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Educação a Distância GRUPO Caderno de Estudos HISTÓRIA DA ÁFRICA Prof.ª Tânia Cordova UNIASSELVI 2010 NEAD CENTRO UNIVERSITÁRIO LEONARDO DA VINCI Rodovia BR 470, Km 71, nº 1.040, Bairro Benedito 89130-000 - INDAIAL/SC www.uniasselvi.com.br Copyright UNIASSELVI 2010 Elaboração: Prof.ª Tânia Cordova Revisão, Diagramação e Produção: Centro Universitário Leonardo da Vinci - UNIASSELVI Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri UNIASSELVI – Indaial. 960 C796h Cordova, Tânia. História da África/ Tânia Cordova. Centro Universitário Leonardo da Vinci – Indaial:Grupo UNIASSELVI, 2010.x ; 201. p.: il Inclui bibliografia. ISBN 978-85-7830-301-3 1. História da África 2. África – História e Formação I. Centro Universitário Leonardo da Vinci II. Núcleo de Ensino a Distância III. Título HISTÓRIA DA ÁFRICA APRESENTAÇÃO Caro(a) acadêmico(a)! Iniciamos nossos estudos sobre a História da África. Com essa disciplina buscamos romper com uma historiografia fundamentada numa visão eurocêntrica da História. Esta é uma disciplina importante à formação do professor de História, haja vista a obrigatoriedade, desde 2003, da temática África e Afro-brasileiros no currículo da Educação Básica. Todavia, para além desta obrigatoriedade, o conhecimento relacionado ao Continente Africano, é essencial para que possamos conhecer e trabalhar com a formação histórica, social, cultural e econômica do Brasil. Ao observarmos a composição social em que vivemos, podemos confirmar que os negros africanos possibilitaram importantes contribuições para a construção do Brasil. Depois de retirados à força do Continente Africano, terem atravessado a duras penas o oceano Atlântico, serem obrigados a mudar sua maneira de viver, com a adaptação de seus costumes e suas tradições a um novo ambiente, os que aqui chegaram misturaram-se à sociedade já existente e configuraram novos elementos à cultura. Nesse sentido, é inegável a presença e a influência dos diferentes povos africanos à História do Brasil. A primeira unidade trata do contexto do surgimento da Lei nº 10.639 que institui a obrigatoriedade do Ensino da História e Cultura Afro-brasileira e Africana no currículo da Educação Básica no Brasil. A opção por iniciar este caderno partindo desta discussão se justifica por acreditar ser necessário refletir sobre o surgimento desta nova disciplina no Curso de História. Assim, teremos conhecimento que esta disciplina não surgiu a esmo, e nem do nada, pelo contrário, ela é fruto de reivindicações sociais pautadas e fundamentadas na luta pelos direitos de uma sociedade mais justa, mais igualitária. A segunda unidade busca compreender o Continente Africano anterior à presença europeia. Para esse intento, optou-se por apresentar a diversidade (cultural, política, religiosa e econômica) deste continente. Nesta unidade, foram abordados os reinos, bem como as relações comerciais, sociais e culturais desenvolvidas pelas sociedades africanas anteriores ao contato com os europeus. Finalmente, a terceira unidade, dividida em cinco tópicos tem o objetivo de apresentar o tráfico negreiro, as transformações ocorridas a partir do tráfico e a inserção do africano no mundo atlântico. Como você pode perceber, esta é uma disciplina densa e tem uma carga enorme de conteúdo, afinal, estudar a história de um continente milenar, não é uma tarefa fácil. Pelo iii HISTÓRIA DA ÁFRICA iv UNI Oi!! Eu sou o UNI, você já me conhece das outras disciplinas. Estarei com você ao longo deste caderno. Acompanharei os seus estudos e, sempre que precisar, farei algumas observações. Desejo a você excelentes estudos! UNI contrário, exigirá, além do Caderno de Estudos, outras fontes de pesquisa. Lembre-se: a pesquisa é uma prática que deve ser inerente ao trabalho do professor. Sucesso nos seus estudos! Prof.ª Tânia Cordova HISTÓRIA DA ÁFRICA SUMÁRIO UNIDADE 1: A ÁFRICA NA SALA DE AULA ................................................................... 1 TÓPICO 1: POR QUE ESTUDAR ÁFRICA, TRÁFICO E AFRICANOS NO BRASIL? ... 3 1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 3 2 UM CONTINENTE NO CURRÍCULO DA EDUCAÇÃO BÁSICA .................................. 4 2.1 O MOVIMENTO NEGRO E A LUTA PELA INSERÇÃO DA HISTÓRIA DA ÁFRICA ... 5 2.1.1 Um panorama das lutas e conquistas das ações afro no Brasil .............................. 5 2.2 AÇÕES AFIRMATIVAS E AS COTAS PARA AFRODESCENDENTES NAS UNIVERSIDADES ....................................................................................................... 8 3 DIRETRIZES CURRICULARES NACIONAIS PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS E PARA O ENSINO DE HISTÓRIA E CULTURA AFRO-BRASILEIRA E AFRICANA .............................................................................. 