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ERNST TUGENDHAT - O que é filosofia

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O que é filosofia?1 
 
Ernst Tugendhat 
 
 
I 
 
Apesar de todas as dúvidas quanto à possibilidade 
de se chegar a um acordo relativo a um conceito unitário 
de filosofia, devo agora fazer uma tentativa de esboçar o 
que se quer dizer com esta palavra. É inevitável que nem 
todos possam se pôr de acordo acerca do mesmo. O 
critério decisivo deve ser aqui que o máximo possível do 
que historicamente se considerou filosofia caia sob tal 
conceito. O que é então filosofia? 
Talvez a maneira menos capciosa possível de 
proceder consista em partir de algumas determinações 
do conceito de filosofia fornecidas por reconhecidamente 
grandes filósofos. Uma maneira muito concisa de fazê-lo 
encontramos em Husserl (Meditações Cartesianas): a 
filosofia é designada como uma “ciência universal a 
partir de uma fundamentação absoluta”. Uma 
determinação semelhante encontramos em Hegel no 
começo de sua Enciclopédia, embora em Hegel tanto o 
conceito de universalidade quanto o de fundamentação 
absoluta sejam entendidos de forma bastante diferente 
de Husserl. Faz perfeitamente sentido deixar a princípio 
os conceitos que ocorrem em tal determinação um tanto 
 
1 O presente artigo corresponde às duas primeiras aulas do curso 
“Vorlesungen über Methode der Philosophie” ministrado pelo Prof. 
E. Tugendhat na Universidade Livre de Berlim em 1982. O texto é 
inédito e a tradução do alemão para o português, de responsabilidade 
de Maria Clara Dias, foi feita a partir do manuscrito, não revisado, 
cedido pelo autor. – In: M. C. Dias (org.), O que é filosofia? Ouro Preto: 
IFAC/UFOP, 1996, p. 7-33. 
quanto vagos. O importante é o seguinte: tanto Husserl 
como Hegel entendem a filosofia, primeiro, como ciência 
(este, pois, é o conceito superior), e, em seguida, 
distinguem-na das demais ciências quanto (1) ao 
conteúdo e (2) ao método. Quanto ao conteúdo: ela é, 
como diz Husserl, universal; de algum modo ela visa o 
todo. Quanto ao método: o ponto de vista da 
fundamentação é radicalizado. 
Se voltarmos bem atrás na história, até Platão e 
Aristóteles, encontraremos em Aristóteles, nos dois 
primeiros capítulos da Metafísica, uma determinação 
bastante semelhante: uma ciência mais alta que as 
demais e, [8] isso deve significar uma ciência que 
contenha na mais alta medida as propriedades 
características das ciências: universalidade e 
fundamentação. 
Façamos, contudo, mais uma amostragem: Kant. 
Aqui as coisas ficam um pouco mais complicadas. Kant 
faz, na Crítica da Razão Pura (B 866), uma distinção entre 
um “conceito da escola” (Schulbegriff) e um “conceito do 
mundo” (Weltbegriff) de filosofia. O “conceito da escola” 
diz: a filosofia é “o sistema (...) dos conhecimentos 
racionais a partir de conceitos”. O que isso deve 
significar não é, sem mais, compreensível. Devo retornar 
a esse tema na próxima seção. De todo o modo, Kant 
quer com isso caracterizar o lado metódico da filosofia, 
acerca do qual até aqui ouvimos dizer que está de uma 
forma especial voltado para a fundamentação. No que 
diz respeito ao chamado conceito do mundo, Kant 
esclarece que entende por essa expressão “o que 
interessa necessariamente a todos”. Com base nessa 
elucidação ele diz que a filosofia, segundo o “conceito do 
mundo”, é a “ciência dos fins últimos da razão humana”. 
Ao invés dos fins últimos da razão humana, Kant 
poderia também simplesmente ter falado dos fins 
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últimos do ser humano, e o que ele considerava como 
fins últimos poderia ser compreendido sob o título da 
felicidade e da moral, e estes últimos, por sua vez, 
poderiam ser colocados o sob o título do bem. A filosofia 
de acordo com o conceito do mundo refere-se, portanto, 
àquilo que é bom para nós; ela é agora distinguida das 
outras ciências na medida em que estas, em termos 
práticos, podem apenas fornecer o meio para um fim 
dado, ao passo que certamente podemos também ter em 
vista algo como um saber acerca daquilo que é bom para 
nós, não enquanto meio, mas como fim. O que Kant tem 
em vista aqui como tema da filosofia é algo que pode ser 
também descrito, no jargão atual, como a questão acerca 
do sentido da vida. Com a expressão “o sentido da vida” 
se quer dizer aproximadamente também o que podemos 
descrever como o seu fim ou finalidade (Zweck). Kant faz 
referência aqui explicitamente também ao significado 
corrente da palavra filosofia, segundo o qual 
descrevemos como filósofo alguém que sabe viver 
corretamente, e isso quer dizer também: alguém que é 
capaz de aconselhar corretamente, pois isso pressupõe: 
alguém que saiba o que é bom. Kant retoma com isso 
explicitamente um sentido que a palavra “sophia” já 
possuía com os gregos. 
Como se relaciona, então, essa determinação do 
tema da filosofia com a que encontramos anteriormente 
em Husserl, Hegel e Aristóteles, aquela, portanto, 
segundo a qual a filosofia deve, de alguma maneira, 
visar o todo? Para Husserl e Hegel o bem também 
pertence essencialmente a esse todo. E também 
Aristóteles reflete explicitamente, no começo da 
Metafísica, sobre o fato de que o bem também deve 
pertencer enquanto princípio (Grund) supremo do agir 
aos princípios supremos. Poder-se-ia, pois, dizer: a [9] 
caracterização kantiana apenas torna explícito o que os 
grandes filósofos também sempre tiveram em vista em 
suas auto-reflexões, e poderíamos exprimir isso da 
seguinte maneira: se a filosofia, distintamente das outras 
ciências, deve visar o todo, então por esse todo já se tem 
sempre em vista o todo entendido em termos práticos, de 
nossa autocompreensão e de nossa compreensão do 
mundo. Poder-se-ia, portanto, entender o “conceito do 
mundo” de filosofia em Kant como tendo o objetivo 
particular de lembrar que, ao se falar aqui do todo, ou, 
como em Aristóteles, do mais universal, não se deve 
entendê-lo em termos simplesmente teoréticos - como 
seria o caso se falássemos do mundo como o domínio 
total das experiências teóricas - mas, sim, precisamente 
também em termos práticos. Também em termos 
práticos ou, quem sabe, até mesmo em termos 
primeiramente (primär) práticos? Para Kant havia um 
primado do prático. O mesmo já ocorria também para 
Platão, que foi o ponto de partida de Aristóteles. Aquele 
saber especial que é almejado pela filosofia e que não é 
um saber de uma ciência particular é, para Platão, não 
apenas também, mas, sobretudo, referido ao bem. 
O que se segue de tudo isso para o conceito de 
filosofia? O mais razoável, parece-me aqui, é admitir a 
indicação de Wittgenstein de que muitos conceitos 
devem ser compreendidos no sentido das “semelhanças 
de família”. Como exemplo Wittgenstein toma o conceito 
de “jogo”. É necessário que todos os jogos possuam algo 
em comum? Ele responde: não: 
 
“Vemos uma complicada rede de semelhanças que se 
envolvem e se cruzam... Não posso caracterizar melhor 
tais semelhanças do que através da expressão 
‘semelhança de família’; pois assim se envolvem e 
cruzam as diversas semelhanças que existem entre os 
membros de uma família: estatura, traços fisionômicos, 
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cor de olhos, o andar, o temperamento etc. - E digo: os 
“jogos” formam uma família. 
E do mesmo modo, as espécies de número, por exemplo, 
formam uma família. Por que chamamosalgo de 
“número”? Ora, talvez porque tenha um parentesco - 
direto - com muitas coisas que até agora foram chamadas 
de número; por isso, pode-se dizer, essa coisa adquire um 
parentesco indireto com outras que chamamos também 
assim. E estendemos nosso conceito de número do 
mesmo modo que, para tecer um fio, torcemos fibra por 
fibra. E a robustez do fio não está no fato de que uma 
fibra o percorre em toda sua longitude, mas sim em que 
muitas fibras estão trançadas umas com as outras.”2 
 
Também acerca das diversas concepções de filosofia 
pode-se dizer que elas constituem uma família. Vocês 
poderiam temer que isso nos conduza a uma imprecisão, 
mas não é o caso. Devemos considerar os conceitos de 
[10] filosofia como uma família de conceitos, porque caso 
contrário, dogmaticamente, não poderíamos mais 
designar como filosofia o que várias pessoas designam 
como tal. Naturalmente não queremos também ter um 
conceito indeterminado de filosofia, que abarque todo o 
possível e assim também oculte possíveis encruzilhadas. 
O que importa é antes tornar clara a relação das 
diferentes concepções entre si. A maneira mais simples 
de apresentar as coisas é como se tivéssemos diante de 
nós um mapa no qual inscrevemos determinadas 
províncias que se recobrem parcialmente. Ao invés de 
falar, como Wittgenstein, de fibras, falarei pois em 
regiões. Ao continente, por assim dizer, no qual tudo se 
passa, chamarei saber. Todas as caracterizações 
fornecidas até agora concordam que a filosofia seja um 
determinado saber, ou melhor, a aspiração a um 
 
