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O historiador e seus fatos Edward Carr Quem é o autor? • Formado em história em Cambridge; • Trabalhou no Foreign Office e foi editor do Times; • Crítico do empirismo na história; • Escreveu uma história da revolução russa em seis tomos. Que é história? • Coletânea de conferências proferidas em Cambridge, em 1961; • “O historiador e seus fatos” é uma delas. O historiador e seus fatos • O que está em jogo com a pergunta “Que é história”? O modo de pensar e fazer História – exercício de filosofia da história; • Debate: – Lord Acton, em 1896, falava da possibilidade de uma história definitiva; – George Clark, em 1950, falava da impossibilidade de uma história definitiva. • Se há divergência a pergunta se justifica O historiador e seus fatos • Carr: pergunta reflete posição do historiador no tempo: – Acton, séc. XIX: positivismo, era vitoriana – “caroço dos fatos” • História como conjunto de fatos • Tarefa do historiador: “apenas mostrar como realmente aconteceu” [wie es eigentlich gewesen] – descrição dos fatos (recepção passiva: objeto separado do sujeito); – Clark, séc. XX: ceticismo, geração beat – “polpa envolvente da interpretação discutível • História como interpretação dos fatos, mas ainda baseada na descrição dos fatos. • Pergunta certa: qual a visão de sociedade do historiador? O historiador e seus fatos • Carr: história como descrição dos fatos ou história como interpretação baseada na descrição dos fatos não satisfazem. • Por quê? Constatação fundamental: porque nem todos os fatos do passado são fatos históricos. • Logo, o que é um fato histórico? O que distingue fatos do passado e fatos históricos? O historiador e seus fatos • Fatos do passado são todos os fatos acontecidos – não falam por si. Dependem de sua apresentação: ordem e contexto; • Dependem, portanto, da abordagem dada pelo historiador. • “O fato é como um saco: só para em pé se puser algo dentro” – Ex. atravessar o Rubicão é um fato do passado. Quando César atravessou o Rubicão, a travessia se tornou um fato histórico (porque algum historiador contou assim a história e outros historiadores a aceitaram) O historiador e seus fatos • Carr: a história é um conjunto de fatos selecionados e quem os seleciona é o historiador – o historiador e seus fatos. • “A convicção num núcleo sólido de fatos históricos que existem objetiva e independentemente da interpretação do historiador é uma falácia absurda” • Há, portanto, uma transformação do fato do passado em fato histórico. • A tarefa do historiador é descobrir os fatos importantes e descartar os insignificantes como não históricos (quanto melhor fizer isso, mais convincente será sua história). Fatos do passado Matéria-prima do historiador Fatos históricos História O historiador e seus fatos • Como se dá a transformação de fatos do passado em fatos históricos? Pelo trabalho do historiador e aceitação de sua tese ou interpretação por outros historiadores. • O fato histórico depende, portanto, de um problema de interpretação. O historiador e seus fatos • História como recorte da realidade • História antiga e medieval: ilusão de termos todos os fatos disponíveis sobre o passado. • Carr: na verdade o que se tem é o retrato feito por um pequeno grupo de pessoas da época. • Barraclough: “a história que nós lemos, embora baseada em fatos, não é, para dizer a verdade, absolutamente factual, mas uma série de julgamentos aceitos” O historiador e seus fatos • De onde são extraídos os fatos do passado? De documentos, mas os documentos também não falam por si; • O historiador processa e usa esses fatos. • Seleciona os fatos e os apresenta, e, dependendo da recepção, passam a ser aceitos por outros historiadores. • Fatos e documentos são essenciais ao historiador, mas não constituem a história – não se pode acreditar no “fetiche dos fatos” O historiador e seus fatos • Carr: “ A reconstituição do passado na mente do historiador está na dependência da evidência empírica. Mas não é em si mesma um processo empírico e não pode consistir de uma mera narração de fatos. Ao contrário, o processo de reconstituição governa a seleção e interpretação dos fatos: isto, aliás, é o que faz deles fatos históricos” O historiador e seus fatos • Consequências: – Fatos não chegam puros à mente do historiador: são sempre refratados através da mente do registrador – “Estude o historiador antes de começar a estudar os fatos” – Compressão imaginativa dos personagens. O historiador tenta entender o que se passava em suas mentes à época – Visualização e compreensão do passado com olhos do presente. A linguagem impede a neutralidade do historiador, ele pertence ao presente – A função do historiador é dominar o passado e entendê-lo como chave para a compreensão do presente. O historiador e seus fatos • A história é o que o historiador faz? Não há objetividade na história? Tudo é relativo? • Carr: falso problema. O historiador deve ter compromisso com os fatos [a história não é um produto meramente subjetivo da mente do historiador] O historiador e seus fatos • “O historiador sem seus fatos não tem raízes e é inútil; os fatos sem seu historiador são mortos e sem significado” Os antigos e sua economia Moses Finley Quem é o autor? • Ensinou na Universidade de Columbia (EUA) e na Universidade de Cambridge (Inglaterra); • Na década de 1950, perseguido pelo McCarran Committee acusado de comunismo (Joseph McCarthy); • Emigra para a Inglaterra. Quem é o autor? x A economia antiga • Publicado em 1973 • Resultado de conferências proferidas na Universidade da Califórnia, Berkeley, em 1972; • Principal livro de Moses Finley A economia antiga • Questiona a análise que aplica as relações econômicas capitalistas (cálculo, troca, lucro, etc.) para outras épocas, como a Antigüidade – Por ex. inadequado estudar preços ou usar o conceito de classe social ou ainda de modo de produção escravo para a economia antiga; • Diálogo com economistas e relações econômicas atemporais – economia autônoma de outras relações e controlada pelas forças de mercado • O capitalismo é um produto da história e não resultado de uma evolução natural e necessária da sociedade – especificidade dos modos de produção; A economia antiga • Finley e Karl Polanyi: – Em formações não capitalistas a economia está imersa (embedded) nas instituições sociais, políticas e culturais. – A economia não se distingue de outras esferas da vida • É o caso da economia Antiga – história política, social e econômica ao mesmo tempo A economia antiga • O que é Antigo para Finley: – Grécia e Roma Os antigos e sua economia • Antes de Finley (1972), Karl Bücher (1893): – Os antigos não tinham o mesmo conceito de economia que temos – Não fazia sentido para eles falar em trabalho, produção, capital, investimento, rendimento, circulação, procura, empresário, utilidade do modo abstrato exigido pela análise econômica (pretensamente atemporal) – Os antigos faziam tudo isso, mas não combinavam essas atividades particulares conceitualmente numa unidade [ou numa esfera específica e autônoma da realidade] – Então, economia na antigüidade não podia ser só economia (tal como no capitalismo)! Os antigose sua economia • Discussão sobre o próprio conceito de economia – Sua economia: a economia dos antigos não é o que se entende por economia no capitalismo; – Termos atuais possuíam significados diferentes na Antigüidade. Ex. economia = administração da casa; família = pessoas sob o domínio do paterfamilias (potestas, manus e dominium) – Economia para Aristóteles (Política): direção dos filhos, da esposa e da casa em geral – Ética a Nicômaco Os antigos e sua economia • Até 1750 (séc. XVIII) – economia mais referida à política do que às relações econômicas propriamente; • Economia política como riqueza das nações só na segunda metade do XVIII • Economia tout court só no final do XIX, com Alfred Marshall Economia Política Religião Ética Costumes Embedded Economia Religião Ética Política Costumes Os antigos e sua economia • A má compreensão do conceito de economia aplicado à Antiguidade é um erro intelectual ou consequência da estrutura da sociedade antiga? – Para Finley, a economia antiga não tinha um sistema econômico formado por um enorme conglomerado de mercados independentes – Assim, não se aplicaria o conceito de economia que temos a essa sociedade Os antigos e sua economia • O conceito de economia (tal como o conhecemos) só se aplicaria ao sistema capitalista? – Sim. Porque é preciso considerar sua especificidade histórica; – Ex. Modelos de investimento modernos [lógica da acumulação] não se aplicam às preferências dos homens que dominavam a sociedade antiga [racionalidade não-econômica] Os antigos e sua economia • Por isso é difícil encontrar dados estatísticos da Antiguidade • Não havia a preocupação em contar, medir – não se pode entrar nesse caso no “fetichismo dos números” • Em suma, a análise centrada no mercado não se aplica ao mundo antigo (Max Weber, Karl Polanyi, etc.) Os antigos e sua economia • Por que Finley está fazendo