11 3.1 POLÍTICAS DE REPARAÇÕES, DE RECONHECIMENTO E VALORIZAÇÃO DE AÇÕES AFIRMATIVAS ......................................................................................... 11 3.2 EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS ................................................... 12 3.3 HISTÓRIA E CULTURA AFRO-BRASILEIRA E AFRICANA: PRINCÍPIOS NORTEADORES DO TRABALHO PEDAGÓGICO .................................................. 12 3.3.1 Consciência política e histórica da diversidade ...................................................... 13 3.3.2 Fortalecimento de identidade e de direitos ............................................................ 13 3.3.3 Ações educativas de combate ao racismo e a discriminação ................................ 14 LEITURA COMPLEMENTAR .......................................................................................... 14 RESUMO DO TÓPICO 1 ................................................................................................. 17 AUTOATIVIDADE ........................................................................................................... 18 TÓPICO 2: A LEI nº 10.639 E A FORMAÇÃO DE PROFESSORES ............................. 19 1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 19 2 ENSINAR A RIQUEZA E A DIVERSIDADE DA HISTÓRIA E CULTURA AFRICANA .................................................................................................... 20 3 PROBLEMÁTICA DIDÁTICA ....................................................................................... 20 3.1 AS FONTES DE ENSINO PARA HISTÓRIA DA ÁFRICA .......................................... 20 4 AS NOVAS ABORDAGENS NO ENSINO DE HISTÓRIA DA ÁFRICA ...................... 21 4.1 OS NOVOS DESAFIOS ............................................................................................ 23 4.2 A CULTURA NEGRA EM SALA DE AULA: ERROS E ACERTOS ............................. 23 RESUMO DO TÓPICO 2 ................................................................................................. 25 AUTOATIVIDADE ........................................................................................................... 26 TÓPICO 3: A CONSTRUÇÃO DAS REPRESENTAÇÕES SOBRE ÁFRICA, AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS ........................................................................... 27 1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 27 2 AS REPRESENTAÇÕES DO NEGRO NOS LIVROS DIDÁTICOSDE HISTÓRIA .... 29 2.1 AS CONSEQUÊNCIAS PARA A FORMAÇÃO DA IDENTIDADE v HISTÓRIA DA ÁFRICA vi NEGRA NO BRASIL ........................................................................................................ 31 2.2 O NEGRO E A LITERATURA .................................................................................... 33 3 ÁFRICA, AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS NAS VIDEOTECAS ....................... 34 4 ÁFRICA, AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS NOS BRINQUEDOS E BRINCADEIRAS .......................................................................................................... 37 RESUMO DO TÓPICO 3 ................................................................................................. 41 AUTOATIVIDADE ........................................................................................................... 42 TÓPICO 4: SUBSÍDIOS PARA TRABALHAR A HISTÓRIA DA ÁFRICA ..................... 43 1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 43 2 POSSIBILIDADES INTERDISCIPLINARES PARA O ENSINO DE HISTÓRIA DA ÁFRICA ................................................................................................ 44 2.1 O ENSINO DE HISTÓRIA DA ÁFRICA E A DISCIPLINA DE HISTÓRIA .................. 45 2.2 O ENSINO DE HISTÓRIA DA ÁFRICA E A GEOGRAFIA ......................................... 45 2.3 O ENSINO DE HISTÓRIA DA ÁFRICA E A EDUCAÇÃO FÍSICA ............................. 46 2.4 O ENSINO DE HISTÓRIA DA ÁFRICA E A DISCIPLINA DE ARTE .......................... 48 2.5 A LÍNGUA PORTUGUESA, A LITERATURA E A HISTÓRIA DA ÁFRICA ................. 49 2.6 A BIOLOGIA E O ENSINO DA HÍSTÓRIA DA ÁFRICA ............................................. 50 2.7 A SOCIOLOGIA E O ENSINO DA HISTÓRIA DA ÁFRICA ........................................ 50 3 ESPAÇOS DE VALORIZAÇÃO, RESGATE E DIFUSÃO DA MEMÓRIA, DA HISTÓRIA E DA CULTURA AFRICANA E AFRO-BRASILEIRA .......................... 51 RESUMO DO TÓPICO 4 ................................................................................................. 53 AUTOATIVIDADE ........................................................................................................... 