2 L. Wittgenstein, Philosophische Untersuchungen, 66/7. 
determinado saber. Mas existem naturalmente diferentes 
formas de saber e de ciências que não são descritas como 
filosóficas. O que, então, há de privilegiar a filosofia no 
domínio do saber? Para isso acabamos de ver três 
determinações: (1) que o saber se refira de algum modo 
ao todo ou que seja especialmente geral, universal; (2) 
que se trate de um modo privilegiado de fundamentação; 
(3) que o saber se refira ao bem. Do modo como o 
conceito de filosofia é introduzido em Husserl e Hegel e 
já também em Aristóteles, não precisaríamos falar aqui 
em semelhanças de família. Ao contrário, nesses filósofos 
as duas regiões do saber universal e do saber 
privilegiadamente fundamentado coincidem e 
compreendem, como uma sub-região, a do bem. Mas se 
agora, de acordo com Kant e Platão, o saber do bem deve 
ser a determinação primária, surge aqui então um ponto 
central que não aparece na elucidação precedente. 
Podemos, então, prosseguir e, sem rodeios, separar as 
regiões que até aqui, em larga medida, ainda coincidiam. 
É, por exemplo, plausível deixar que se recubram a 
região do saber universal e a da fundamentação 
privilegiada? Tomemos como exemplo uma concepção 
de filosofia como a de Heidegger. Para ele a questão 
fundamental da filosofia é a questão do ser, isto condiz 
com o modelo visto até agora, na medida em que o ser já 
é também, segundo Aristóteles, o mais universal. Por 
outro lado, Heidegger abandonou a idéia de uma 
fundamentação absoluta. Só podemos, portanto, 
inscrever sua concepção em nosso mapa, se as regiões da 
universalidade e a da fundamentação privilegiada não 
estiverem mais simplesmente sobrepostas. Do mesmo 
modo, podemos agora também levar em conta a 
possibilidade de que alguém assuma uma concepção de 
filosofia que se refira ao bem, mas que não esteja 
necessariamente associada nem a uma orientação para o 
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todo, nem para uma fundamentação privilegiada. 
Naturalmente todo filósofo que entenda sua 
concepção de filosofia, seja mais estreitamente, como 
indicado ou de uma outra maneira qualquer, seja mais 
amplamente, tem razões para tais delimitações. Dessas 
razões não tratarei agora. [11] Contento-me 
simplesmente em apresentar o ponto de partida para a 
produção de um mapa que fixe o teor descritivo de cada 
determinação conceitual em sua relação com as demais, 
de tal sorte que as partes possam, antes de mais nada, 
chegar a um acordo acerca do conteúdo de suas 
concepções. 
Coloca-se agora a questão se devemos separar ainda 
mais os resultados até agora obtidos. Tudo o que 
obtivemos até agora repousa sobre o pressuposto de que 
se trate sempre de um saber, ou melhor, de uma ciência. 
Não deveríamos, contudo, levar em conta a possibilidade 
de que existam também concepções de filosofia que não 
a consideram como uma ciência? Isto significaria, então, 
que não mais inscreveríamos todo o complexo de nossas 
três regiões parcialmente coincidentes no continente do 
saber, mas faríamos com que ele avançasse, em parte, 
para dentro do oceano que banha esse continente. 
Teríamos, assim, levado em conta a possibilidade de 
poder também chamar filosofia um empreendimento que 
estivesse de algum modo relacionado ao todo, ou ao 
bem, ou a ambos, porém não mais sob a forma do saber. 
Falar de uma fundamentação privilegiada fora da 
dimensão do saber não teria sentido algum, pois falar em 
fundamentação remete, com efeito, essencialmente a um 
saber ou opinar e isso, tal como é compreendido, seria, 
fora dessa região, desprovido de qualquer sentido. Resta, 
no entanto, a possibilidade de que ao menos duas das 
regiões até aqui mencionadas: a referência ao todo e a 
referência ao bem, não mais sejam entendidas como 
saber. Mas o que positivamente significaria isto? 
Aqui uma referência a Hegel pode prosseguir nos 
ajudando. Para Hegel três saberes se referem ao absoluto, 
logo, ao todo, quais sejam: a arte, a religião e a filosofia. 
A filosofia se distingue dos outros dois precisamente 
pelo fato de referir-se ao absoluto, no meio constituído 
pelo pensamento, ou precisamente pelo saber. Hegel 
tomou com isso uma decisão conceitual que não deixa o 
conceito de filosofia estender-se além do conceito de 
saber, mas que ao mesmo tempo implica que uma das 
regiões que deve ser igualmente definitória para o 
conceito de filosofia avance além da fronteira do saber 
para dentro do domínio da arte e da religião. “O que 
importa?” - poder-se-ia retrucar. “Vemos exatamente 
esse parentesco e podemos ao mesmo tempo estabelecer 
que só denominamos filosofia a relação ao todo quando 
ela se situa no meio constituído pelo saber ou pela 
opinião.” Devemos, contudo, estar preparados para a 
possibilidade de não haver um limite nítido entre as 
regiões que delimitamos mutuamente. Por que não 
deveríamos deixar aberta a possibilidade de uma 
filosofia poética ou uma filosofia religiosa, tanto mais 
que, de fato, têm ocorrido na história semelhantes 
criações? Para manter aberta a possibilidade dessas 
delimitações contidas nas concepções tradicionais de 
filosofia, devemos deixar aberto também um outro lado: 
é perfeitamente [12] pensável que não haja, o limite 
nítido, pressuposto nas determinações feitas até aqui 
entre a filosofia e as ciências particulares.3 Disso tratarei 
na seção seguinte. Mas, no que concerne agora à 
 
3 A frase correspondente do manuscrito alemão é a seguinte: “es ist ja 
durchaus denkbar, dass es nicht die in den bisherigen Bestimmungen 
vorausgesetzte scharfe Grenze zwischen der Philosophie und den 
Einzelwissenschaften gibt” (nota do tradutor). 
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fronteira com a religião e a arte, penso que existem fortes 
razões para não a deixar aberta. Em todo caso, é 
importante dar-se conta do que está em questão aqui. 
A problemática no tocante à religião e à arte tem 
que ser tratada, sem dúvida alguma, separadamente. 
Começarei pela religião. A religião e o mito, por um lado, 
e filosofia,por outro, estão de fato muito próximo um do 
outro, mas exatamente por isso eles me parecem 
incompatíveis. Depois que todas as determinações 
conceituais que mencionei até aqui caíram de certo modo 
no vazio, não tendo ficado de modo algum visível por 
que se deva abraçar um empreendimento assim definido, 
denominado filosofia, esbarramos então com a questão 
da motivação, que também está ligada à gênese histórica 
da filosofia. Aquilo que denominamos filosofia e ao qual 
se referem as determinações conceituais mencionadas até 
agora surge, como se sabe, na Grécia dos séculos VI e V 
a.C., em um processo de emancipação a partir do mito e 
da religião. Como constitutivo do mito e da religião 
pode-se certamente considerar o que gostaria de 
designar como crença, sendo que entendo crença, não no 
sentido, que é na religião igualmente importante, de ter 
confiança,4 mas, sim, no sentido de um “tomar por 
verdadeiro”5 específico, a saber: um assentimento que 
não pode ser recolocado em questão.6 O “tomar algo por 
verdadeiro” é o que a crença e a ciência têm em comum e 
 
4 No alemão há uma única palavra para designar crença e fé, a saber: 
Glaube. O que Tugendhat aqui designou como crença no sentido “de 
ter confiança” é o que em português designamos como fé. (N.tr). 
5 Fürwahrhalten (literalmente: “tomar por verdadeiro”) é o termo 
correspondente em alemão para o termo latino assensus, em 
português: assentimento, a saber: o assentimento dado à pretensão de 
verdade erguida para uma proposição no juízo ou asserção. (N.tr.) 
6 Nicht zu hinterfragend, literalmente: que não admite um 
questionamento regressivo. (N.tr) 
 
o que distingue a ambas da arte. O critério lingüístico do 
“tomar algo por verdadeiro” é o fato de se exprimir em 
enunciados (Aussagesätze). Distinguimos enunciados de 
outras frases, como por exemplo, frases imperativas ou 
frases optativas, por estarem associados a uma pretensão 
de verdade. O suporte gramatical normal de uma frase 
declarativa é a chamada frase indicativa, uma frase 
através da qual dizemos: é assim e assim, e com cada um 
destes “é assim” exprime-se uma pretensão de verdade. 
Ora, é característico de um enunciado e do “tomar algo 
como verdade” nele expresso que possamos indagar por 
sua fundamentação, [13] ou legitimação. Isso está 
relacionado com a sua pretensão de verdade. A 
fundamentação é precisamente o que legitima a 
pretensão de verdade. 
Com isso, chego a um complexo de problemas que 
ainda nos ocupará consideravelmente, em seus detalhes. 
Conforme a pessoa que toma algo por verdadeiro e 
profere um enunciado correspondente também possa 
fundamentá-lo suficientemente ou não, dizemos que a 
pessoa em questão não apenas opina, mas sobe o que 
toma por verdadeiro. Eu acho, por exemplo, que há um 
camundongo na cozinha. “Você acha apenas ou sabe 
disso?” podem retrucar. Eu posso então responder: 
“Bem, saber eu não sei, há apenas alguns indícios disso, e 
também que haja tais indícios, sei disso apenas por 
minha mulher, e ela pode ter mentido ou ter-se 
enganado.” Mas posso também responder: “Claro, eu 
mesmo vi o camundongo, não apenas acho, mas sei 
disso”. Neste caso a percepção é acrescentada como um 
fundamento. Ou eu posso dizer: “Embora não tenha 
visto o camundongo, os indícios deixam bem claro que 
não poderiam ser causados por nada senão um 
camundongo”; neste caso o fundamento é indireto, mas 
ao mesmo tempo suficiente, e eu direi: “É claro que não 
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apenas acho isso, eu sei.” Esse estado de coisas 
fundamental pode ser descrito também dizendo que 
todo enunciado, segundo o seu sentido, pode ser 
verdadeiro ou falso, caso contrário não seria informativo. 
E ligado a isso está o fato de estar sempre envolto em 
uma aura de possíveis dúvidas. O que fazemos quando 
fundamentamos uma opinião ou uma proposição (Satz) é 
eliminar a dúvida, e por isso dizemos então que ao 
menos pensamos não poder mais duvidar, que estamos 
certos dela, que a sabemos. 
Retornemos ‘então ao “tomar por verdade” 
especificamente religioso. Eu o caracterizei antes como 
crença. A palavra crença é ambígua. Algumas vezes a 
empregamos praticamente no mesmo sentido que 
opinar; eu poderia então ter dito: “Creio que há um 
camundongo em minha cozinha”. Mas quando falamos 
de uma crença religiosa não temos em mente apenas, 
como há pouco, uma opinião não suficientemente 
fundamentada, de tal sorte que ela, como em geral ocorre 
com as demais opiniões, nos convida a colocá-la em 
dúvida, mas, sim, uma opinião que em si poderia 
colocada em questão, mas acerca da qual não se admite 
dúvida. Nós nos fiamos nela como se já constituísse um 
saber, um saber baseado na autoridade. O que se crê 
neste sentido vale como fundamentado, porque é 
apresentado como verdadeiro por uma autoridade da 
qual não é lícito duvidar. Pode-se chamar a essas 
autoridades intangíveis de sagradas. O contraste de que 
precisamos aqui entre a religião e a filosofia não consiste 
em que a religião se refira a algo de divino; o contraste 
não reside no conteúdo daquilo que é tomado por 
verdadeiro, mas, sim, na maneira de tomar por 
verdadeiro. Quem toma determinadas coisas por 
verdadeiras porque foram transmitidas por uma tradição 
ou [14] revelação sagrada intangível comporta-se 
religiosamente. Em contraposição, comporta-se 
filosoficamente, em face dos mesmos conteúdos, quem 
não aceita como fundamentação última a fundamentação 
oriunda de uma instância particular que diz ser assim, 
mas insiste em que este conteúdo (tanto quanto todos os 
outros que são afirmados como verdadeiros), quando 
não deve ser colocado em dúvida, deve poder ser 
fundamentado por nós mesmos. Esbarramos aqui na 
relação entre esclarecimento e emancipação que Kant 
destacou em seu pequeno escrito: O Que é Esclarecimento? 
Vocês talvez conheçam a famosa passagem com a qual o 
artigo começa: 
 
