma sólida especulação teórica sobre os vínculos existentes entre o direito e a política. O Estado, antes concebido como objeto privilegiado e quase exclusivo de estudo dos juristas, passou a ser analisado, ao longo do século XX, também com os instrumentos das demais ciências sociais. Cientistas políticos, antropólogos e sociólogos, por exemplo, assumiram uma posição quantitativamente superior àquela dos juristas na produção de estudos teóricos sobre os vínculos entre a política e o direito. Do prisma jurídico, na tentativa de acompanhar os desenvolvimentos das ciências sociais nessa área, não foram poucos os esforços de incorporação metodológica dos instrumentos das ciências sociais para o exame do direito3. Os resultados desses esforços esbarram sempre em obstáculos difíceis de serem transpostos pelas abordagens interdisciplinares. No caso das relações entre o direito e a política, o mais comum tem sido a construção de modelos de observação que perdem de vista a especificidade do direito e acabam diluindo, de modo indiferenciado, a normatividade jurídica no emaranhado de outras formas de regulação social. Dada a importância do positivismo kelseniano para os estudos do direito, muitas propostas teóricas, no afã de superá-lo, acabaram por rejeitar em bloco a contribuição de Kelsen. A teoria do poder sempre foi considerada um dos pontos débeis do positivismo jurídico. Para Kelsen, o vértice das relações entre poder e direito é ocupado por uma norma: a norma fundamental. Para seus adversários, a relação vai no sentido oposto, isto é, do poder soberano para a norma (por exemplo, Carl Schmitt). As duas perspectivas reproduzem uma visão hierárquica da relação entre poder e norma4. O objetivo deste trabalho é tentar redescrever as relações entre o direito e a política abandonando essa visão escalonada e, principalmente, oferecer referências que permitam identificar, nas operações típicas do sistema jurídico – e, no seu interior, no funcionamento dos tribunais –, onde residem as diferenças mais importantes entre os dois sistemas. Em meio às diversas correntes de teoria jurídica e teoria política que pretendem examinar as relações entre direito e política, este trabalho privilegia o exame de uma vertente muito particular e relativamente pouco difundida entre nós: a teoria dos sistemas, sobretudo na versão construída por Niklas Luhmann. Como afirma o próprio Luhmann, em diferentes trabalhos, a teoria dos sistemas talvez tenha a capacidade de observar coisas que outras teorias não veem. A recíproca é verdadeira. De outros prismas teóricos igualmente será possível visualizar e descrever coisas que, provavelmente, não são realçadas pela teoria dos sistemas. Não há, portanto, nenhuma pretensão hegemônica na opção aqui realizada ou, ainda menos, de desqualificação de outras propostas. Penetrar no cipoal de conceitos da teoria dos sistemas – seja pelas mãos de Talcott Parsons (seu grande formulador nos anos 50 e 60), seja pelas mãos de Luhmann (com seus desdobramentos e acréscimos, especialmente a partir dos anos 70) – está longe de ser missão singela5. Ambos rompem com padrões conceituais estabilizados pelas ciências sociais. No caso de Luhmann, deliberada e intencionalmente, a ruptura se dá também em face das teorias jurídicas prevalecentes: positivismo, jusnaturalismo, hermenêutica, lógica, teoria crítica e sociologismo. Segundo Luhmann, essas correntes não teriam adquirido um grau de complexidade e abstração que lhes permitisse compreender pelo menos quatro questões cruciais: a unidade do sistema jurídico; a variabilidade das normas; a normatividade especificamente jurídica; a relação entre direito e sociedade6. O esforço da teoria jurídica sistêmica é o de redescrever esses problemas. Para Luhmann, o direito promove a “generalização congruente de expectativas normativas”. A fórmula é enigmática e gera perplexidades, sem dúvida. Vale a pena aclará-la resumidamente. A estratégia, para tanto, será a de apresentar este e outros conceitos da teoria dos sistemas, que aparecerão ao longo deste trabalho, de modo deliberadamente simples e, na medida do possível, “descomplicado” (para parodiar Bobbio). “Generalização” equivale a dizer que o critério para a compreensão do sistema jurídico não pode ser individual ou subjetivo. Há “generalização” quando um ordenamento subsiste independentemente de eventos individuais. Apesar de mudanças no ambiente, o sistema está imunizado contra outras possibilidades e permite a manutenção de expectativas. Isso envolve indiferença em relação ao ambiente e à totalidade de expectativas nele existentes e alta sensibilidade para as expectativas estruturadas normativamente. “Congruente” significa a generalização da segurança do sistema em três dimensões: temporal (segurança contra as desilusões, enfrentada pela positivação); social (segurança contra o dissenso, tratada pela institucionalização de procedimentos); material (segurança contra as incoerências e contradições, obtida por meio de papéis, instituições, programas e valores que fixem o sentido da generalização). “Expectativas normativas” são aquelas que resistem aos fatos, não se adaptam às frustrações ou, na linguagem de Luhmann, não estão dispostas à aprendizagem. Nem todas as expectativas normativas são positivadas, institucionalizadas e formuladas em termos de programas decisionais. Em outras palavras, nem todas as expectativas normativas são jurídicas. Somente aquelas generalizadas de modo congruente – vale dizer, compatibilizadas dentro de certos limites estruturais – gozam da segurança e proeminência das expectativas normativas jurídicas7. O que está por trás dessa tentativa refinada de descrição do direito é uma crítica ao iluminismo racionalista. Luhmann usa o mesmo raciocínio em sua reconstrução da teoria social e dos demais sistemas parciais. O velho iluminismo estaria orientado por uma “racionalidade da ação” assentada em pressupostos ontológicos, verdades, princípios e certezas. O novo iluminismo – o iluminismo sociológico de que fala Luhmann – opta por uma “racionalidade do sistema”. Princípios funcionais permitiriam compreender e reduzir a complexidade do mundo moderno. Passa-se de uma racionalidade do sujeito para uma racionalidade do sistema. Enquanto a primeira envolve certezas intersubjetivas, a segunda implica capacidade de guiar o sistema, reduzir sua complexidade e aumentar a estabilidade de um mundo em constante mudança8. Luhmann procura descrever os mecanismos que organizam o funcionamento da sociedade capitalista e as funções que os estabilizam. O direito e os tribunais desempenham um importante papel nesse processo. A modernidade envolve múltiplas possibilidades de ação, escolha e eventos. São necessárias seleções que reduzam a totalidade dos comportamentos possíveis. Os sistemas diferenciados funcionalmente são produtos dessas seleções. Envolvem sempre uma “redução da complexidade”. Por exemplo: diante da pluralidade de expectativas (normativas, cognitivas, indiferenciadas etc.), o sistema jurídico é sensível apenas a um tipo: as expectativas normativas generalizadas de forma congruente. Essa estratégia de “redução da complexidade” é implementada de dois modos: deslocamento dos problemas (transformar a complexidade do ambiente e seus problemas em complexidade e problemas do sistema) e dupla seletividade (realizar escolhas e conectá-las). Os dois modos exigem estruturas que ocultam as alternativas deixadas de lado pelas seleções. Ora, o que fazem os tribunais? Como atua o