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Rousseau relação liberdade e propriedade

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Rousseau e a relação entre liberdade e propriedade* 
  
Convenhamos, pois, em que a força não faz o direito e que só se é obrigado a obedecer aos poderes legítimos. Rousseau (Contrato Social, 1983b, I, 3). 
Rousseau e o jusnaturalismo 
Os ventos da modernidade trouxeram consigo o jusnaturalismo e as idéias liberais. O jusnaturalismo moderno é caracterizado pela idéia racional de um Direito original fundante e universal conhecido como Direito de Natureza. Esse Direito pressupõe a existência originária de homens que vivem em um estado pré-social conhecido como estado de natureza, no qual os homens gozam de direitos inalienáveis. 
Para garantir esses direitos ameaçados pelo estado de guerra ou pelos apetites humanos devido à fragilidade do estado de natureza, foi necessário aos homens, por meio de uma espécie de contrato, ingressarem em uma ordem civil na qual esses direitos seriam invioláveis. 
Nesse caso, a propriedade é interpretada como um direito inviolável, sendo um dos temas centrais do jusnaturalismo, como afirma Norberto Bobbio: “O jusnaturalismo a exalta como um direito fundamental, junto com a vida e a liberdade” (1992, p. 1.034). 
Locke, por exemplo, considera a propriedade como um direito natural que todos os homens detinham ainda no estado de natureza: 
O homem, nascendo, conforme provamos, com direito à perfeita liberdade e gozo incontrolado de todos os direitos e privilégios da lei da natureza, por igual a qualquer outro homem ou grupo de homens do mundo, tem, por natureza, o poder não só de preservar a sua propriedade – isto é, a vida, a liberdade e os bens – contra os danos e ataques de outros homens, mas também de julgar e castigar as infrações dessa lei por outros conforme estiver persuadido da gravidade da ofensa, mesmo com a própria morte nos crimes em que o horror do fato o exija, conforme a sua opinião (1978, p. 67).
Como no estado de natureza não é possível garantir a propriedade como direito natural inviolável, é preciso uma associação civil que garanta a partir de leis estabelecidas a inviolabilidade da propriedade (p. 82). 
Praticamente todos os jusnaturalistas seguiram à risca esse modelo, exceto Rousseau, para quem o estado de natureza é a garantia de dois princípios inalienáveis: a liberdade e a igualdade; princípios esses violados com a formação da sociedade civil e a instituição da propriedade. Tal violação é descrita por Rousseau em seu Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, de 1754. Para restabelecer a ordem seria preciso um Contrato Social, pelo qual fossem asseguradas a liberdade e a igualdade. Tal ordem é explicitada por Rousseau em seu Do Contrato Social, de 1762. 
Por esse motivo escolhemos basicamente essas duas obras de Rousseau para discutir a questão da propriedade, haja vista entendermos que nesses escritos a questão foi mais aprofundada.�[1] 
Rousseau: estado de natureza, propriedade e estado civil 
No Prefácio do Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, Rousseau descreve a constituição do homem e a sua degeneração na sociedade. Para ele, entender a origem da desigualdade pressupõe entender a origem do homem (1983a, p. 228). Essa mesma temática também se encontra na Introdução do Discurso, na qual encontramos o seguinte trecho: “É do homem que devo falar, e a questão que examino me diz que vou falar a homens, pois não se propõem questões semelhantes quando se tem medo de honrar a verdade” (p. 235). 
Perguntar pela origem da desigualdade é indagar pela origem do homem, ou seja, pelo homem no estado de natureza, pois vimos que o jusnaturalismo moderno, quando se refere à origem do homem, remonta ao estado de natureza. Nesse aspecto, Rousseau concebe dois tipos de desigualdade na humanidade: uma natural ou física fruto da natureza, “que consiste na diferença das idades, da saúde, das forças do corpo e das qualidades do espírito e da alma”, e a outra, que é chamada de desigualdade moral ou política “porque depende de uma espécie de convenção e que é estabelecida ou, pelo menos, autorizada pelo consentimento dos homens” (p. 235). 