54 AVALIAÇÃO .................................................................................................................... 55 UNIDADE 2: A INVENÇÃO DA ÁFRICA ........................................................................ 57 TÓPICO 1: AS MUITAS ÁFRICAS: ASPECTOS DA HISTORIOGRAFIA AFRICANA .. 59 1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 59 2 RACISMO E RACIALISMO ......................................................................................... 60 3 PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO EXTERNO SOBRE A ÁFRICA .......................... 60 4 PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO INTERNO SOBRE A ÁFRICA ........................... 62 4.1 A HISTORIOGRAFIA “AFROCÊNTRICA” ................................................................. 62 4.2 O PENSAMENTO DE CHEIK ANTA DIOP ................................................................ 65 4.3 O PENSAMENTO DE JOSEPH KI-ZERBO .............................................................. 66 5 PROBLEMAS METODOLÓGICOS ............................................................................. 67 6 AS FERRAMENTAS HISTORIOGRÁFICAS ............................................................... 67 LEITURA COMPLEMENTAR .......................................................................................... 68 RESUMO DO TÓPICO 1 ................................................................................................. 70 AUTOATIVIDADE ........................................................................................................... 71 TÓPICO 2: FORMAS DE ORGANIZAÇÃO DAS SOCIEDADES AFRICANAS ............ 73 1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 73 HISTÓRIA DA ÁFRICA vii 2 ÁFRICA, BERÇO DA HUMANIDADE ......................................................................... 73 3 ÁFRICA, BERÇO DA CIVILIZAÇÃO ........................................................................... 74 4 CIVILIZAÇÕES AFRICANAS: POVOS E REINOS ..................................................... 75 4.1 OS POVOS AFRO-ASIÁTICOS ................................................................................ 76 4.2 OS POVOS NILO-SAARIANOS ................................................................................ 76 4.3 OS POVOS NÍGER-CONGOLESES ......................................................................... 77 4.4 OS POVOS KHOI-SAN ............................................................................................. 78 5 AS CIVILIZAÇÕES AFRICANAS ANTIGAS ............................................................... 78 5.1 O DESERTO DO SAARA .......................................................................................... 79 5.1.1 No Oriente: Egito, Sudão, Núbia e Aksum ............................................................. 80 5.2 O SAHEL ................................................................................................................... 81 5.2.1 A África Ocidental ................................................................................................... 82 5.2.2 O Reino de Gana .................................................................................................... 82 5.2.3 Os Reinos Iorubás e o Benim ................................................................................. 85 5.2.4 O reino do Congo ................................................................................................... 87 5.2.5 O reino do Monomotapa ......................................................................................... 89 RESUMO DO TÓPICO 2 ................................................................................................. 91 AUTOATIVIDADE ........................................................................................................... 92 TÓPICO 3: AS RELAÇÕES COMERCIAIS EM ÁFRICA ............................................... 93 1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 93 2 ORGANIZAÇÃO DO COMÉRCIO EM ÁFRICA ANTERIOR A PRESENÇA EUROPEIA ................................................................................................................... 93 3 O MAR MEDITERRÂNEO E O MAR VERMELHO ...................................................... 94 3 A ÁFRICA CENTRAL: A DISPERSÃO DOS BANTOS ............................................... 95 4 AS RELAÇÕES COM O LITORAL DO OCEANO ÍNDICO ......................................... 97 5 PELO OCEANO ATLÂNTICO ...................................................................................... 98 6 O COMÉRCIO TRANSAARIANO .............................................................................. 100 7 A ÁFRICA E A RELAÇÃO COM O SOBRENATURAL ............................................. 