essa defesa? • Porque nem todos concordam com ele e analisam a Antiguidade com conceitos modernos • Ideia de que a economia descreve o comportamento humano abstrato e atemporal • Razão profunda: especificidade da Antiguidade marca especificidade do capitalismo – possibilidade de superação • Para Finley: é preciso procurar conceitos e modelos apropriados à economia antiga [e não à nossa economia] O modo de produção escravo Perry Anderson Quem é o autor? • Professor de história e sociologia na Universidade da Califórnia, Los Angeles (UCLA) • Marxista, new-left • Foi editor da New Left Review. Passagens da antiguidade ao feudalismo • Publicado em 1974 • Prólogo de Linhagens do Estado Absolutista O modo de produção escravo • Lógica do estudo: por que se preocupar com o modo de produção escravo? – Marxismo: preocupa-se com a gênese do capitalismo. O feudalismo é visto como um tipo de transição para um novo modo de produção. – A gênese do feudalismo resulta do colapso do modo de produção escravo (Roma) e dos modos de produção primitivos dos invasores germânicos – A recombinação de seus elementos desintegrados liberou a síntese feudal O modo de produção escravo • Como se deu a desintegração do modo de produção escravo? – Pergunta que guia o estudo • A matriz da civilização do mundo clássico é Grécia e Roma. • Ambas constituíram um universo centralizado baseado em cidades (pólis grega e república romana) O modo de produção escravo • NO ENTANTO, avanço inigualável na organização social e cultura não tinha correspondência na economia urbana • A riqueza material era extraída majoritariamente do campo • [Marx, FEPC] “O campo produz a cidade” O modo de produção escravo • A agricultura (milho, azeite, vinho) era o setor predominante de produção e fornecia a fortuna das cidades • As cidades eram conglomerados urbanos de proprietários de terras • As mercadorias urbanas eram simples: têxteis, móveis e cerâmica O modo de produção escravo • As cidades greco-romanas e a geografia: – As cidades greco-romanas eram costeiras. Isso foi fundamental porque viabilizou o comércio de média e longa distância via transporte marítimo; – O mar era o meio de comunicação e comércio que possibilitava o crescimento da concentração de pessoas e a sofisticação das cidades, diferente do interior rural – A posição geográfica da Antiguidade clássica às margens do Mediterrâneo (Braudel) não pode ser negligenciada: velocidade do transporte marítimo. O modo de produção escravo • O modo de produção escravo foi uma invenção decisiva do mundo greco-romano, que constituiu a base de suas realizações e de seu ocaso; • Escravidão não era novidade na Antiguidade. A originalidade grega é que a escravidão passa a ser predominante como modo de produção • Isto é, escravidão maciça e generalizada entre outros sistemas de trabalho. O modo de produção escravo • Embora, como adverte Finley, o mundo helênico também contasse com o trabalho de camponeses livres, artesãos urbanos e rendeiros independentes • O modo de produção dominante na Grécia clássica e em Roma foi a escravidão – Grécia V a IV a.C – Roma II a.C a II d.C O modo de produção escravo • Cidades e escravidão caminhavam juntas. Na Grécia clássica, escravos empregados em atividades artesanais, serviços domésticos (cidades) e agricultura (campo). • Escravidão e liberdade são dois polos indivisíveis. A escravidão eleva a cidadania grega ao máximo da liberdade jurídica consciente – Surgem as noções de cidadania livre e propriedade servil que não existiam na escravidão do Oriente ou em outras experiências da Antiguidade (tb originalidade grega) O modo de produção escravo • A escravidão permite vida urbana baseada numa economia rural, porque libera os proprietários de terra da produção e assim podem viver nas cidades; • Permite uma disjunção permanente entre a residência e o rendimento. • A escravidão é, ao mesmo tempo, degradação do trabalho rural e comercialização urbana de trabalho. • Esses dois aspectos paradoxais colocam a escravidão colocam a escravidão na base da cidade e a liga ao campo, em desmedido benefício para a cidade. O modo de produção escravo • Qual era o preço a pagar por esse esquema? Alto. Apesar de melhoramentos técnicos, havia uma tendência à estagnação da produtividade na agricultura e na produção em geral • Claro descompasso entre o avanço cultural da cidade e a baixa produtividade do campo explicado pela escravidão. • O trabalho escravo dita o ritmo (lento) da economia e do trabalho livre. – Além disso, trabalho material associado à perda de liberdade, dissociado de qualquer valor humano e não essencial ao ser humano. O modo de produção escravo • Por isso, a expansão do mundo clássico, da Antiguidade, não se dava pela economia [aumento de produção], mas pela geografia: com uma expansão tipicamente colonial. • Três grandes ciclos de expansão na Antiguidade com base numa civilização urbana: ateniense, macedônico e romano. • Limite da expansão territorial, limite do modo de produção escravo. O modo de produção feudal In: Passagens da Antiguidade ao Feudalismo Perry Anderson O modo de produção feudal • O modo de produção feudal surgiu na Europa Ocidental. • Regido pela terra e por uma economia natural na qual nem otrabalho nem o produto do trabalho eram bens [mercadorias] • O camponês estava ligado à terra [meio de produção] por uma relação social específica: a servidão • A propriedade da terra era do senhor feudal. O modo de produção feudal • O senhor feudal extraía um excedente de produção do camponês. • Como? Por meio de uma relação político-legal de coação: – Serviços; – Arrendamento em espécie; – Obrigações consuetudinárias. • Havia no feudo terras senhoriais e terras de arrendamento. A coação era exercida em ambas – amálgama de exploração econômica e autoridade política. O modo de produção feudal • De onde vem a propriedade do senhor feudal? – A propriedade da terra era concedida por um nobre superior (suserano), a quem o senhor feudal (vassalo) ficava devendo serviços de cavalaria [militares] • Assim, um senhor feudal poderia ser vassalo de outro (suserano) e no limite do sistema estaria o rei, dono de todas as terras e, em última instância, emitente do domínio sobre elas. O modo de produção feudal • No feudalismo, havia um complexo sistema de relações sociais e políticas: – Entre os senhores e o monarca, havia relações intermediárias: castelania, baronato, condado e principado. • Consequência desse sistema: as funções de Estado ficavam desagregadas com relações econômicas e políticas integradas em cada nível. • A soberania política estava dividida entre os feudos e não concentrada no rei. • A parcelarização da soberania seria constitutiva do modo de produção feudal. O modo de produção feudal • Decorrem da parcelarização da soberania: – 1) Nos interstícios dos feudos, havia terras comunais (pastos, campos, florestas) e lotes alodiais (sem encargos), embora os senhores feudais tentassem colocar em prática o nulle terre sans seigneur. – Por que isso é importante, para Anderson? Porque eram espaços de autonomia e resistência camponesa, com consequências importantes para a produtividade agrícola. O modo de produção feudal – 2) A parcelarização da autonomia produz o fenômeno das cidades medievais na Europa Ocidental. – O modo de produção feudal foi o primeiro a permitir um desenvolvimento autônomo da produção de bens de consumo urbano dentro de uma economia agrária natural; • Na Antiguidade: cidades baseadas na propriedade senhorial e agricultura • Na Idade Média: o campo começa como local da história até o desenvolvimento da oposição entre campo e cidade. – “a história moderna é a urbanização do campo e não como entre os antigos, a ruralização da cidade” [Marx, FEPC] O modo de produção feudal – Assim, uma oposição dinâmica entre campo e cidade só foi possível no modo de produção feudal. Mas preponderava a economia rural. • Economia urbana: comércio de bens, controlado por mercadores e organizado em associações e corporações • Economia rural: troca natural, controlada por nobres e organizada em terras senhoriais e pequenas propriedades. O modo de produção feudal – 3) A parcelarização da soberania fazia com que o monarca estivesse ligado aos vassalos por laços de feudalidade e não se apresentasse como um soberano supremo colocado acima de seus súditos; – Nessa forma de governo, o poder político abaixo do monarca era de tal forma fragmentado que o monarca não detinha autoridade separada de seus vassalos [ou plenipotenciária] – ameaça e instabilidade permanente para o monarca. – Contradição entre a parcelarização da soberania e a exigência de um centro final de autoridade para promover uma recomposição: Estado centrífugo. – Além disso, não é possível constituir um Estado com burocracia (para aplicação de leis – as leis são tradicionais [consuetudinárias] – Dada a dispersão do poder feudal, a Igreja se torna um poder autônomo cuja fonte de autoridade era o domínio sobre as crenças e valores das pessoas. Introdução de História Econômica e Social da Idade