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INSTITUTO EDUCACIONAL SANTA CATARINA – IESC FACULDADE JANGADA PSICANÁLISE "O SUJEITO E SUAS FORMAS DE SUBJETIVAÇÃO" GERMANA PEREIRA DE MORAIS Autismo: Função materna e paterna na constituição do sujeito, sob um olhar psicanalítico. Goiânia - GO Maio, 2018. 3 GERMANA PEREIRA DE MORAIS Autismo: Função materna e paterna na constituição do sujeito, sob um olhar psicanalítico. Trabalho de Conclusão de Curso apresentado na Especialização › Psicanálise "O sujeito e suas formas de subjetivação") do Instituto Educacional Santa Catarina – IESC – Faculdade Jangada, como requisito parcial para obtenção do título de Especialista. Orientadoras: Ms. Márcia Marques L. O. Pires. e Esp. Ana Carolina Moreira Nogueira. 4 Resumo O presente trabalho tem como objetivo investigar a função materna e paterna na constituição do sujeito autista, sob o olhar da psicanálise, através de um levantamento bibliográfico. Sendo assim, buscou-se compreender como ocorre a constituição psíquica do sujeito, desenvolvendo sobre as funções e entendendo a particularidade dentro dos casos de autismo. É apresentado também a visão da psicanálise a respeito do autismo, mostrando que mesmo dentro desse referencial teórico não existe unanimidade sobre o assunto, finalizando com a atuação clínica dos psicanalistas com esses sujeitos. Palavras-chave: autismo; constituição do sujeito; psicanálise; clínica; função paterna; função materna. 5 INTRODUÇÃO Ribeiro (2007) ao fazer um apanhado histórico sobre o autismo, aponta que quem primeiro descreveu enquanto uma síndrome psiquiátrica especificamente relacionada à infância foi Kanner (1997[1943]), que a denominou “Autismo Infantil Precoce”. Esse tema sempre foi alvo de muitas discussões, pesquisas e debates em diversos campos de saber. Dentre as correntes de saber se encontram pesquisadores e autores que entendem o autismo como organicista, que postulam causas metabólicas ou genéticas para o que entendem como uma deficiência inata. Outra corrente entende o autismo como um déficit cognitivo ou de interação com o ambiente, esses teóricos propõem terapias comportamentais ou cognitivas como método de tratamento. Já os Psicanalistas entendem a criança autista como um sujeito, mesmo que não falem eles são afetados pelo campo da linguagem. Mas mesmo na Psicanálise ainda é um tema em aberto. Azevedo (2009) destaca que Kanner (1943), à partir de observações de 11 casos por ele estudados, notou que a principal característica da síndrome seria a incapacidade das crianças se relacionarem com pessoas e situações, isso desde o início da vida. Elas apresentavam olhar ausente, ausência de movimento de antecipação, indiferença à imagem no espelho, estereotipias, ecolalia e o que ele chamou de desejo ansiosamente obsessivo de manter a igualdade. Já em definições mais atuais o autismo infantil, como explica a mesma autora, é considerado um transtorno invasivo do desenvolvimento, que se apresenta antes dos três anos de idade. O diagnóstico é conferido à crianças que exibem comprometimento qualitativo à integração social recíproca e à comunicação, além de comportamento restrito, estereotipado e repetitivo. Rocha (2002) explana sobre a dificuldade que os autores têm ao definir o autismo, não se faz clara a diferenciação entre psicose e autismo. Para os psicanalistas lacanianos, que partem do princípio da concepção estrutural da subjetividade, existem discrepâncias no consenso do diagnostico diferencial entre a psicose infantil e o autismo. As conclusões são variadas, entendendo o autismo como estrutura é possível esquematizar três posições: os defensores da unidade estrutural; os que apontam o autismo como uma estrutura subjetiva diferente e os que o definem como uma a-estrutura. 6 A partir desse embasamento, o presente trabalho tem como objetivo expor como autismo é percebido através do olhar psicanalítico. Para isso optamos por discorrer em um primeiro momento sobre a constituição do sujeito, apontando a influência da função materna e da função paterna. Posteriormente apresentar como a psicanalise entende esse sujeito dentro da sua singularidade e por fim, apresentar como seria uma possível intervenção clínica. 7 1- CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO: FUNÇÃO MATERNA E FUNÇÃO PATERNA Para conseguirmos aprofundar no objetivo deste trabalho e fornecer maior entendimento sobre o lugar do Autista dentro da Psicanálise Clínica, é necessário partirmos da compreensão da estrutura do sujeito. O conceito da constituição do sujeito criado por Lacan a partir dos pressupostos de Freud, são de grande importância para este avanço da compreensão de nosso tema. A Psicanálise quando diz da subjetivação do sujeito, nos revela o sujeito da linguagem, Freud e Lacan fundamentam que o sujeito é um ser social no qual se subjetiva através de um outro da mesma espécie que lhe transmita significantes. Pode-se dizer que o sujeito nasce como uma espécie de folha em branco, e para que esta folha seja escrita é necessário que outro faça por meio de significantes. É diante desses significantes que o bebê é marcado. (Pizutti, 2012) No manuseio da mãe, há a amamentação, o suprir das necessidades do bebê, as marcas vão sendo deixadas e a falta do objeto é construída. Desta forma através dos significantes da mãe o sujeito vai se subjetivando e as marcas vão sendo registradas pelo Outro. Para que haja a estruturação do sujeito é necessário ter a falta, pois o ato da provocação gera neste bebê a pulsão como representante do biológico, podendo ser aliviada por meio do outro (objeto). No primeiro momento existe um Outro, a mãe, e o desejo de satisfazer o bebê das suas necessidades de sobrevivência, construindo assim no sujeito, a sua demanda. Para Lacan (1999), a demanda desperta o desejo de que o filho seja aquilo que supõe a mãe desejar. Freud define a importância do Outro na constituição do aparelho psíquico. É por meio da relação com esse Outro que se inscreverão as primeiras marcas no aparelho. O ser humano é desamparado, não apenas por ser dependente de um outro pela dependência física, mas pela carência que todo ser tem de se constituir como sujeito, se fazer representar no campo da linguagem, do Outro. É necessário que um Outro interprete sua demanda, seu grito, e o transforme em mensagem. Um Outro que com suas próprias demandas dará sentido às primeiras manifestações da criança. É o Outro que introduz a criança