“O esclarecimento é a saída das pessoas de sua 
menoridade, da qual é ele próprio culpado. A 
menoridade é a incapacidade de servir-se do 
entendimento sem o governo de outrem. O homem é o 
próprio culpado dessa menoridade quando a causa da 
mesma não está na falta de entendimento, mas na falta de 
decisão e de coragem para se servir do entendimento sem 
o governo de outrem. Sapere aude! Tem coragem de 
servir-te de teu próprio entendimento, é, pois, o lema do 
esclarecimento”. 
 
Com o conceito de menoridade acertamos bem no 
alvo o estado de coisas acima descrito. O conceito 
jurídico de menoridade segundo o qual as pessoas 
abaixo de uma determinada idade não são consideradas 
juridicamente capazes, necessitando de um tutor, remete 
para o conceito psicológico de menoridade utilizado por 
Kant, que é, portanto, suposto quando não consideramos 
que alguém tenha desenvolvido entendimento e 
capacidade de julgar suficientes para que possa tomar 
por si próprio as decisões de sua vida e, isso quer dizer: 
com autonomia. Como uma menoridade, da qual somos 
nós mesmos culpados descreve Kant aquela forma de 
menoridade que não advêm de incapacidade, mas, como 
diz Kant em seguida, do comodismo. Ora, enquanto o 
conceito jurídico de emancipação pressupõe apenas que 
alguém tenha a capacidade de incluir, em suas reflexões, 
as conseqüências que o rompimento das normas 
jurídicas acarretam para ele, o conceito fundamental de 
emancipação psicológica, que está relacionado à idéia do 
esclarecimento é mais abrangente, porque ele pressupõe 
que o indivíduo esteja em condições de, e preparado 
para, colocar em questão também a fundamentação 
intrínseca (innere Begründetheit) das normas dadas de 
antemão, quer se trate de normas jurídicas, quer morais, 
e isso quer dizer: não aceitá-los como válidos ou bons 
com base em autoridades aceitas de antemão. Oque 
Kant aqui descreve como esclarecimento caracteriza 
precisamente o ocorrido na Grécia nos séculos VI e V 
a.C., quando o que então foi denominado filosofia se 
destacou em face da atitude mítico-religiosa. Em sua 
coletânea Conjectures and Refutations, Karl Popper 
ressaltou, no artigo sobre os pré-socráticos, ao meu ver 
com razão, como característica da [15] primeira escola de 
filosofia em Mileto, que ela justamente não era uma 
escola no sentido usual do termo até então, a saber: no 
sentido da transmissão de uma sabedoria, mas no 
sentido de um processo de crítica e exame. O que, em 
termos de conteúdo, nos foi deixado por esses primeiros 
filósofos são teses que dizem respeito sobretudo à 
estrutura da totalidade da natureza, e a isso 
provavelmente desde muito cedo se associavam também 
questões que dizem respeito ao Direito e à Moral. Esta é 
a questão, anteriormente mencionada, acerca do bem, e 
essa questão passou então a ser central, no século VI, 
com os chamados sofistas, logo com o esclarecimento 
grego propriamente dito e com Sócrates. A situação 
histórica parece ser, pois, a seguinte: parece ser uma 
característica geral da sociedade humana antes da 
ocorrência do esclarecimento que sua coesão seja 
mantida por um saber-entre-aspas que está de algum 
modo referido ao todo do mundo e, ao mesmo tempo, ao 
bem. Esse saber-entre-aspas tem o caráter anteriormente 
mencionado da crença. Trata-se, pois, de um “tomar por 
verdadeiro” que na prática atua como um saber. 
Julgamos poder confiar nele sem questionamento, mas, 
distintamente daquilo que cotidianamente chamamos de 
saber, ele não se apóia em uma fundamentação, mas, 
sim, em uma autoridade. Não é um saber que tenha 
passado pela dúvida; ao contrário, a dúvida não é 
consentida. Ela é indevida, pecaminosa. O 
esclarecimento é então o rompimento com esta sujeição à 
autoridade; ele é, pois, a proclamação da autonomia 
intelectual dos homens, e isso significa concretamente o 
seguinte: já que aparentemente não podemos existir sem 
de algum modo saber como nos relacionar ao todo e ao 
bem, somos levados agora a reivindicar também para o 
saber acerca daquilo que até então se encontrava sob a 
guarda da crença exatamente os critérios de 
fundamentação que sempre valeram para o saber 
cotidiano. E agora se diz: ou podemos também alcançar 
um saber autônomo, fundamentado, a respeito desses 
estados de coisas fundamentais, ou compreenderemos 
que tal saber era um saber aparente, e aí teremos de ver 
como será possível seguir vivendo sem esse saber; um 
retorno consciente à menoridade não existe, há quando 
muito um retorno inconsciente. O que naquela época 
surgiu entre os gregos é o que chamamos 
retrospectivamente de ciências particulares e também o 
que chamamos de filosofia em sentido estrito. De ambos 
os lados vê-se radicalizado e universalizado o que já era 
também cotidianamente chamado de saber nas 
sociedades míticas. Um tal processo de radicalização e 
universalização apresenta as seguintes caraterísticas: (1) 
o saber passa a ser buscado de maneira sistemática e 
independentemente de contextos tecno-práticos 
particulares; (2) a passagem pela dúvida é explicitamente 
buscada, ou seja, o aspecto crítico já pertencente ao 
sentido cotidiano do saber é reconhecido agora como 
fundamental para a aquisição sistemática de saber; (3) 
essa idéia do saber vê-se agora também estendida ao [16] 
domínio da crença. O surgimento daquilo que chamamos 
ciência em geral, portanto, das assim chamadas ciências 
particulares e dessa ciência especial, a filosofia, 
aconteceu, pois, de forma mais ou menos simultânea. 
O que no começo da história da filosofia não estava 
claro, mas hoje se tornou mais claro, é que a filosofia se 
encontra propriamente em um domínio intermediário 
peculiar. Quanto ao conteúdo, está mais voltada para o 
que pertencia ao domínio da crença; mas, quanto à sua 
forma está tão orientada para o saber natural como as 
ciências particulares. E a questão é, pois, saber se, acerca 
dos temas especificamente filosóficos, que se encontram 
além das ciências particulares, é de todo possível chegar 
a um saber. A dúvida se, afinal, pode haver um saber 
acerca do todo e do bem, e isso quer dizer, se de todo 
pode haver um saber especificamente filosófico, tem 
desde sempre acompanhado a filosofia. Poder-se-ia 
pensar que esta possibilidade, que talvez aqui não haja 
nada para se conhecer, fosse uma razão adicional para 
deixar aberta a fronteira com o mito. Mas creio que isso 
seria um equívoco. Acabo, precisamente, de dizer que 
não vejo bem como alguém possa, conscientemente, 
retornar à crença. Mas quer seja possível quer não, isso 
em todo caso não se segue do reconhecimento de que 
nada sabemos sobre tais coisas no sentido natural e, 
talvez, até mesmo nada possamos saber, ou ainda, de 
que talvez não haja nada para se saber. A conseqüência 
correta seria então, como foi dito, ver como se pode viver 
com base nesse reconhecimento. 
Ao tratar da delimitação com a religião, eu havia 
partido da questão se devemos estabelecer para a 
filosofia que esta deva ser um saber. As reflexões que 
percorri até agora mostram que, de todo o modo, 
devemos qualificar essa determinação da filosofia como 
saber, principalmente quando se é de opinião que a 
fronteira com a crença não deve ser deixada aberta. A 
delimitação com a crença mostrou que não é possível 
apreender o que é o característico da ciência dizendo 
apenas que se trata de um saber. O que temos em mente 
é bem mais a aspiração crítica ao saber, a pergunta pela 
fundamentação, ou como Sócrates classicamente 
formulou, a capacidade do lógon didónai - em latim 
traduzido por rationem reddere, prestar contas, ou seja, a 
capacidade de realmente fundamentar o que se supõe 
saber. É esse aspecto, o qual, é verdade, já se encontra no 
conceito natural de saber, que se desloca para o centro no 
interesse explícito pelo saber, saber que está dado com a 
formação de algo como uma ciência. Isso deve ser 
destacado porque acabamos de ver que também a crença 
pode ser descrita como um saber-entre-aspas; porque a 
crença, embora não possa prestar contas com autonomia 
daquilo que se crê, na prática atua como um saber. Desse 
modo, a diferença decisiva com relação à crença só se 
deixa manifestar expondo-se à dúvida, e a isso está agora 
também relacionado o fato de que a dúvida possa se 
revelar insuperável. 
[17] Nesse caso, o saber a ser alcançado consistiria 
tão somente em saber que não sabemos A maioria de 
vocês saberá que esta era a concepção que Sócrates tinha 
da filosofia, tal como é descrita de maneira 
particularmente explícita na Apologia de Platão, mais 
especificamente, na defesa judicial de Sócrates. Aí, 
Sócrates apresenta a tarefa de sua vida interrogando seus 
concidadãos (que acreditavam todos eles saber algo 
sobre as coisas essenciais da vida) acerca dos 