Média, 1973 Henri Pirenne Henri Pirenne • Belga, 1862-1935 • Especialista em Idade Média: renascimento do comércio e modelo de desenvolvimento de cidades medievais • “Teses de Pirenne” • Inspirou Annales, história econômica e social Introdução • Por que Pirenne estuda a Idade Média? – Para compreender o renascimento comercial europeu no século XI. • Séc. V, após a queda do império romano, os reinos bárbaros mantêm o caráter mediterrâneo da antiga civilização • Pirenne: relações econômicas do Ocidente com o Oriente (Império Bizantino) devem ser vistas como prolongamento da Antiguidade [continuidade]. Introdução • Só que: ascensão do islã no séc. VII e fechamento do Mediterrâneo (Mare nostrum) para o comércio • Pirenne: o equilíbrio econômico da Antiguidade sobreviveu às invasões bárbaras, mas não à invasão do islã. • Divisão religiosa: cristãos do Ocidente (cruz) x islâmicos do Oriente (crescente) X Introdução • Os islâmicos dominaram o Mediterrâneo e a costa da Europa. • No interior, Carlos Magno e império continental – sem força para retomar o mar dos islâmicos • Disso surge a ordem econômica da Baixa Idade Média (séc. VIII a XV) x Introdução • A partir do séc. VIII, regressão do caráter comercial ao caráter agrícola da Europa Ocidental. • A terra é novamente a única fonte de subsistência e riqueza. • Toda existência social fundava-se na propriedade da terra – poder ligado à terra (feudo) – impossibilidade de manter sistema militar: desintegração da soberania do monarca. • Pirenne: “o aparecimento do Feudalismo, na Europa Ocidental, no decorrer do século IX, nada mais é do que a repercussão, na ordem política, do retorno da sociedade a uma civilização puramente rural”. Introdução • Do séc. IX ao XI, o Ocidente permanece bloqueado em função dos conflitos entre cristãos e islâmicos [bloqueio da navegação = bloqueio do comércio] – navegação, com muita dificuldade, apenas para peregrinos • Declínio do comércio significou também declínio das cidades. • As cidades perderam significado econômico e manifestou- se um empobrecimento geral na Europa Ocidental - rompimento com a economia antiga ou mediterrânea • Carlos Magno e retrocesso econômico Introdução • O latifúndio é o fenômeno econômico característico do feudalismo (civilização rural) – No entanto, o latifúndio não era novidade (existia na Antiguidade), mas seu funcionamento nesse período foi uma inovação. • Na Antiguidade, com cidades e comércio, o latifúndio tem relação com o exterior [economia aberta] • Na Idade Média, sem cidades e comércio, o latifúndio se fecha [economia fechada] - feudo • Pirenne: “o latifúndio não se adaptou a essa situação por livre escolha, mas por necessidade. Deixou de vender não tanto porque não quisesse vender, mas porque não passavam compradores a seu alcance”. Introdução • Sem comércio não quer dizer que não existisse qualquer comércio: havia comércio ocasional – Realizado por necessidade (condições climáticas ou busca por produtos específicos, como o sal) – Não constituía atividade profissional – era feito por servos (“mercadores improvisados”) – não havia mercador – Exceção: judeus – vendem para a aristocracia, mas público muito restrito • Pirenne: atividade comercial secundária na Idade Média Introdução • Ao mesmo tempo, surgem novos mercados no início do século IX. Contradição? • Não. Por serem muitos, são mercados pequenos, insignificantes [por não serem integrados]– maior deles: feira de Saint-Denys • Serviam para troca do necessário ou do excedente e diversão – sociabilidade para quem vivia imobilizado na terra. Introdução • A sociedade a partir do séc. IX: – Proprietários de terra (senhores – eclesiásticos e nobres): tempo, liberdade e poder – Não proprietários de terra (camponeses – servos ou rendeiros) • A servidão é a condição social mais comum: gera, ao mesmo tempo, proteção pelo senhor e dependência e exploração. Introdução • A igreja estava no topo da hierarquia social. Por quê? – Ascendência moral – Ascendência cultural: instrução, leitura e escrita – fornece quadro para reis e príncipes (chanceleres, secretários e notários) e influencia a arte. – Ascendência econômica: proprietária de terras e recursos monetários via doações • Predomina o “espírito” da igreja na Idade Média. Queda dos anjos, Peter Bruegel, o velho Hyeronimus Bosch, Jardim das delícias, Museu do Prado Painel central da Catedral de Siena, Itália Nossa Senhora e criança, Berlinghiero N o ss a Se n h o ra " d e la B e lle V er ri èr e" , C h ar tr es Pietás Catedral de Exeter, sul da Inglaterra Introdução • Trabalho: “a finalidade do trabalho não é enriquecer, mas conservar-se na condição em que cada um nasceu, até que, desta vida mortal, passe à vida eterna” – [Muito diferente da ideia de trabalho no capitalismo. Trabalho = mercadoria = salário = consumo] • Riqueza: procurar a riqueza era cair no pecado. – [Muito diferente da ideia de riqueza no capitalismo. Riqueza = poder = reconhecimento social] • Usura e comércio para acumulação de dinheiro condenados pelos tribunais eclesiásticos – No entanto, prática da própria igreja diferente da pregação. Não obstante, a igreja só aceitará, sem reservas, a legitimidade do lucro comercial, da valorização do capital e dos empréstimos a juros com renascimento econômico posterior. O renascimento do comércio. In: As cidades da Idade Média, 1977 Henri Pirenne O renascimento do comércio • Fim do séc. IX na Europa – auge da crise econômica e social; • Séc. X – Estabilização econômica • Esforço para melhorar a vida do povo – Relativa paz • Necessidade de paz • Reunião do cristianismo contra o islamismo: Cruzadas (1096) e expulsão dos islâmicos da Espanha (fim em 1492) – Expansão demográfica • Ocupação e ampliação da área de cultivo até o séc. XIII [proxy para deduzir estabilização] • Aumento da população como causa e efeito da melhora econômica, do “renascimento econômico” O renascimento do comércio • “Renascimento econômico” vinculado à reabertura do Mediterrâneo ao comércio • Veneza (S) e Flandres (N) são expressão da vitalidade das cidades comerciais O renascimento do comércio • Veneza – Posição geográfica privilegiada e ligação com Constantinopla • Eixo comercial entre Ocidente e Oriente – cidades italianas costeiras do S e do N seguem Veneza – expulsão dos islâmicos • Misticismo e riqueza – soldados de Cristo e navegação – Mercadores cuja religião eram os negócios • “pouco lhes importa que os muçulmanos sejam inimigos de Cristo, se o comércio com eles pode ser proveitoso” Canaletto O renascimento do comércio • Recuo do islamismo a partir do séc. XI: o Mediterrâneo é reaberto ao comércio • Para Pirenne, a principal conquista dos cristãos foi a expansão do comércio – ela possibilitou ressurgimento e revigoramento das cidades O renascimento do comércio • Flandres – Feira comercial. – Os comerciantes do S chegam à costa de Flandres, que se torna eixo comercial entre o S e o N da Europa Bruges Castelo dos Condes de Flandres (Ghent) O renascimento do comércio • Integração econômica em marcha desde o séc. XI. • No séc. XII, transformação definitiva da Europa Ocidental – comércio e indústria agem sobre a agricultura – Como? Produção para o mercado O renascimento do comércio • O campo volta a se orientar para as cidades [como na Antiguidade] – Cidade na Antiguidade – política – Cidade na Idade Média - economia • O renascimento das cidades estabelece a divisão do trabalho entre campo e cidade – As cidades fornecem produtos manufaturados ao campo. O campo abastece as cidades com alimentos. O renascimento do comércio • Pirenne: “a vida física do burguês depende do camponês, mas a vida social do camponês depende do burguês” – A cidade estabelece o padrão de vida desejado – visto como progresso social • “a expansão comercial que começou pelos dois pontos graças aos quais a Europa se encontrava em contato através de Veneza e Flandres com o mundo Oriental espalhou-se como uma epidemia benfazeja por todo o continente” O renascimento do comércio • Outro aspecto muito importante do renascimento das cidades (em Pirenne): o trabalho deixa de ser servil (a pessoa não está mais ligada à terra) e passa a ser livre • Pirenne: “o renascimento econômico de que o século XII viu a expansão revelou o poder do capital” A influência das cidades na civilização europeia. In: As cidades da Idade Média Henri Pirenne A influência das cidades na civilização europeia • O renascimento das cidades marca uma novidade na história da Europa Ocidental: o surgimento da burguesia • A burguesia dividiu o topo da hierarquia social com o clero e a nobreza até o fim do Antigo Regime – passou a dividir também privilégios – Parte da burguesia viveu de monopólios e teve espírito de “casta” (defesa e ampliação dos privilégios) – Ao mesmo tempo, parte da burguesia se encarregou de promover a liberdade [de iniciativa] A influência das cidades na civilização europeia • Com pequenas cidades e pequenos mercados – A formação das cidades alterou a organização econômica no campo. Por quê? Produção apenas para subsistência, o senhor