A origem do homem, entretanto, não pode ser confundida com a origem da desigualdade, pois não há duas origens do homem como há duas origens da desigualdade, não há um homem que se origina da natureza e outro, da sociedade. Em Rousseau a natureza é anterior à sociedade, logo, só há originariamente um homem, o homem natural, o qual pode degenerar para tornar-se o homem civil, sem deixar de ser homem. A desigualdade, não. Ela é ou natural (quando relacionada com o homem originário), ou civil (quando o homem está degenerado em sociedade). Concluímos afirmando que só há um homem e duas desigualdades: uma inerente ao gênero humano que Rousseau denomina de natural, e outra fruto da convenção social que Rousseau chama de desigualdade moral ou política. 
Podemos dizer também que a desigualdade natural ou física, uma vez estabelecida pela natureza, não pode ser anulada ou transformada, ao passo que a desigualdade moral ou política, enquanto originada pela convenção, pode ser anulada e transformada. É incumbência do Discurso sobre a desigualdade denunciar as mazelas da desigualdade política desde sua origem, é tarefa do Contrato eliminar essa desigualdade a partir de uma nova ordem civil. 
Para Rousseau, a essência do homem está em seu estado primitivo, tal como o moldou a natureza. No Prefácio do Discurso sobre a desigualdade Rousseau nos oferece uma interessante indicação sobre o estado de natureza, como “um estado que não mais existe, que talvez nunca tenha existido, que possivelmente nem existirá, e sobre o qual se tem, contudo, a necessidade de alcançar noções exatas para bem julgar de nosso estado presente” (1983a, p. 229). Essa citação pode caracterizar a preocupação do jusnaturalismo rousseauísta em colocar o homem em um estado natural racional pré-social, com o escopo de revelar as mazelas sociais de sua época. 
Parece que a preocupação crucial de Rousseau na elaboração do Discurso sobre a desigualdade é demonstrar como o direito natural foi submetido à lei civil que teve como substrato à violência legitimada pelo engano do povo ao entregar-se aos ricos, poderosos e senhores, em troca de uma suposta segurança.�[2] 
No estado de natureza, o homem vivia de forma simples, solitária, inocente e feliz. Preocupava-se apenas com a sua conservação. Entregue aos cuidados da natureza, correndo livre pelas florestas imensas, sem precisar de seu semelhante e sem nenhuma obrigação legal para o trabalho, o homem natural desfrutava o seu repouso sem se preocupar com o dia de amanhã (p. 251). O homem no estado natural também não possuía a idéia do teu e do meu, quer dizer, no estado de natureza não havia a idéia de posse ou de propriedade em seu sentido estrito, ou seja, indicando que algo era de alguém. O homem natural não tinha a consciência daquilo que possuía, nem tampouco do que possuía o semelhante. Isso parece fazer parte da idéia de que tudo era de todos. E, se tudo era de todos, o egoísmo, a vaidade e a ambição eram sentimentos inexistentes. A terra nesse estado estava virgem, abandonada à fertilidade natural e coberta por florestas imensas que o machado jamais mutilou (p. 238). 
A idéia de propriedade vai aparecer no início da segunda parte do Discurso sobre a desigualdade como último termo do estado de natureza. Tendo como pressuposto fundamental a idéia do isto é meu, a instituição da propriedade representa efetivamente a passagem da ordem natural para a formação da sociedade civil. O isto é meu, além de identificar a posse de algo a alguém, identifica também a acomodação daqueles que permitiram a violação do estado natural com a instituição da propriedade: 
o verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado o terreno lembrou-se de dizer “isto é meu” e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditá-lo. Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não pouparia ao gênero humano aquele que, arrancando asestacas ou enchendo o fosso, tivesse gritado a seus semelhantes: “evitai ouvir esse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos e que a terra não pertence a ninguém” (p. 259). 
Para Rousseau, o contrato não se dá aqui. Essa é diferença fundamental entre Rousseau e os demais jusnaturalistas. Ainda assim, não podemos identificar essa passagem do texto como uma simples negação de Rousseau à propriedade. O filósofo não pode ser confundido com os socialistas do século XIX. Veremos que a propriedade tem um lugar importante no Contrato social. 