sistema jurídico? Por meio de um processo de deslocamento dos problemas (traduzindo em termos de legalidade e ilegalidade as questões que lhe são apresentadas) e mediante de uma dupla seletividade de suas operações: primeiro, viabilizando escolhas iniciais que absorvam incertezas (para ilustrar: definindo a lei ou formalizando um contrato); depois, viabilizando outras escolhas (por exemplo, verificando se a lei é constitucional ou se o contrato é legal). Para tanto, o sistema jurídico demanda estruturas que definam o grau de complexidade que pode ser compreendido, processado e reduzido no interior do sistema. Estruturas que resistam às variações do ambiente e isolem as desilusões. São essas estruturas que permitem a generalização de expectativas relativas ao direito. O direito, desse prisma, é visto como um mecanismo de seleção e estabilização de expectativas. Sanções, procedimentos e programas condicionais viabilizam esse caráter seletivo e funcional. B) DIREITO, JUSTIÇA E DECISÃO JUDICIAL O sistema jurídico se diferencia e se especifica funcionalmente em relação ao seu ambiente. Esse processo, típico da sociedade moderna, é definido pela positivação do direito. Direito moderno é direito positivo, isto é, posto e válido por uma decisão. Não representa exclusivamente “redução da complexidade”. É, ainda, acréscimo de complexidade em todas as dimensões do sistema jurídico: variação do direito no tempo, expansão dos temas “juridificáveis” e geração de predisposição antecipada à observância das decisões (legitimação pelo procedimento). O direito positivo também expande sua contingência, vale dizer, a presença contínua do diverso como possível. Entretanto, para Luhmann, o direito positivo opera nas condições de um sistema fechado. Justiça, nessa perspectiva, não é a referência a valores suprapositivos, éticos ou metajurídicos. A justiça é a consistência adequada do processo decisório. O direito não extrai sua validade de um imaginário contrato social, de um idílico consenso comunicativo ou de uma suposta razão natural. Nada disso. Como sistema autorreferencial – organizado com base num código comunicativo específico (lícito/ilícito), que implementa programas condicionais (do tipo se/então) e desempenha função infungível (generalização congruente de expectativas normativas) –, o direito positivo deve resolver, de modo circular, tautológico e paradoxal, o problema de seu fundamento. O direito positivo não entende outras razões além daquelas traduzíveis nos termos de seu código, programas e função. Daí, afirma Garcia Amado, “o juiz, por exemplo, não atua em razão de fins, mas a partir do cumprimento de certas condições iniciais: as previstas na norma. Para Luhmann, desconhecer este dado e introduzir elementos teleológicos, cálculos sobre as consequências, discricionariedade judicial etc. significa bloquear a função do direito como estabilizador de expectativas, inviabilizar a redução da complexidade alcançada com a divisão de tarefas entre o legislador e o aplicador das normas e questionar a autonomia do sistema face aos demais sistemas, como o político, o econômico etc.”9. A tese tentará desvendar como, com que objetivos e por meio de quais instrumentos o direito é capaz de implementar essa estratégia autorreferencial – sempre lembrando que a especificidade recursiva das estruturas e elementos a partir dos quais opera um sistema “autopoiético” autoriza dizer que este não possui correspondente funcional no ambiente. A infungibilidade da função do sistema lhe permite construir sua complexidade interna (autonomia) e, simultaneamente, fornecer as condições de reação do sistema ao ambiente (dependência). O conceito de sistema conduz ao de ambiente, e, por isso, a “autopoiese” dos sistemas jurídico e político nada tem que ver com o isolamento lógico ou analítico do conceito de sistema, como se verá nas próximas páginas. A decisão judicial desempenha um papel essencial para esse modelo. O fechamento operativo do sistema jurídico é fornecido pela alocação dos valores do seu código comunicativo (lícito/ilícito). Mas, como se verá, o sistema jurídico é cognitivamente aberto às questões políticas. Como sustentar a autonomia operativa diante da abertura cognitiva? O sistema jurídico oscila entre uma “jurisprudência dos conceitos” e uma “jurisprudência de interesses”? Os tribunais possuem alguma função política? O trabalho procurará responder a essas perguntas. C) EVOLUÇÃO DO DIREITO E POLITIZAÇÃO DOS TRIBUNAIS NA PERSPECTIVA DA TEORIA DOS SISTEMAS Para Luhmann, a sociedade sempre foi uma rede de comunicações. Entretanto, os modos de organização dessa rede variaram historicamente. Como todas as grandes teorias da sociedade – confiram-se Durkheim, Marx, Weber e Parsons – Luhmann também adota uma perspectiva evolutiva. Evolução não deve ser entendida, aqui, como sinônimo de progresso ou de qualquer outra referência valorativa. Evolução é o resultado de um processo constante de variação, seleção e estabilização de estruturas. A chave do modelo evolutivo de Luhmann reside na noção de diferenciação social. A diferenciação social teria observado pelo menos quatro distintos estágios: diferenciação segmentária, diferenciação centro/periferia, diferenciação estratificada e diferenciação funcional. Não é o caso, para os efeitos deste trabalho, de uma reconstrução detalhada dessas etapas10. Basta dizer, resumidamente, que em cada um desses momentos a comunicação esteve organizada – e a sociedade diferenciada – com base em distintos critérios fundamentais: critérios naturais (gênero e idade, por exemplo, nas sociedades primitivas); critérios geográficos (campo e cidade, por exemplo, para as Cidades-Estados da Grécia clássica); critérios hierárquicos (nobre/plebeu, cidadão/escravo, por exemplo, no “antigo regime”); e, finalmente, na modernidade, critérios funcionais (com a estabilização de sistemas especializados, como o direito, a política e a economia). Na sociedade diferenciada funcionalmente, ao contrário do que poderia sugerir uma leitura apressada e parcial da obra de Luhmann, os vínculos, relações e sobreposições entre sistemas tornam-se, pela primeira vez, um problema prático e teórico da sociedade. Quando os critérios de organização da comunicação eram estratificados, o importante era saber a posição de quem falava na hierarquia social. Os critérios de inclusão nos sistemas dependiam, essencialmente, da origem social, família ou status de nascimento. As diferenças entre o sistema político e o jurídico, por exemplo, ocupavam um papel secundário em face dos critérios de estratificação. Ainda não existiam, na visão de Luhmann, sistemas diferenciados funcionalmente. Com a modernidade – e pode-se tomar o advento do Estado moderno como um marco histórico importante desse processo – apresentaram-se as exigências de estabilização de sistemas com funções demarcadas. A atribuição de papéis distintos e específicos aos sistemas jurídico, político e econômico, paradoxalmente, cria as condições para que se pense não só na autonomia dos sistemas, mas ainda nos seus entrelaçamentos. Com o sistema jurídico dá-se o mesmo. Como se verá no corpo do trabalho, as grandes categorias do constitucionalismo moderno constroem as bases estruturais para a autonomia funcional do direito: divisão de poderes, princípio da legalidade, igualdade perante a lei, Estado de Direito, personalidade jurídica, garantias das minorias etc. são exemplos dessas ações. Mas as Constituições, se de um lado fornecem as ferramentas para o