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Da marginalidade à resistência: a história de um povo contada por 
meio da poesia timorense de língua portuguesa 
Andreia Pereira da Silva1 
 
RESUMO 
 
Uma história recente, contada por meio da língua portuguesa, ainda não alcançou o centro das 
discussões entre os críticos literários. Trata-se do Timor-Leste, uma nação que só se tornou 
soberana em 2002. É por isso que este ensaio tem como propósito problematizar a discussão da 
poesia do Timor como marginal, considerando o lugar de fala dos autores timorenses, as 
temáticas abordadas em seus textos e a recepção por leitores e pela crítica de todo o mundo. 
Assim, este estudo apresenta reflexões acerca do papel da poesia como reveladora de um 
espírito combativo por meio da resistência e da busca por identidade do povo timorense. Para 
isso, a metodologia adotada para esta investigação teve como base uma pesquisa bibliográgica 
sustentada pelos pressupostos de Barbosa (2013), Lafetá (1930), Patrocínio (2007), Dalcastagnè 
(2002), Nascimento (2010), entre outros autores. Foi possível concluir que a poesia timorense 
pode, sim, ser considerada marginalizada diante do cenário mundial e que, nessa perspectiva, 
verifica-se a necessidade de ampliar as investigações nesse campo, a fim de reconhecer a poesia 
de língua portuguesa do Timor-Leste como uma arma empunhada em defesa de causas 
universais. 
 
PALAVRAS-CHAVE: Poesia Marginal, Timor-Leste, Resistência, Identidade Nacional, 
Sistema Literário. 
 
São recentes e ainda escassas as pesquisas que abordam a literatura da República 
Democrática de Timor-Leste, mais popularmente conhecida no Brasil apenas como Timor-
Leste. A ausência de estudos nessa área deve-se à história de independência do Timor, bem 
como à própria história literária timorense, que também é recente. O Timor-Leste ocupa 
geograficamente a parte oriental do sudeste asiático. Conquistou sua independência de Portugal 
em 1975, mas por causa da ocupação indonésia, o país só se tornou soberano oficialmente em 
2002, embora o governo indonésio tenha deixado o país em 1999. Nesse contexto histórico, a 
língua portuguesa, inicialmente imposta pelos portugueses durante o período da colonização 
lusófona, foi tida como um instrumento de luta depois que os timorenses escolheram o idioma 
para estabelecer comunicação entre os militantes que lutavam em prol da independência do 
país. Nesse cenário, surgiram escritores que desenvolveram uma literatura sobre o Timor-Leste 
e escritores timorenses que não necessariamente tratavam o país como tema de seus escritos. 
De maneira ampla, é possível analisar como a poesia pôde contribuir como instrumento de 
 
1 Doutoranda do PósLit da UnB. E-mail: jornalista.andreiapereira@gmail.com. 
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resistência à dominação, bem como a poesia pode ser tida como ferramenta para a consolidação 
da identidade nacional, apesa do caráter marginal que a acompanhou. 
É válido, também, compreender que, além do objetivo comercial, Portugal tinha o 
interesse de dominar a ilha pelo viés político e religioso, como se verifica a partir das palavras 
de Geoffrey Hull e Maria Johana Schouten, respectivamente: 
 
Os portugueses chegaram à ilha de Timor com a finalidade - embora não totalmente 
realizada durante o período colonial - de converter toda a população ao catolicismo. 
Embora seja de notar que a conversão não foi forçada (como havia sido em Goa e 
Malaca), a maioria dos régulos timorenses aceitou o baptismo, recebendo nomes 
portugueses e títulos aristocráticos. (HULL, 2001, p. 36). 
 
A soberania sobre o território, que havia sido fixada nos documentos oficiais 
pertencentes ao tratado entre Portugal e Holanda, teria ainda de ser conquistada na 
prática. Não era uma tarefa fácil para os portugueses impor sua autoridade às unidades 
políticas timorenses, tornando-se ainda mais difícil a partir de medidas impopulares, 
especialmente na tributação. (In: SILVA, 2007, p. 31). 
 