101 RESUMO DO TÓPICO 3 ............................................................................................... 104 AUTOATIVIDADE ......................................................................................................... 105 TÓPICO 4: A ÁFRICA E O ISLAMISMO ...................................................................... 107 1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 107 2 A ISLAMIZAÇÃO DO NORTE DA ÁFRICA ............................................................... 109 2.1 A CONQUISTA DE IFRIQIYA ....................................................................................110 2.2 O CALIFADO FATÍMIDA ........................................................................................... 110 2.3 O MAGREBE SOB OS ALMORÁVIDAS .................................................................. 111 3 O SAHEL SOB A INFLUÊNCIA ISLÂMICA ................................................................ 111 3.1 O REINO DO MALI ................................................................................................... 112 3.1.1 Mansa Musa .......................................................................................................... 113 3.1.2 As estruturas do Reino do Mali .............................................................................. 115 3.2 O IMPÉRIO SONGHAI DE GAÔ .............................................................................. 116 HISTÓRIA DA ÁFRICA viii 3.3 O SUDÃO CENTRAL: O KANEM-BORNU E OS HAÚÇAS ..................................... 118 3.3.1 O Kanem-Bornu ..................................................................................................... 118 3.3.2 Os Estados Hauçás ............................................................................................... 118 4 A ÁFRICA ORIENTAL E O ISLÃ ................................................................................ 119 4.1 OS CONFLITOS RELIGIOSOS NA ETIÓPIA ........................................................... 119 4.2 A CIVILIZAÇÃO SWAHILLI ..................................................................................... 120 5 O COMÉRCIO NA ÁFRICA ISLÂMICA ..................................................................... 120 LEITURA COMPLEMENTAR ........................................................................................ 122 RESUMO DO TÓPICO 4 ............................................................................................... 126 AUTOATIVIDADE ......................................................................................................... 127 AVALIAÇÃO .................................................................................................................. 128 UNIDADE 3: ESCRAVIDÃO: A ÁFRICA ESCRAVISTA E ESCRAVIZADA ................. 129 TÓPICO 1: O ESCRAVO NA ÁFRICA .......................................................................... 131 1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 131 2 O CONCEITO DE ESCRAVIDÃO E ESCRAVISMO .................................................. 132 2.1 A SEMÂNTICA E A ESCRAVIDÃO .......................................................................... 133 2.2 O DIREITO E A ESCRAVIDÃO ............................................................................... 134 2.3 PARENTES E ESTRANHOS ................................................................................... 135 3 TORNAR-SE ESCRAVO NA ÁFRICA ....................................................................... 135 3.1 A GUERRA .............................................................................................................. 136 3.2 PROCEDIMENTOS JUDICIAIS .............................................................................. 136 3.3 A ESCRAVIZAÇÃO VOLUNTÁRIA .......................................................................... 137 4 OS USOS DO ESCRAVO NA ÁFRICA ...................................................................... 137 5 A ESCRAVIDÃO PRÉ-MODERNA ............................................................................ 140 5.1 A ESCRAVIDÃO E O ISLAMISMO .......................................................................... 140 LEITURA COMPLEMENTAR ........................................................................................ 141 RESUMO DO TÓPICO 1 ............................................................................................... 143 AUTOATIVIDADE ......................................................................................................... 144 TÓPICO 2: A RELAÇÃO DO COMÉRCIO DE ESCRAVOS ENTRE EUROPEUS E AFRICANOS .............................................................................................. 