fechamento operativo do direito, de outro também são o mecanismo da abertura cognitiva do direito à política. No Estado de Direito, o sistema jurídico fornece respostas legais aos problemas da política. Isso não significa ignorância ou insensibilidade para a política. Ocorre que os problemas da política são traduzidos, deslocados e selecionados pelo sistema jurídico com critérios particulares e internos a esse sistema. Enquanto a política opera num quadro de complexidade elevada e indeterminada, o direito atua num contexto de complexidade já reduzida e determinada por limites estruturais mais rigorosos. Só quando o direito procura limitar a política e a política determinar o direito a “politização da justiça” e “judicialização da política” tornam-se problemas relevantes. Sem que se saiba a função específica de um e de outro sistema, não há sentido em fazer as conexões ou sobreposições. O exercício dos próximos capítulos tentará descrever esses fenômenos com base no instrumental específico da teoria dos sistemas. O trabalho está dividido em quatro partes. A primeira procura oferecer um conjunto de referências para que se compreendam os vínculos institucionais entre os dois sistemas, os “tipos ideais” de juiz e o fenômeno da politização do direito. A segunda parte apresenta um tratamento sistêmico ao problema da diferenciação funcional entre direito e política. A terceira parte aplica o modelo na análise de dois problemas: a relação entre direito e políticas públicas e um exame das chamadas “teorias críticas” do direito. A quarta parte estuda a posição dos tribunais segundo três clássicos da teoria dos sistemas: Parsons, Bredemeier e Luhmann. 1 DEMOCRACIA E MAGISTRATURA A) SISTEMA POLÍTICO E PODER JUDICIÁRIO B) QUATRO MODELOS TÍPICO-IDEAIS DE JUIZ C) POLITIZAÇÃO DO DIREITO E “JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA” A) SISTEMA POLÍTICO E PODER JUDICIÁRIO A.1) A DIVISÃO DE PODERES Num mundo que atravessa acelerado processo de transformação social, tecnológica e institucional, o debate em torno do Poder Judiciário – até hoje muito marcado pela repetitiva crítica à insuficiência de meios materiais (escassez de recursos) ou pela denúncia de uma atividade viciada pelo descompasso entre as leis e os fatos (excesso de formalismo) – também passa por mudanças profundas. No interior do sistema jurídico forjado pelo liberalismo, a legislação sempre ocupou um papel central. Com base em uma distinção aparentemente bem demarcada entre legislação e jurisdição, o Poder Judiciário cunhou a imagem de um poder neutro e imune às influências políticas, econômicas ou de qualquer outra natureza que pudessem corromper sua fidelidade interior aos sistemas normativos (nos países de tradição romano-germânica) ou aos precedentes jurisprudenciais (nos países de common law). Por outras palavras: o Judiciário foi identificado como uma organização burocrática e fechada a pressões de seu ambiente externo. Ainda que essa não fosse uma descrição realista da atuação da magistratura, era o modelo concebido pelo liberalismo político. Uma organização pensada nesses moldes tinha como qualidades características uma grande unidade interna (construída e reforçada por uma estruturação hierarquizada) e uma operacionalidade que fluía, fundamentalmente, da observância de procedimentos rotinizados, diferidos ao longo do tempo e tendentes a uma decisão de tipo “soma zero” (isto é, com o objetivo de definir a “parte vencedora” do processo judicial). A Teoria do Direito Processual sempre esteve empenhada em identificar os problemas de funcionamento dessa estrutura, em construir dogmaticamente os institutos que permitissem uma fluência racional e equilibrada dos conflitos de interesses e, finalmente, em ampliar ao máximo os mecanismos de acesso à justiça. A sociologia jurídica designou esse processo por “institucionalização do conflito social”, ou seja, a transposição de uma luta de classes desregrada e irracional para uma arena disciplinada, dotada de aparatos de racionalidade e previsibilidades que igualavam formalmente as armas dos contendores. A filosofia do direito procurou encontrar, num abstrato ideal de justiça, o ponto de equilíbrio das novas estratégias de organização jurídica da vida social. Quer na modelagem jurídica do Estado liberal, quer na modelagem jurídica do Estado social, o Legislativo e, depois, o Executivo exerceram um papel central e, na prática, hierarquicamente superior àquele assumido pelo Judiciário no interior do sistema político. Dito de outro modo: o Estado nacional e sua legislação, durante muito tempo, foram os protagonistas de um processo político que dependia de um Judiciário que operasse com categorias cerradas e, em contrapartida, detivesse o monopólio das funções judicantes. O Judiciário não legisla nem administra a coisa pública. A engenharia institucional atribui claramente ao Estado, desde os primórdios do modelo liberal, a tarefa de resolução de conflitos (depois acrescida das importantes missões de controle da constitucionalidade e autogoverno). Espera-se que o Estado seja capaz de garantir a coesão e o controle sociais (no modelo de Estado Liberal) e, mais recentemente, conduzir a sociedade e definir os pontos e objetivos valorativos a serem perseguidos pela coletividade (no modelo social). Numa síntese tosca e pouco matizada, cada um desses momentos atribui ao Judiciário, sequencial e cumulativamente, duas funções políticas absolutamente fundamentais: de uma parte, conferir eficácia aos direitos individuais, ou seja, resolver conflitos; de outra parte, no momento seguinte, sem negar ou excluir a função anterior, fiscalizar o respeito aos direitos sociais e impelir o Estado a uma atuação compensatória e distributiva, isto é, contribuir para a atuação das escolhas públicas. Essas duas funções políticas têm em comum a mesma referência central: o Estado. Se, porém, o Estado é fundamental para o processo de positivação do direito e é capaz de modelar o Poder Judiciário ao seu próprio padrão de atuação mais ou menos ativa, que referências sobram ao analista da magistratura e ao próprio juiz no momento em que os Estados Nacionais, a soberania e o direito positivo perdem uma função central no sistema político? A relação entre decisão judicial e sistema político sempre foi mediada pelas características do Estado. A atribuição do monopólio da resolução dos conflitos jurídicos ao Judiciário é fruto dessa equação e pressupõe elementos centrais do conceito de Estado, como os princípios da territorialidade e da soberania. Entretanto, de diferentes perspectivas crescem as análises que identificam uma perda de centralidade dos Estados Nacionais como polos do poder político. Do prisma econômico, a chamada globalização representa pelo menos um brutal esvaziamento da territorialidade. Do ponto de vista político, a formação de grandes blocos e os organismos supranacionais relativizam a soberania. Finalmente, do prisma jurídico, o direito do mercado globalizado flexibiliza o direito positivo estatal em todos os planos (direitos individuais, políticos e sociais). Essa transformação paradigmática na função do Estado submete o Judiciário a uma pressão terrível e que, em última análise, põe em discussão não apenas a utilidade, mas até a necessidade e a razão de ser de um Judiciário modelado nos termos concebidos pelo liberalismo e, depois, ajustado ao Estado social. O Judiciário depara-se com uma mudança gigantesca. Concebido como uma estrutura rigidamente hierarquizada, operativamente