Outra via de dominação apontada por Luís Filipe Thomaz consiste na dominação 
comercial, que é bem compreendida a partir das grandes navegações europeias e da 
mercantilização. Dessa forma, a língua portuguesa era utilizada como língua de comércio para 
efetuar troca de mercadorias (THOMAZ, 2002). 
A propagação da língua portuguesa se deu também por parte do ensino do idioma nas 
escolas e nos seminários. Brito (2010) explicita que, apesar de a língua portuguesa ter chegado 
ao Timor apenas no século VXI, ela adquire o status de um dos idiomas mais falados na ilha. 
Todavia, o autor destaca que antes do período indonésio, o tétum, também língua oficial, era 
falado em "quase todas as situações cotidianas, enquanto a Língua Portuguesa se restringia à 
escrita ou às atividades relativas a determinados fins de ordem cultural ou administrativa" 
(BRITO, 2010, p. 8). 
Essa situação só muda com a invasão indonésia, a partir da qual o português passa a ser 
ferramenta e símbolo de resistência, como afirma Damares Barbosa em sua tese Roteiro de 
Literatura de Timor-Leste em Língua Portuguesa. 
 
À época da invasão indonésia, o ensino do idioma português foi proibido e seus falantes, em 
sua maioria, foram dizimados, restando, portanto, o contexto clandestino para a prática do 
idioma português. Dessa forma, ao ser formada a resistência timorense, passou a língua 
portuguesa a ser sinônimo de arma de combate, o que conferiu a ela o status de língua de 
resistência no período da luta armada e depois de língua oficial durante a redação da 
Constituição de Timor-Leste. (BARBOSA, 2013, p. 39). 
 
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É válido relembrar que o português não é a língua materna dos timorenses, o que causa 
certa repulsa, principalmente por parte da nova geração que não vivenciou as lutas políticas do 
país para conquistar sua soberania (BRITO, 2010). Nessa perspectiva, é necessário obter um 
olhar crítico a respeito da adoção da língua portuguesa como língua oficial, analisando a 
importância da língua portuguesa para a consolidação do Timor-Leste como nação. 
Apesar de toda a história de luta, a marginalidade sempre acompanhou a história do Timor 
e a formação de uma história da literatura timorense, principalmente tratando-se de poesia. 
Tudo isso corrobora para prejudicar o processo de construção da identidade timorense, que, nas 
palavras de Mendes (2005), ainda encontra-se em estágio embrionário. 
 
Até agora, os sinais da existência de uma cultura colectiva pública são previsivelmente 
fracos: a educação continua tributária do sistema indonésio (sendo necessário “descolonizá-
lo”), a formação militar depende do exterior, os media, como se viu, têm uma implantação 
modesta e os mártires da pátria, os caídos e os de pé, têm apenas um monumento erguido na 
memória viva e infelizmente recente da população. Assim, a preocupação com este problema 
suscitou a reutilização de um neologismo muito curioso criado pelos nacionalistas de 1975: 
a timorização, ou seja, um processo de reforço identitário, de defesa e recuperação das 
especificidades, através do qual o Estado e a sociedade timorense poderiam edificar as 
instituições, libertando-as de constrangimentos impostos do exterior que tolheram a 
afirmação da especificidade timorense. (MENDES, 2005, p. 207). 
 
 
Embasada nas conclusões de Mendes (2005), objetiva-se neste estudo refletir sobre como 
a poesia de língua portuguesa no Timor-Leste pode ser capaz de ajudar na construção da 
identidade, na resistência cotidiana e na busca de transpor os muros que colocam a história do 
povo maubere à margem dos olhos dos governantes e da sociedade como um todo. 
 
Assim, a identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo, através deprocessos 
inconscientes, e não algo inato, existente na consciência no momento do nascimento. Existe 
sempre algo “imaginário” ou fantasiado sobre sua unidade. Ela permanece sempre 
incompleta, está sempre “em processo”, sempre “sendo formada” (HALL, 2006, 38). 
 
