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1 Da marginalidade à resistência: a história de um povo contada por meio da poesia timorense de língua portuguesa Andreia Pereira da Silva1 RESUMO Uma história recente, contada por meio da língua portuguesa, ainda não alcançou o centro das discussões entre os críticos literários. Trata-se do Timor-Leste, uma nação que só se tornou soberana em 2002. É por isso que este ensaio tem como propósito problematizar a discussão da poesia do Timor como marginal, considerando o lugar de fala dos autores timorenses, as temáticas abordadas em seus textos e a recepção por leitores e pela crítica de todo o mundo. Assim, este estudo apresenta reflexões acerca do papel da poesia como reveladora de um espírito combativo por meio da resistência e da busca por identidade do povo timorense. Para isso, a metodologia adotada para esta investigação teve como base uma pesquisa bibliográgica sustentada pelos pressupostos de Barbosa (2013), Lafetá (1930), Patrocínio (2007), Dalcastagnè (2002), Nascimento (2010), entre outros autores. Foi possível concluir que a poesia timorense pode, sim, ser considerada marginalizada diante do cenário mundial e que, nessa perspectiva, verifica-se a necessidade de ampliar as investigações nesse campo, a fim de reconhecer a poesia de língua portuguesa do Timor-Leste como uma arma empunhada em defesa de causas universais. PALAVRAS-CHAVE: Poesia Marginal, Timor-Leste, Resistência, Identidade Nacional, Sistema Literário. São recentes e ainda escassas as pesquisas que abordam a literatura da República Democrática de Timor-Leste, mais popularmente conhecida no Brasil apenas como Timor- Leste. A ausência de estudos nessa área deve-se à história de independência do Timor, bem como à própria história literária timorense, que também é recente. O Timor-Leste ocupa geograficamente a parte oriental do sudeste asiático. Conquistou sua independência de Portugal em 1975, mas por causa da ocupação indonésia, o país só se tornou soberano oficialmente em 2002, embora o governo indonésio tenha deixado o país em 1999. Nesse contexto histórico, a língua portuguesa, inicialmente imposta pelos portugueses durante o período da colonização lusófona, foi tida como um instrumento de luta depois que os timorenses escolheram o idioma para estabelecer comunicação entre os militantes que lutavam em prol da independência do país. Nesse cenário, surgiram escritores que desenvolveram uma literatura sobre o Timor-Leste e escritores timorenses que não necessariamente tratavam o país como tema de seus escritos. De maneira ampla, é possível analisar como a poesia pôde contribuir como instrumento de 1 Doutoranda do PósLit da UnB. E-mail: jornalista.andreiapereira@gmail.com. 2 resistência à dominação, bem como a poesia pode ser tida como ferramenta para a consolidação da identidade nacional, apesa do caráter marginal que a acompanhou. É válido, também, compreender que, além do objetivo comercial, Portugal tinha o interesse de dominar a ilha pelo viés político e religioso, como se verifica a partir das palavras de Geoffrey Hull e Maria Johana Schouten, respectivamente: Os portugueses chegaram à ilha de Timor com a finalidade - embora não totalmente realizada durante o período colonial - de converter toda a população ao catolicismo. Embora seja de notar que a conversão não foi forçada (como havia sido em Goa e Malaca), a maioria dos régulos timorenses aceitou o baptismo, recebendo nomes portugueses e títulos aristocráticos. (HULL, 2001, p. 36). A soberania sobre o território, que havia sido fixada nos documentos oficiais pertencentes ao tratado entre Portugal e Holanda, teria ainda de ser conquistada na prática. Não era uma tarefa fácil para os portugueses impor sua autoridade às unidades políticas timorenses, tornando-se ainda mais difícil a partir de medidas impopulares, especialmente na tributação. (In: SILVA, 2007, p. 31). Outra via de dominação apontada por Luís Filipe Thomaz consiste na dominação comercial, que é bem compreendida a partir das grandes navegações europeias e da mercantilização. Dessa forma, a língua portuguesa era utilizada como língua de comércio para efetuar troca de mercadorias (THOMAZ, 