fechada, orientada por uma lógica legal- racional e atuando num contexto de centralidade da atuação estatal, vê-se obrigado a perder grande parte dessas características para atuar num contexto muito diverso. A hierarquia funcional de instâncias e competências permanece. Entretanto, com a afirmação da independência judicial, o desenvolvimento de fórmulas desconcentradas de controle da constitucionalidade, a incorporação de novas referências normativas e cognitivas pelos juízes e a democratização interna do Judiciário, a hierarquia perde o sentido de instrumento de controle vertical da instituição, para ser vista apenas como mecanismo de divisão operativa do sistema de recursos processuais. As referências à normatividade e ao formalismo do processo decisório judicial passam a ser combinadas com uma abertura cognitiva a uma racionalidade material que, crescentemente, permite a coligação entre o sistema jurídico e os demais subsistemas. Finalmente, a história do Judiciário, que pode ser descrita como a de uma instituição inicialmente concebida para proteger o cidadão do Estado e depois para garantir a eficácia dos direitos coletivos junto ao Estado, agora se vê diante de um contexto em que o Estado perde parte de sua importância. Tudo isso faz com que a decisão judicial mude seu perfil. Por isso, a jurisdição – e não a legislação – ocupa um papel central no sistema jurídico 11. Rediscutir o papel do Judiciário nesse momento passa, inicialmente, por uma análise da divisão de poderes. “Divisão de poderes” é um dos conceitos mais complexos da teoria constitucional12. Em primeiro lugar, pode-se dizer que o modelo concebido por Montesquieu deu origem a duas visões distintas da função do Judiciário: na tradição do direito continental, o juiz é a “boca da lei” e está limitado pelo Legislativo; na tradição da common law, o magistrado é o garante da Constituição e impõe limites ao Legislativo. Dito por outras palavras: a recepção de Montesquieu na França pós-revolucionária foi caucionada por um contexto que via no poder dos juízes (em larga medida, vinculados ao ancien régime) o inimigo a ser combatido; para o constitucionalismo americano, ao contrário, a maior ameaça provém das maiorias democráticas (o temor diante da “tirania da maioria”)13. A complexidade da divisão de poderes fica ainda mais evidente se, ao lado dos dois diferentes modelos de Judiciário concebidos pela teoria e pela prática constitucional modernas, o enfoque for combinado com um estudo comparativo da relação entre os três Poderes no Estado liberal (século XIX), no Estado social (século XX) e na atual situação de redefinição das funções do Estado, ou seja, na chamada “crise” do Estado social. Vale a pena examinar, ainda que resumidamente, as metamorfoses da divisão de poderes nesses três momentos. No modelo de Estado liberal, ao Legislativo era atribuída a verdadeira função de governo. O Executivo e o Judiciário eram poderes coadjuvantes do protagonismo político do Legislativo14. No processo de superação do antigo regime absolutista, a tese da divisão dos poderes, com o destaque conferido ao Legislativo, surge como fórmula capaz de atingir os seguintes objetivos: deslocar o centro de decisão política para uma arena na qual a burguesia tinha assento (o Parlamento); impor limites à atuação do monarca, isto é, controlar o Executivo; dotar o Judiciário de uma posição institucional protegida das interferências do sistema político e orientada por critérios decisórios transparentes e previamente conhecidos (certeza jurídica, previsibilidade e garantia das expectativas). A teoria da “divisão de poderes”, ao atribuir a cada esfera de atuação do Estado uma missão específica e ao definir os mecanismos internos de operação de cada poder, permite um acréscimo na complexidade e na capacidade de tomada de decisão tanto do Legislativo quanto do Executivo e do Judiciário. A tripartição de poderes desenvolve não só controles recíprocos entre os poderes, mas ainda enfrenta o problema da autoinibição de cada Poder. A “legitimidade” das decisões – tomada a expressão num sentido bastante elementar, como fórmula de justificação da obediência e obtenção do consenso – também é reforçada: é “legítimo” um juiz que não se submete (em tese) aos caprichos do soberano e decide com base em critérios racionais e formais; é “legítimo” o rei que respeita a lei e está exposto à punição judicial por violação ao Direito; é “legítimo” o legislador que não atua de modo onipotente, mas observa os vínculos que uma estrutura codificada de ordenamento jurídico (com suas inerentes categorias dogmáticas) impõe à produção de textos legislativos. Paralelamente ao princípio da divisão de poderes afirmam-se outros dois importantes aspectos do pensamento liberal-burguês: a separação Estado /sociedade e o individualismo. A superação do absolutismo envolve a gradual estabilização destes três componentes: a mudança de um modelo político mono-hierárquico para uma estrutura anti-hierárquica da divisão de poderes15; a passagem de uma concepção que não diferencia com clareza as tarefas do Estado daquelas da sociedade civil para uma postura que traça rígida demarcação dos limites do Estado e das esferas de liberdade que o sistema jurídico deve reconhecer e garantir ao cidadão; a transformação de uma sociedade estratificada em “Estados” numa sociedade na qual todos são iguais em suas esferas de liberdade e recebem do Estado um tratamento formalmente idêntico. Como relacionar a divisão de poderes com a separação Estado/sociedade e com o individualismo liberal? Como se vai definindo, nessa passagem, uma eventual função política do juiz? A distinção entre Estado e sociedade (que, na verdade, está muito vinculada ao individualismo liberal e à teoria da divisão de poderes) projeta consequências importantes sobre a função do juiz. Por exemplo, a teoria da personalidade jurídica do Estado – visto como centro de imputação de direitos e obrigações – implica a irresponsabilidade do juiz: “O Estado, como pessoa jurídica, seus funcionários e agentes, passa a responder civil e administrativamente pelas violações dos direitos subjetivos do cidadão, cabendo ao poder Judiciário o julgamento dos atos ilícitos. A condição básica de funcionamento dessa estrutura de responsabilização é, no Estado de Direito, a imunidade do juiz pelos seus atos jurisdicionais em face das partes”16. A dicotomia Estado/sociedade também repercute sobre a concepção das fontes do direito, atribuindo ao Estado (e, particularmente, ao Legislativo) o monopólio da produção legislativa17. Nessa lógica, ao juiz cabe a função de “boca de lei”. Não de qualquer lei, mas daquela que é fruto de uma decisão do órgão competente do Estado. Por fim, a separação Estado/sociedade possui equivalentes jurídicos que auxiliam a descortinar a posição política do magistrado no modelo liberal. As dicotomias direito/ economia, cidadão/indivíduo, espaço público/vida privada, por exemplo, tendem a reforçar a instauração de uma sociedade civil “separada” da sociedade política. Não cabe ao juiz (nem ao direito do Estado liberal) interferir na vida privada do indivíduo ou no campo das relações de mercado. Ao individualismo liberal também podem ser associadas diversas categorias fundamentais da dogmática jurídica. A divisão de poderes desempenha a função de inibição e controle do antigo poder absoluto. Entre as principais razões dessa performance está justamente a garantia dos direitos fundamentais do indivíduo. Do prisma jurídico, figuras