no mundo do simbólico. É ele que possibilita que a criança ocupe um lugar no desejo e fantasia dele (Ribeiro, 2007). Neste entrelaço libidinal entre mãe e bebe são instauradas as zonas erógenas do filho. Esta mãe, como Outro de linguagem, vai significando e nomeando o sujeito, dando um lugar ao bebê e oportunizando ao bebe o início de sua constituição psíquica. Jerusalinsky (2009, p.9) diz que: A constituição do sujeito exige a inscrição de diferentes momentos lógicos que não estão garantidos pela passagem do tempo, por uma simples cronologia. No 8 entanto, continua sendo necessária uma diacronia para que se precipitem os efeitos de inscrição que constituirão o sujeito psíquico. É preciso o transcurso de um tempo para que as inscrições que neles se precipitam possam ser por ele postadas à prova por meio de uma experiência que o implique subjetivamente. A primeira experiência de satisfação marca o aparelho psíquico. E ele sempre busca essa primeira experiência, mesmo no decorrer da vida do indivíduo. O que motiva oaparelho psíquico a se manter em trabalho é essa busca pelo objeto perdido. O objeto que é encontrado nunca faz jus àquele primeiro, sempre marcado por tensão e conflito, pois o que é encontrado nunca corresponde à expectativa. Essa busca é marcada pela repetição, repetição de uma satisfação sempre procurada, mas inalcançável. Esse objeto não é o seio da mãe, não é a mãe, não é um objeto da realidade, mas as marcas que foram deixadas pelas experiências primeiras de satisfação na relação com o Outro. (Ribeiro, 2007) A mãe desta forma, investe e inscreve no corpo desse ser, fazendo mapeamento por meio de seus significantes. A estruturação psíquica desse sujeito só se dá a partir do momento em que é inscrito na linguagem. Através desse processo mãe-bebê que se é costurada as bordas do sujeito, borda essa, marcada pela função materna e que constrói o sujeito em suas representações, do que vivido por ele nas relações com a mãe e com o meio. Lacan ([1949],1998) em sua obra, diz sobre os dois momentos da constituição do sujeito no estádio do espelho. No primeiro momento, a alienação recíproca quando mãe-bebe são uno. No segundo momento, ocorre a separação, então o mesmo bebê se enxerga separado do corpo de sua mãe, podendo movimentar-se para outra coisa e nomeando outros objetos de satisfação. O estádio do espelho é um processo em que o sujeito se desloca do corpo da mãe e passa a reconhecer sua imagem diante do espelho. É, portanto, a partir deste processo de subjetivação do sujeito dado por Lacan que o sujeito conquista sua identidade e se introduz no Complexo de Édipo. Freud (1924) marca diferenças entre o processo edípico da menina e do menino. O complexo de castração é um momento crucial na constituição dos sujeitos gerando consequências distintas para meninos e meninas. O Édipo na menina se instaura no momento em que ela percebe a castração, e no menino é o medo da perda do pênis que leva ao final dele. Para Freud, o complexo de Édipo possibilita pensar a constituição do sujeito como a inscrição de um ser pulsional no campo da cultura, através da castração. Já para Lacan, essa 9 inscrição é entendida pelo campo da linguagem, representado inicialmente pela posição do Outro materno que nomeia, dando assim, sentido ao choro da criança. O menino terá então, no encerramento do Édipo, que abdicar da mãe como objeto de investimento libidinal e se identificar com o pai. A mãe, em ambos os sexos é o primeiro objeto de amor. Na constatação que sua mãe também é castrada, a menina se afasta e volta-se para o pai, na esperança de receber o falo negado pela mãe. Para a mulher adulta, a criança surge como um substituto do falo que lhe falta, a criança a proporciona satisfação e é posta como objeto especial de investimento libidinal. (Ribeiro, 2007) Lacan (1999[1957/58) chama de metáfora paterna o acesso à significação fálica que se dará a criança, e ela pertence à função do pai. Ele é o responsável por representar a lei da proibição e do incesto, sua função também é interditar a mãe. O pai seria uma metáfora, um significante que substitui outro significante. E o resultado dessa operação é a significação fálica. O Nome do Pai substitui o desejo materno. O desejo materno então fica barrado pelo Nome do Pai, que se inscreve no lugar do Outro, representante da lei. Essa lei instaurada pelo Nome do Pai é uma lei que a mãe também deve estar submetida, é a lei da castração, em que a mãe é privada de seu objeto e a criança é interditada ao gozo do Outro materno. Quando essa metáfora paterna fracassa e não há inscrição do Nome do Pai no Outro o que pode ocorrer é o desencadeamento de uma psicose. (Ribeiro, 2007) A foraclusão do Nome do Pai é o mecanismo que define a psicose como estrutura e a distingue da neurose. É a negação do significante Nome do Pai, esse significante restringe o simbólico aos limites do próprio simbólico, evitando os significantes de se desencadearem no real. (Ribeiro, 2007) Relacionado à psicose, podemos dizer que algo na trajetória normal da constituição psíquica não acontece. Quando a mãe não desvia seu olhar do bebê, não permitindo o corte, o sujeito entra na psicose. Esta estrutura acontece através da falta de inscrição no simbólico. Freud por intermédio do Complexo de Édipo, explica como se dá esse processo de subjetivação e faz entender que a não inscrição da Lei Paterna, o Nome-do-Pai, priva o filho do campo do simbólico. Desta forma o sujeito fica ligado a mãe e não consegue construir sua própria imagem e seu corpo torna-se um corpo sem bordas. (Pizutti, 2012) 10 Segundo Pizutti (2012), o psicótico não sai da relação objetal estabelecida no início de sua vida com a mãe, ele se aliena do seu desejo, vinculando-se ao desejo do Outro. O sujeito psicótico fica preso no olhar do espelho, não por se reconhecer nele, mas por ficar dentro dele, atrelado à imagem da mãe. Assim, ele não consegue construir sua própria imagem e ao não se reconhecer, também não reconhece o outro como semelhante. Desse modo não se instaura a Lei do Pai, como dito anteriormente. Ribeiro (2007) estabelece que é sabido, desde Freud e Lacan, que para a pessoa se constituir enquanto sujeito é necessário a presença de um Outro que lhe é precedente, não é algo que é simplesmente dado. Diferente de outras funções que são adquiridas por meio do desenvolvimento, do contato com um outro no meio ambiente, o simbólico não é uma aquisição, mas ele vem do lugar