2002). A propagação da língua portuguesa se deu também por parte do ensino do idioma nas escolas e nos seminários. Brito (2010) explicita que, apesar de a língua portuguesa ter chegado ao Timor apenas no século VXI, ela adquire o status de um dos idiomas mais falados na ilha. Todavia, o autor destaca que antes do período indonésio, o tétum, também língua oficial, era falado em "quase todas as situações cotidianas, enquanto a Língua Portuguesa se restringia à escrita ou às atividades relativas a determinados fins de ordem cultural ou administrativa" (BRITO, 2010, p. 8). Essa situação só muda com a invasão indonésia, a partir da qual o português passa a ser ferramenta e símbolo de resistência, como afirma Damares Barbosa em sua tese Roteiro de Literatura de Timor-Leste em Língua Portuguesa. À época da invasão indonésia, o ensino do idioma português foi proibido e seus falantes, em sua maioria, foram dizimados, restando, portanto, o contexto clandestino para a prática do idioma português. Dessa forma, ao ser formada a resistência timorense, passou a língua portuguesa a ser sinônimo de arma de combate, o que conferiu a ela o status de língua de resistência no período da luta armada e depois de língua oficial durante a redação da Constituição de Timor-Leste. (BARBOSA, 2013, p. 39). 3 É válido relembrar que o português não é a língua materna dos timorenses, o que causa certa repulsa, principalmente por parte da nova geração que não vivenciou as lutas políticas do país para conquistar sua soberania (BRITO, 2010). Nessa perspectiva, é necessário obter um olhar crítico a respeito da adoção da língua portuguesa como língua oficial, analisando a importância da língua portuguesa para a consolidação do Timor-Leste como nação. Apesar de toda a história de luta, a marginalidade sempre acompanhou a história do Timor e a formação de uma história da literatura timorense, principalmente tratando-se de poesia. Tudo isso corrobora para prejudicar o processo de construção da identidade timorense, que, nas palavras de Mendes (2005), ainda encontra-se em estágio embrionário. Até agora, os sinais da existência de uma cultura colectiva pública são previsivelmente fracos: a educação continua tributária do sistema indonésio (sendo necessário “descolonizá- lo”), a formação militar depende do exterior, os media, como se viu, têm uma implantação modesta e os mártires da pátria, os caídos e os de pé, têm apenas um monumento erguido na memória viva e infelizmente recente da população. Assim, a preocupação com este problema suscitou a reutilização de um neologismo muito curioso criado pelos nacionalistas de 1975: a timorização, ou seja, um processo de reforço identitário, de defesa e recuperação das especificidades, através do qual o Estado e a sociedade timorense poderiam edificar as instituições, libertando-as de constrangimentos impostos do exterior que tolheram a afirmação da especificidade timorense. (MENDES, 2005, p. 207). Embasada nas conclusões de Mendes (2005), objetiva-se neste estudo refletir sobre como a poesia de língua portuguesa no Timor-Leste pode ser capaz de ajudar na construção da identidade, na resistência cotidiana e na busca de transpor os muros que colocam a história do povo maubere à margem dos olhos dos governantes e da sociedade como um todo. Assim, a identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo, através deprocessos inconscientes, e não algo inato, existente na consciência no momento do nascimento. Existe sempre algo “imaginário” ou fantasiado sobre sua unidade. Ela permanece sempre incompleta, está sempre “em processo”, sempre “sendo formada” (HALL, 2006, 38). O propósito, então, não é discutir a marginalidade no que se refere à situação social dos poetas que escreveram sobre o Timor, mas, sim, sobre os assuntos marginais apresentados em seus versos e sobre a população marginalizada do Timor no contexto das lutas em prol da indenpendência e da conquista da independência. Tudo isso para compreender que literatura no Timor possui relação direta com a construção da identidade. Entende-se como literatura marginalizada, consoante estudo de mestrado de Érica Peçanha do Nascimento, intitulado “Literatura marginal”: os escritores da periferia entram em cena (2010), “a produção dos autores que vivenciam situações de marginalidade (social, editorial e jurídica) e estão trazendo para o campo literário os termos, os temas e o linguajar igualmente ‘marginais’” (NASCIMENTO, 2010, p. 1). 