como a completude do ordenamento, a racionalidade do legislador e a coisa julgada são ilustrativas dos vínculos entre divisão de poderes, individualismo e dogmática jurídica. Daqui igualmente emergem importantes traços da função do juiz no modelo jurídico liberal. A estrutura codificada do ordenamento jurídico – que, de acordo com o racionalismo então prevalecente, vê a ordem jurídica como completa, não contraditória, sem lacunas ou antinomias – impõe ao juiz, em tese, uma rígida e linear submissão à lei. A decisão judicial é entendida como o exercício de subsunção do fato à norma. E, por conta desse modelo, o Judiciário acaba transformando-se no único Poder constrangido a decidir. Nos limites da lei e observadas as regularidades procedimentais, tanto o legislador quanto o administrador podem ou não aprovar uma lei ou optar por uma política administrativa. Diferentemente da decisão legislativa ou administrativa – que, em diversos casos, não precisa necessariamente ser tomada –, a decisão judicial é imposição do sistema jurídico. O legislador e o administrador podem omitir-se da decisão (ainda que as consequências dessa omissão sejam implacáveis). Mas o juiz não tem alternativa. Deve necessariamente decidir, por uma coação do sistema jurídico. Não há fatos ou ausência de fatos sobre os quais o juiz não possa decidir. No Judiciário, excluídos os casos de transação, não existe a “não decisão”. Isso implica uma visão do ordenamento como completo e, logicamente, apto a oferecer a resposta normativa para qualquer questão apresentada ao juiz18. Nisso reside uma das funções do juiz: dar um basta ao conflito de interesses e garantir os direitos individuais por meio da aplicação de uma norma geral (que o ordenamento sempre fornece ao aplicador) ao caso singular contencioso (sentença). Essa operação aparentemente simples do sistema jurídico – aplicar a norma ao fato – é de enorme complexidade. O princípio do non liquet, ou seja, a proibição da denegação de justiça, comporta leituras que conduzem a um paradoxo geralmente omitido pela Teoria do Direito. De uma parte, o sistema jurídico constrange o juiz a decidir com base em seu fechamento operacional (completude e unidade do ordenamento jurídico): isso reforça a imagem do Judiciário como a “boca da lei”. De outra parte, contudo, dada a evidente hipersimplificação contida no dogma da completude do ordenamento, a proibição da denegação de justiça garante a abertura do sistema jurídico a uma infindável série de demandas do ambiente: isso revela que o Judiciário é um inevitável intérprete, criador e construtor do direito. Com base nisso, Luhmann descreve a norma fundamental da atividade dos tribunais como paradoxal19: transforma a coação (proibição da denegação de justiça) em liberdade (formulação de um direito judicial); o fechamento (completude do ordenamento) em abertura (o Judiciário deve responder a todas as demandas). Esse argumento será reelaborado e aprofundado ao longo do trabalho, dada sua importância para a compreensão da função política do Poder Judiciário. A “divisão de poderes” responde às exigências de uma sociedade individualista na medida em que desenvolve mecanismos de autocontrole do Poder e, consequentemente, de garantia dos direitos fundamentais. Um Judiciário obrigado a decidir conforme a lei está, por isso mesmo, legitimado a resistir às pressões do sistema político. A independência do Judiciário tem por preço sua dependência à lei. Na concepção liberal da tripartição dos poderes, liberdade, propriedade e os demais direitos individuais estão protegidos de uma “excessiva ingerência política” – nas palavras de um antigo texto de Luhmann sobre a função dos tribunais no sistema político – de duas maneiras: pela reduzida capacidade decisória do legislador (nem todas as influências políticas se transformam em direito) e pela neutralidade política do Judiciário20. A questão que se põe, evidentemente, é saber se as novas estratégias legislativas (leis delegadas, leis contratadas, “descodificação”, desregulamentação e o próprio ritmo da produção de leis – a chamada hipertrofia normativa) permitem a confirmação das técnicas de imunização do sistema jurídico com relação à política. Ao contrário disso, a elevada produção normativa – muito mais característica do período atual do que uma suposta “reduzida capacidade decisória do legislador” – não tem ampliado e tornado inevitável o espaço para o desempenho de uma função política do magistrado?21 Entretanto, essas questões deslocam a discussão sobre a “divisão de poderes” no Estado liberal para o debate sobre essa engenharia institucional no Estado social e na sua “crise”. Antes disso, convém examinar um pouco mais outras características importantes do modelo liberal. Na concepção liberal da divisão de poderes, a atuação do juiz está limitada ao espaço conferido pelo ordenamento jurídico supostamente completo. Do ponto de vista das operações internas do sistema jurídico, admitir a unidade do ordenamento significa assumir a plena racionalidade do corpo legislativo. A figura jurídica central dessa argumentação é a do “legislador racional”22. O ordenamento só pode ser visto como coerente e livre de ambiguidades se o legislador que o produz for objetivo, prático e técnico. Entre outras qualidades quase demiúrgicas do legislador, a doutrina costuma caracterizá-lo como consciente e onisciente, justo e omnicom- preensivo, imperecível e lógico. Evidentemente, a legislação produzida nesse contexto deve ser geral, abstrata e voltada a problemas indeterminados. Nas palavras de um observador desse fenômeno: “... o legislador cai na ilusão de criar um repertório de figuras e disciplinas típicas, de modo que o juiz pouco ou nada possa acrescentar à averiguação do fato concreto e à leitura do texto normativo”23. O direito é visto como o conjunto de meios que assegura a cada um escolher e atingir os fins desejados. Dito de outro modo: a função do direito – e, nesse caso, também da “divisão de poderes” e, particularmente, do juiz – é a de garantir as regras do jogo para o desenvolvimento das relações de mercado. O equilíbrio entre os poderes, o ordenamento codificado e o “legislador racional” são projeções não apenas do individualismo liberal, mas também de uma sociedade menos complexa e menos dinâmica do que a do século XX e de um Estado mínimo e “reativo”. Nesse contexto, a estabilidade, a reconstituição da ordem e a afirmação da segurança jurídica são valores particularmente importantes do sistema jurídico. Para emprestar eficácia a esse universo valorativo, não basta que o Judiciário resolva os conflitos com base na lei. É preciso que as decisões, uma vez tomadas, sejam estáveis e imutáveis. Para isso, a garantia dos direitos fundamentais afirmados em juízo deve estar protegida pela força da “coisa julgada”. Sancionar um ilícito – determinando-se a reparação do dano na esfera civil ou a aplicação de uma pena na esfera penal – significa pôr fim a um litígio e inviabilizar sua constante retomada. O juiz não pode ser responsabilizado pelas consequências de sua sentença. A imunidade do juiz pelos seus atos (bem como as demais garantias de independência do magistrado) é o complemento do princípio da coisa julgada24. Na passagem do Estado liberal para o Estado social, praticamente todos os pressupostos do modelo do equilíbrio entre os Poderes serão modificados. Aprofundar o debate sobre essas alterações será tarefa das próximas etapas deste trabalho. Entretanto, a título de resumo, convém