não tem estímulo para ampliar a produção, embora tivesse meios (terra) para fazê-lo - feudalismo • Com crescimento das cidades a partir do século XI – Crescem os mercados e eles estimulam a produção no campo: comércio. Áreas desocupadas (bosques, florestas, pastos, etc.) tornam-se produtivas por produção direta do senhor ou arrendamento (carnes e vegetais em maior escala) A influência das cidades na civilização europeia • As cidades são fundadas por senhores laicos ou eclesiásticos. • Mas são cidades livres [diferente do feudo], porque as pessoas que recebem as terras não têm obrigações servis com o senhor – são camponeses livres (burgueses rurais) [diferente dos servos] • Por que são livres? Por causa da demanda econômica gerada pelo surgimento das cidades. A influência das cidades na civilização europeia • Cidades, comércio e liberdade transformaram os domínios em vias de desaparecer – já não era preciso ser domínio autossuficiente, pois o comércio nas cidades atendia às necessidades • O comércio e a economia urbana desmontaram o antigo sistema senhorial (senhor proprietário do servo) – Libertação das classes rurais, desprendimento do homem do solo – aparecimento de uma burguesia rural A influência das cidades na civilização europeia • No feudalismo – Ou senhor/ proprietário de terra ou servo/ não proprietário – a terra era a riqueza • Nascidades – Burgueses não eram proprietários de terra [arrendatários], mas podiam enriquecer produzindo valores de troca – classe de homens livres e em ascensão [mobilidade] A influência das cidades na civilização europeia • Nova concepção de riqueza com o comércio e o desenvolvimento das trocas monetárias: – Riqueza mercantil (dinheiro e mercadorias) [capital mobiliário] ao lado da terra [capital imobiliário] – Capital mobiliário: poder econômico e político para a burguesia – Capital imobiliário: poder econômico e político na nobreza e no clero A influência das cidades na civilização europeia • Consequências da nova riqueza: – Aumento de preços e desenvolvimento do crédito • Proprietários de terra que não se adaptaram à nova situação recorriam a empréstimos com mercadores [mudança social] – séc. XII em diante – [banqueiros italianos do séc. XIII] – Reflexo na administração do Estado • Agentes administrativos pagos [bailio] – inovação política e transformação da suserania em soberania – processo de formação do Estado com ajuda do financiamento da burguesia – Movimento cultural • Educação de burgueses e idiomas nacionais. O clero perde exclusividade na instrução – Parte espírito laico (Renascimento) – Parte misticismo (Reforma) O capitalismo. In: A evolução do capitalismo, 1947 Maurice Dobb Maurice Dobb • Professor de economia em Cambridge • Studies in the Development of Capitalism, título original do livro • Teorias do valor e distribuição desde Adam Smith, 1973 • Análise marxista Pergunta-chave: o que é o capitalismo? 1. Para alguns economistas, o termo capitalismo não faz sentido • Economistas usam pouco o termo, aparece pouco na teoria econômica. Por quê? – Abordagem teórica ahistórica da economia. – Conceitos econômicos (produção, troca, preço, etc.) tomados como naturais: universais e atemporais – Mercado (abstrato) x Mercado na Europa Ocidental no séc. IX (concreto) – Economia como ordem natural 2. Dinâmica da história, para Dobb • Sistemas econômicos distintos no decorrer da história – Para Dobb, há divisões claras entre os sistemas econômicos na história. – Cada período histórico é moldado sob a influência predominante de uma forma econômica única, mais ou menos homogênea, e deve ser caracterizado de acordo com natureza desse tipo predominante de relação social e econômica. O capitalismo – O importante seria detectar o estágio em que uma forma de organização nova, que vai brotando dentro da forma de organização atual, atinge uma magnitude suficiente para marcar o todo da sociedade e apontar a tendência do desenvolvimento. – Por exemplo, os elementos que surgem na sociedade feudal e que vão desestruturando aquela sociedade e apontando o desenvolvimento em direção a um novo sistema econômico O capitalismo – É certo que o processo de modificação histórica é gradual e contínuo, mas na concepção do desenvolvimento dividido em períodos ou épocas, cada uma caracterizada por um sistema econômico diferente, é que há pontos decisivos no desenvolvimento econômico nos quais o ritmo dos acontecimentos se acelera e a continuidade é rompida. – Que pontos são esses? Revoluções sociais que marcam a transição de um velho sistema para um novo. O desenvolvimento seria caracterizado por revoluções contínuas. 3. Para Dobb, Capitalismo como etapa histórica • O uso do termo define uma etapa histórica, isto é, localizada no tempo e no espaço e constituída como processo histórico (dinâmica no tempo e no espaço) – análise historicizada da economia – Economia como construção 4. Mas o que é o capitalismo? Qual o significado do termo? • Não há definição única – diferentes significados atribuídos ao termo – Por que isso é relevante? Por que a interpretação histórica dependerá do significado dado ao termo – Necessidade de definir capitalismo (daí o primeiro capítulo do livro que tratará do desenvolvimento do capitalismo) O capitalismo • Três concepções que não valem a pena, na avaliação de Dobb – 1) Uso do termo capital ou capitalista num sentido puramente técnico relacionado à produção – “capitalismo desde sempre” – período amplo – 2) Concepção do capitalismo como uma economia de concorrência livre e justa pelo lucro e que oferece oportunidade de trabalho para todos – “capitalismo idealizado” – nem existiu – 3) Capitalismo como um sistema de livre empresa (individual) em contraposição a qualquer tipo de controle estatal – “capitalismo em período restrito” – Inglaterra e EUA no início do XIX • Não valem a pena porque estendem ou restringem demais o período caracterizado como “capitalismo” O capitalismo • Três concepções que valem a pena, na avaliação de Dobb – 1) O capitalismo seria caracterizado por um espírito (geist) inspirador da vida num período histórico que combina o espírito do empreendimento (de aventura) com o espírito burguês (de prudência e racionalidade). A acumulação do capital é a principal razão da atividade econômica e as pessoas, numa atitude racional e calculada, subordinam todos os outros aspectos da sociedade a esse fim, provocando evidentemente uma reviravolta nos valores da vida. – Essa é a caracterização de Werner Sombart. É a mesma linha seguida por Max Weber, que caracteriza o capitalismo pela busca racional e sistemática do lucro. A essência do capitalismo é o espírito. – [crítica de Dobb: se o espírito capitalista precede o capitalismo, se a ideia precede a prática, o que o originou?]. O capitalismo • Três concepções que valem a pena, na avaliação de Dobb – 2) Pirenne: O capitalismo identificado com a organização da produção para um mercado distante, isto é, capitalismo definido como sistema comercial em que o objetivo da produção é a venda no mercado com vistas à obtenção de lucro. A essência do capitalismo está nas trocas com objetivo de ganho. – [crítica de Dobb: se a peculiaridade do capitalismo é o mercado, a troca e o lucro, ele pode ter estado presente na maior parte da história]. O capitalismo • Três concepções que valem a pena, na avaliação de Dobb – 3) Marx: O capitalismo é identificado com a transformação da capacidade de trabalho em mercadoria. A pré-condição histórica para isso seria a concentração da propriedade. – Por que isso é tão importante? A transformação do trabalho em mercadoria permite ao capital sujeitar o trabalho à criação de mais-valia no processo de produção. Não basta o espírito, não basta a expansão do mercado. A condição necessária e suficiente para definir o capitalismo é a extração de mais-valia do trabalho (teoria do valor-trabalho). – E Dobb escolhe a terceira definição para guiar sua análise do desenvolvimento: “não pretendemos aqui debater os méritos das definições rivais, mas simplesmente tornar claro que nos ensaios seguintes será no último desses três sentidos que empregaremos o termo capitalismo” (p.18). – Por que usar essa definição? Porque, segundo Dobb, ela é capaz de explicar o processo real de desenvolvimento histórico. 