fundamentos de seu pretenso saber, exigindo deles lógon 
didónai, ficando claro todas as vezes que eles apenas 
acreditavam saber, mas, como não podiam fundamentar 
o que diziam, na realidade não sabiam, enquanto ele, 
Sócrates, ao menos sabia que não sabia. O que é 
apresentado na Apologia de Platão é o embate entre a 
pretensão de saber filosófica autônoma e o saber 
tradicionalista baseado na crença, e o fato de que essa 
atividade de Sócrates tenha levado à sua condenação à 
morte é bastante coerente, pois um Estado fundado sobre 
a crença se vê solapado em suas bases normativas, 
quando o que se crê acerca do bom e do justo passa a 
poder ser colocado em dúvida e a exigir fundamentação. 
À concepção socrática está associada também a 
significação especial que Platão fornece à palavra 
filosofia em seus primeiros diálogos: filosofia significa 
“amor à sabedoria”, e sua tese é a de que nós, seres 
humanos, apenas com referência ao bempodemos 
aspirar ao saber, portanto, a sabedoria. Esta não era, por 
exemplo, a concepção de Hegel; já Husserl situou-se, em 
certo sentido, no meio. A idéia de uma ciência universal, 
a partir de uma fundamentação absoluta, era para ele 
uma mera idéia que não se podia realizar 
completamente, mas da qual poderíamos nos aproximar 
passo a passo. Creio que deve ter ficado plausível que 
devemos conceber nosso conceito de filosofia de maneira 
suficientemente abrangente, de forma a englobar todas 
essas diferentes concepções acerca da questão se, e até 
que ponto, um saber nesse domínio é possível. 
Devo tirar agora uma conclusão acerca da questão 
sobre o sentido de deixar aberta a fronteira com a 
religião, a crença e o mito. Antes de mais nada, gostaria 
de fazer uma importante observação metodológica que 
vale de modo muito geral para maneira de fixar os 
limites de um conceito. A questão quão ampla ou quão 
estreitamente empregamos uma palavra não é nunca 
uma questão acerca da verdade. Não se pode nunca 
dizer: é falso chamar isto ou aquilo de filosofia; pode-se 
apenas dizer: é falso chamar isto ou aquilo de filosofia, se 
o conceito de filosofia foi fixado como tal e tal. O que 
deve ser exigido é unicamente que se preste contas com 
exatidão do modo como se emprega uma palavra, logo, 
do modo como o conceito é fixado, e como se tem clareza 
acerca do modo pelo qual essa maneira de fixar conceitos 
se relaciona com outras maneiras possíveis. Cada qual é 
naturalmente livre para compreender a palavra filosofia 
com tal amplitude [18] que ela não permaneça limitada 
ao saber fundamentado, mas possa abarcar também a 
crença baseada na autoridade, e é até mesmo um fato 
histórico a existência, por exemplo, de filosofias cristãs. 
Quando essa extensão não é permitida, como eu faço, é 
porque considero esta fronteira especialmente 
importante. Creio que quem a suprime passa por cima 
de uma decisão sem tê-la propriamente tomado. Trata-
se, é o que me parece, de duas atitudes 
fundamentalmente diferentes, e se alguém não reconhece 
aqui a fronteira, isso redunda em reconhecer critérios de 
fundamentação para uma parte de seus enunciados e 
para outra não. Talvez esta seja uma posição possível, 
mas então seria necessário ao menos ter clareza acerca do 
ponto em que a fronteira é transgredida, e por este 
motivo faz sentido traçá-la nitidamente. Parece-me ao 
menos estar claro que não há aqui, em todo caso, uma 
transição contínua. No contexto desta preleção tenho, 
contudo, ainda uma razão adicional para traçar 
nitidamente essa fronteira: nossa questão aqui diz 
respeito aos possíveis métodos da filosofia e, para a 
crença, é constitutivo que ela não siga método algum, 
exatamente porque ela não é um modo de conhecimento, 
mas simplesmente toma suas verdades de uma 
autoridade. Na medida em que, nesta preleção, quero 
indagar pelos possíveis métodos de filosofia, quero 
compreender essa palavra no seu sentido mais próximo, 
qual seja, como métodos de fundamentação. Já indiquei 
que o problema especial da filosofia, diferentemente das 
ciências particulares, consiste em que, logo à primeira 
vista, não está claro como se pode afinal fundamentar 
enunciados que, de alguma maneira, visam o todo e o 
bem; isso, de acordo com o que foi dito, quer dizer 
precisamente indagar se nesse domínio é possível um 
saber no sentido natural. A questão se a filosofia tem um 
método é, portanto, idêntica à questão: como se pode 
fundamentar enunciados filosóficos, e isso redunda na 
questão: como é, de todo, possível a filosofia? Esta 
questão perderia o seu sentido se a colocássemos para a 
crença, simplesmente porque a crença não ergue 
pretensão alguma de fundamentação. Se alguém adotar 
um conceito de filosofia que abarca também enunciados - 
ou seja, um “tomar algo por verdadeiro” - que não 
erguem qualquer pretensão de fundamentação, não 
precisaremos brigar por palavras: ele admitirá que a 
questão que aqui está sendo colocada, acerca das 
possibilidades de fundamentação de enunciados 
filosóficos, só é relevante para aquela parte de seu 
conceito amplo de filosofia que coincide com o meu 
conceito de filosofia em sentido estrito. 
E o que dizer agora da fronteira com a arte? Há 
pessoas que pensam que não se deve traçar entre a 
filosofia e a arte nenhuma fronteira nítida. Eu considero 
isto falso. A fronteira com a arte é muito mais clara do 
que a com a crença. A dificuldade de traçar uma 
fronteira entre a filosofia e a crença consistia em que 
ambas são modos de tomar por verdadeiro. Essa 
característica [19] se manifesta lingüisticamente na 
medida em que ambas se exprimem em enunciados. 
Aqui há portanto um comportamento genuinamente 
concorrencial, que será percebido de forma mais clara em 
relação aos enunciados morais. Um mesmo enunciado 
moral, por exemplo, “não se deve matar”, pode ocorrer 
em um texto religioso e também em um filosófico, e aqui 
então se defrontam, rudemente, a legitimação religiosa 
(Deus ordenou) e a fundamentação natural, autônoma. A 
arte, ao contrário, não consiste absolutamente em um 
“tomar algo por verdadeiro”, e isto se manifesta mais 
uma vez lingüisticamente na medida em que esta não faz 
enunciados. Para as artes não-lingüísticas, isto se 
compreende por si mesmo. Na arte que se expressa 
lingüisticamente, na literatura (Dichtung), é verdade que 
ocorrem enunciados, mas no gênero literário, ou em tudo 
aquilo que inequivocamente mereça esse título: o 
romance, a novela, a epopéia, os enunciados não são 
visados singelamente, mas com uma modificação na 
fantasia ou uma quasi modificação. O escritor não 
exprime com seus enunciados nenhuma opinião, ele não 
diz: é assim, mas descreve possibilidades. Seria, 
portanto, um equívoco acerca do que supomos ser um 
texto literário se envolvêssemos o autor em 
argumentações acerca da verdade de suas frases 
enunciativas. Um escritor apresenta algo que não carece 
nem é passível de fundamentação. Embora também ele 
tenha a.ver com questões acerca do bem viver, não faz 
sobre isso nenhum enunciado e, por conseguinte, não se 
coloca em uma relação de concorrência com um texto 
religioso ou filosófico. Enunciados morais podem ser 
fundamentados religiosamente por recurso a uma 
autoridade; e podemos também tentar fundamentá-los 
filosoficamente, portanto, naturalmente, mas não podem 
ser fundamentados artisticamente, e isso, simplesmente, 
por não estar implicado no sentido da linguagem 
artística. Porque aqui não se encontra nenhuma relação 
de concorrência, alguém pode tanto filosofar como 
escrever literatura, só não pode fazê-lo ao mesmo tempo. 
A atitude “autoritativa” e a argumentativa, a “crente” e a 
filosófica se excluem mutuamente porque elas, ao menos 
em parte, possuem o mesmo tema, fazem os mesmos 
enunciados, mas frente aos mesmos se comportam de 
forma distinta. O artista, ao contrário, não fundamenta 
nada, não porque ele, tal como o crente, tenha banido a 
dúvida, mas porque ele tem a ver com uma matéria que 
de modo algum incita a dúvida, no sentido teórico desse 
termo. 
Talvez esse contraste seja problemático, mas, de 
todo o modo, parece-me valer para a delimitação com a 
obra literária (Dichtung) o mesmo que para a delimitação 
com a crença, a saber: que uma delimitação nítida faz 
sentido - ao menos no contexto da questão que está 
sendo discutido nesta aula porque tanto na arte como na 
crença, ainda que por razões distintas, não há uma 
questão de fundamentação. 
[20] Aqui mais uma vez posso dizer: também aquele 
que tem em vista uma filosofia literária, não pode colocar 
para este tipo de filosofia a questão de como 
fundamentar seus proferimentos, pois, se erguesse 
enunciados com uma pretensão de fundamentação, 
então já se trataria de filosofia, no que chamei sentido 