assinalar as principais mudanças. De um modelo (liberal) que privilegia o Legislativo, o autocontrole e o controle recíproco entre os poderes, com o advento dos Estados intervencionistas passa-se a um modelo (social) que coloca o Executivo no vértice das funções de governo e corrói os mecanismos tradicionais de controle. Evidentemente, isso implica a trasladação de Poderes, o aumento da discricionariedade do Executivo e a gradual afirmação, no século XX, de uma nova forma de controle: a garantia jurisdicional da constitucionalidade. No período liberal, o controle judicial da constitucionalidade das leis existia, praticamente, só nos Estados Unidos25. O antigo Estado liberal – assentado na suposta “separação” entre Estado e sociedade e vinculado às noções de imunidade do juiz, monopólio parlamentar da produção do direito e numa atitude de não interferência do Judiciário na vida privada do indivíduo (exceto nos casos de reparação de danos e aplicação de punições) – transforma-se, no século XX, em Estado que interfere em amplos domínios da sociedade e se expõe às pressões decorrentes da organização dessa própria sociedade, tornando as duas partes interpenetradas. Com isso, começam a surgir opiniões favoráveis à responsabilização política do juiz, aumenta o debate a respeito das fontes extraparlamentares do direito e sobre o direito judicial, a reivindicação assume proporções importantes de um maior “ativismo judicial”, capaz de fazer com que o direito interfira mais eficazmente na vida social. Por outras palavras, da “separação” caminha-se para a “cooperação” entre Esta-do e sociedade, com evidentes consequências para a redefinição da tripartição de poderes e da função do Judiciário26. O individualismo do século XIX – que, do prisma jurídico, tem contraponto na imagem de um Judiciário que decide com suporte num ordenamento completo, produzido por um legislador racional e tem suas decisões estabilizadas com base na “coisa julgada” – vai ceder espaço, gradativamente, ao coletivismo do Estado social. O ordenamento jurídico vai sendo substituído por uma legislação “descodificada”, que rompe com as noções de unidade formal do ordenamento e aponta na direção de múltiplos sistemas normativos27. O legislador atual, premido pela complexidade das matérias objeto de regulação e pela velocidade das demandas, é menos o porta-voz dos “interesses gerais” que tinham acesso ao Parlamento do século XIX, ou seja, exclusivamente a burguesia, e mais um representante de interesses corporativos e contraditórios. Muito difícil, nesse contexto, manter a ficção da racionalidade do legislador. Por fim, a “coisa julgada”, que tinha por objetivo, no Estado liberal, estabilizar a decisão, agora, no direito do Estado social, construído para facilitar a atuação de um Estado dedicado a intervir e transformar a sociedade, torna-se um instrumento de discutível utilidade para algumas situações- limite28. O Judiciário sofre um impacto brutal com todas essas mudanças. Para resumir uma discussão a ser aprofundada ao longo deste trabalho, de um contexto marcado por poucos litígios judiciais (e, além disso, com uma conflituosidade jurídica basicamente interindividual) e centrado na máxima pacta sunt servanda, o Judiciário do século XX vai deparar-se com a explosão da litigiosidade (agora também coletiva, inclusive em termos de legitimidade para a ação processual) e que confere amplitude muito maior para o princípio rebus sic stantibus. Examinar a posição dos tribunais no sistema político envolve uma atenção especial para com o problema das alterações no Estado. Estado liberal e Estado social atribuíram, respectivamente, ao Legislativo e ao Executivo um papel de protagonismo político. O sistema da divisão de poderes, ainda que filosoficamente anti-hierárquico, sempre contou com um vértice. O Estado e a política, como sublinha Luhmann, foram repetidamente indicados pela teoria política como o centro de controle da sociedade. Entretanto, se a sociedade moderna é um sistema sem porta-voz e sem representação interna, ou seja, sem centro, e, ainda, segundo Luhmann, se “o Estado não é externo à sociedade, é um dos seus sistemas funcionais”, então o Estado deixou de ocupar uma posição central na sociedade contemporânea?29 Ora, a teoria da divisão de poderes e toda a literatura constitucional sobre a posição dos tribunais no sistema político partem do pressuposto de que o Estado ocupa uma posição central e de controle da sociedade. Uma vez superada essa referência, como redescrever o lugar dos tribunais e dos juízes na sociedade contemporânea? Já se escreveu, com razão, que o próprio conflito jurídico, que no contexto do Estado liberal apontava para a litigiosidade interindividual e no Estado social acentuava a componente classista, em alguns casos (como o italiano), no final do século XX, assumiu o perfil de um conflito constitucional. É essa a observação de Pasquale Pasquino: “As partes do conflito não são, neste caso, aquelas habituais do cenário político: direita e esquerda, católicos e laicos, empresários e sindicatos e assim por diante. São, ao contrário, órgãos do próprio Estado; sujeitos que representam as nossas próprias instituições. A magistratura, de uma parte, o governo expressão da maioria parlamentar, de outra”30. Enfim, um conflito sobre a divisão de poderes, num contexto qualificado pelo fato de que ao Poder Judiciário cabe, em última análise e sem contrapoderes, decidir sobre a constitucionalidade das leis. O Judiciário, diferentemente do Executivo e do Legislativo, não pode deixar de decidir. Paralelamente, o Judiciário, também em contraste com os outros dois poderes, não tem suas decisões (especialmente em temas constitucionais) controladas por nenhuma outra instância, exceto a lei. Ter de decidir, e de modo independente dos demais poderes, é decorrência de um recorte “não político” autoatribuído às instituições jurídicas 31. Vem desse contexto a paradoxal relevância política atual do Judi- ciário: aparentemente sem função política, ele acaba exercendo uma “função política” fundamental, qual seja a de dar a última palavra sobre a legalidade. Mas o que representa essa posição proeminente se o sistema político deixa de ocupar um posto central no sistema social? A.2) O ESTADO DE DIREITO O constitucionalismo moderno permite um exame das relações entre decisão judicial e sistema político não apenas sob a ótica da divisão de poderes, mas ainda a partir de uma discussão sobre o Estado de Direito. Estado de Direito não significa exclusivamente observância dos princípios da legalidade e da publicidade dos atos administrativos, legislativos e judiciais. Significa, igualmente – e, para os efeitos aqui buscados, esse é o aspecto fundamental –, controle jurisdicional da atuação do Legislativo e do Executivo. Evidentemente, esse controle só pode ser compreendido como uma projeção aplicativa dos princípios da legalidade e da publicidade. Mas é exatamente nesse ponto, ou seja, no controle jurisdicional dos demais Poderes, que reside o caráter eventualmente político da decisão judicial. Aqui, também os problemas teóricos de enquadramento do Judiciário no sistema político e jurídico são enormes: transformações importantes na forma e no conteúdo da legalidade promoveram modificações profundas no conceito de Estado de Direito e, por via de consequência, nos papéis atribuídos ao Judiciário. Convém sumariar algumas dessas mudanças. A divisão de poderes e o Estado de Direito compartilham da mesma origem teórica e