que o sujeito deverá advir. A presença e iniciativa do Outro para qualquer outro ser humano é vista como natural, para a criança autista é vista como intrusiva. Para o autista o olhar, a voz, qualquer demanda de um outro, a presença ou o desejo do Outro, pode ter consequências devastadoras. Para Strauss (1993) citado por Ribeiro (2007) “os autistas se apresentam assim como os sujeitos com menos latitude para se deslocar no mundo”. Falta nos autistas a metáfora paterna, consequentemente não possuem margem de manobra em relação à demanda do Outro. Lacan (1985[1964]) no Seminário 11 explana sobre a ideia do Outro. Ele é estruturalmente incompleto, mas se consolida mediante a elaboração do objeto a. Já para as crianças autistas esse Outro é completo, maciço e assim sendo intrusivo. Para eles a perda do objeto não se fez, comprometendo o registro da falta. O Outro materno deve estar atento às necessidades da criança, ela deve estar situada num lugar especial, sendo objeto de cuidados e de investimento libidinal. A função da mãe no complexo de Édipo, como falamos anteriormente, é associada aos cuidados básicos dedicados à criança em seus primeiros anos de vida. Através desses cuidados a mãe se tornará o primeiro objeto de amor da criança. Para Lacan, destaca-se nesse vinculo que é marcado por essas primeiras experiências de satisfação de necessidades, a importância da presença do campo da linguagem. Através dele que o grito da criança, por exemplo, adquira através da significação dada pela mãe, um significado. Assim, Lacan refere-se à mãe como Outro materno ou Outro primordial, considerando que a mãe ocupa primordialmente o lugar do grande Outro, A. 11 Segundo Lacan no Seminário 4 (1995), a relação mãe-criança deve ser considerada como uma relação ternária, pois conta com o falo como elemento terceiro. A respeito da criança refletir um desejo, ligado ao que o autor chama de a exigência do falo pela mãe, será em relação a esse desejo que a criança irá se estruturar. Assim, entendemos que o vínculo da mãe com seu filho depende desse investimento fálico, marcado pelo lugar que a criança ocupa na economia do desejo materno. Faria (2017), destaca a importância desseinvestimento materno, fazendo com que a função da mãe esteja ligada ao fato dos seus cuidados serem de um interesse particularizado. É essa particularização do interesse da mãe nos cuidados que ela dedica ao filho que faz do vínculo mãe-filho não apenas um vínculo fundamental, mas estruturante na medida de em que ele é único. Mesmo aqueles cuidados maternos que podem ser considerados universais, como os ligados a alimentação e higiene, só terão importância quando ocorrer essa particularização, onde cada criança será marcada por um lugar específico na economia do desejo da mãe. Só dessa maneira é possível à mãe supor as demandas, vontades, desejos e a própria capacidade de interpretá-los. Quando isso não ocorre, podemos falar da mãe de uma criança autista, que diante do balbucio do filho a mãe não consegue fazer essa interpretação, parecendo faltar a particularização do interesse da mãe, em que os comportamentos da criança não são tomados de sentido particular. Não se trata de uma rejeição, considerando que em alguns casos é possível que a própria se torne uma marca da particularização do interesse da mãe na relação estabelecida com a criança. A criança que “só atrapalha”, mostra que mesmo na aparente rejeição podem existir elementos simbólicos importantes na constituição do Outro como sede do desejo. Assim, temos que o investimento fálico não depende da existência de uma marca necessariamente positiva, como afirma Faria (2017). Se fazendo valer mais uma marca negativa do que a ausência de nenhuma marca. Na criança autista temos uma dificuldade em oferecer um lugar simbólico a criança, independentemente de ser positivo ou negativo, e de estabelecer com ela laços que irão depender desse simbólico. Uma característica que podemos encontrar nos pais das crianças autistas é a frieza no contato com os filhos. Apesar de não podermos restringir o autismo a essa característica, devemos levá-la em consideração ao ponderar uma certa dificuldade dos pais em fazer o acolhimento desejante de seus filhos. Dificuldade que pode ser revelada ao dar o nome à criança, preparar o enxoval e até mesmo na maneira de se relacionarem com a gravidez. Essas 12 dificuldades apontam uma dificuldade com o simbólico, associadas ao autismo podem ser evidências de um deslocamento entre esse lugar simbólico e a posição da criança que viria a ser acolhida. Por esse deslocamento que a mãe parece ser impedida de supor um sentido ao choro do bebê. No entanto esse lugar simbólico não depende unicamente da presença da mãe, da mesma maneira que esta presença não o garante. Dessa forma temos a importância em nomeá-lo grande Outro, A, indicando sua não redução à personagem materna. Como citado anteriormente os cuidados apesar de serem estruturantes, dão a criança um lugar de assujeitamento. Ou seja, para se ter qualquer satisfação, a criança irá depender de como seu balbucio é significado pelo Outro materno, fazendo com ela esteja assujeitada a vontade desse Outro. A autora faz uma distinção entre a neurose e a psicose, mostrando que a psicose irá se caracterizar pelo fracasso da metáfora paterna. A criança se encontra em uma posição de “saturar o modo de falta em que se especifica o desejo da mãe”. Ao citar Miller no texto “A criança entre a mulher e a mãe”, aponta que em relação a posição fálica, a criança deve ocupar um lugar no desejo materno, devendo o preencher até certa medida, não podendo ser excessivamente competente em fazê-lo. Com isso temos que a mãe deve manter-se, para além da relação com a criança, desejante, devendo possui um desejo endereçado a criança, mas também desejar além, o que Lacan irá chamar no Seminário 7 de desejo materno, ao mesmo tempo um investimento desejante na criança e a não saturação desse desejo. Quando a criança consegue dar conta de satisfazer totalmente esse desejo, ela se tornará uma espécie de “fetiche”, passando a ocupar, semelhante ao que ocorre na perversão, o lugar do objeto capaz de recobrir a falta. A mãe será suficientemente boa, quando também conseguir desejar enquanto mulher. Faria em “Constituição do sujeito e estrutura familiar” (2017) aponta que procurar na patologia materna a origem da saturação ou não saturação do desejo materno pela criança não é o caminho. Na clínica