4 No caso do Timor-Leste, é possível observar essas três esferas de marginalidade. Social pelo fato de o país ter vivido sob o domínio português e indonésio e não ter em seu plano de governos estratégias de desenvolvimento que atingissem toda a população, oportunizando a todos condições dignas de vidas. No campo editorial, inserem-se as publicações jornalísticas e literárias que sofreram sanções nos períodos mencionados. No âmbito jurídico, a marginalidade encontra-se na privação dos direitos pelo povo timorense. Nesse sentido, a marginalidade adquire uma roupagem diferente, haja vista que os marginais do Timor-Leste não necessariamente são pessoas marginalizadas por questões finanaceiras. São marginalizadas pela intectualidade que apresentam e pela busca em representar grupos marginalizados. Nessa concepção, não é exagero considerar que o Timor- Leste, no cenário, mundial foi um país marginalizado. Hoje, mesmo lutando em prol da valorização da história e da cultura timorense, a marginalidade é diferente. O Timor passou a ser visto, passou a ser estudado. Os responsáveis por isso foram escritores, poetas e intelectuais que decidiram romper a fronteira da marginalidade. Entre eles, é possível citar os poetas: Alberto Osório de Castro, Ruy Cinatti, Fernando Sylvan, Borja da Costa, Eugénio Salvador Pires, José Alexandre Gusmão, Oky do Amaral, M. Leto, Mali Manek, Jorge Lauten, João Aparício e Abé Barreto. Xanana Gusmão também foi um deles. Foi um dos principais ativistas pela independência do Timor, ocupando o título de chefe da resistência timorense, durante a ocupação indonésia. Fernando Sylvan, embora não tenha lutado nos conflitos políticos entre o Timor e a Indonésia, não deixou de escrever sobre o país onde nasceu, mesmo morando em Portugal. Os textos desses intelectuais timorenses não se calam “frente à eminência de vozes excluídas. A solução apresentada se materializa na busca por em espaço de fronteira, no qual a voz do intelectual será somada ao discurso que provém das margens” (PATROCINIO, 2007, p. 33). Dialogando com Patrocínio (2007), Regina Dalcastagnè (2002) complementa as discussões sobre a representação dos grupos marginalizados: “O silêncio dos marginalizados é coberto por vozes que se sobrepõem a eles, vozes que buscam falar em nome deles, mas também, por vezes, é quebrado pela produção literária de seus próprios integrantes”. (DALCASTAGNÈ, 2002, p. 34). Neste trabalho, as vozes que falam pelos grupos marginalizados do Timor à epoca do contexto de dominação pela Indonésia são as expressas em dois poemas de Fernando Sylvan e em um de José Alexandre Gusmão. Os dois poetas vivenciaram mazelas sociais oriundas do desenvolvimento do capitalismo no mundo, ou seja, as transformações sociais e econômicas concederam aos artistas, de modo 5 geral, uma nova vertente para o desenvolvimento das artes, tendo como base não só a representação desse tema em suas obras, mas também o engajamento de muitos escritores, considerando que: [u]m escritor é engajado quando trata de tomar a mais lúcida e integral consciência de ter embarcado, isto é, quando faz o engajamento passar, para si e para os outros, da espontaneidade imediata ao plano refletido. O escritor é mediador por excelência, e o seu engajamento é a mediação. Mas, se é verdade que se deve pedir contas à sua obra a partir da sua condição, é preciso lembrar ainda que a sua condição não é apenas a de um homem em geral, mas também, precisamente, a de um escritor. (SARTRE, 1993, p. 61-62). Faz-se necessário compreender que a Europa do século XIX caracteriza-se pela ascensão e pela consolidação da burguesia como uma classe forte e detentora de poder. Além disso, é válido lembrar-se da Revolução Industrial, que contribuiu para promover a modernização dos meios de produção ao mesmo tempo em que levou os operários a situações degradantes, carentes de leis que garantissem melhores condições de trabalho. Isso só mudou muito tempo