O propósito, então, não é discutir a marginalidade no que se refere à situação social dos 
poetas que escreveram sobre o Timor, mas, sim, sobre os assuntos marginais apresentados em 
seus versos e sobre a população marginalizada do Timor no contexto das lutas em prol da 
indenpendência e da conquista da independência. Tudo isso para compreender que literatura no 
Timor possui relação direta com a construção da identidade. 
Entende-se como literatura marginalizada, consoante estudo de mestrado de Érica 
Peçanha do Nascimento, intitulado “Literatura marginal”: os escritores da periferia entram 
em cena (2010), “a produção dos autores que vivenciam situações de marginalidade (social, 
editorial e jurídica) e estão trazendo para o campo literário os termos, os temas e o linguajar 
igualmente ‘marginais’” (NASCIMENTO, 2010, p. 1). 
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No caso do Timor-Leste, é possível observar essas três esferas de marginalidade. Social 
pelo fato de o país ter vivido sob o domínio português e indonésio e não ter em seu plano de 
governos estratégias de desenvolvimento que atingissem toda a população, oportunizando a 
todos condições dignas de vidas. No campo editorial, inserem-se as publicações jornalísticas e 
literárias que sofreram sanções nos períodos mencionados. No âmbito jurídico, a marginalidade 
encontra-se na privação dos direitos pelo povo timorense. 
Nesse sentido, a marginalidade adquire uma roupagem diferente, haja vista que os 
marginais do Timor-Leste não necessariamente são pessoas marginalizadas por questões 
finanaceiras. São marginalizadas pela intectualidade que apresentam e pela busca em 
representar grupos marginalizados. Nessa concepção, não é exagero considerar que o Timor-
Leste, no cenário, mundial foi um país marginalizado. Hoje, mesmo lutando em prol da 
valorização da história e da cultura timorense, a marginalidade é diferente. O Timor passou a 
ser visto, passou a ser estudado. Os responsáveis por isso foram escritores, poetas e intelectuais 
que decidiram romper a fronteira da marginalidade. Entre eles, é possível citar os poetas: 
Alberto Osório de Castro, Ruy Cinatti, Fernando Sylvan, Borja da Costa, Eugénio Salvador 
Pires, José Alexandre Gusmão, Oky do Amaral, M. Leto, Mali Manek, Jorge Lauten, João 
Aparício e Abé Barreto. Xanana Gusmão também foi um deles. Foi um dos principais ativistas 
pela independência do Timor, ocupando o título de chefe da resistência timorense, durante a 
ocupação indonésia. Fernando Sylvan, embora não tenha lutado nos conflitos políticos entre o 
Timor e a Indonésia, não deixou de escrever sobre o país onde nasceu, mesmo morando em 
Portugal. 
Os textos desses intelectuais timorenses não se calam “frente à eminência de vozes 
excluídas. A solução apresentada se materializa na busca por em espaço de fronteira, no qual a 
voz do intelectual será somada ao discurso que provém das margens” (PATROCINIO, 2007, p. 
33). Dialogando com Patrocínio (2007), Regina Dalcastagnè (2002) complementa as discussões 
sobre a representação dos grupos marginalizados: “O silêncio dos marginalizados é coberto 
por vozes que se sobrepõem a eles, vozes que buscam falar em nome deles, mas também, por 
vezes, é quebrado pela produção literária de seus próprios integrantes”. (DALCASTAGNÈ, 
2002, p. 34). 
Neste trabalho, as vozes que falam pelos grupos marginalizados do Timor à epoca do 
contexto de dominação pela Indonésia são as expressas em dois poemas de Fernando Sylvan e 
em um de José Alexandre Gusmão. 
Os dois poetas vivenciaram mazelas sociais oriundas do desenvolvimento do capitalismo 
no mundo, ou seja, as transformações sociais e econômicas concederam aos artistas, de modo 
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geral, uma nova vertente para o desenvolvimento das artes, tendo como base não só a 
representação desse tema em suas obras, mas também o engajamento de muitos escritores, 
considerando que: 
 
[u]m escritor é engajado quando trata de tomar a mais lúcida e integral consciência 
de ter embarcado, isto é, quando faz o engajamento passar, para si e para os outros, 
da espontaneidade imediata ao plano refletido. O escritor é mediador por excelência, 
e o seu engajamento é a mediação. Mas, se é verdade que se deve pedir contas à sua 
obra a partir da sua condição, é preciso lembrar ainda que a sua condição não é 
apenas a de um homem em geral, mas também, precisamente, a de um escritor. 
(SARTRE, 1993, p. 61-62). 
 
Faz-se necessário compreender que a Europa do século XIX caracteriza-se pela ascensão 
e pela consolidação da burguesia como uma classe forte e detentora de poder. Além disso, é 
válido lembrar-se da Revolução Industrial, que contribuiu para promover a modernização dos 
meios de produção ao mesmo tempo em que levou os operários a situações degradantes, 
carentes de leis que garantissem melhores condições de trabalho. Isso só mudou muito tempo 
depois, em decorrência de lutas em prol do direito de cidadania. Tudo isso corrobora para 
consolidar a definição de marginalidade. 
No Brasil, a literatura, a partir do Modernismo, conseguiu refletir essas questões sociais, 
como propôs Mário de Andrade, em “O movimento modernista”, sintetizando o que influenciou 
essas mudanças na produção literária nacional: 
 