social: uma diferenciação binária do poder político32. O princípio da hierarquia conduz ao esquema bidimensional: um “acima” e um “abaixo”. Numa ordem hierárquica, a distinção pode ser traduzida na forma de comunicação comando/obediência. A divisão de poderes e o Estado de Direito foram concebidos num contexto em que o sistema político não estava suficientemente diferenciado a ponto de especificar um público politicamente relevante e apontar as instituições capazes de mediar a comunicação entre esse público e o Estado (os partidos). As mudanças no sistema político permitem a passagem de uma diferenciação bidimensional a uma diferenciação tridimensional dos sistemas políticos, com os seguintes componentes: política, administração e público. Com isso, “as tradicionais estruturas do Estado de Direito e da divisão de poderes adquirem sentido diverso”33. Não perdem importância, mas sofrem profunda transformação. A questão é saber qual o impacto disso sobre o Judiciário. A justificação normativa do Estado de Direito está vinculada a uma imagem bastante precisa da magistratura e da tarefa de interpretação e aplicação do direito. A legalidade do século XIX, por ser o produto de um sistema político pouco inclusivo e, consequentemente, mais compacto e homogêneo, era vista como um conjunto de regras claras e unívocas. Isso permite a construção de uma teoria da interpretação como atividade de conhecimento (e não de decisão, ou seja, não política) e de descrição de normas (e não de criação). Por isso, as questões jurídicas admitiriam sempre soluções facilmente encontráveis no ordenamento jurídico. Nessa teoria formalista da interpretação, o Judiciário não exerce poder normativo ou político. Daí a imagem do Judiciário como “boca da lei” e poder “nulo”, ou seja, um poder sem poder e que, por isso, não necessita de controles 34. A teoria jurídica costuma distinguir o Estado de Direito do Estado Constitucional de Direito. No primeiro sentido estão os Estados nos quais o poder deve ser conferido e exercitado na forma da lei. No segundo sentido, como Estado Constitucional de Direito, o poder, além de conferido e exercitado na forma da lei, deve ser limitado pela lei, que o condiciona na forma e no conteúdo35. Trabalha-se, assim, com um conceito de validade formal (Estado de Direito) e outro de validade também substancial (o que implica tanto a definição legal das formas de aquisição e exercício da autoridade quanto a imposição de limites, obrigações, proibições, competências e critérios para a tomada de decisões). No primeiro caso, o ato autorizado é válido independentemente de seu conteúdo. No segundo, o ato autorizado é válido se preencher requisitos precisos de conteúdo. “Num caso o direito se limita a atribuir um poder (e, eventualmente, a prescrever procedimentos para o seu exercício); no outro, o direito, além disso, delimita ou circunscreve o poder conferido.” O sentido forte da expressão “Estado de Direito” é o segundo36. A passagem de uma diferenciação bidimensional para uma diferenciação tridimensional do sistema político – “política, administração e público” – empresta novas direções ao conceito de Estado de Direito porque deve enfrentar desafios inéditos em cada um desses campos. “Política” significa pluralidade de partidos. “Público” envolve eleitores. “Administração” representa intervenção no domínio econômico. A partir do instante em que todos esses elementos ativam um processo dinâmico de recíprocas interferências e comunicações, a forma e o conteúdo da lei ganham um colorido muito diverso. O Estado de Direito, antes visto como um conjunto de “direitos de”, ou seja, garantias de que o Estado não violará direitos individuais (direitos de liberdade), incorpora enorme gama de “direitos a”, isto é, expectativas de comportamento ativo do Estado. O Estado não está apenas proibido de tomar determinadas atitudes (garantias liberais negativas), mas está igualmente obrigado a assumir outras (garantias sociais positivas). Da mesma maneira que a “crise do Estado social” pode ser descrita como a ausência de uma “teoria política adequada” a captar as transformações em curso37 pode-se dizer que a interminável “crise do direito” seja o reflexo da falta de “adequadas garantias sociais ou positivas, isto é, de técnicas de defesa e de garantia judicial (‘giustiziabilità’, em italiano) comparáveis àquelas oferecidas pelas garantias liberais para a tutela dos direitos de liberdade... Não foi, em resumo, nem teorizado nem realizado um Estado Social de Direito, isto é, caracterizado não tanto por concessões mas sim por obrigações taxativamente estabelecidas e sancionadas, por direitos claramente definidos, precisos e, consequentemente, pela certeza, pela legalidade e pela igualdade na satisfação das expectativas”38. Como entender o Estado de Direito num contexto em que o ordenamento jurídico é cada vez menos coerente, completo e livre de ambiguidades? Qual a função de um Judiciário que, em tese, deveria controlar os demais Poderes com base na lei, mas, na prática, atua num contexto em que uma “deliberada ignorantia legis não só por parte dos cidadãos mas sobretudo por parte dos operadores jurídicos é quase uma condição necessária para o funcionamento das administrações públicas e privadas e da própria atividade jurisdicional, e isto conduz, inevitavelmente, ao primado da decisão burocrática em relação à previsão legislativa”?39. Surgem aqui, com toda a força, espaços para a discricionariedade do Judiciário e o desenvolvimento de todas as perversões que uma “politização” da magistratura comporta: decisões contra legem, violações de direitos individuais e indefinição dos limites do sistema político. Numa palavra: arbítrio. Uma análise mais detida dos modelos de exercício da judicatura e um aclara- mento dos diferentes aspectos da “politização” da magistratura poderão auxiliar no encaminhamento dessa discussão. B) QUATRO MODELOS TÍPICO-IDEAIS DE JUIZ Carlo Guarnieri discute a relação entre decisão judicial e sistema político (ou, em suas palavras, a relação entre Poder Judiciário e democracia) com fundamento em duas importantes variáveis: a criatividade jurisprudencial e a autonomia política. Assim, segundo o grau de criatividade ou de autonomia, Guarnieri chega a quatro modelos de juiz: o juiz-executor (baixa autonomia e baixa criatividade); o juiz-delegado (baixa autonomia e alta criatividade); o juiz-guardião (alta autonomia e baixa criatividade) e o juiz-político (alta autonomia e alta criatividade)40. A reconstituição dessa tipologia – acrescida de contribuições específicas sobre o tema, como as de Wróblewski, Ost e Bell41 – deve partir de uma explanação sobre seus dois elementos de base: a independência e a criatividade. Tem razão Zaffaroni quando assinala que a independência judicial não decorre da separação de poderes, mas “surge como exigência mesma da essência da jurisdição”42. Na proposta de Zaffaroni, ao Judiciário são atribuídas três funções: decisão de conflitos, controle constitucional e autogoverno. Quando se fala em imunização da magistratura, a referência é feita à instituição como um todo, a um conjunto de órgãos ou a um poder. Numa palavra, independência da magistratura é autogoverno. Mas pode-se pensar, também, na liberdade do juiz singularmente considerado. Aqui, a independência diz respeito à não interferência de poderes externos (Executivo ou Legislativo) e internos (pressões dos tribunais ou Cortes Superiores sobre o juiz) no pro cesso decisório judicial. A independência