estrito do termo, e não de uma obra literária. Insisto,portanto, em situar a filosofia, tal como parece ter sido 
quanto ao conteúdo definida por diferentes filósofos, no 
círculo do pensamento científico, com as pretensões de 
fundamentação características para o conceito natural de 
saber. 
Ora, vimos anteriormente que existem filósofos 
como Husserl ou Hegel que vão até mesmo além e 
propõem uma idéia de filosofia, segundo a qual ela não 
se distingue das ciências apenas por possuir um tema 
especial, mas também pelo fato de fundamentar seus 
enunciados ou de uma maneira superior ou mais radical, 
ou de uma outra maneira, absoluta, qualquer que seja o 
sentido deste termo. Tomemos isso tão somente como 
uma tese possível. Nosso problema deve ser como a 
filosofia pode fundamentar, em geral, as questões por ela 
levantadas. Será que de todo há - assim deve ser 
formulada a questão - métodos filosóficos específicos, 
portanto, modos de fundamentação específicos? Esta é a 
questão mais geral e abarca a questão acerca da 
existência de modos de fundamentação filosóficos que 
sejam também de algum modo ainda mais rigorosos ou 
superiores aos das demais ciências. 
O que quero fazer neste curso é examinar as 
diferentes noções de métodos filosóficos particulares 
quanto a sua plausibilidade. A noção de que existe um 
modo de fundamentação filosófico particular implica 
que a filosofia paire, de alguma maneira, acima das 
ciências particulares. Quando consideramos como 
característica das ciências particulares, à exceção da 
matemática, serem todas elas ciências empíricas, e isso 
quer dizer, que elas fundamentam seus conhecimentos 
mediante a experiência, isso deveria, então, significar 
que de alguma maneira existe um domínio de 
conhecimentos aquém ou além da experiência, o que, 
naturalmente, nos soa extraordinariamente estranho. Há 
boas razões para suspeitar que esse domínio filosófico 
especial não seja senão um resíduo secularizado da 
origem religiosa da filosofia. Por um lado, deve tratar-se 
de um saber autonomamente fundamentado, mas, se 
nesse saber filosófico, por oposição à crença religiosa, o 
sentido natural de saber deve se fazer valer, devemos 
ser, então, levados a pensar que aquilo que designamos 
no sentido cotidiano como saber é sempre um saber 
empiricamente fundamentado. Por conseguinte, sempre 
houve na filosofia moderna tendências que contestavam 
a possibilidade de um saber filosófico específico. O 
primeiro e mais significativo filósofo a defender esse 
ponto de vista foi David Hume. Há, segundo Hume, 
apenas duas espécies de saber legítimo: primeiro, saber 
empírico e, segundo, o matemático. A princípio, a [21] 
mesma concepção foi defendida no nosso século pelo 
positivismo lógico, ensinado no assim chamado Círculo 
de Viena formado em torno de Schlick e Carnap, no 
início da década de trinta - os mais importantes 
manifestos dessa escola aparecem nos dois primeiros 
volumes da revista Erkenntnis. Por positivismo 
compreende-se em geral que apenas o chamado saber 
positivo, e isso deve significar: saber empírico, seria um 
verdadeiro saber. O novo positivismo denomina-se 
positivismo lógico porque concebe que a lógica, embora 
não sendo empírica, consista apenas de tautologias. A 
matemática seria, por sua vez, fundada completamente 
na Lógica. Deste modo resulta, como em Hume, que 
existem apenas duas espécies de conhecimento: o 
analítico da lógica e da matemática e o empírico das 
ciências da experiência. 
Se quisermos nos orientar acerca da questão se 
existe a possibilidade de enunciados especificamente 
filosóficos e de uma espécie de fundamentação 
especificamente filosófica, deveremos em certo sentido 
nos situar entre essa posição cética e a tese segundo a 
qual existem fundamentos particularmente filosóficos, 
tal como a encontramos na Fenomenologia de Husserl e 
no Idealismo Alemão em Fichte e Hegel e, finalmente, 
também em Kant. A posição cética é à primeira vista 
muito sedutora, mas já em um segundo olhar surgem 
dificuldades. Devemos também ser céticos em face dos 
céticos. Assim, se coloca imediatamente a questão acerca 
do sentido dos enunciados feitos pelos próprios filósofos 
céticos e por eles reclamados como verdadeiros. Como se 
fundamenta, por sua vez, o enunciado de que todos os 
enunciados dotados de sentido se fundam na 
experiência? Esse enunciado não pode ser, por sua vez, 
considerado como uma questão empírica. Além disto, 
surge imediatamente a questão: o que devemos então 
entender por experiência? Será que a questão: “o que 
devemos entender por empiria?” é ela própria uma 
questão empírica? Tanto Hume quanto o positivismo 
lógico certamente fizeram suposições sobre o que 
significa examinar empiricamente um enunciado. Como 
proposições empíricas mais elementares foram 
consideradas proposições acerca de nossos chamados 
dados sensíveis. Proposições, portanto, com conteúdo do 
tipo: “agora tenho uma representação de amarelo”. 
Frente a isso, defendeu-se nesse ínterim, de uma maneira 
bastante geral, a concepção segundo a qual as 
proposições empíricas elementares não são as 
proposições de cada indivíduo sobre os conteúdos de 
suas percepções, mas sim enunciados acerca de objetos 
intersubjetivamente perceptíveis em um sistema espaço-
temporal objetivo. Nosso problema aqui não pode 
consistir em examinar qual destas concepções é a correta, 
mas o que importa é ver que já a tese de que haja apenas 
um saber lógico-matemático e um saber empírico é, em 
certo sentido, contraditória, posto ser ela mesma um 
enunciado que não é nem lógico nem empírico e que, 
além disso, enseja [22] outras questões, como a questão: 
“o que significa então experiência, e o que significa um 
saber fundamentado de acordo com a experiência?”. 
Deste modo, torna-se evidente que, juntamente com o 
estabelecimento das chamadas ciências particulares, um 
determinado todo é pressuposto - precisamente o todo 
da experiência científica - que dessa maneira, ainda não 
estava de modo algum presente, ao menos 
explicitamente, no todo dado desde sempre na vida 
mítica pré-científica. A filosofia não assume 
simplesmente, numa nova abordagem, a perspectiva 
para o todo que estava dado de antemão na vida mítica, 
e que, de acordo com a sua concepção, só poderia ser 
objeto de uma crença. Algumas coisas escapam; outras, 
através de um modo de acesso especificamente científico, 
fazem-se notar pela primeira vez e o que certamente 
permanece, ainda que eventualmente com um novo 
sentido, é a perspectiva para o sentido da vida, para o 
bem. Devemos entender com isso que o positivismo 
lógico não possa ser de modo algum sustentado e que 
exista, sim, um domínio do conhecimento próprio à 
filosofia? Isso teremos que examinar. Já agora gostaria de 
sugerir uma possibilidade que imediatamente nos 
ocorre: posto que nós, seres humanos, somos, nós 
mesmos, objeto da ciência empírica, ocorre-nos se 
também tais questões que acabo de mencionar - a 
questão acerca da essência da experiência científica e, 
isso quer dizer, da experiência humana em geral - não 
devam, por sua vez, cair sob a competência de 
determinadas ciências empíricas. A questão acerca da 
essência da experiência humana e tudo a ela relacionado 
poderia ser tema da psicologia e da biologia. A questão 
acerca do bem poderia ser tema das ciências empíricas 
da cultura. Há atualmente até mesmo muitas pessoas 
que consideram isso óbvio, de tal modo que, por fim, 
toda necessidade de um método de fundamentação 
propriamente filosófico seria suspensa. Eis aqui a razão 
por que temos que evitar partir de uma concepção de 
filosofia que de antemão trace uma nítida fronteira entre 
a filosofia e as ciências particulares. Com certeza, a 
perspectiva indicada acima também encerra suas 
dificuldades. Não está claro como podemos de todo 
conservar as questões filosóficas enquanto tais se as 
abordamos empiricamente.Eu digo apenas: não está 
claro, não afirmo que não seja possível. Já a investigação 
empírica filosoficamente relevante carece ela mesma, 
manifestamente, de uma orientação filosófica, e isso 
parece mais uma vez pressupor que haja, sim, algo como 
uma reflexão especificamente filosófica que se distinga 
da investigação das ciências particulares. 
Com isso nomeiam-se questões que se tornam 
especialmente candentes, caso se mostre que não existe 
um domínio propriamente filosófico. Nessa direção 
posso, nestas preleções, fornecer algumas perspectivas; 
primeiro, porque eu mesmo não possuo uma concepção 
clara; segundo, porque a própria tarefa destas preleções, 
entendidas como lições para [23] introdução e orientação, 
deve consistir em uma discussão crítica das idéias 
existentes acerca de possibilidades autônomas de uma 
fundamentação filosófica distinta das ciências 
particulares. 
 