depois, em decorrência de lutas em prol do direito de cidadania. Tudo isso corrobora para consolidar a definição de marginalidade. No Brasil, a literatura, a partir do Modernismo, conseguiu refletir essas questões sociais, como propôs Mário de Andrade, em “O movimento modernista”, sintetizando o que influenciou essas mudanças na produção literária nacional: Manifestado especialmente pela arte, mas manchando também com violência os costumes sociais e políticos, o movimento modernista foi o prenunciador, o preparador e por muitas partes o criador de um estado de espírito nacional. A transformação do mundo, com o enfraquecimento gradativo dos grandes impérios, com a prática europeia de novos ideais políticos, a rapidez dos transportes e mil e uma outras causas internacionais, bem como o desenvolvimento da consciência americana e brasileira, os progressos internos da técnica e da educação, impunham a criação de um espírito novo e exigiam a reverificação e mesmo a remodelação da Inteligência nacional. Isso foi o movimento modernista, de que a Semana de Arte Moderna ficou sendo o brado coletivo principal. (ANDRADE, 1974, p. 231). Dessa forma, fica evidente perceber que nas artes o Modernismo passa a ter preocupação com o coletivo, contribuindo para a expressão nacional da nossa literatura. No caso da poesia, objeto deste estudo, a voz do poeta é a voz do mundo. Nessa perspectiva, sem discutir as escolas literárias no Timor, mas analisando as produções que expressam o contexto histórico de busca pela soberania, objetiva-se estabelecer uma leitura de Xanana Gusmão e Fernando Sylvan, a fim de verificar a linguagem, relacionando-a com o seu tempo, com o tempo das transformações no Timor e no mundo. Trata-se, ainda, de estudo de valorização do povo, da sociedade e de contribuição para a permanência histórica e cultural do seu tempo. 6 T. S. Eliot diz que há pessoas que condenam a poesia que faz crítica sobre determinada conduta moral, social, religiosa ou que exprime apenas a opinião do poeta de encontro à opinião do leitor. “Eu gostaria de dizer que a questão relativa ao fato de o poeta estar utilizando a sua poesia para defender ou atacar determinada atitude social não interessa” (ELIOT, 1991, p. 28). Ele justifica dizendo que a verdadeira poesia supera a opinião pública e sobrevive mesmo que o fato não interesse mais. Em Xanana Gusmão e Fernando Sylvan, apesar de certos fatos, muitas vezes poeticamente narrados, não serem tão relevantes na sociedade atual, a poesia permanece. Segundo Eliot (1991), o primeiro motivo para a permanência dapoesia é o prazer. Mas os motivos vão além. É preciso pensar que a poesia constitui a característica de um povo, de uma raça e de uma língua, o que a faz uma arte bem mais local que outras, como a pintura e a música. Esse caráter local faz com que a dificuldade de se traduzir a poesia seja maior para os estrangeiros. “Por isso, nenhuma arte é mais visceralmente nacional do que a poesia” (ELIOT, 1991, p. 30). Nesse contexto, Eliot define que a função social da poesia diz respeito à manutenção e ao aprimoramento da língua: Ninguém deve imaginar que estou dizendo ser a língua que falamos exclusivamente determinada por nossos poetas. A estrutura da cultura é muito mais complexa do que isso. A rigor, é igualmente verdadeiro que a qualidade de nossa poesia depende do modo como o povo utiliza sua língua: pois um poeta deve tomar como matéria-prima sua própria língua, da maneira como de fato ela é falada à volta dele. Se a língua se aprimora, ele se beneficiará; se entra em declínio, deverá tirar daí o melhor proveito. Até certo ponto, a poesia pode preservar, e mesmo restaurar, a beleza de uma língua; ela pode e deve ajudá-la a se desenvolver, a tornar-se tão sutil e precisa, nas mais adversas condições e para os cambiantes propósitos da vida moderna, quanto o foi numa época menos complexa (ELIOT, 1991, p. 34). Assim, Xanana Gusmão é um poeta que representa a natureza, que escreve sobre guerras e misérias humanas do seu tempo. O poema a seguir, de Xanana Gusmão, é um dos que traz como tema a resistência e a liberdade do povo timorense. OH! LIBERDADE Se eu pudesse pelas frias manhãs acordar tiritando fustigado pela