5. Início do capitalismo na história • Historicamente, quando começa o capitalismo? – Século XII, com a expansão do comércio? – Século XVI, com a reforma e o surgimento de um “espírito capitalista” (95 teses em 31 de outubro de 1517)? – Século XVIII, com a revolução industrial? O capitalismo • A periodização depende da definição de capitalismo. • Para Dobb, os elementos da mudançasurgem na Inglaterra, metade do século XVI e início do XVII, quando o capital começa a penetrar na produção em escala considerável. • No século XVII intensifica-se com a revolução inglesa de 1640 (luta contra o monopólio, cercamentos) e, no XVIII, com a revolução industrial (produção em massa, trabalho assalariado). Surgimento do capitalismo • “O capital começou a penetrar na produção em escala considerável, seja na forma de uma relação bem amadurecida entre capitalista e assalariados, seja na forma menos desenvolvida da subordinação dos artesãos domésticos, que trabalhavam em seus próprios lares, a um capitalista, própria do assim chamado ‘sistema de encomendas domiciliar’” (15); O capitalismo • O capitalismo não surge logo após o colapso do feudalismo. • Transição: “um equilíbrio de elementos discretos, inerentemente instáveis” – Ainda não há relação econômica e social predominante • As mudanças são dadas pela estrutura das classes sociais – Os interesses das classes estão relacionados à “maneira de extrair e distribuir os frutos do trabalho excedente, além e acima do trabalho que vai suprir o consumo do produtor efetivo” – No capitalismo o excedente se dá pela extração da mais-valia, a qual depende da compra e venda da força de trabalho, num sistema baseado em aumentos de produtividade • Na transição de um sistema para outro, novas forças produtivas e potencialidades econômicas reduzem o poder da classe dominante e uma nova classe dominante ligada às transformações surge e afirma seu poder. O capitalismo • Para terminar, Dobb justifica a análise do desenvolvimento de uma economia especificamente capitalista para: – desmistificar seu caráter natural; – que a troca se dá entre equivalentes; – que o proprietário contribui tanto quanto o trabalhador para o processo de produção; – e para mostrar que a essência do capitalismo é a forma particular com que uma classe de proprietários com poder e privilégios econômicos se apropria do trabalho excedente de uma classe de não-proprietários. O declínio do feudalismo e o crescimento das cidades. In: A evolução do capitalismo, 1963 Maurice Dobb O declínio do feudalismo • A definição de feudalismo é fundamental para estabelecer uma periodização [assim como a definição de capitalismo] e isso depende da análise do historiador – Critica definição de feudalismo como economia natural em oposição à economia de troca (Pokrovsky, Schmoller) • Feudalismo para Dobb: modo de produção baseado – na relação entre o produtor direto [camponês na terra ou artesão na oficina] e seu superior imediato, o senhor, – na obrigação [pela força e independente da vontade do produtor direto] que o une ao senhor [servidão]. • Força coercitiva: militar ou costume • MDP = servidão [relação de trabalho] – essência da definição de Dobb (Marx) O declínio do feudalismo • MDP escravo [escravidão], MDP feudal [servidão]. Qual a diferença entre escravidão e servidão? – Na servidão, o vínculo entre produtor e senhor se dá pela terra e não pela compra/conquista, como na escravidão. O camponês/servo tem a posse da terra, embora não tenha sua propriedade. – O que há de comum é a coerção e privação de liberdade. • Qual a diferença entre servidão e trabalho assalariado? – No trabalho assalariado, há separação do trabalhador do meio de produção e liberdade formal para trocar de patrão, a relação de obrigação é, portanto, contratual. – Na servidão, a subsistência é derivada da produção na terra. No trabalho assalariado, derivada do salário. O declínio do feudalismo • Como era a produção servil? – Na historiografia, produção servil caracterizada por baixo nível técnico, pequena divisão do trabalho, produção para atender necessidade local e descentralização política – Para Dobb: características variavam de lugar para lugar • Questionamentos à historiografia O declínio do feudalismo • Dobb [como Pirenne]: o renascimento do comércio produz “efeito perturbador sobre a sociedade feudal” [comerciante, troca, dinheiro – “solvente destruidor do poder senhorial” – interdependência de mercados – em oposição à subsistência • Questão de Dobb: a ligação entre o renascimento do comércio e o declínio do feudalismo era tão simples e direta como se afirmava? A ampliação do mercado teria sido condição suficiente para o declínio do feudalismo? O declínio do feudalismo • Por que Dobb questiona? – Havia economia de troca e dinheiro em partes da Europa e nem por isso o feudalismo se desestruturou – [expansão do comércio compatível com servidão] • Para Dobb, o que teria provocado então o declínio do feudalismo? – As próprias forças internas do feudalismo, isto é, “a ineficiência do feudalismo como sistema de produção” e as “necessidades crescentes de renda por parte da classe dominante” – Crescimento dos mercados urbanos e do comércio no séc. XIII intensificou a pressão sobre os camponeses para aumentar a produção e gerar excedente para a troca – hipótese tão bem fundamentada quanto o renascimento do comércio {Engels: “segunda servidão” no final do séc. XV]. O declínio do feudalismo • “A interpretação tradicional carece claramente de uma análise das relações internas do feudalismo como um modo de produção e da parte por elas desempenhada na determinação da desintegração ou sobrevivência do sistema” • A mudança para um novo modo de produção não depende de fatores externos, mas de fatores internos do antigo modo de produção. O declínio do feudalismo • Como se dá o declínio do feudalismo motivado por fatores internos? – Busca de produção de excedente para a troca • Aumento da exploração do trabalho (servo, camponês ou livre) – deveres, subenfeudação*, pilhagens, cruzadas – Exaustão da força de trabalho e emigração ilegal das propriedades senhoriais – burgos – crises dos sécs. XIV e XV O declínio do feudalismo • Esse processo provocou escassez de mão de obra – Aumento demográfico e da área cultivada nos sécs. XII e XIII amenizam o problema em algumas regiões – Séc. XIV, retração do crescimento demográfico: fome, peste e guerras – Competição entre senhores por servos [captura de fugitivos e atração de servos] • E uma “reação feudal” [não uniforme em diferentes regiões da Europa] O declínio do feudalismo • Reação feudal: servidão, arrendamento ou assalariamento? • Dobb: havia, na verdade, uma combinação de relações de trabalho • A escolha dependia do preço do trabalho em função de sua abundância ou escassez – essa consideração – “deve ter prevalecido onde a preocupação da economia feudal era produzir para um mercado e não apenas prover diretamente a casa senhorial” (p.63) O declínio do feudalismo • Condições para o arrendamento: – Custos administrativos, instabilidade de preços no mercado dos produtos cultivados, camponeses demandando terras para cultivo • Condições para o assalariamento: – Oferta de mão de obra, produtividade do trabalho assalariado maior do que seu custo O declínio do feudalismo • Arrendamento e assalariamento foram efeitos da expansão comercial. Contudo, o que estimulou essas relações de trabalho foi a crescente diferenciação social e econômica entre os próprios camponeses-agricultores – > produtividade do solo, > lucro • Camponeses mais produtivos acumulam com o comércio local e ampliação do mercado, e subordinam os menos produtivos adquirindo mais terras O declíniodo feudalismo • Advertência! Arrendamento e assalariamento não significam substituição da servidão por uma relação contratual livre entre proprietário da terra e cultivador – Havia diferentes relações de trabalho entre a servidão e o assalariamento [em que se mantinham encargos feudais] – Permanecia a obrigatoriedade do pagamento de tributos ao senhor mesmo com arrendamento e assalariamento [ideia de processo] • Terra disponível, MDO abundante e trabalho barato incentivam a comutação. • Apesar do encarecimento do trabalho no séc. XIV [peste negra], a comutação [do trabalho em troca de serviços por trabalho em troca de dinheiro] era uma tendência “que iria operar com força muito maior no século XV” (p.74) O declínio do feudalismo • Final do séc. XV – enfraquecimento e desintegração da ordem feudal – Revolta de camponeses (fuga para florestas ou cidades para trabalhar como artesãos ou jornaleiros) – Nobreza dividida [competição por MDO] e proprietários menores em maior crise – Mercadores e camponeses comprando terras e mercadores emprestando dinheiro sob garantia de terra. • Dobb: Mas isso não marcou o fim do MDP feudal, pois continuavam o trabalho servil e suas obrigações eram reconhecidas legalmente, e a liberdade de movimento do trabalhador no campo continuava legalmente restrita. Crescimento das cidades • Séc. XVI • Dobb: Comércio e cidades têm influência desintegradora sobre a estrutura do feudalismo [igual a Pirenne]. • Mas seria errado encarar as cidades, neste estágio, como “microcosmos do capitalismo” [diferente de Pirenne] – (Maior) parte das cidades subordinadas à autoridade feudal – Forma de produção mercantil simples [artesanato urbano sem separação entre produtor e meio de produção] – produção não capitalista. – Com o tempo, libertação das cidades da autoridade feudal e diferenciação de classe dentro da comunidade urbana (oligarquia comercial) Crescimento das cidades • Dobb contesta parcialmente a teoria segundo a qual cidades medievais seriam continuidade de cidades da Antiguidade [Pirenne] – Aceita para cidades maiores, mas considera que instituições e modo de vida mudam de maneira geral com a