externa – quer por sua maior visibilidade institucional quer por se referir a situações específicas – é mais facilmente garantida do que a independência interna. Por isso, a violação da independência interna – ou, nas palavras de um ex-magistrado como Zaffaroni, o prevalecer-se de uma posição hierárquica superior para divertir-se “aterrorizando” os colegas das instâncias inferiores – é de maior gravidade 43. Guarnieri distingue entre graus “baixos” e “altos” de independência. Picardi fala em independência “fraca” (funcional) e “forte” (o juiz como um terceiro em face do conflito, especialmente quando o Estado é parte). Está certo Zaffaroni ao afirmar que essas distinções são pouco úteis, especialmente se consideradas de forma abstrata44. A maior ou menor independência do juiz emerge do contexto histórico e nunca pode ser entendida como “independência absoluta” do magistrado contra o sistema. Entretanto, por ser um pré-requisito para o exercício da jurisdição na democracia, qualquer tipologia ideal que se pretenda construir sobre o juiz deve tomar a independência como um elemento fundamental. O outro dado essencial para a construção da tipologia é o grau de criatividade do juiz. Durante muito tempo a doutrina foi reticente em admitir a atividade “criadora de direito” do magistrado. Exceção feita à tradição da “common law”, nos países de tradição positivista a atividade do juiz sempre foi descrita como um desdobramento quase mecânico da “vontade da lei”. Diante da clareza da lei, cessa o espaço para a interpretação. Isso pressupõe que os problemas jurídicos possam ser resolvidos mediante uma única resposta legítima. Entretanto, as demandas judiciais frequentemente não comportam soluções tão simplistas. Muitas vezes o ordenamento apresenta ao intérprete mais de uma resposta legítima. A própria lei, vaga e ambígua, oferece possibilidade a múltiplas interpretações. O juiz não apenas declara o direito existente como também cria direito. Declarar o direito e criar direito não são funções contraditórias, mas sim complementares 45. Admitir que o juiz cria direitos impõe a revisão, mais uma vez, de pelo menos dois dos principais conceitos examinados até aqui. Qual a função da divisão de poderes num contexto em que legislação e jurisdição podem confundir-se? Que sentido tem o Estado de Direito em face de um juiz que, discricionariamente, inova a ordem jurídica? O “juiz- político” descrito por Guarnieri combina um máximo de independência com um máximo de criatividade. A pergunta que se coloca – óbvia, mas nem por isso de fácil resposta – é claríssima: essa atuação discricionária do juiz é compatível com a democracia? Convém, antes mesmo de recuperar a tipologia inspirada em Guarnieri, esboçar uma resposta a essa questão preliminar. A “independência do juiz” jamais pode ser entendida como “absoluta”, ou seja, o Judiciário não é um Poder distante, oposto e contraditório em relação aos demais poderes do Estado. A magistratura integra o sistema político e não pode ser examinada à margem dos parâmetros institucionais de relacionamento entre um dos ramos de poder do Estado (que é o seu caso) e os demais46. Da mesma forma, a existência de um “direito judicial” só pode ser reconhecida se integrada à obra geral de criação estatal do direito. Assim, a criatividade judicial (do mesmo modo que a independência e a imparcialidade) deve ser examinada nestes limites47. Se, nos chamados “casos difíceis”, o juiz é obrigado a fazer escolhas políticas – muitas vezes por delegação do próprio legislador –, essa criatividade é exercida nos limites da legitimidade legal-racional. O legislador pode rever a delegação ou fixar a opção política. Entretanto, até que isso aconteça, a determinação de uma linha política por parte do juiz – desde que em conformidade com os valores fundamentais positivados pelo ordenamento – não significa, necessariamente, um comportamento antidemocrático48, contrário à divisão de poderes ou ofensivo ao Estado de Direito. No que se refere ao papel político do juiz, o debate posterior à Revolução Francesa segue, aproximadamente, uma linha evolutiva que vai de níveis bastante baixos de independência e criatividade até o momento atual, de contínua tendência de afirmação tanto da independência quanto da inevitabilidade da função criativa. Em poucas palavras: da imagem do juiz que não faz política àquela oposta, do suposto protagonismo dos juízes ou ativismo judicial. Mais do que isso, muitas das teorias jurídicas contemporâneas, desenvolvidas desde as perspectivas metodológicas mais díspares, denunciam a excessiva importância até agora conferida ao Estado e sua eventual capacidade de controlar ou conduzir a sociedade. Autores tão diferentes quanto Luhmann, Teubner, Sousa Santos, Arnaud e Ost, por exemplo, por vias diversas, falam de uma sociedade sem centro nem vértice, na qual a própria política não desempenha um papel protagonista e a definição do sentido do direito deixa de ser privilégio do legislador ou do juiz e passa a ser compartilhada por diversos atores49. Qual o sentido da discussão sobre o caráter político da jurisdição se a política perde centralidade e a própria jurisdição perde o monopólio da definição do direito? Na tradição jurídica americana, segundo a famosa passagem do juiz Holmes, o direito era entendido como o conjunto das “profecias sobre o que farão os juízes e os tribunais” (“The path of the law”). Os juízes estariam perdendo essa função? B.1) O JUIZ-EXECUTOR O primeiro tipo ideal descrito por Guarnieri é o do “juiz-executor”. Com o triunfo da Revolução Francesa e a gradativa afirmação da representação política e dos mecanismos de participação popular, isto é, com o advento da democracia liberal, consolida-se a ideia de que o juiz não deve fazer política e muito menos pode contrapor-se às instituições representativas, vistas como a verdadeira sede da soberania popular. Nessa concepção, intimamente relacionada com o processo de codificação do século XIX, o privilégio sobre a definição do sentido do direito cabe ao legislador. O juiz apenas executa passivamente a vontade da lei. Baixa autonomia política e baixa criatividade da magistratura são as notas características desse modelo. É evidente que este tipo ideal incide num pecado grave: é pouco realista. Não é crível, mesmo em sociedades mais estáveis, com um direito menos mutável e uma representação de interesses bem mais homogênea (como é o caso do século XIX), que em algum momento o ato de aplicação do direito tenha sido tão mecânico e simples. É certo que, para um número razoável de situações, o juiz pode, efetivamente, atuar como mero executor da vontade dos códigos. Mas isso não deve nem ser generalizado nem assumido como uma descrição da atividade judicial. A construção desse modelo é muito mais normativa e prescritiva do que empírica. O Estado do século XIX – limitado, autoinibido, garantidor da manutenção do status quo – está acoplado a uma racionalidade jurídica dedutiva e linear de aplicação da norma ao fato. O direito permite ou proíbe por meio de leis gerais e abstratas. O monismo é a palavra de ordem: monismo político (no sentido de uma concentração de autoridades que produzem e aplicam o direito) e monismo jurídico (direito como direito posto pelo Estado). A representação gráfica que mais se aproxima da imagem do juiz-executor é a da pirâmide. Na trilogia de Ost, os modelos de juiz estão associados a três figuras (pirâmide, funil e rede)
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