Manifestado especialmente pela arte, mas manchando também com violência os costumes 
sociais e políticos, o movimento modernista foi o prenunciador, o preparador e por muitas 
partes o criador de um estado de espírito nacional. A transformação do mundo, com o 
enfraquecimento gradativo dos grandes impérios, com a prática europeia de novos ideais 
políticos, a rapidez dos transportes e mil e uma outras causas internacionais, bem como o 
desenvolvimento da consciência americana e brasileira, os progressos internos da técnica e 
da educação, impunham a criação de um espírito novo e exigiam a reverificação e mesmo a 
remodelação da Inteligência nacional. Isso foi o movimento modernista, de que a Semana de 
Arte Moderna ficou sendo o brado coletivo principal. (ANDRADE, 1974, p. 231). 
 
Dessa forma, fica evidente perceber que nas artes o Modernismo passa a ter preocupação 
com o coletivo, contribuindo para a expressão nacional da nossa literatura. No caso da poesia, 
objeto deste estudo, a voz do poeta é a voz do mundo. Nessa perspectiva, sem discutir as escolas 
literárias no Timor, mas analisando as produções que expressam o contexto histórico de busca 
pela soberania, objetiva-se estabelecer uma leitura de Xanana Gusmão e Fernando Sylvan, a 
fim de verificar a linguagem, relacionando-a com o seu tempo, com o tempo das transformações 
no Timor e no mundo. Trata-se, ainda, de estudo de valorização do povo, da sociedade e de 
contribuição para a permanência histórica e cultural do seu tempo. 
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T. S. Eliot diz que há pessoas que condenam a poesia que faz crítica sobre determinada 
conduta moral, social, religiosa ou que exprime apenas a opinião do poeta de encontro à opinião 
do leitor. “Eu gostaria de dizer que a questão relativa ao fato de o poeta estar utilizando a sua 
poesia para defender ou atacar determinada atitude social não interessa” (ELIOT, 1991, p. 28). 
Ele justifica dizendo que a verdadeira poesia supera a opinião pública e sobrevive mesmo que 
o fato não interesse mais. Em Xanana Gusmão e Fernando Sylvan, apesar de certos fatos, muitas 
vezes poeticamente narrados, não serem tão relevantes na sociedade atual, a poesia permanece. 
Segundo Eliot (1991), o primeiro motivo para a permanência dapoesia é o prazer. Mas os 
motivos vão além. É preciso pensar que a poesia constitui a característica de um povo, de uma 
raça e de uma língua, o que a faz uma arte bem mais local que outras, como a pintura e a música. 
Esse caráter local faz com que a dificuldade de se traduzir a poesia seja maior para os 
estrangeiros. “Por isso, nenhuma arte é mais visceralmente nacional do que a poesia” (ELIOT, 
1991, p. 30). Nesse contexto, Eliot define que a função social da poesia diz respeito à 
manutenção e ao aprimoramento da língua: 
 
Ninguém deve imaginar que estou dizendo ser a língua que falamos exclusivamente 
determinada por nossos poetas. A estrutura da cultura é muito mais complexa do que isso. A 
rigor, é igualmente verdadeiro que a qualidade de nossa poesia depende do modo como o 
povo utiliza sua língua: pois um poeta deve tomar como matéria-prima sua própria língua, da 
maneira como de fato ela é falada à volta dele. Se a língua se aprimora, ele se beneficiará; se 
entra em declínio, deverá tirar daí o melhor proveito. Até certo ponto, a poesia pode 
preservar, e mesmo restaurar, a beleza de uma língua; ela pode e deve ajudá-la a se 
desenvolver, a tornar-se tão sutil e precisa, nas mais adversas condições e para os cambiantes 
propósitos da vida moderna, quanto o foi numa época menos complexa (ELIOT, 1991, p. 
34). 
 
Assim, Xanana Gusmão é um poeta que representa a natureza, que escreve sobre guerras 
e misérias humanas do seu tempo. O poema a seguir, de Xanana Gusmão, é um dos que traz 
como tema a resistência e a liberdade do povo timorense. 
 