Idade Média • Contesta a ideia de origem rural da cidade [surgimento natural da cidade] (Por que uma comunidade agrícola se tornaria comercial?) – Para ele, diferença entre cidades livres (comerciantes – ex. Hansa, Reno e Londres, Pirenne) e refúgio, sauveté (cidades submetidas à autoridade do senhor e importante fonte de renda feudal) Crescimento das cidades • E, assim, conflito entre burgueses e autoridade feudal: luta das cidades por autonomia enseja guerra civil (sécs. XII a XIV) • “O fato de os próprios estabelecimentos feudais se empenharem no comércio e muitas vezes terem alimentado um mercado local para se suprirem de uma fonte barata de provisões foi evidentemente um dos principais motivos pelos quais os clamores dos burgueses pela autonomia encontraram resistência tão vigorosa” (p.90). A acumulação de capital e o mercantilismo Maurice Dobb Acumulação de capital Para situar: Periodização de Dobb - Séculos XIV-XVI: crise do feudalismo - Séculos XVI - XVII, XVIII: transição do feudalismo para o capitalismo - acumulação de capital ou acumulação primitiva origem, inícios do capitalismo, penetração do capital na produção - Final do XVIII: Capitalismo pleno: Revolução Industrial 159 A acumulação de capital • Houve uma acumulação prévia de capital nas mãos de uma classe capitalista necessária para viabilizar o investimento capitalista? – Alguns autores acham que não houve processo específico de acumulação de capital (acumulação via poupança e, depois, investimento) – Para Marx (e também para Dobb), houve uma acumulação primitiva de capital anterior no tempo ao florescimento da produção capitalista (sécs. XVI, XVII e XVIII) A acumulação de capital • O processo de acumulação de capital nas mãos de uma classe específica (que vai converter o capital em meios de produção, ou seja, que realizará o investimento capitalista) corresponde: – à transferência de propriedade de bens (que se tornarão capital) de uma classe que entesoura e não tem iniciativa (nobreza) para outra que investe e tem iniciativa (burguesia, parvenue, nouveaux-riches). – à concentração da posse da riqueza em mãos muito menos numerosas • Se correspondesse apenas à transferência, bastaria a existência de bancos para intermediar a riqueza entre as duas classes e viabilizar o investimento capitalista. A acumulação de capital • Então, para Dobb, houve um período específico, anterior ao capitalismo (transição do feudalismo para o capitalismo), de acumulação de capital ou acumulação primitiva de capital. • Como se dá a acumulação de capital? – Por um processo que envolve 2 fases • 1ª: compra, valorização no tempo e revenda de um bem [terra] • 2ª: aquisição de meios de produção. A acumulação de capital • 1ª fase: – Compra de um bem a preço baixo (aquisição); venda por preço mais alto (realização) – A acumulação depende da diferença entre aquisição e realização – São necessárias circunstâncias especiais que façam baixar o preço de aquisição ou subir o preço na realização • Política deliberada do Estado, influenciado pelo poder ascendente da burguesia • Crises e endividamento dos senhores feudais (consumo de luxo) [Inglaterra, sécs. XV e XVI] • Tomada à força (comércio colonial, por exemplo) – Para que houvesse realização, era preciso haver demanda pelos bens adquiridos anteriormente A acumulação de capital • Por que é preciso haver condições especiais para valorizar o bem adquirido? – Se não houvesse, na aquisição, o movimento de compra de certo tipo de bem faria seu preço subir. – Depois, na realização, o movimento de venda faria seu preço cair. – Não seria possível acumular. A acumulação de capital • 2ª fase: – Compra de meios de produção – Condições para o investimento industrial • Abundância de mão de obra • Matérias-primas baratas • Produção de ferramentas e maquinarias (tecnologia) – Sem essas condições não haveria incentivo para que a burguesia fizesse o investimento industrial A acumulação de capital • Para Dobb, a acumulação tinha que se dar em duas fases. Por quê? – A primeira fase (aquisição/realização) causa desapossamento [os que venderam os bens] e cria uma classe substancial de destituídos – Isso favorece, via aumento da oferta de mão de obra, a criação de condições favoráveis à segunda fase (compra de meios de produção) – – A essência da acumulação primitiva de capital é a separação de pequenos produtores dos meios de produção [transformação do trabalho em força de trabalho] – via transferência de propriedade e desapossamento de pequenos proprietários pela burguesia. – Nascimento de um exército de proletários – pauperização e mão de obra barata. A acumulação de capital • Outras duas influências poderosas que promoviam a acumulação burguesa [sécs. XIV- XVIII]: – Bancos – Dívida estatal A acumulação de capital • Bancos – Câmbio, coleta de impostos e empréstimos (Casa di San Giorgio, Gênova) • Advertência: empréstimos feitos por grandes financistas (haute bourgeoisie) e agiotas menores. A acumulação de capital • Dívida estatal – Marx: “Como pelo toque de uma varinha mágica, ela confere ao dinheiro estéril o poder de multiplicar-se e assimo transforma em capital, sem a necessidade de se expor aos riscos e dificuldades inseparáveis de seu emprego, ou mesmo da usura” (p.194) A acumulação de capital • Séc. XVII – estímulo ao investimento industrial – cias por ações e alto preço da terra (principal ativo no séc. XVI) • Não obstante, competição entre investimento comercial (comércio externo, alto lucro) e industrial, mas investimento comercial restrito um círculo privilegiado – alta burguesia. • Por isso, investimento industrial não foi feito pela alta burguesia ou pelas companhias de comércio, mas pela média burguesia – Conflito entre industriais (liberdade de comércio) e grandes comerciantes (monopólio de comércio) A acumulação de capital • Indústria: necessidade de mercados – Mercados externos – Bens de luxo (ascensão da burguesia) – Guerras (Estado) • Quanto mais se desenvolvem relações capitalistas, maiores os mercados por meio de lucros (I) e salários (C). • Garantia de lucro: – 1º privilégio político e regulamentação – 2º tecnologia (produtividade): mecânica e divisão do trabalho Mercantilismo • Enquanto o investimento industrial ainda não havia se tornado o elemento mais importante da economia, a preocupação com um mercado exportador crescente ocupou seu lugar – pensamento mercantilista (sécs. XVI-XVIII) • Para Dobb, a característica principal desse pensamento era “a crença na regulamentação econômica como condição essencial para o surgimento qualquer lucro no comércio “ (p.202) • Ou seja, o Estado deveria garantir a margem de lucro derivada da diferença entre o preço de compra e o de revenda – é o Estado quem define os preços e não o mercado • Daí a necessidade de monopólios: se houvesse concorrência, como manter a margem de lucro ? Mercantilismo • Outra peculiaridade, apesar de divergências entre os autores conhecidos como mercantilistas: acumulação de metais como riqueza - “crença impregnada”, “generalização axiomática” sobre a ordem econômica [principal diferença em relação ao liberalismo clássico do séc. XVIII] • O que havia de mais comum no pensamento mercantilista era a defesa de uma balança comercial favorável (Heckscher: “homem algum tem lucro a não ser pelo prejuízo alheio”) – Necessidade de criar e manter mercados externos para consumo de mercadorias nacionais (comércio colonial e companhias de comércio) – Restrição às importações (exceto matérias primas) – Regulamentação para impedir aumento de preços e salários derivado da entrada de metais no país Mercantilismo • Por quê acumulação de metais como riqueza? Vigorava o “pequeno modo de produção”, consequentemente, era pequeno o lucro derivado do investimento na produção e o trabalho assalariado estava na infância • O que muda nos séc. XVIII? O progresso técnico [divisão do trabalho] que aumentará a produtividade do trabalho • Com ele, surge a percepção de que investimento industrial e trabalho assalariado são capazes de garantir lucro sem necessidade de regulamentação • Condição para o surgimento da economia como uma ordem natural, isto é, relações econômicas com leis específicas de funcionamento – liberalismo em oposição à regulamentação Mercantilismo • Para Dobb, mercantilistas eram porta-vozes antes do capital industrial do que do mercantil. Por quê? – Porque o comércio externo visava a troca de produtos manufaturados nacionais por produtos coloniais, principalmente matérias-primas, o que reduzia o custo e, consequentemente, aumentava o lucro industrial – Além disso, coerção para impedir manufaturas nas colônias que pudessem concorrer com as metrópoles (Heckscher: “medo às mercadorias”) • O objetivo da política mercantilista era reduzir custo (matérias primas e salário) da manufatura nacional (Heckscher: “riqueza para o país baseada na pobreza da maioria dos seus cidadãos) • Em suma, “o sistema mercantil foi um sistema de exploração regulamentado pelo Estado e executado através do comércio, que desempenhou um papel importantíssimo na