 
 
II 
 
O que procurei fazer na seção anterior foi, 
sobretudo, distinguir a filosofia da religião por um lado e 
por outro da arte. A necessidade dessa distinção 
resultava de que as três, filosofia, religião e arte, de 
alguma forma se referem ao todo, seus meios, porém, são 
distintos. A filosofia pertence à ciência, ela é, em certo 
sentido, ela mesma ciência, e isso quer dizer, está 
referida à verdade, aliás à maneira de uma 
fundamentação. Seu meio é o questionamento e, por isso 
mesmo, a dúvida e, seu procedimento, uma vez que ele 
consiste em indagar pela razão de ser, é argumentativo e 
metódico. Seu meio é de tal forma a dúvida que 
permanece em aberto se nós na filosofia de todo saímos 
da dúvida, do saber de que não sabemos. O contraste 
entre a religião, por um lado, e a arte, por outro, e o 
pertencimento da filosofia à ciência tornam obrigatório a 
análise da distinção entre a filosofia e as ciências, e tal 
será o tema da aula de hoje. Assim como a distinção da 
filosofia relativamente à religião e à arte está ligada à 
proximidade da filosofia relativamente à ciência, assim 
também a necessidade de distinguir a filosofia das 
ciências está, inversamente, ligada ao aspecto que a 
filosofia, a religião e a arte têm algo em comum, a saber, 
o fato de que nelas de algum modo sempre se trata da 
vida em seu todo. Deixei esse conceito do todo na vez 
passada muito indeterminado, e ele só pode ser aclarado 
tematizando-se a distinção entre a filosofia e o que muito 
significativamente chamamos de ciências particulares, e, 
mais uma vez, devemos estar preparados para enfrentar 
o fato de que aqui existem diferentes concepções. É 
muito mais fácil dizer em que medida as ciências 
particulares têm a ver com domínios parciais do que 
determinar o que deve se estender além desses domínios 
particulares de modo a constituir precisamente o 
domínio da filosofia. Quando se pergunta a propósito de 
uma ciência particular: o que é a física, a biologia, a 
sociologia, a arte, temos a possibilidade de apontar para 
um domínio de objetos, a natureza inanimada, a vida, as 
relações sociais, os produtos da arte e sua história etc. 
Com isso, naturalmente, ainda não se disse muito, seria 
necessário agora dizer alguma coisa sobre a perspectiva 
na qual semelhante domínio de objetos é tematizado, 
bem como o método, mas de qualquer modo isso já é um 
começo. Na filosofia não podemos sequer começar com 
semelhante designação de um domínio de objetos. Ou 
devemos dizer acerca da filosofia que ela visa a 
totalidade, que seu domínio de objetos é precisamente o 
mundo? Mas o que estaríamos querendo dizer com “o 
mundo”? Há um filósofo moderno que [24] começou 
exatamente com um enunciado sobre O Mundo, a saber, 
Wittgenstein em seu Tractatus, e a maioria dos filósofos 
pré-socráticos procederam da mesma forma, na medida 
em que seu tema era descrito como sendo o mundo - ho 
kosmos - ou, o que para eles significava o mesmo, a 
natureza - he physis. Nesse conceito de “o mundo” parece 
estar contida uma opção prévia por aquilo que também 
denominamos natureza, ele também parece não abranger 
sem mais o mundo dos seres humanos, e, assim se deu 
que o termo “o mundo”, embora pudesse aparecer como 
o mais abrangente, mais uma vez não foi suficientemente 
abrangente. Eis por que, em geral, a filosofia não tem se 
orientado por esse termo. 
Partamos mais uma vez dos domínios particulares 
das ciências. Poder-se-ia então perguntar: será que a 
ciência particular tematiza também enquanto talo 
domínio no qual ela pesquisa? Será que a física indaga 
acerca da natureza como natureza, a história da arte 
acerca da arte como arte e a matemática acerca da 
essência dos objetos matemáticos? Sobre essa questão 
talvez se possa disputar, mas também há coisas como a 
filosofia da natureza, a filosofia da arte, a filosofia da 
matemática. Estamos, pois, aqui às voltas com um 
domínio limítrofe entre a ciência particular e filosofia. 
Mas, então, poderíamos dar também um passo adiante. 
O que não é mais tema de qualquer ciência determinada 
é aquilo que é comum a todos os domínios de objetos, e 
poder-se-ia dizer então que este seria o domínio temático 
primeiro da filosofia. Mas será que existe tal coisa? Sim, 
isso parece realmente existir. Tomemos, por exemplo, o 
próprio conceito de objeto. Há objetos da física, objetos 
da matemática, mas o que é então comum a eles, o que é 
um objeto enquanto objeto? Assim, chegamos à maneira 
pela qual Aristóteles determina aquilo que caracterizou 
como “filosofia primeira”. Ele não utiliza a palavra 
objeto, mas sim a palavra ente (Seiendes). Tudo o que é é, 
precisamente; ou seja, é ente (seiend). A primeira questão 
da filosofia é, portanto, segundo Aristóteles: o que é o 
ente enquanto ente, em outras palavras, o que devemos 
entender quando se diz que algo em geral é. E Aristóteles 
acrescenta: e também tudo o mais que pertence ao ente 
enquanto ente. Com esse “tudo o mais” Aristóteles tem 
em mente os demais conceitos que são igualmente tão 
universais, que não pertencem ao domínio de objetos de 
uma ciência especial. Conceitos como, por exemplo, 
identidade ou verdade ou a oposição entre possibilidade 
e realidade e necessidade, ou o conceito da relação ou da 
qualidade, ou a oposição entre o particular e o geral. É 
verdade, porém, que também esse equacionamento 
inicial parece conter uma opção preconcebida, talvez não 
pela natureza, mas de qualquer modo certamente pelo 
que podemos chamar de mundo da teoria, o mundo 
teórico. Parece, no entanto, faltar aqui a prática, que, 
como vimos, devia de antemão também estar aí [25] 
incluída. Como um indício disso podemos também 
considerar o fato de que se fala da oposição entre o ser e 
o dever ser. Mas, se realmente existe essa oposição, então 
também o conceito de ser e o de ente não seria, por sua 
vez, suficientemente abrangente. A opção prévia pelo 
teórico nessa concepção de filosofia está naturalmente 
ligada ao fato de que as ciências particulares são na sua 
totalidade disciplinas teóricas. Por isso, ao nos elevarmos 
abstrativamente a partir delas a uma disciplina formal 
geral, não chegamos a nenhum conceito de filosofia que 
possa fazer justiça à sua intenção original voltada para o 
todo. Desde que tomou consciência disso, ou seja, desde 
a concepção abstratizante de Aristóteles, a filosofia tem 
se socorrido na medida do possível com o fato de ter 
passado a existir então as duas coisas: uma filosofia 
teórica que se ocupa com as determinações mais 
universais dos entes e uma filosofia prática que está 
referida ao dever. 
Façamos agora mais uma amostragem com um 
filósofo clássico. Tomemos Kant. Também em Kant se faz 
uma distinção entre filosofia teórica e prática. Quero, 
porém, referir-me a algo diferente, ao modo como Kant 
dá o salto a partir das ciências particulares. Embora, para 
Kant, a filosofia teórica como um todo não se esgote por 
inteironessa caracterização, pode-se dizer que o que 
para Aristóteles era a questão do ente enquanto ente, 
portanto, a ontologia, se transforma na questão que se 
formula da seguinte maneira: quais são as condições de 
possibilidade da experiência? Neste ponto Kant ainda se 
orienta muito de perto por uma ciência teórica específica, 
a saber: pela ciência natural teórica, a física. A física é 
para ele a ciência empírica sistemática por excelência. E, 
agora, Kant leva a cabo em face das ciências empíricas 
um movimento de abstração semelhante ao 
empreendido por Aristóteles com sua questão pelo ente 
enquanto ente. Só que esse movimento de abstração 
experimenta agora em Kant uma virada mais subjetiva. 
Ele pergunta: o que significa dizer que algo pode ser um 
objeto da experiência, e tal é, então, precisamente a 
questão acerca da condição de possibilidade da 
experiência em geral. No contexto da questão assim 
definida reaparecem os mesmos conceitos formais que, 
para Aristóteles, pertenciam à ontologia: conceitos como 
possibilidade e realidade, particularidade e generalidade 
etc. 
Ora, partindo dessa determinação kantiana da 
filosofia teórica ou, em todo o caso, de uma parte da 
filosofia teórica, pode-se empreender mais um passo, o 
qual se encontra em Husserl. Com efeito, pode-se dizer: a 
experiência científica (e podemos entender por isso todas 
as ciências empíricas e não apenas as ciências da 
natureza) está alojada, por sua vez, no todo de nossa 
experiência pré-científica; Husserl cunhou para esse todo 
de nossa experiência pré-científica o conceito de mundo 
da vida (Lebenswelt). Aqui reaparece, portanto, o conceito 
de mundo, mas este é agora determinado de tal forma 
[26] que por ele não se entende mais o todo da natureza, 
mas o todo é agora entendido a partir de nós. Ele 
compreende o todo da natureza, mas é o todo no qual 
vivemos, por isso, mundo da vida, ele é visto a partir da 
nossa perspectiva, e isso tem por conseqüência que esse 
conceito de mundo não deve mais ser primariamente 
entendido num sentido teórico - o mundo no qual 
vivemos não é apenas o mundo factual, mas também o 
possível e, sobretudo, não apenas o teoricamente 
existente (dos theoretisch Vorhondene), mas também o 
sentido (Sinn) a partir do qual nos entendemos - ou no 
caso limite negativo, que nos falta. O discípulo de 
Husserl, Heidegger, retomou esse conceito de mundo ao 
falar de um estar-no-mundo humano (menschlichen In-
der-We/t-Sein), e expôs em um curto escrito, Vom Wesen 
des Grundes, publicado pouco tempo depois de Sein und 
Zeit, um esboço histórico do desenvolvimento do 
conceito de mundo, mostrando que já também para os 
primeiros filósofos pré-socráticos o conceito de cosmos 
era compreendido não apenas teórica, mas também 
praticamente, e naturalmente essa nuance prática 
também encontra expressão na idéia kantiana do 
conceito cósmico da filosofia, mencionado na semana 
passada. 
O conceito de mundo da vida de Husserl fornece-
nos assim a possibilidade de compreender o todo ao qual 
a filosofia deve se referir de uma maneira que não é mais 
puramente teórica, mas que abarca a filosofia teórica e 
prática conjuntamente. Aqui, porém, tenho de afastar 