Rousseau segue a teoria de Locke ao vincular a origem da propriedade à idéia de trabalho�[3], mas se distancia desse autor ao não considerar a propriedade um direito natural inalienável. A propriedade, em Rousseau, é entendida no seguinte contexto: alguém que diz que tem algo, e esse algo é delimitado (pedaço de terra). É nesse pedaço de terra que se exercem as artes como a metalurgia e a agricultura, para satisfazer às necessidades humanas. É devido a essas necessidades que os homens, antes livres, se tornam escravos uns dos outros, quer sejam ricos, senhores, escravos ou pobres. A ambição em querer ficar acima dos outros faz com que os homens produzam os frutos da terra não mais para suprir suas necessidades básicas, mas para lucrar à custa do suor dos outros. 
Um outro fator importante relacionado à propriedade está em uma frase de Locke citada por Rousseau: “Não haveria injustiça se não houvesse propriedade” (p. 264, tradução corrigida). A propriedade, uma vez estabelecida, é origem de inúmeros conflitos diante da ganância e da ambição dos homens. É impossível, para Rousseau, conceber a idéia de propriedade sem conceber também esses conflitos entre o primeiro ocupante e o mais forte. 
Esse conflito foi muito bem destacado por Rousseau na obra Emílio ou Da Educação (1762). Na ocasião o preceptor faz Emílio aprender a não violar o direito do primeiro ocupante. Emílio, ao plantar suas favas, se sente injustiçado quando as vê todas arrancadas, pois essa terra já estava ocupada pelo jardineiro Robert, que havia primeiramente semeado melões. Diante do suposto impasse entre Robert (o primeiro ocupante) e Emílio (o invasor de uma terra já cultivada), Rousseau fala ao seu pupilo: “não trabalharemos na terra antes de saber se alguém não a lavrou antes de nós” (1999, p. 100).�[4] Com isso Rousseau torna-se o intermediário de um acordo importante entre as partes conflitantes. Ele propõe um acordo entre Emílio e Robert: “Que ele nos ceda, a meu amiguinho e a mim, um canto do seu jardim para cultivá-lo, com a condição de receber metade do produto” (p. 101). Nesse caso Rousseau quer resolver um dos problemas jurídicos fundamentais, que é a legitimidade do direito de propriedade. Como esse direito pode ser legítimo? 
É a posse contínua da terra resultante do trabalho e da colheita que gera o direito de propriedade. É assim que se institui esse direito.�[5] Logo, porém, que os homens não se limitaram mais a suas necessidades básicas, os mais fortes e os mais habilidosos, descontentes com o que tinham, passaram a submeter outros homens a seus serviços, gerando a dominação, a servidão, a violência e o roubo. Decorreu daí verdadeira guerra entre poderosos e miseráveis, cada um alegando para si o direito de propriedade.�[6] Nesse caso, o direito de propriedade em Rousseau se afasta explicitamente daquele. Em Rousseau o direito de propriedade é fruto da convenção humana, portanto não encontra sua legitimidade no estado de natureza: 
Além disso, o direito de propriedade sendo apenas de convenção e instituição humana, qualquer homem pode a seu arbítrio dispor daquilo que possui; isso, porém, não acontece com os bens essenciais da natureza, tais como a vida e a liberdade, de que cada um pode gozar e dos quais é pelo menos duvidoso se tenha o direito de despojar-se (1983a, p. 234). 
Uma vez acuados pela multidão de miseráveis, e sem conseguir unir suas forças devido aos ciúmes mútuos, os ricos astutamente deixaram de atacar os pobres para se dizerem seus defensores, acalmando a revolta e instituindo seu domínio de uma forma mais sutil, porém não menos perigosa. Com discursos eloqüentes, os ricos e poderosos clamavam pela segurança de ambas as partes quando instituíram para sempre a lei de propriedade. Assim, diziam-se defensores dos fracos e afirmavam conter a ambição, instituindo o governo e as leis. Com o intuito de defender os pobres, os ricos desejavam na verdade estender guirlandas de flores em suas ainda mais grossas e terríveis algemas, fazendo-os escravos legítimos ao preço de uma liberdade fictícia. Foi desse modo que, para Rousseau, se constituiu o fundamento da sociedade, do governo e das leis: 
Tal foi ou deveu ser a origem da sociedade e das leis, que deram novos entraves ao fraco e novas forças ao rico, destruíram irremediavelmente a liberdade natural, fixaram para sempre a lei de propriedade e da desigualdade, fizeram de uma usurpação sagaz um direito irrevogável e, para lucro de alguns ambiciosos, daí por diante sujeitaram todo o gênero humano ao trabalho, à servidão e à miséria (p. 269-270). 