percebemos que a neurose materna não é necessariamente determinante de uma neurose na criança, a posição da criança de saturar o desejo da mãe, pode ocorrer independente da estrutura: neurótica, perversa ou psicótica. No primeiro tempo do Édipo, a criança está diante da onipotência do Outro materno, que não pode ser considerado se não uma ilusão de onipotência, ou seja, apesar da criança possuir essa ilusão não significa que o Outro é de fato onipotente, que sempre irá responder 13 adequadamente da mãe a todo choro do bebê. Essa resposta pode falhar, a mãe pode supor uma resposta e ser outra. O vínculo entre mãe e filho precisa ser sustentado. Quando falamos de crianças autistas notamos essas respostas como sendo “automáticas”, fazia o que precisava ser feito e pronto. Nessa situação em que o que a criança invoca na mãe é o vazio, o nada, o vínculo não se sustenta. Esse vazio aponta a dificuldade materna em fazer o acolhimento desejante da criança. Não se trata de um abandono dos cuidados da criança, nem no abandono da própria criança. Mesmo a mãe se referindo à criança como o vazio, o nada, ela não deixa de supor necessidades a serem satisfeitas. (Faria, 2017) O que sobressalta não é a falta de cuidados, mas os cuidados serem reduzidos à pura satisfação das necessidades, como se essa criança também fosse reduzida ao ser de necessidade e é assim que ocorre o vínculo com o Outro materno. Por isso que é comum a preferência por tratamentos baseados em treinamentos, condicionamentos que se adequam a esse lugar de ser de necessidade, assim a criança passa a ter a necessidade de ser treinada. O que se distancia da atuação psicanalítica, que busca algo que desloque a criança autista dessa posição, que também pode trazer aos pais uma dificuldade de suportar o tratamento psicanalítico. Ao considerarmos a particularização do interesse da mãe pela criança, se deve pensar para um mais além da suposição, da criança como um ser da necessidade. Nesse mais além encontraríamos a suposição, na criança, de um ser de demanda. Uma das principais características das crianças autistas é a ausência do apelo, crianças que não possuem atitudes antecipatórias, que não esboçam sinais de interesse. A passagem do campo da necessidade ao da demanda, faz com que essa demanda implique o Outro. A suposição, na criança, de um ser de demanda é um dos passos no sentido da articulação de uma lógica, sustentada pela particularização do interesse da mãe pela criança, da qual depende o primeiro tempo da constituição subjetiva. Porém essas considerações a respeito da existência de uma suposição na criança, que daria corpo à posição do Outro, não pode ser pontuada como uma culpa. Não se pode confundir a responsabilidade que cabe a mãe nessa posição com a culpabilização da mãe, que sugere uma intencionalidade inesperada nessa situação. (Faria, 2017) Ao retomar a função do pai no Complexo de Édipo, em Freud, o pai aparece de maneira tardia no Édipo, já no momento de sua resolução. Sendo para o menino figura de identificação 14 e para a menina, o portador do falo desejado. Lacan irá fazer a articulação da função do pai com o complexo de castração, dando-lhe, enquanto função simbólica, o lugar central no complexo de Édipo. Para ele a presença do pai no ambiente familiar não pressupõe necessariamente, uma função operante, como a insuficiência simbólicado pai não tem, necessariamente, relação com sua ausência na família. Faria (2017) ressalta que ao pai cabe ordenar o desejo materno, o localizando em relação à lei. Dessa forma a função do pai é unir (e não opor) um desejo a lei, ou seja, a interdição paterna não é a proibição do desejo comunicada pelo pai, mas efeito da articulação do desejo à lei, considerando esse desejo materno como demonstra a teoria do Édipo. Compete ao pai fazer a ordenação do desejo, vetorizando-o no sentido da lei. A entrada do pai enquanto função simbólica, depende da possibilidade de abertura a um terceiro, de uma mediação. O pai é presença no desejo e no discurso materno antes mesmo que possa ser comprovada sua entrada na logica edípica, sua entrada não pode ser articulada cronologicamente no desenvolvimento da criança. A possibilidade de abertura a um terceiro, denominaremos de entrada potencial do pai. Em relação a esta, a articulação nos leva a distinção entre a suposição de um ser de demanda ou um ser de desejo. Na criança em que recai a suposição de ser de demanda, a entrada de um terceiro fica comprometida, devido ao não assujeitamento da mãe a uma exterioridade que subordina sua relação com a criança. Nessa situação a lei aparece como a materna, e a mãe é onipotente no funcionamento dessa lei, mesmo havendo presença potencial do pai, a entrada potencial irá ficar prejudicada. Na suposição da criança como um ser de desejo encontramos a possibilidade da entrada potencial do pai, no campo do Outro, indicando que essa relação se encontra mediada por uma alteridade à qual a mãe também é assujeitada. Para o desejo da mãe atingir o mais além, precisa de uma mediação, que é dada pela posição do pai na ordem simbólica. Consideramos então, que a articulação da função paterna enquanto função simbólica não depende de nenhuma característica específica do pai. Depende, fundamentalmente, do lugar da lei na singularidade do vínculo de cada mãe com cada criança. Assim, a entrada potencial do pai depende, do assujeitamento materno a uma alteridade na relação com a criança, sendo condição para a instauração da metáfora paterna. 15 Faria (2017) menciona a versão do pai como as características, da paternidade concretamente exercida por um pai, que fornecem a função os contornos que a sustentarão. Essa versão irá contemplar a posteriori, as variadas configurações concretas de um pai, que é um reordenamento, uma re-significação, pela criança, dos elementos que são para ela a presença potencial do pai. Na reordenação dos elementos que marcam a presença potencial do pai é necessário que se dê importância à maneira como cada pai se coloca enquanto um pai, para uma criança. É de importância salientarmos sobre as configurações de família quando nos referimos a "mãe" e "pai" no decorrer do trabalho. Faria (2017), discorre sobre as funções paternas e maternas, esclarecendo que não necessariamente se trata do pai e da mãe, mostrando a possibilidade das novas configurações de familiares. Essas funções desempenham papel fundamental na constituição do sujeito. 