dois mal-entendidos. Em primeiro lugar, permanece de 
pé, naturalmente, a diferença entre ser e dever ser; não se 
trata de apagar quaisquer diferenças com fundamento na 
coisa, mas apenas de ter uma concepção global 
suficientemente abrangente, no interior da qual tais 
distinções possam então ser feitas. Em segundo lugar, a 
filosofia prática por sua vez também é, naturalmente, 
teórica. Ela é chamada prática apenas porque seu tema é 
a prática. Na determinação básica de que a filosofia é 
essencialmente científica, e isso quer dizer, teórica, na 
qual insisti na vez passada, nada pode alterar-se. 
Mas, com essa explicação de que o tema da filosofia 
deve ser o mundo da vida, muito pouco ainda ficamos 
sabendo, Em primeiro lugar, isso de fato, quase não 
passa de uma mera palavra, e o que eu gostaria de 
mostrar no final desta aula é que, por detrás desse título, 
se escondem diferentes possibilidades de decidir se 
queremos compreender a filosofia antes em uma do que 
em outra direção, Primeiro, é compreensível que se 
pense em ligar essa nova determinação o mais próximo 
possível à determinação aristotélica da ontologia. Assim 
como na concepção ontológica se trata do aclaramento de 
conceitos formais igualmente fundamentais como o de 
objeto ou de ente, do mesmo modo na concepção atual 
também se trataria do aclaramento de semelhantes 
conceitos, só que hoje podemos dizer que estes são 
precisamente os conceitos [27] que já estão dados desde 
sempre junto com a nossa vida ou, de forma mais 
precisa, com o nosso compreender (Verstehen). Essa 
abordagem mais subjetiva permite-nos do mesmo modo 
retomar os conceitos fundamentais da ontologia, só que 
agora formulamos isso precisamente de modo a dizer: 
esses conceitos do ente, da identidade, da verdade etc. 
são conceitos que de algum modo já compreendemos 
desde sempre. Mas essa abordagem permite-nos agora, 
justamente, expandir ao mesmo tempo a nossa base de 
modo a acolher também os conceitos fundamentais da 
psicologia filosófica, da teoria da ação e da ética. 
Partindo, por exemplo, do conceito de verdade, podemos 
dizer agora: a verdade é algo a que estamos dirigidos em 
nossos juízos, assim como nossos enunciados também 
estão referidos à verdade. Coisas como julgar ou asserir 
uma proposição são conceitos fundamentais, dos quais 
podemos dizer, assim como o conceito de verdade, que 
de algum modo já os compreendemos desde sempre. 
Mas do mesmo modo como julgar, assim também querer 
e desejar; do mesmo modo que enunciar, assim também 
pedir e perguntar. Ou assim também conceitos como 
consciência, autoconsciência, razão. Ou ainda: Agir, 
intencional idade, responsabilidade. Há ainda os 
conceitos fundamentais de espaço e tempo, número e 
causalidade que já poderiam ter sido mencionado em 
conexão com a questão kantiana quanto à condição de 
possibilidade da experiência. 
Ora, não é um mero acaso que tais conceitos 
remetam em determinados contextos uns aos outros, e 
podemos perguntar se todos eles não estão, de alguma 
forma ou de outra, direta ou indiretamente, relacionados 
entre si. Por certo, muitos desses conceitos não se deixam 
esclarecer sem uma referência a outros, e assim pode-se 
falar aqui em uma rede de conceitos. 
Com isso, teríamos agora dado um passo a frente. 
Interrogados sobre o tema da filosofia, já poderíamos 
dizer agora algo mais além dessa vaga referência ao 
todo. Poderíamos dizer: o tema da filosofia não os 
conceitos que pertencem ao nosso mundo da vida, e se 
quisermos evitar este termo técnico pouco familiar 
“mundo da vida”, podemos dizer: são os conceitos que 
de algum modo já compreendemos desde sempre, 
Naturalmente, seria um mal-entendido pensar que 
esse conceito só passou a existir depois que Husserl 
cunhou o termo “mundo da vida”. Esse termo permite 
tão somente introduzir num contexto um pouco mais 
unitário algo que tem ocorrido desde sempre na filosofia. 
Se nos perguntarmos quais eram os temas dos quais se 
ocupavam Sócrates e Platão, encontraremos 
repetidamente a questão: “O que é tal e tal coisa”, onde o 
objeto dessas questões sobre o-que-é serão sempre 
conceitos a propósito dos quais Sócrates e Platão sempre 
acentuaram que já os compreendemos desde [28] 
sempre. E em grande medida, se bem que não, de certo, 
exclusivamente, isso vale para toda a história da filosofia. 
A filosofia consiste pois, em grande medida, no 
aclaramento de conceitos. Como vocês bem sabem, eu 
represento em nosso Instituto a filosofia analítica, e vocês 
podei-iam pensar que o fato de que eu dê tanto peso ao 
aclaramento de conceitos decorre precisamente daí. Em 
parte, issopode ser correto. Mas a peculiaridade da 
filosofia analítica é o peso que a mesma dá à linguagem 
no aclaramento de um conceito recorremos a linguagem 
como o meio no qual os conceitos em geral nos são 
dados. Mas, se abstraímos dessa peculiaridade, pode-se 
aceitar para toda a tradição filosófica que nela se trata, 
em grande medida, do aclaramento de conceitos. Até 
mesmo, por exemplo, uma obra como o Lógico de Hegel 
tem a ver com o aclaramento de conceitos, naturalmente 
segundo uma concepção bem determinada, a saber: 
dialética, do que seja o método adequado de aclaramento 
conceitual, mas sempre, em todo o caso, aclaramento 
conceitual. 
Se isso é correto, resulta daí um peculiar contraste 
entre a filosofia e as ciências. As ciências têm a ver com 
fatos e, eventualmente, com regularidades, também estas 
não passam de fatos, embora fatos gerais. 
Lingüisticamente falando, em cada ciência se trata de 
proferir e fundamentar enunciados, na maioria das vezes 
empíricos, mas até mesmo na matemática se trata de 
proposições, de enunciados. A filosofia, em 
contrapartida, parece que nada tem a ver com 
enunciados, mas apenas com o aclaramento de conceitos. 
Há aqui algumas exceções. O princípio da contradição, 
por exemplo, é um enunciado universal, e Aristóteles 
procurou fundamentá-lo de uma maneira determinada. 
Também na filosofia kantiana encontramos 
determinadas proposições que devem ser 
fundamentadas, tais são as chamadas proposições 
sintéticas a priori, como, por exemplo, a lei da 
causalidade. Isso mostra em que consistiriam ou de fato 
consistem as proposições que a filosofia teria ou, em 
parte, tem por tema. Seriam uma espécie de super-leis 
(Supergesetze), assim como, precisamente, a lei universal 
da causalidade (que toda ocorrência tem uma causa) 
seria uma super-lei em face das leis particulares da 
causalidade da ciência natural. Mas o que eu gostaria 
precisamente de dizer é que estas são exceções. Não é 
isto o que em geral acontece na filosofia. Todavia, poder-
se-ia objetar: até mesmo quando se aclaram conceitos, 
isso se realiza numa proposição qualquer. Mas esta seria, 
então, antes algo como uma definição do que uma lei. Eu 
digo: “antes algo como uma definição”, pois não está tão 
claro assim como tais aclaramentos conceituais devam 
ser estruturalmente pensados, e eu não posso mais aqui 
entrar em detalhes, sobretudo porque isso difere de 
acordo com as concepções particulares de filosofia. 
O que então, devemos, compreender afinal por 
conceitos que, como disse, já compreendemos desde 
sempre? O que significa este “já desde [29] sempre” 
(immer schon)? Surge aqui um conceito que desde o início 
desempenhou um papel de grande importância na 
filosofia: o conceito do apriori. Em Kant encontramos 
muito explicitamente a distinção entre conceitos dados a 
priori e conceitos empíricos. Conceitos empíricos são 
conceitos que construímos com base em notas 
características fornecidas pela experiência. Se, agora, 
porém, no que diz respeito aos conceitos a serem 
tematizados pela filosofia, deve se tratar - para me ater à 
formulação de Kant - de conceitos pertencentes às 
condições de possibilidade da experiência, estes não 
podem ser, por sua vez, adquiridos empiricamente. 
Conceitos como verdade ou objeto ou identidade, nós 
não os adquirimos a partir da experiência. Mas, se assim 
é, então o aclaramento de tais conceitos levanta para nós 
dificuldades especiais, resultantes do fato de que ainda 
deveremos de alguma maneira aclara-los. Gostaria de 
recordar aqui as palavras de Santo Agostinho sobre o 
tempo, retomadas em nossos dias por Wittgenstein. 
Santo Agostinho disse: “O que é o tempo? Se ninguém 
me pergunta, eu sei. Mas, se me perguntam, não sei”. 
Isso parece paradoxal. Eu sei e, no entanto, não sei. Mas, 
nesta frase, Santo Agostinho usa a palavra “saber” em 
dois sentidos. O que ele quer dizer é o seguinte: já 
dispomos desde sempre de um conceito do tempo (e, 
neste sentido, sei o que é o tempo), mas quando eu devo 
explicar o conceito, não “consigo (e, neste sentido, não 
sei). Isso parece de fato ocorrer com todos esses conceitos 
dados a priori, e é justamente nisso que eles parecem se 
distinguir nitidamente dos conceitos empíricos. 
Tomemos, por exemplo, o conceito de plutônio. Eis um 
conceito empírico. Eu pessoalmente, por exemplo, sei 
apenas que existe um tal conceito, não sou um físico. 
Mas um físico poderia aclarar esse conceito. Se de todo 
dispomos de semelhante conceito empírico, também 
podemos aclará-lo. Aqui, pois, deveríamos dizer, 
modificando as palavras de Santo Agostinho: Não sei o 
que é o plutônio, mas se eu soubesse e alguém me 
perguntasse, então eu o saberia também no sentido 
estrito de que poderia explicá-lo. 
Como tornar inteligível para nós essa distinção? Já 
disse que os conceitos empíricos são explicados através 
de notas características que podem ser exibidas na 
experiência. Quando, ao contrário, um conceito já 
pertence desde sempre à nossa compreensão, só 
podemos explicá-lo retornando de algum modo à nossa 
compreensão, refletindo sobre a nossa compreensão. O 
aclaramento desses conceitos, pelos quais a filosofia se 
interessa, só pode ter lugar em algo como a reflexão. Mas 
como deve ser entendida essa reflexão? Sobre esse ponto 
não quero me aprofundar agora, pois aqui se separam os 
caminhos dos diferentes métodos filosóficos. Gostaria tão 
somente de registrar os nomes de tais métodos: o método 
dialético, o método da intuição das essências, ou da 