Assim, Rousseau denuncia a fragilidade das leis e da sociedade civil. O percurso da humanidade é pernicioso porque o homem esqueceu de sua origem na formação da sociedade e foi se perdendo pelo caminho. Entregou sua liberdade, dissipou a igualdade. Ainda não é nessa obra, contudo, que ele vai propor uma solução. A solução para o problema virá em Do Contrato Social. 
Rousseau: propriedade e contrato 
Denunciando a ordem social descrita no Discurso sobre a Desigualdade, Rousseau experimenta esboçar no Contrato Social uma nova regra de administração legítima e segura que garanta os direitos inalienáveis da igualdade e da liberdade.�[7] No Livro I Rousseau trabalha com duas noções de liberdade: a liberdade natural e a civil. A liberdade natural no homem consiste em um “direito ilimitado a tudo quanto aventura e pode alcançar” (Rousseau, 1983b, p. 36). Não podemos entender a liberdade natural como um direito que o homem pode usar para dominar os outros. Em Rousseau isso é praticamente impossível, porque até o rico e o senhor, na proporção em que dominam os outros, passam a ser tão escravos quanto estes. O homem não é livre para dominar, ele domina porque depende do outro.�[8] 
Da mesma forma que o homem não é livre para dominar, também não é livre para obedecer. O homem que entrega a sua liberdade para ser escravo é um louco, e loucura não faz o direito. E o que faz o homem obedecer e ser escravo de outro? Rousseau é categórico na sua explicação: a obediência é fruto do direito do mais forte. Quando a questão é força, não há possibilidade de se extrair a moralidade, porque a força é um poder físico: “Ora, que direito é esse que perece quando cessa a força?” – pergunta Rousseau. E é efetivamente em nome do direito do mais forte que um homem acha que pode aviltar a propriedade do outro, tomando posse de uma coisa que não é sua, legitimando a força que pretensamente faz o direito. Como evitar tamanha injustiça que ameaça a liberdade e a igualdade? A liberdade natural está ameaçada pela força e pela dominação. Ela “só conhece limites nas forças do indivíduo” (p. 36). Por esse motivo a liberdade natural é infensa à coerção. Como a propriedade não pode simplesmente sumir do estado civil, é preciso que haja novas leis que garantam o uso da propriedade para assegurar a inviolabilidade da liberdade. Essa liberdade terá um novo adjetivo: liberdade civil. 
O homem perde, segundo o Contrato Social, a liberdade natural ou “o direito ilimitado a tudo quanto aventura e pode alcançar”, e ganha a liberdade civil “e a propriedade de tudo que possui” (p. 36). Para que haja um contrato social genuíno, é necessário a cada indivíduo alienar sua liberdade natural para ingressar na nova ordem civil, formando uma vontade geral que garanta a condição de igualdade para todos. Uma vez estabelecida a vontade geral, está estabelecido o verdadeiro Direito. A lei é o povoque faz, ao mesmo tempo em que o próprio povo lhe é submetido.�[9] O Direito deve ter como meta a utilidade pública e o bem-estar dos cidadãos. 
Na questão da propriedade, tanto o direito do primeiro ocupante (muito mais legítimo) quanto o pretenso direito do mais forte devem se submeter ao julgamento do Direito de propriedade advindo da associação civil que forma a vontade geral. 
Rousseau descreve as condições do direito do primeiro ocupante: 
primeiro, que esse terreno não esteja ainda habitado por ninguém; segundo, que dele só se ocupe a porção de que se tem necessidade para subsistir; terceiro, que dele se tome posse não por uma cerimônia vã, mas pelo trabalho e pela cultura, únicos sinais de propriedade que devem ser respeitados pelos outros, na ausência de títulos jurídicos (p. 38). 
A liberdade e a igualdade civil estão asseguradas devido às leis advindas da vontade geral que soberanamente garante à propriedade um caráter de inviolabilidade na nova associação civil. Desse modo, Rousseau parece garantir a liberdade e a igualdade na nova ordem civil preservando a propriedade mediante um novo direito de propriedade. 
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