OH! LIBERDADE 
 
Se eu pudesse 
pelas frias manhãs 
acordar tiritando 
fustigado pela ventania 
que me abre a cortina do céu 
e ver, do cimo dos meus montes, 
o quadro roxo 
de um perturbado nascer do sol 
a leste de Timor 
Se eu pudesse 
pelos tórridos sóis 
cavalgar embevecido 
7 
 
de encontro a mim mesmo 
nas serenas planícies do capim 
e sentir o cheiro de animais 
bebendo das nascentes 
que murmurariam no ar 
lendas de Timor 
Se eu pudesse 
pelas tardes de calma 
sentir o cansaço 
da natureza sensual 
espreguiçando-se no seu suor 
e ouvir contar as canseiras 
sob os risos 
das crianças nuas e descalças 
de todo o Timor 
Se eu pudesse 
ao entardecer das ondas 
caminhar pela areia 
entregue a mim mesmo 
no enlevo molhado da brisa 
e tocar a imensidão do mar 
num sopro da alma 
que permita meditar o futuro 
da ilha de Timor 
Se eu pudesse 
ao cantar dos grilos 
falar para a lua 
pelas janelas da noite 
e contar-lhe romances do povo 
a união inviolável dos corpos 
para criar filhos 
e ensinar-lhes a crescer e a amar 
a Pátria Timor! 
 
(GUSMÃO, 1998, p. 31-32) 
 
O poema de autoria de um dos principais símbolos da resistência timorense mostra o 
contexto da ilha à época da invasão indonésia, em que o povo não poderia gozar das liberdades 
de uma vida comum. O poema é uma prova que é do cotidiano caótico que emergem as obras 
artísticas, que não podem surgir do agradável. 
Os versos refletem a busca do homem por uma vida simples, realizada por pequenos 
prazeres cotidianos. Nesse contexto, é possível inferir que a arte é uma das inúmeras mediações 
capazes de consolidar o processo de consquistas da objetivação do homem (LUKÁCS, 1966). Para 
Lukács, a ciência também tem esse poder. Tanto a arte quanto a ciência, para Lukács, são tidas 
como formas puras de reflexo da realidade. Todavia, entre elas há o cotidiano. Na arte é criada um 
meio homogêneo, que significa uma cisão com o dia a dia, vida cotidiana que possui como 
marca a heterogeneidade. Esse processo desemboca numa arte produzida em conformidade com 
o homem. Assim, é possível afirmar que a arte parte da heterogenidade do cotidiano para a 
8 
 
homogeneidade, que culmina, consequentemente, no homem inteiramente, isto é, no homem 
preocupado com seu gênero. Frederico (2000) conclui que daí surge: 
 
o caráter evocativo da obra de arte, sua ação sobre o núcleo social da personalidade 
humana. Essa força evocativa deve-se ao fato de que na arte o passado é feito presente. 
Essa presentificação, contudo, não é a vida anterior de cada indivíduo, mas a sua vida 
enquanto pertencente à humanidade. O que é posto em relevo pela arte é o caráter 
social da personalidade humana. (FREDERICO, 2000, p. 306). 
 
Nesse sentido, a arte é decisiva para provocar a humanização do homem. Xanana Gusmão 
e Fernando Sylvan foram decisivos para provocar a humanização do mundo em relação ao povo 
timorense. No caso do poema em análise, para refletir o caos e a tensão do contexto histórico 
timorense, o poeta utiliza da expressão “Se eu pudesse” ao longo do poema, a fim de apresentar 
a opressão vivida pelo povo timorense. A expressão cumpre um papel de engajamento por meio 
da poesia, já que o fazer poética torna-se concreto. 
Da mesma forma, Fernando Sylvan usou a poesia como uma notícia em versos, fazendo 
do poema um instrumento de denúncia e, ao mesmo tempo, de resistência, como se observa nos 
fragmentos poéticos a seguir: 
 
VELHAS FLORESTAS DE AGORA 
 
Eu tinha uma floresta 
quando era pequenino. 
Ela era na montanha 
no alto lá dos altos. 
As florestas serviam 
para todos brincarmos. 
Espécie de poesia 
de árvores e bichos: 
 
o perfume do sândalo 
a paz da casuarina 
a flor do cafeeiro 
a altura dos coqueiros 
a cor da bananeira 
[...] 
As florestas serviam 
para todos brincarmos. 
 
Mas não era verdade. 
Ilusão de meninos. 
As florestas serviam 
desde séculos e séculos 
como templo sagrado 
de rezar liberdade. 
 
Nossos pais e avós 
nas florestas secretas 
iam gritar sua revolta 
e rezar liberdade. 
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E escreviam no chão 
e escreviam nas pedras 
 
e escreviam nas árvores 
contra o seu opressor 
as palavras precisas 
de rezar liberdade. 
E ainda servem agora 
a heróis guerrilheiros 
como templo sagrado 
de rezar liberdade! 
 