intuição intelectual, o que quer dizer que a reflexão 
equivaleria aqui a algo [30] como uma visão interna, e 
finalmente o método de análise da linguagem: aqui a 
reflexão filosófica é compreendida como uma reflexão 
sobre a maneira pela qual explico o emprego da palavra 
correspondente a alguém que ainda não a conhece e que 
também não conhece nenhuma palavra de igual 
significado. 
Prosseguir aqui significaria dar início à colocação de 
questões filosóficas concretas. Estaria, pois, 
ultrapassando o limite da mera questão: “O que é 
filosofia”, embora isso talvez não seja uma imagem 
totalmente apropriada, pois se poderia dizer, é verdade, 
que a questão: “O que é filosofia?” só pode ser 
respondida na medida em que filosofamos, por 
conseguinte, exibindo concretamente um segmento da 
filosofia. Mas, no curto espaço de tempo de que 
disponho, só posso apresentar uma espécie de 
panorama. 
Gostaria agora de chamar atenção para um outro 
problema que está associado a essa idéia de que a 
filosofia tem a ver com o aclaramento de conceitos dados 
a priori. Com efeito, coloca-se a questão: será que há 
mesmo alguma coisa como esse domínio no qual algo já 
está dado a priori? Como teríamos de pensar isto? A 
filosofia antiga falou aqui de ideae innatae, de 
representações inatas. Para evitar mal-entendidos 
previsíveis, Kant escreveu no início de sua introdução à 
Crítica da Razão Pura: “em sentido temporal, nenhum 
conhecimento em nós antecede a experiência”, mas isto 
não significa que todo conhecimento provenha da 
experiência. Se pensarmos, por exemplo, no conceito de 
número, as crianças só o aprendem quando já têm 
alguma idade. Mas será que elas o adquirem por 
abstração a partir da experiência? Este não parece ser o 
caso. Para Kant, a consciência enquanto tal era, em 
princípio, um domínio fundamentalmente pré-empírico. 
Hoje nos inclinamos a pensar esse apriori de um ponto 
de vista que é, em grande medida biológico e, em parte, 
também histórico, e assim pois, em última instância, sim, 
empírico. Por fim, nossa consciência é ela mesma o 
produto de desenvolvimentos empíricos. Contudo, do 
discernimento desse fato não se segue que já 
disponhamos também de métodos empíricos para 
esclarecer esses conceitos já fornecidos (vorgegeben) a 
priori e que nos estão dados apenas a partir da 
perspectivainterna. 
Em todo o caso, é, o mais tardar, neste ponto que 
nos damos conta de que não é lícito pensar o domínio 
desses conceitos, que já estão dados a priori, como um 
cosmos que, descansando em si mesmo, se defronta com 
a nossa experiência e com as ciências empíricas que a 
investigam. Mas, então, todo o ponto de partida inicial 
de minha explicação da filosofia até aqui, segundo o qual 
a filosofia teria a ver com um domínio próprio que de 
algum modo está diante do das ciências particulares, é 
questionável. Pois parece que, com as diversas ciências 
empíricas em planos diversos, encontramos um 
equacionamento inicial para recuperar por assim dizer 
desde fora a perspectiva [31] interna da filosofia. Isto 
acontece de maneira diversa com a biologia, a psicologia, 
a lingüística e a história. Por um lado, o princípio dessa 
recuperação é um fato, por outro lado não temos 
nenhuma idéia de como ele poderia levar a romper a 
diferença entre a perspectiva reflexiva interna e a 
perspectiva empírica externa. Daí surge uma série de 
problemas, que são problemas entre determinados 
achados empíricos por um lado e achados dados 
reflexivamente por outro, e pode-se dizer agora que são 
exatamente tais problemas que, por sua vez, devem ser 
designados como filosóficos. Poder-se-ia talvez 
apresentar tais problemas como pontos de 
entroncamento críticos, com os quais alguns de nossos 
conceitos dados a priori estão particularmente onerados. 
São conceitos nos quais os diferentes modos de acesso 
estão de tal modo contíguos, que daí resultam 
contradições a desafiar de maneira especial a reflexão 
filosófica. Quero indicar alguns exemplos. Em primeiro 
lugar, o chamado problema da mente e do corpo. Um de 
nossos conceitos dados a priori é o de consciência. Mas 
não somente nenhum filósofo conseguiu dizer até agora 
o que propriamente se quer dizer com isso, como 
também se coloca a questão de como essa consciência, 
caso ela tenha sua sede, se podemos dizer assim, no 
cérebro, e caso o cérebro seja uma realidade biológica e, 
em ultima instância, física, se relaciona com essa 
realidade. Um segundo exemplo: também os conceitos 
de liberdade da vontade e responsabilidade parecem 
estar entre os conceitos já dados a priori. Quando uma 
pessoa fez algo intencionalmente, imputamos a ela o 
resultado, nós a responsabilizamos moral e 
juridicamente pelo que fez. Dependeria dela, é o que 
dizemos, ter agido de outra maneira. Por outro lado, a 
psicologia tende a mostrar, a partir da perspectiva 
externa, que a pessoa, em razão dos pressupostos que ela 
traz consigo, e no ambiente em que ela cresceu, não 
poderia ter agido senão do modo como agiu. Portanto: 
não poder agir de outro modo, necessidade na 
perspectiva externa; poder agir de outro modo, 
possibilidade na perspectiva interna intersubjetiva. Um 
terceiro exemplo: nossas concepções morais e legais 
erguem a pretensão de serem em si fundamentáveis, mas 
a sociologia histórica parece abrir a perspectiva de que se 
trata tão somente de epifenômenos de interesses 
econômico-materiais. 
Devemos dizer que, em todos esses problemas, 
estaria de um lado a filosofia e do outro uma ou mais 
ciências empíricas? Mas como designar então a 
perspectiva que considera ambos os lados? Se a filosofia 
ergue uma pretensão à totalidade, todos esses problemas 
são em seu todo, com os seus dois lados, problemas 
filosóficos; com efeito, o critério do qual eu havia 
partido, de que a filosofia, ao contrário das ciências 
particulares tem a ver de certo modo com o todo, 
também se aplica quando a filosofia tem de incluir uma 
ciência particular, mas ao mesmo tempo se estende além 
dela em seu [32] questionamento. Posto que o cientista 
particular também é uma pessoa e vê a perspectiva 
interna, está claro que podemos dizer aqui, também 
inversamente, que as ciências particulares adentram por 
sua vez contextos que são de relevância filosófica. 
Ora, dos exemplos que acabo de mencionar, alguns 
têm com toda certeza uma eminente importância prática. 
A questão da responsabilidade, por exemplo, tem efeitos 
imediatos em nossa compreensão do direito penal, ela 
tem ao mesmo tempo efeitos sobre a maneira de 
configurar a própria vida, não importando se algo como 
a idéia da responsabilidade própria desempenhe ou não 
um papel dentro dela. E, do mesmo modo, a questão se, 
por exemplo, consideramos nossa idéia dos direitos 
humanos como uma idéia fundada em si mesma ou 
como um simples epifenômeno de determinadas relações 
socio-econômicas, tem um efeito prático eminente sobre 
a maneira pela qual nos relacionamos moral e 
politicamente uns com os outros. Aqui, certas questões 
que, à primeira vista, nos pareciam filosoficamente 
abstratas adquirem uma importância que remete ao 
conceito kantiano da filosofia numa intenção 
cosmopolita, e isto me conduz por fim à questão se não 
haveria uma outra possibilidade de compreender a 
referência à totalidade da filosofia, de tal sorte que essa 
referência se destacasse dos domínios das demais 
ciências não por uma maior abstração, mas, ao contrário, 
por uma maior concretude. 
Para isso, podemos refletir mais uma vez acerca do 
conceito de mundo da vida. O mundo da vida é nosso 
mundo subjetivo. Poder-se-ia dizer também, ele é a 
situação de nosso agir. Uma situação do agir é 
determinada por tudo o que nela realmente existe, mas 
também por tudo o que nela é possível como nosso ato 
de reagir a mesma. Há situações de ação individuais e 
situações de ação comuns, as individuais convertem-se 
nas comuns. O conceito de mundo da vida é como uma 
abstração das situações de ação, no sentido em que 
podemos precisamente chamar de mundo da vida o que 
em geral caracteriza uma situação de ação enquanto tal. 
Essa tendência de refletir acerca do universal, em 
contraposição às ciências particulares, me conduziu antes 
à concepção de filosofia como aclaramento de conceitos 
que já compreendemos desde sempre. Isso corresponde 
ao “conceito de filosofia da escola” em Kant. Esse 
conceito trouxe-nos agora, via os problemas especiais das 
contradições entre as perspectivas interna e externa, de 
volta ao mundo da vida, agora, porém, concretamente 
compreendido. 
Será possível delinear aqui um outro conceito de 
filosofia, que venha a ser então, um pendant moderno 
para a filosofia kantiana numa intenção cosmopolita? 
Gostaria de utilizar aqui um termo que nos remete 
sobretudo a Karl Jaspers, o conceito da orientação no 
mundo (Weltorientierung). Poder- [33]se-ia dizer, sim, que 
deve haver um saber que nos dê uma orientação em 
nosso mundo da vida concreto, e isso quer dizer: na 
situação-de-ação concreta que temos em comum. Esse 
saber tampouco seria um saber especial, pelo contrário, 
ele se referiria ao todo, mas precisamente ao todo agora 
compreendido não abstrata, porém concretamente. O 
ponto de partida desse saber deveria ser a referência ao 
bem e ao mal, compreendidos agora, porém, não como 
conceitos universais, mas como o que para nós é hoje 
concretamente bom e mau. Partindo daí, indagar-se-ia 
pelos riscos e chances concretas. O ponto de partida 
seriam, pois, os valores, o que é bom e mau, e partindo 
daí, deveríamos refletir acerca da realidade concreta e 
nossas possibilidades de ação na mesma. Isso é mais ou 
menos o que deveríamos compreender por filosofia 
como orientação no mundo. Esse conceito de filosofia 
teria que ser visto, de maneira ainda essencialmente mais 
forte como um empreendimento interdisciplinar, do que 
aqueles entrecruzamentos de problemas, que 
mencionamos acima, levantados pelas contradições da 
perspectiva interna e externa. Pois como nos 
orientaremos no mundo atual sem considerar o que as 
ciências particulares podem nos dizer sobre isso? Por 
outro lado, uma ciência particular enquanto tal está 
sempre apontando para o conhecimento