2- COMPREENSÃO PSICANALÍTICA SOBRE O AUTISMO Ribeiro (2007) explana que diferente da criança dita normal, a criança autista surpreende por ir na contramão dos comportamentos esperados. Elas recusam a alimentação, não se interessam por ser tomadas no colo, se apresentam desinteressadas em estabelecer laços sociais, pois se rejeitam a falar ou até mesmo ignoram completamente a presença de outros. Jerusalinsky (2010) apreende que é possível existir casos em que os autistas são acometidos por transtornos genéticos, mas não se deve afirmar que todo caso de autismo é genético. Ele compreende ainda que mediante a precocidade do início do tratamento psicanalítico com crianças autistas a probabilidade de cura é real. O primeiro passo do tratamento demanda do analista uma identificação literal do automatismo do autista. Não para recompor uma identidade perdida, mas para do interior dela adquirir uma chance de quebrá- la. Koerbivcher (2010) diz que o termo autismo é questionável sob o campo da psicanálise Lacaniana, principalmente quando se trata da questão estrutural do indivíduo. Aos olhos de Jonas de Oliveira Boni (2017), citado pela autora: “o estado autístico pode ser considerado como um conjunto de reações severas para o sujeito psicótico, não havendo a necessidade de supô-lo como uma quarta estrutura ou um quadro crônico e irreversível do sujeito.” De acordo com o autor, no que se refere a posição médica frente ao diagnóstico, são necessárias três categorias para enquadrar-se no quadro autístico, são eles: a perda acentuada 16 de interação social; inabilidade de comunicação e padrões de linguagem, comportamento e motor restritos, repetitivos e estereotipados, segundo os critérios estabelecidos no DSM-IV (Boni 2017). Koerbivcher (2010) ao citar Tustin (1990) relata que nos estados de trabalhos com crianças autistas e a relação mãe-bebê, o que predomina são as manifestações em nível protomental, onde físico e mental não se discriminam, ou seja, ainda estão inseparados e indiferenciados. Eu chego a pensar neste ponto que a consciência da separação corporal é o amago de toda a existência humana e por diversas razões algumas pessoas experimentam isto de forma mais drástica do que outras. A maneira como vão lidar com esta consciência parece afetar o desenvolvimento de toda a personalidade. A hipótese que levanto diz respeito ao que chamei de estados de consciência. Desde o nascimento há flutuações de estados de consciência, que são a base para os estados de mente através da vida. Algumas mães e bebês se mantem num estado de indiferenciação, e se nesta circunstância a separação for abrupta, aquele bebê vai sofrer do que denominei de agonia de consciência (Tustin, 1990, p.217-24 citado por Koerbivcher, 2010). Para a autora acima uma parte da mente se recusa a nascer (protomental), como se ficasse encapsulada no espaço do corpo da mãe. Há variações na organização de cada psiquismo quando falamos da separação corporal, cada indivíduo é capaz de tolerar esta separação de formas e possibilidades diferentes. Em algumas situações pessoas com configurações mentais primitivas vivenciariam a experiência da separação não como a ausência do objeto, e sim como se uma parte do seu próprio corpo tivesse sido arrancada, trazendo com isso uma experiência de vazio, buracos internos, aniquilamento. Tustin ainda diz que indivíduos nestes estados constroem para si uma “concha protetora” na qual refugiam-se, voltando-se para si próprio, procurando bastar-se com isso. Protegendo-se desta forma, do estado horrorizante que nele é desencadeado por vivencias não integradas de grande vulnerabilidade. As relações entre “eu” e “não-eu”, neste âmbito, acontecem por meio de “objetos-sensação” – “formas autísticas” e “objetos autísticos” (1980,1984). Isso pode significar uma forma de tampar este buraco originado pela falta do objeto concreto. Os objetos autísticos concedem um lugar de uma experiência sensorial de dureza e de bordas, como uma armadura, proporcionando um sentimento para o sujeito de proteção contra um pavor que não tem nome (Citado por Koerbivcher,2010). 17 Ribeiro (2014) diz que para a Psicanálise as causalidades do autismo estão presentes através da palavra, que o faz emergir como protagonista de um texto que conta a história de sua vida, e o objeto, este que nunca existiu, mas que condensa toda a nostalgia da suposta completude com a mãe, é o objeto que causa o seu desejo. Quanto ao objeto, a autora, afirma que é ele próprio, o sujeito autista, que ocupa o lugar de objeto daqueles que,do lugar do Outro, dele se ocupam e dele cuidam. Lacan (1976, p.45), refere-se ao autista como sujeito que possui dificuldades para dizer algumas palavras, havendo desta forma uma perturbação clara na relação sujeito e linguagem. Em sua Conferência de Genebra sobre Sintoma (1974/1988), relata que autistas não podem escutar aqueles que deles cuidam. Pontuando que para os autistas os cuidados corporais, os quais são necessários diariamente para todo sujeito, são extremamente invasivos para eles. Através de uma experiência do psicólogo Henri Wallon, Lacan (1966/1988), mostra o reconhecimento da criança no espelho. Onde podemos dizer que é através de nossas ações psíquicas que nós reconhecemos na imagem de nosso corpo. Para que este reconhecimento se dê a criança busca a confirmação no Outro, ou seja, o adulto que a sustenta frente ao espelho. Sem a palavra do Outro, não haverá o reconhecimento no espelho, ou seja, o EU não irá se constituir. Esta situação pode ser observada em crianças autistas nas quais não se reconhecem no espelho. “São simplesmente pessoas para as quais o peso da palavra é muito sério e não estão facilmente dispostas a estar à vontade com essas palavras” diz Lacan (1976, p.45-46) referindo- se aos autistas nas Conferências Americanas. Foi chamado por Lacan de la língua, a língua materna, esta é a primeira linguagem que o sujeito recebe. Enfatizando que esta linguagem não é aprendida pela criança, é recebida. Nos primeiros momentos de vida, o bebê recebe sem compreensão ou desaprovação a la língua que vem da mãe. É possível dizer que é na relação com este Outro da la língua que algo é impedido na criança autista de receber os significantes da língua como um dom de amor materno, tornando as palavras algo tão ponderoso. Alfredo Jerusalinsky (2015), aponta que em todos os casos de autismo há um ponto em comum, que é a quebra ou descontinuidade no reconhecimento recíproco entre filho e mãe (ou cuidadora do sujeito). Para o autor o autismo é uma quarta estrutura dentro das três já reconhecidas. Nas neuroses a relação com o outro é desejada, mas conflitiva, nas Perversões a relação é de usufruto do outro, nas Psicoses a relação com o outro é temida, confusa, invasiva, 18 incompreensível, distorcida, seus símbolos são absolutos e os únicos válidos, e, no entanto, o Autista não possui representação do outro e por isso rechaça sua relação com ele, sendo que, quando essa relação acontece, ela é episódica, fugaz, descontextualizada, mínima, espasmódica, de nenhuma ou escassa extensão imaginária e de nula extensão simbólica. 