(SYLVAN, 1993, p. 72-73). 
 
 
MENINOS E MENINAS 
 
Todos já vimos 
nos livros, nos jornais, no cinema e na televisão 
retratos de meninas e meninos 
a defender a liberdade de armas na mão. 
Todos já vimos 
nos livros, nos jornais, no cinema e na televisão 
retratos de cadáveres de meninos e meninas 
que morreram a defender a liberdade de armas na mão. 
Todos já vimos! 
E então? 
 
(SYLVAN, 1993, p. 26 ). 
 
Os dois textos abordam a temática do passado. Nesse aspecto, o passado no primeiro 
poema consiste em marcas de boas lembranças, mas que são marcadas pelo pretérito perfeito 
dos verbos, denotando a impossibilidade de viver novamente essas boas lembranças. No 
segundo, o passado é ainda mais latente, já que se revela por meio da morte. E não é uma morte 
qualquer, é uma morte de “meninos e meninas/ que morreram a defender a liberdade de armas 
na mão.” A infância é um símbolo recorrente na poética de Fernando Sylvan. 
Em todo o poema há marcas da simplicidade, de pessoas que sonham apenas com a 
riqueza da liberadade, negada em um passado não tão remoto. 
 O francês Charles-Pierre Baudelaire fala sobre isso no livro Sobre a modernidade 
(1996), em que, logo nos dois primeiros capítulos, discorre sobre o passado e o presente, não 
descartando o passado, mas concedendo ao presente o valor que a tradição não atribui a ele. 
 
O passado é interessante não somente pela beleza que dele souberam extrair os artistas 
para quem contituía o presente, mas igualmente como passado, por seu valor histórico. 
O mesmo ocorre com o presente. O prazer que obtemos com a representação do 
presente deve-se não apenas à beleza de queele pode estar revestido, mas também à 
sua qualidade essencial de presente. (BAUDELAIRE, 1996, p. 7). 
 
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 A partir da citação apresentada, é possível remeter à história humana, que se configura 
no sentido de superar as necessidades, uma vez que a história humana é uma história de 
progresso e de retrocessos. Assim, a arte preserva os momentos decisivos da história, momentos 
de transição, tornando a história visível, dando um significado e uma intensificação ao drama 
humano. Trata-se de uma concepção que vai ao encontro das postulações de HALL (2006), que 
compreende que buscar no passado sentido para o presente também é uma forma de construir a 
identidade: 
As culturas nacionais, ao produzir sentidos sobre ‘a nação', sentidos com os quais 
podemos nos identificar, constroem identidades. Esses sentidos estão contidos nas 
estórias que são contadas sobre a nação, memórias que conectam seu presente com o 
seu passado e imagens que dela são construídas. (HALL, 2006, p. 51). 
 
A partir do que foi discutido aqui, quando o homem, então, instaura o mundo humano, ou 
mimético, ele está além da rede de causa e efeito. Trata-se do mundo da liberdade (LUKÁCS, 
1966). Nesse contexto, a arte é um modelo de liberdade, pois possibilita enxergar a dialética do 
capitalismo. Nessa perspectiva, a partir das concepções propostas, é possível falar dessa função 
da obra artística, uma vez que o poeta, por exemplo, narra o que pode acontecer, o que é 
possível, enquanto isso a poesia é uma expressão do que não é necessariamente efêmero. Falar 
sobre a história do Timor não é efêmero. Nem pode ser. Ainda não é possível concluir e definir 
a identidade timorense, dados os recentes estudos. Tampocou o próprio conceito de identidade 
não é limitado, é um precesso. Dessa forma, é pertinente considerar que a identidade está ligada 
à diáspora timorense, isto é, à dispersão da população timorense que foi obrigada a viver no 
exílio por ser perseguida por motivos políticos e religiosos; também está ligada às lutas pela 
resistência e busca pela soberania nacional. Enfim, a identidade maubere está em construção e 
não é possível encerrar as discussões, considerando apelas o âmbito poético. O que se pode 
afirmar é que a poesia timorense pode ser, sim, ser considerada marginalizada diante do cenário 
mundial e que, nessa perspectiva, verifica-se a necessidade de ampliar as investigações nesse 
campo, a fim de reconhecer a poesia de língua portuguesa do Timor-Leste como um 
instrumento – sem desconsiderar os demais – de resistência, ainda no século XXI, e de 
soberania. 
 
 
 
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