ventania que me abre a cortina do céu e ver, do cimo dos meus montes, o quadro roxo de um perturbado nascer do sol a leste de Timor Se eu pudesse pelos tórridos sóis cavalgar embevecido 7 de encontro a mim mesmo nas serenas planícies do capim e sentir o cheiro de animais bebendo das nascentes que murmurariam no ar lendas de Timor Se eu pudesse pelas tardes de calma sentir o cansaço da natureza sensual espreguiçando-se no seu suor e ouvir contar as canseiras sob os risos das crianças nuas e descalças de todo o Timor Se eu pudesse ao entardecer das ondas caminhar pela areia entregue a mim mesmo no enlevo molhado da brisa e tocar a imensidão do mar num sopro da alma que permita meditar o futuro da ilha de Timor Se eu pudesse ao cantar dos grilos falar para a lua pelas janelas da noite e contar-lhe romances do povo a união inviolável dos corpos para criar filhos e ensinar-lhes a crescer e a amar a Pátria Timor! (GUSMÃO, 1998, p. 31-32) O poema de autoria de um dos principais símbolos da resistência timorense mostra o contexto da ilha à época da invasão indonésia, em que o povo não poderia gozar das liberdades de uma vida comum. O poema é uma prova que é do cotidiano caótico que emergem as obras artísticas, que não podem surgir do agradável. Os versos refletem a busca do homem por uma vida simples, realizada por pequenos prazeres cotidianos. Nesse contexto, é possível inferir que a arte é uma das inúmeras mediações capazes de consolidar o processo de consquistas da objetivação do homem (LUKÁCS, 1966). Para Lukács, a ciência também tem esse poder. Tanto a arte quanto a ciência, para Lukács, são tidas como formas puras de reflexo da realidade. Todavia, entre elas há o cotidiano. Na arte é criada um meio homogêneo, que significa uma cisão com o dia a dia, vida cotidiana que possui como marca a heterogeneidade. Esse processo desemboca numa arte produzida em conformidade com o homem. Assim, é possível afirmar que a arte parte da heterogenidade do cotidiano para a 8 homogeneidade, que culmina, consequentemente, no homem inteiramente, isto é, no homem preocupado com seu gênero. Frederico (2000) conclui que daí surge: o caráter evocativo da obra de arte, sua ação sobre o núcleo social da personalidade humana. Essa força evocativa deve-se ao fato de que na arte o passado é feito presente. Essa presentificação, contudo, não é a vida anterior de cada indivíduo, mas a sua vida enquanto pertencente à humanidade. O que é posto em relevo pela arte é o caráter social da personalidade humana. (FREDERICO, 2000, p. 306). Nesse sentido, a arte é decisiva para provocar a humanização do homem. Xanana Gusmão e Fernando Sylvan foram decisivos para provocar a humanização do mundo em relação ao povo timorense. No caso do poema em análise, para refletir o caos e a tensão do contexto histórico timorense, o poeta utiliza da expressão “Se eu pudesse” ao longo do poema, a fim de apresentar a opressão vivida pelo povo timorense. A expressão cumpre um papel de engajamento por meio da poesia, já que o fazer poética torna-se concreto. Da mesma forma, Fernando Sylvan usou a poesia como uma notícia em versos, fazendo do poema um instrumento de denúncia e, ao mesmo tempo, de resistência, como se observa nos fragmentos poéticos a seguir: VELHAS FLORESTAS DE AGORA Eu tinha uma floresta quando era pequenino. Ela era na montanha no alto lá dos altos. As florestas serviam para todos brincarmos. Espécie de poesia de árvores e bichos: o perfume do sândalo a paz da casuarina a flor do cafeeiro a altura dos coqueiros a cor da bananeira [...] As florestas serviam para todos brincarmos. Mas não era verdade. Ilusão de meninos. As florestas serviam desde séculos e séculos como templo sagrado de rezar liberdade. Nossos pais e avós nas florestas secretas iam gritar sua revolta e rezar liberdade. 