3- O AUTISMO E A CLÍNICA Freud (1912) postula que na Psicanálise o analista deve trabalhar cada caso como se fosse o primeiro, em sua singularidade. É preciso se reinventar em cada caso. Na clínica com autistas não deve ser diferente, pois crianças autistas convocam o analista a esse lugar, um lugar enigmático. Elas não falam, não endereçam ao outro nenhum apelo ou demanda, elas estão ali mas como se não estivessem. Não podemos nos esquecer de que nada do que diz respeito ao comportamento do ser humano como sujeito, e ao que quer que seja no qual ele se realize, no qual simplesmente ele é, não pode escapar de ser submetido às leis da fala. (Lacan, 1985[1955/56], p.100). As estereotipias típicas do autista como: abrir e fechar portas, ligar e desligar a luz, movimentos repetidos do corpo, bater ritmadamente em objetos, para Baio e Kusniereck (1993), seriam consideradas um trabalho que esses infantes realizam para evitar e barrar a intrusão do Outro. Então, diferente do que se pensa que o autismo é um lugar onde nenhuma elaboração é exercida, essas estereotipias então seriam uma tentativa de adentrar a diferença, escansões num real indiferenciado. (Ribeiro, 2007) Freud em 1895 define o trabalho psíquico como um trabalho de ligação. O aparelho psíquico busca manter a tensão o mais baixo possível e evitar o desprazer. Ribeiro (2007) pondera que as crianças autistas também realizam um trabalho, numa tentativa de saída do objeto, no sentido de furar o Outro maciço, no próprio corpo. Os alimentos, que também são objetos demandados pelo Outro, são tratados de forma especial, a criança só come depois de realizar uma série de rituais previamente definidos por ela, os alimentos devem ser servidos numa determinada ordem e sequência, cortados e picados de uma maneira especial. A repetição, que é vista com prazer pelos neuróticos, é para os autistas um excesso que não conseguem escapar. Para essas crianças o prazer só ocorre quando elas começam a construir recursos para se subtrair desse excesso. Elas estão sempre tentando advir como sujeitos, num 19 trabalho de escapar desse Outro, dessa intrusão. Uma possível alternativa de tratamento seria pensar na particularidade de cada caso, entender qual a lógica que cada criança usa para se fazer sujeito, e entendendo essa lógica o analista vai poder se incluir nesse trabalho. (Ribeiro, 2007) Na clínica com autistas o analista tem que fazer uma aposta, a de que o sujeito pode surgir e se comprometer no trabalho de barrar o gozo do Outro e se lançar como sujeito. O trabalho com os pais não assume lugar de orientação, mas de trabalhar o lugar que a criança, ou o sintoma, ocupa para eles. Essa escuta produz efeito de separação, vai além das funções de pai e mãe, ideais, vai além do sentimento de fracasso, pode também gerar efeitos na criança, a fazendo mudar de posição. Se há um trabalho então existe a chance de que alguém – um analista – se inclua na atividade que o autista já realiza de tentar tornar-se sujeito. O analista deve permitir à criança modos de produzir-se sujeito, deve ser um parceiro nesse trabalho. Pois elas estão em constante tentativa de emersão da posição de objeto de gozo do Outro para surgirem como sujeitos. (Ribeiro, 2007) O Outro deve acreditar que existe uma convocação dirigida a ele nas manifestações iniciais da criança, é necessário que o Outro também dirija à criança uma demanda singularmente endereçada. A autora realça a relevância de uma transmissão, não apenas dos cuidados para satisfação de necessidades, mas de um desejo que não seja anônimo à constituição do sujeito. Para Ribeiro (2007) o autismo está atrelado ao campo da psicose, pois o que está presente é a não-inscrição do Nome do Pai. Na mãe da criança autista não impera a falta do desejo, mas sim um desejo anônimo. O autismo não se trata de um estado de isolamento, onde nenhuma elaboração seria efetivada, pelo contrário, o comportamento segue uma lógica de extremo rigor. Por não serem inscritas na Lei e no lugar do Outro as crianças autistas trabalham para simbolizar a perda do objeto e barrar o Outro que é desregulado e sem lei. Na clínica constatamos a importância da inserção da linguagem, de um Outro que atribua sentido as demandas das crianças. Para Tanaka (2017) as intervenções que produzem efeito apontam para a incidência da linguagem sobre a criança e mostram a importância dos pais de sustentarem esse lugar. É imprescindível que se ouse falar, que se atreva a supor essa demanda. 20 Segundo Nominé, citado por Steinberg (2017), o problema do autista é que a sua borda pulsional não funciona. Dessa maneira, na falta da borda pulsional, o sujeito autista reduz todo o seu ser à encarnação do corpo metáfora do gozo do Outro. Assim "o sujeito gozaria do Outro na própria posição em que ele mesmo se faz objeto de gozo desse Outro". Para a autora o autista não tem corpo, pois para tal supõem que seja aceita a inscrição do ser na metáfora proposta do Outro, ou seja, o autista não possui corpo porque não está envolvido ao Outro. Por nãose enlaçar nesse Outro o corpo sofre as consequências. A questão para o analista é como dirigir o tratamento se o autista não está com o Outro, como se tornar esse Outro menos invasivo e ameaçador. Por isso a importância de saber o que os angustiam e caso a caso criar as intervenções necessárias. Azevedo (2009) interroga o leitor sobre o que o analista pode fazer diante de um sujeito insconstituído que está inteiramente no indiferenciado, por outra forma, como é possível ao analista ter um lugar frente ao autista. A autora utiliza do texto de Lacan (1953) A direção do tratamento para elucidar esse lugar, tentando que alguma alteridade possa se constituir ali onde então tudo era indiferenciado. Nesse texto Lacan introduz três conceitos: tática, estratégia e