adolescência da indústria capitalista: foi essencialmente a política econômica de uma era de acumulação primitiva” (p.212) Mercantilismo • Desde o séc. XVII – contradição entre a necessidade de expandir os mercados para ofertar a produção ampliada pelo investimento industrial e a necessidade de restringir os mercados, via monopólio ou proteção, para manter a rentabilidade do capital • Consequência: conflito entre a velha geração de capitalistas [ligada ao comércio e à usura] e a nova geração [ligada a novas indústrias e métodos de produção] – [burguesia reacionária e revolucionária] • Mas ficava cada vez mais clara a oportunidade de aumento de ganho com aumento de produtividade do trabalho com consequências importantes no reino da prática [investimento industrial] e da doutrina [liberalismo clássico] O modelo mercantil e seu legado. In: A origem do capitalismo, 2001 Ellen Wood Ellen Wood • Professora de ciência política na Universidade de York, em Toronto, Canadá • Editora da Monthly Review 1. A origem do capitalismo • Crítica: – tentativa de naturalizar o capitalismo; – ideia de que a racionalidade da ação humana e o avanço da técnica estariam presentes desde o início e o progresso conduziria ao capitalismo – capitalismo como destino inescapável 1. A origem do capitalismo • “Na maioria das descrições do capitalismo e de sua origem, na verdade, não há origem. O capitalismo parece estar sempre lá, em algum lugar, precisando apenas ser libertado de suas correntes – dos grilhões do feudalismo, por exemplo – para poder crescer e amadurecer” (p.14) • Wood: enfatiza especificidade do capitalismo [como outros autores marxistas]. – Sua origem não é resultado de uma evolução natural, mas de uma construção histórica que rompe com formações sociais anteriores. • Por que isso é importante? “Se o capitalismo é a culminância natural da história, superá-lo é inimaginável” (p.17) 2. Debate com historiadores • Wood tenta mostrar que os modelos de interpretação do processo histórico de longo prazo naturalizam o capitalismo – Modelo mercantil – Modelo demográfico – Karl Polanyi 2. Debate com historiadores • Modelo mercantil (Smith, Pirenne, Weber, Braudel) – Pressupõe que o capitalismo resultou naturalmente de práticas humanas existentes desde sempre (por ex. mercado) – Seu surgimento requereu apenas a eliminação de obstáculos externos que impediam sua materialização (por ex. o feudalismo) – Indivíduos racionais auto-interessados desde o início buscariam o tempo todo eliminar obstáculos à expansão do mercado e do desenvolvimento tecnológico. – Apesar de pressupor a existência do capitalismo, reconhece uma grande mudança dos princípios econômicos do feudalismo para o capitalismo. • Por ex. passagem de uma economia natural para uma economia monetária ou da produção para o uso para a produção para a troca. – Nesse caso, a transformação não está na economia [mercado], mas em outras instituições [políticas, culturais, jurídicas, tecnológicas e ideológicas]. – Se as leis de movimento capitalista sempre existiram, não haveria razão para explicar sua origem, mas os obstáculos que impediram seu desenvolvimento. 2. Debate com historiadores • Problemas: – Presume a existência do capitalismo. O processo histórico interpretado a partir da lógica de eliminação de obstáculos e não da criação de uma lógica econômica nova – O modelo mercantil não reconhece a especificidade histórica dasrelações sociais capitalistas, porque é visto como resultado natural da evolução histórica – Se não há especificidade do capitalismo, as leis econômicas seriam universais e atemporais – teoria econômica abstrata. 2. Debate com historiadores “A lógica do mercado teria permanecido a mesma: sempre uma oportunidade a ser aproveitada em todas as ocasiões possíveis; sempre conducente ao crescimento econômico e ao aperfeiçoamento das forças produtivas, sempre fadada a acabar o capitalismo industrial, se lhe fosse dada liberdade para colocar em prática sua lógica natural” (p.25) • Modelo demográfico (neomalthusianos) • Postan, M. M. & John Hatcher (1978). ‘Population and Class Relations in Feudal Society,’ Past & Present, 78, February, pp. 24–37. – Visão alternativa ao modelo mercantil (urbanização e comércio) – A transição para o capitalismo foi determinada pela lei da oferta e demanda e, por sua vez, essa seria determinada pelo comportamento demográfico • Aumento e declínio populacional como estímulo ou barreira ao desenvolvimento do capitalismo (cidades, mercados, etc.) • Padrões cíclicos de crescimento demográfico explicariam a transição para o capitalismo • Problema: – Não questiona natureza do mercado capitalista. 2. Debate com historiadores • Karl Polanyi (“uma exceção digna de nota”) – A grande transformação, 1944: • A “sociedade de mercado” é específica • Lucro individual como motivo para ação humana [nem sempre essa foi a motivação] • Mercados competitivos [antes os mercados eram complementares] • Mercados integrados pelo Estado [e não por um processo natural] • Relações econômicas separadas de relações não-econômicas [antes essas relações se misturavam] 2. Debate com historiadores • Problema: – Na explicação sobre a origem da “sociedade de mercado”, Polanyi enfatiza a expansão do mercado e o aspecto tecnológico [e não a mudança primeiro nas relações sociais] – A predominância do mercado nas relações sociais teria sido inevitável, a diferença em relação aos outros modelos é que considera a intervenção estatal como elemento que dita o ritmo do processo – A ordem de causação da expansão do mercado (comércio e indústria) para a sociedade de mercado torna impossível tratar o mercado capitalista como forma social específica 2. Debate com historiadores Debates marxistas. In: A origem do capitalismo, 2001 Ellen Wood Debates marxistas • Há controvérsias sobre a origem do capitalismo entre autores marxistas • Marx apresenta duas narrativas do processo: – I) Na Ideologia alemã e no Manifesto comunista: a história seria uma sucessão de etapas rumo ao capitalismo. O avanço tecnológico e a burguesia teriam originado o capitalismo pelo fato de se libertarem das relações feudais • Próximo do modelo mercantil, cidades e comércio seriam a antítese do feudalismo – II) Em Elementos para a crítica da economia política e em O capital: a mudança nas relações de propriedade (expropriação do produtor direto) originou o capitalismo como uma nova forma de exploração e com novas leis de movimento sistêmicas • Distante do modelo mercantil, cidades e comércio compatíveis com o feudalismo Debates marxistas • Maurice Dobb e Rodney Hilton: luta de classes entre senhores e servos foi motor primordial da transição • Paul Sweezy: renascimento do comércio e “produção mercantil pré-capitalista” • Perry Anderson: Estado absolutista fundamental para explicar a transição, pois libera a economia para evoluir de acordo com sua própria lógica interna. Debates marxistas • Wood sobre Dobb: – Dobb vê o declínio do feudalismo e a ascensão do capitalismo como único processo, parece aceitar que o capitalismo seria inevitável • Wood sobre Sweezy e Anderson: – Permanece a ideia de retirada de obstáculos para que o capitalismo florescesse. Ele teria sido resultado da libertação da economia do feudalismo. • Mesmo nas interpretações marxistas sobre a origem do capitalismo, ainda que com matizes, permanecem traços do modelo mercantil: – Capitalismo inevitável – Retirada de obstáculos Do capitalismo agrário ao capitalismo industrial. In: A origem do capitalismo, 2001. Ellen Wood Do capitalismo agrário ao capitalismo industrial • Brenner, Robert. "Agrarian Class Structure and Economic Development in Pre- industrial Europe". Past and Present 70 (1976), pp. 30–74 • Inglaterra, antes do séc. XVI: riqueza gerada predominantemente na agricultura. • A partir do séc. XVI: riqueza gerada cada vez mais no comércio [maximização do valor de troca] ligado à produção [aumento da produtividade, redução de custo por meio da especialização, acumulação e inovação] – Nova forma de prover necessidades: produção para a troca (mercados) e acumulação ilimitada. – Nova forma de expropriação: criação de uma massa de não proprietários. • Agricultura, comércio e manufatura: capitalismo agrário. • Proposição: o capitalismo industrial nasce do capitalismo agrário Do capitalismo agrário ao capitalismo industrial • Por que capitalismo agrário? – 1) a transformação das relações sociais de propriedade [que fomentou expansão demográfica, comércio e indústria] se deu no campo; – 2) embora não houvesse ainda predominância do trabalho assalariado, existia uma tríade agrária [Marx: latifundiários rentistas, arrendatários capitalistas que visavam lucro e trabalhadores assalariados] que já funcionava com a lógica capitalista da competição e produção para o mercado. Do capitalismo agrário ao capitalismo industrial • O elemento principal da tríade seriam os arrendatários capitalistas dependentes do mercado. • Para Wood, é a dependência do mercado que causa a proletarização das massas [perda do acesso direto não