9 E escreviam no chão e escreviam nas pedras e escreviam nas árvores contra o seu opressor as palavras precisas de rezar liberdade. E ainda servem agora a heróis guerrilheiros como templo sagrado de rezar liberdade! (SYLVAN, 1993, p. 72-73). MENINOS E MENINAS Todos já vimos nos livros, nos jornais, no cinema e na televisão retratos de meninas e meninos a defender a liberdade de armas na mão. Todos já vimos nos livros, nos jornais, no cinema e na televisão retratos de cadáveres de meninos e meninas que morreram a defender a liberdade de armas na mão. Todos já vimos! E então? (SYLVAN, 1993, p. 26 ). Os dois textos abordam a temática do passado. Nesse aspecto, o passado no primeiro poema consiste em marcas de boas lembranças, mas que são marcadas pelo pretérito perfeito dos verbos, denotando a impossibilidade de viver novamente essas boas lembranças. No segundo, o passado é ainda mais latente, já que se revela por meio da morte. E não é uma morte qualquer, é uma morte de “meninos e meninas/ que morreram a defender a liberdade de armas na mão.” A infância é um símbolo recorrente na poética de Fernando Sylvan. Em todo o poema há marcas da simplicidade, de pessoas que sonham apenas com a riqueza da liberadade, negada em um passado não tão remoto. O francês Charles-Pierre Baudelaire fala sobre isso no livro Sobre a modernidade (1996), em que, logo nos dois primeiros capítulos, discorre sobre o passado e o presente, não descartando o passado, mas concedendo ao presente o valor que a tradição não atribui a ele. O passado é interessante não somente pela beleza que dele souberam extrair os artistas para quem contituía o presente, mas igualmente como passado, por seu valor histórico. O mesmo ocorre com o presente. O prazer que obtemos com a representação do presente deve-se não apenas à beleza de queele pode estar revestido, mas também à sua qualidade essencial de presente. (BAUDELAIRE, 1996, p. 7). 10 A partir da citação apresentada, é possível remeter à história humana, que se configura no sentido de superar as necessidades, uma vez que a história humana é uma história de progresso e de retrocessos. Assim, a arte preserva os momentos decisivos da história, momentos de transição, tornando a história visível, dando um significado e uma intensificação ao drama humano. Trata-se de uma concepção que vai ao encontro das postulações de HALL (2006), que compreende que buscar no passado sentido para o presente também é uma forma de construir a identidade: As culturas nacionais, ao produzir sentidos sobre ‘a nação', sentidos com os quais podemos nos identificar, constroem identidades. Esses sentidos estão contidos nas estórias que são contadas sobre a nação, memórias que conectam seu presente com o seu passado e imagens que dela são construídas. (HALL, 2006, p. 51). A partir do que foi discutido aqui, quando o homem, então, instaura o mundo humano, ou mimético, ele está além da rede de causa e efeito. Trata-se do mundo da liberdade (LUKÁCS, 1966). Nesse contexto, a arte é um modelo de liberdade, pois possibilita enxergar a dialética do capitalismo. Nessa perspectiva, a partir das concepções propostas, é possível falar dessa função da obra artística, uma vez que o poeta, por exemplo, narra o que pode acontecer, o que é possível, enquanto isso a poesia é uma expressão do que não é necessariamente efêmero. Falar sobre a história do Timor não é efêmero. Nem pode ser. Ainda não é possível concluir e definir a identidade timorense, dados os recentes estudos. Tampocou o próprio conceito de identidade não é limitado, é um precesso. Dessa forma, é pertinente considerar que a identidade está ligada à diáspora timorense, isto é, à dispersão da população timorense que foi obrigada a viver no exílio por ser perseguida por motivos políticos e religiosos; também está ligada às lutas pela resistência e busca pela soberania nacional. Enfim, a identidade maubere está em construção e não é possível encerrar as discussões, considerando apelas o âmbito poético. O que se pode afirmar é que a poesia timorense pode ser, sim, ser considerada marginalizada diante do cenário mundial e que, nessa perspectiva, verifica-se a necessidade de ampliar as investigações nesse campo, a fim de reconhecer a poesia de língua portuguesa do Timor-Leste como um instrumento – sem desconsiderar os demais – de resistência, ainda no século XXI, e de soberania. 11 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDRADE, Mário de. O movimento modernista. In: Aspectos da literatura brasileira. São Paulo: Martins, 1974. BARBOSA, Damares. 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