política. Na tática o analista noticia a tentativa da criança em significar o real. Na estratégia o analista vem ocupar para o sujeito o lugar de Outro na transferência, e é desse lugar que o analista deve operar. É nessa hora que a demanda ocorre, um olhar, uma fala, pois está desviada do sujeito. É na transferência que o analista possibilita ao sujeito esvaziar-se do Outro. E ligado a isso vem a política, que é o analista nada desejar, demandar ou compreender. Não se trata de um desejo de ser do analista, não é um desejo pessoal, e nem um desejo dirigido ao paciente, de querer sua felicidade ou infelicidade. Celia Korbivcher (2010) ao citar Bion (1965), diz que o campo de trabalho do analista em que Bion sugere, remete-se ao "aprendizado com a experiência emocional" compartilhada pela dupla analítica na sessão, e a teoria das transformações é sugerida como um vértice de observações de fenômenos neste campo, permitindo ao analista discriminar em face de que tipo de transformações da vivência emocional ele se situa. Koerbivcher (2010, p.66) ainda diz Adotando esse vértice, o analista passa a incluir na sua observação a distorção intrínseca ao ato de observar, posto que a ferramenta de que dispõe para o trabalho é a sua própria 21 mente, sujeita a movimentos psíquicos equivalentes aos de seu cliente. É a partir do contato com esses movimentos que o analista formula a sua versão da experiência emocional em curso. Assim, é abandonada a sua configuração de autoridade, de um dono do saber, com capacidade de visualizar a totalidade do fenômeno mental. A atmosfera vivenciada pelo analisa na esfera autística é a de "ausência de vida afetiva", segundo Koerbivcher (2010), levando a sua mente a um alto nível de angústia e revelando uma tendência à evasão, o que obstaculariza a ele manter-se em contato com a situação e poder comunicar com o paciente. A autora ainda diz que essas vivências requerem certa disciplina de constante auto-observação, deixando sua mente disponível, presente e operante na situação. Frances Tustin (1986), citado por Koerbivcher diz que ao vivenciar a experiência de isolamento de seus pacientes autistas, sujeitos completamente recolhidos em seu próprio mundo, observou que muitas das vezes eles se agarravam a "objetos duros" e a "objetos macios". Desta forma levantou uma hipótese de que a sensação tátil representada pelos objetos duros era relacionada a uma experiencia sensorial de dureza e de contato com bordas, associando essa situação a uma busca de vivência de alguma coesão corporal. Tustin diz: "o contato com os objetos duros resulta numa experiência sensorial de uma 'armadura', propiciando um sentimento de proteção contra um pavor inominável". Já quando é falado sobre os objetos macios, ou como denominou a autora "formas autísticas" foi vinculado a impressões sensoriais deixadas por um objeto ou substâncias corporais que, ao tocarem a superfície da pele, propiciam experiências reconfortantes e calmantes. Embasado nas observações, Tustin realça que as relações de objeto no âmbito dos estados autísticos acontecem de um modo particular, ou seja, acontecem através das sensações que os objetos e formas autísticas produzem no sujeito, e não a partir das fantasias ou significados que eles provocam. Ainda seguindo os pensamentos de Koerbivcher (2010), a autora relata seu interesse em investigar o modo específico dentro da clínica, em que alguns pacientes, especialmente sensíveis à experiência de separação corporal entre Self e objeto, organizam-se psiquicamente. Para ela cada paciente, indiferente de seu grau de comprometimento, organiza-se dentro de um sistema defensivo próprio, de acordo com sua maior ou menor possibilidade de tolerar a dor mental. A autora cita Mitrani (2001), e diz: "quando é extrema, o paciente irá utilizar proteções 22 igualmente extremas, como um meio de evitar vivências insuportáveis de não integração." E enfatiza: O trabalho de análise com pacientes que operam em áreas em que prevalecem fenômenos autísticos tem constituído um desafio constante para mim, devido à enorme complexidade que esses fenômenos encerram. O descompasso que se cria entre o funcionamento da mente do analista e a mente do analisando é um dos principais fatores responsáveis por esse desafio (Koerbivcher, 2010, p108). Desta forma colocamos a necessidade clara da participação do analista dedicando-se ao bem-estar do sujeito autista; é o analista que pode escutar este sujeito que não fala, mas assim como todo sujeito, habita a linguagem. (Maria Anita Ribeiro, 2014). Assim como a clínica com autista possui suas singularidades, a clínica psicanalítica com crianças se apresenta com particularidades. Desde o início, a demanda do tratamento é apresentada inicialmente pelos pais, são eles que procuram, pedem ajuda e levam a queixa. A presença deles define a maneira como o psicanalista irá atuar, pois da mesma maneira em que irá cobrar uma intervenção do profissional, seja diminuindo a presença nas sessões, reduzindo o número de entrevistas, o manejo marcará e irá influenciar na transferência dos pais com o psicanalista que interferirá na análise da própria criança (Faria, 2016) O manejo e as intervenções que o psicanalista realizar também influencia nas condições para o acontecimento da análise. Para isso se faz necessário as entrevistas preliminares, um primeiro momento em que o profissional avaliará as circunstâncias necessárias para o acompanhamento analítico. Quando se trata da clínica com crianças, esse momento se faz ainda mais necessário, pois será nessa oportunidade que o psicanalista poderá observar se a queixa dos pais seria o suficiente para iniciar um processo analítico com essa criança. Uma análise não pode ser feita por que alguém deseja isso no lugar do suposto analisando. Por isso na clínica com crianças se faz necessário uma reflexão pois essa criança será levada por um terceiro, por isso pensar no lugar desses pais nas análises dos seus filhos e do manejo com a presença deles. As entrevistas preliminares irão auxiliar para evitar essa “análise por encomenda”, como diz Freud (1920), orientada pelas demandas, interesses e expectativas dos pais. Esse período inicial oferecerá ao psicanalisa uma avaliação das condições necessárias ao início da análise e 23 o manejo que o psicanalista deverá ter com a criança e os pais. As entrevistas também irão auxiliar na discussão dos efeitos do triangulo pai-mãe-criança e como realizar o