mercadológico aos meios de produção] • A dependência do mercado estabelece a dinâmica específica do capitalismo já presente na agricultura inglesa no séc. XVI. Do capitalismo agrário ao capitalismo industrial • Como explicar capitalismo sem predominância de trabalho assalariado? • Para Wood, a agricultura inglesa no séc. XVI já funcionava segundo leis de movimento diferentes dos que haviam prevalecido em qualquer outra sociedade desde o alvorecer da história • A agricultura inglesa atendia aos imperativos da competição (avanço técnico) e produção para o mercado (consumo) – Concentração da propriedade fundiária, declínio da população rural, alta produtividade da agricultura – Massa de não proprietários desloca-se para as cidades (Londres, sobretudo). – Londres “simbolizou o capitalismo emergente da Inglaterra: seu mercado cada vez mais único, unificado, integrado e competitivo, sua agricultura produtiva e sua população desapropriada” (p.106) – desenvolvimento de um mercado interno. Do capitalismo agrário ao capitalismo industrial • Então, o capitalismo inglês surge com as leis de movimento nascidas na agricultura [e não no comércio]. • Essas leis transformaram as antigas regras de comércio [troca de excedente, comércio complementar] e criaram um tipo novo de sistema mercantil [produção para a troca, comércio competitivo] • Produção para um mercado cada vez maior: interno (trabalho assalariado) e externo (imperialismo colonial) Do capitalismo agrário ao capitalismo industrial • Para Wood, o mercado interno era mais importante para a economia inglesa do que o externo: “o capitalismo agráriofoi a raiz do desenvolvimento econômico britânico” (p.108) • Por quê não o externo? Wood sustenta sua tese mostrando que outros países também foram imperialistas e exploraram a escravidão, mas o resultado não foi industrialização. • Portanto, a peculiaridade inglesa estaria no desenvolvimento de um mercado interno e de uma lógica capitalista de competição e acumulação a partir da produção. Do capitalismo agrário ao capitalismo industrial • Imperialismo e comércio externo importantes, mas não fundamentais no desenvolvimento industrial inglês. • Mercado interno formado pelo capitalismo agrário: desapossamento, concentração fundiária, produtividade, força de trabalho, consumo de massa, industrialização. Do capitalismo agrário ao capitalismo industrial • A difusão do capitalismo se deu a partir da pressão competitiva que a Inglaterra industrializada impunha a outros países. • Por isso, diz ela, “sem o capitalismo inglês, provavelmente não haveria nenhum tipo de sistema capitalista” (p.110). Do capitalismo agrário ao capitalismo industrial • Em suma, o capitalismo agrário possibilitou a industrialização – Transformação das relações de propriedade – Tamanho e natureza do mercado interno – Composição da população – Natureza e extensão do comércio e imperialismo britânico • Essas mudanças constroem uma nova lógica [competição e consumo] cujo resultado foi o capitalismo industrial. O Estado absolutista no Ocidente. In: Linhagens do Estado absolutista, 1974 Perry Anderson O Estado absolutista no Ocidente • Qual o resultado político da crise do feudalismo na Europa Ocidental? • Emergência do Estado absolutista no século XVI – Monarquias centralizadas na França (Luís XI), Espanha (Fernando e Isabel) e Inglaterra (Henrique VII) romperam soberania fragmentada do feudalismo – Integração territorial e centralização administrativa • Formação do exército, burocracia, tributação, comércio e diplomacia. Luís XI Fernando de Aragão e Isabel de Castela Henrique VII O Estado absolutista no Ocidente • O ponto de partida de Anderson é a tese de Engels e Marx: – O Estado absolutista representaria o equilíbrio (ou atuaria como árbitro) de interesses da aristocracia fundiária e da burguesia, marcando a passagem do poder da nobreza para a burguesia. O Estado absolutista no Ocidente • Anderson discorda da tese de Engels e Marx: – Para ele, o Estado absolutista era “um aparelho de dominação feudal recolocado e reforçado, destinado a sujeitar as massas camponesas à sua posição social tradicional – não obstante e contra os benefícios que elas tinham conquistado com a comutação generalizada de suas obrigações” (p.18) – Era uma nova forma de poder da nobreza determinada pela difusão da economia mercantil (produção e troca de mercadorias) O Estado absolutista no Ocidente • Qual a origem do Estado absolutista? Ele foi produzido por transformações na estrutura do Estado aristocrático e da propriedade feudal. – O feudalismo era caracterizado por unidades de produção e dominação política, portanto, com soberania fragmentada. – Os senhores feudais perderam poder com o fim da servidão [comutação do trabalho servil para o arrendamento ou trabalho assalariado] – O resultado desse processo [no plano político] foi o “deslocamento da coerção político-legal no sentido ascendente, em direção a uma cúpula centralizada e militarizada – o Estado absolutista” (p.19) – do nível local para o nível nacional. – [No plano econômico] foi a consolidação das unidades produtivas feudais. O Estado absolutista no Ocidente • Para Anderson, os “Estados monárquicos da Renascença [sécs. XV e XVI] foram em primeiro lugar e acima de tudo instrumentos modernizados para a manutenção do domínio da nobreza sobre as massas rurais” (p.20) • E a burguesia? – Para Engels e Marx, eram “contrapeso ao poder da nobreza” ou “pedra angular” do Estado – Para Anderson, essas noções são incorretas. • Havia pressão da burguesia sobre um Estado representante da aristocracia rural. • A burguesia manipulava a nobreza, mas não a dominava (p.38). O Estado absolutista no Ocidente • Mudanças jurídicas expressavam nova ordem econômica que se constituía: adoção do direito romano renovado. – Caráter absoluto da propriedade privada [da terra] e regras de comércio. • “A assimilação do direito romano na Europa do Renascimento foi um indício da difusão das relações capitalistas nas cidades e no campo” (p.26) e correspondeu aos interesses da burguesia comercial e manufatureira. • Ao mesmo tempo, era expressão da tendência de centralização do poder em governos monárquicos [reação da nobreza ao fortalecimento da burguesia = poder discricionário do monarca] Luís XIV, rei sol Rigaud O Estado absolutista no Ocidente • Transformações estruturais do Estado aristocrático ou inovações institucionais do Estado absolutista: – Exército: ainda não era força nacional formada por recrutas, mas massa heterogênea de pessoas, inclusive com mercenários estrangeiros [receio de armar os camponeses]. Permanece a racionalidade voltada para a guerra como resquício feudal. – Burocracia: burocracia tratada como propriedade vendável a indivíduos privados [o que adquire o cargo ressarce o curso com abuso de privilégios e corrupção] e troca de favores entre a burocracia e o monarca. – Tributação: o maior peso da tributação recaía sobre os pobres (servicios, na Espanha; ou taille ou gabelle, na França). A classe senhorial era isenta de impostos diretos. Motivos de rebeliões de pobres e camponeses contra coletores de impostos. – Comércio: guiado pela teoria mercantilista atende à lógica belicista da conquista e do monopólio comercial. Riqueza e guerra estavam interligados. Reforça, no entanto, o caráter nacional dos mercados. – Diplomacia (séc. XVI): marca do surgimento do Estado absolutista, pois define um conjunto de unidades políticas claramente definidas num “sistema estatal internacional”. Apesar disso, a noção de nacionalismo ainda era difusa, pois o Estado era visto como patrimônio do monarca. O Estado absolutista no Ocidente • Anderson: “todas as estruturas do Estado absolutista revelam, portanto, a influência à distância da nova economia em ação no quadro de um sistema mais antigo: proliferavam as ‘capitalizações’ híbridas de formas feudais, cuja própria perversão das instituições futuras (exército, burocracia, diplomacia e comércio) constituía uma apropriação de objetos sociais passados para reproduzi-los” (p.39). O Estado absolutista no Ocidente • No entanto, a burguesia já era forte o suficiente para deixar marcas no Estado absolutista – Paradoxo: o absolutismo representa um aparelho criado para proteção da propriedade e privilégios da aristocracia e, ao mesmo tempo, assegurava interesses da burguesia mercantil e manufatureira emergente – Ex. integração de mercados, protecionismo, dívida pública, confisco de terras da igreja, colonização e companhias de comércio O Estado absolutista no Ocidente • O Estado absolutista “cumpriu certas funções parciais na acumulação primitiva necessária ao triunfo ulterior do modo de produção capitalista” (p.40) • Isso foi possível por causa da compatibilidade entre programa do Estado absolutista e operações do capital mercantil e manufatureiro. – Monarquia e incentivo ao comércio, apesar do caráter feudal do absolutismo. O Estado absolutista no Ocidente • Para Anderson, o Estado absolutista estava “fundamentado na supremacia
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