manejo da presença desses pais levando em conta as particularidades dos laços constituintes desse triangulo (Faria, 2016). A diferenciação entre o sintoma da criança e o sintoma na criança é necessário para manter uma escuta da criança orientada na noção de que o sintoma é da criança e se refere a sua própria posição de sujeito. Também pode ser um auxílio para observar que a presença dademanda dos pais nas entrevistas, será um fator dificultador para o analista manter essa escuta orientada para a criança e seu sintoma. Porém é um recurso para o psicanalista dar o lugar necessário à queixa dos pais que remete à posição e ao sofrimento de cada um deles, diminuído a possibilidade de uma análise por encomenda. Alguns psicanalistas utilizam como recurso, para diminuir o risco de um desvio no qual as demandas dos pais dificultem a escuta da criança, a manutenção desses pais fora do tratamento, sendo uma maneira de preservar uma escuta da criança, tornando mais clara a diferenciação do lugar que a criança ocupa na estrutura e sua posição enquanto sujeito. Diminuindo a possibilidade de confundir a criança em análise com aquela presente na fala dos pais. Porém esse manejo apresenta suas consequências. O efeito dessa exclusão dos pais se apresentará naquilo que não será escutado da posição de cada um, o que causará interferências denominadas como resistências. Seja não pagando as sessões, não levando as crianças ou abandonando o tratamento. Isso poderá acontecer quando a transferência dos pais não encontra no manejo do psicanalista um ponto de sustentação. Uma alternativa seria encaminhar esses pais a uma análise pessoal, porém nem sempre é bem-sucedida, muitas vezes os pais insistem em endereçar as demandas ao analista do filho, já que os sintomas destes se apresentam alienados no sintoma da criança. Por tanto se percebe uma diferença entre encaminhar para uma análise e oferecer uma escuta, o que irá gerar efeitos diversos na transferência dos pais. A análise dos pais, não exclui a necessidade de falar sobre o sintoma na criança (Faria, 2016). É importante escutar esses pais, para o desenrolar da própria analise da criança, através dos relatos de certas situações será possível desenrolar alguns nós que possam estar emperrando o andamento. Quando não ocorre essa escuta, não só perde a possibilidade de desenrolar algum 24 impasse, como ocorre o risco de que o trabalho com a criança se transforme numa resposta para uma demanda de cura que é dos pais. A escuta também possibilita situar como pai e mãe lidam com o sintoma do qual se queixam e de que é dos seus próprios sofrimentos e das suas próprias posições que eles falam. Quando consideramos que os pais servem de suporte às funções e aos lugares de que depende a constituição psíquica da criança, podemos esperar que a escuta desses pais, também irá ter efeitos sobre toda a estrutura, que poderão ser notados tanto pela criança, quanto pelos pais. Assim, o nó que une pais e crianças através do sintoma na criança poderá se desatar, e a questão, antes alienada, irá retornar para o sujeito que a traz. A criança também irá perceber os efeitos na sua análise que poderá seguir, considerando que o psicanalista ficará com a escuta livre das interferências dos pais e da procura constante que acarretam em interrupções causadas pelas demandas desses pais dirigidas ao analista. Que poderão ser abordadas por outra maneira, na qual eles também se sentirão envolvidos. CONSIDERAÇÕES FINAIS O trabalho foi desenvolvido com o objetivo de realizar um esclarecimento sobre a função materna e paterna na constituição do sujeito autista, baseado na abordagem psicanalítica. Foram destacados a importância da subjetivação do sujeito e as inscrições das marcas registradas de um Outro na constituição deste sujeito (sujeito este que está inscrito no campo linguagem), a constituição deste sujeito enquanto autista e, também, o manuseio deste, na clínica psicanalítica. Para realizar o trabalho, foram necessários diversos estudos e revisões bibliográficas em textos que abordam este tema, para assim, identificarmos os principais conceitos apresentados pela psicanálise. Foi visto desta forma que ainda há muito que se trabalhar dentro das diversas definições e formas de tratamento que o Autismo nos mostra. Os psicanalistas lacanianos se encontram divididos com relação ao que pensam, psicanaliticamente, sobre o sujeito autista. Alguns acreditam que o autismo está integrado na chamada “clínica diferencial das psicoses”, também composta pela esquizofrenia e pela paranoia, cuja linha divisora metapsicológica seria a forclusão do Nome-do-pai. Para Sauvagnat (2005), a ecolalia diferida (ou tardia) do autista tem a mesma estrutura de linguagem que a alucinação auditiva psicótica. Levando-o a afirmar que autismo e psicose não são diferentes. Segundo outros autores, como Rosine et Robert Lefort (1980), o autismo é tido como uma 25 quarta estrutura, ao lado das outras três enunciadas por Freud: neurose, psicose e perversão. Existem, ainda, os que consideram o autismo como a expressão clínica de um impasse, o mais precoce, na estruturação subjetiva (Catão, 2011). O que podemos concluir é que diante tantas hipóteses, diagnósticos, curas, entre outros, este trabalho nos resultou apenas em uma reflexão inicial sobre o uso e potencialidade da psicanálise como referencial teórico para a compreensão do autismo. É de grande valia destacar que no tratamento do autismo há um sujeito a ser escutado em seu modo particular de funcionamento, sujeito este que antecede o sujeito do inconsciente. O psicanalista nesta árdua tarefa é aquele que se oferece como um Outro que escuta a criança autista com suas meias palavras, meias ecolalias, sendo um “secretário” das invenções desta criança e o auxiliando na constituição da voz enquanto objeto pulsional, ou seja, na constituição de uma voz que lhe seja própria. 26 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AZEVEDO, F. C. de. Autismo e Psicanálise: O lugar possível do analista na direção do tratamento. Curitiba: Editora Juruá, 2009. CATÃO, I.; VIVÈS, J.-M. Sobre a escolha do sujeito autista: voz e autismo. Estudos de Psicanálise. Belo Horizonte, n. 36, p. 83-92, dez. 2011. CAVALCANTI, A. E.; ROCHA, P. S. Autismo: Clínica Psicanalítica. 4 ed. São Paulo: Editora Casa do Psicólogo, 2007. FARIA, M. R. Introdução à psicanalise de crianças: o lugar dos pais. 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