145 1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 145 2 A ESTRUTURA SOCIAL E A ESCRAVIDÃO NA ÁFRICA ....................................... 146 3 O COMÉRCIO DE ESCRAVOS ................................................................................. 147 4 AS FORMAS DE CAPTURA ...................................................................................... 149 LEITURA COMPLEMENTAR ........................................................................................ 151 RESUMO DO TÓPICO 2 ............................................................................................... 155 AUTOATIVIDADE ......................................................................................................... 156 TÓPICO 3: TRANSFORMAÇÕES NAS SOCIEDADES AFRICANAS DECORRENTES DO COMÉRCIO ATLÂNTICO ....................................... 157 HISTÓRIA DA ÁFRICA ix 1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 157 2 O ESVAZIAMENTO DO INTERIOR ........................................................................... 157 2.1 A DESTRUIÇÃO DO CONGO ................................................................................. 158 2.2 A CRISE DO SAHEL OCIDENTAL .......................................................................... 159 3 AS TROCAS DE ELEMENTOS CULTURAIS ............................................................ 160 RESUMO DO TÓPICO 3 ............................................................................................... 162 AUTOATIVIDADE ......................................................................................................... 163 TÓPICO 4: A DIÁSPORA AFRICANA .......................................................................... 165 1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 165 2 O PIONEIRISMO PORTUGUÊS ................................................................................ 166 3 A DISPUTA PELA COSTA AFRICANA ...................................................................... 168 4 O APOGEU DO TRÁFICO ......................................................................................... 168 5 O COMÉRCIO ILEGAL DE AFRICANOS .................................................................. 170 6 OS NÚMEROS DO TRÁFICO .................................................................................... 173 7 A TRAVESSIA ATLÂNTICA ....................................................................................... 174 RESUMO DO TÓPICO 4 ............................................................................................... 178 AUTOATIVIDADE ......................................................................................................... 179 TÓPICO 5: OS AFRICANOS NO BRASIL ................................................................... 181 1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 181 2 QUEM ERAM OS AFRICANOS TRAZIDOS PARA O BRASIL ................................ 182 3 O COMÉRCIO DE ESCRAVOS ................................................................................. 185 4 O TRABALHO ESCRAVO NO BRASIL .................................................................... 188 5 RESISTÊNCIA NEGRA À ESCRAVIDÃO ................................................................. 190 6 MOVIMENTOS ABOLICIONISTAS ............................................................................ 191 7 CULTURA AFRO-BRASILEIRA ................................................................................192 8 O FIM DA ESCRAVIDÃO E O NEGRO NA SOCIEDADE BRASILEIRA: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES ................................................................................ 193 RESUMO DO TÓPICO 5 ............................................................................................... 195 AUTOATIVIDADE ......................................................................................................... 197 AVALIAÇÃO .................................................................................................................. 198 REFERÊNCIAS ............................................................................................................. 199 HISTÓRIA DA ÁFRICA x H I S T Ó R I A D A Á F R I C A UNIDADE 1 A ÁFRICA NA SALA DE AULA OBjETIVOS DE APRENDIZAGEM A partir desta unidade, você será capaz de: compreender o contexto histórico e social de surgimento da Lei nº 10.639; refletir sobre a formação de professores e a obrigatoriedade da temática da História e Cultura Africana e Afro-brasileira; perceber a construção da imagem do negro no Brasil em diversos contextos; avaliar as possibilidades do trabalho interdisciplinar e a temática África e Afro-brasileiros na escola. TÓPICO 1 – POR QUE ESTUDAR ÁFRICA, TRÁFICO E AFRICANOS NO BRASIL? TÓPICO 2 – A LEI 10.639 E A FORMAÇÃO DE PROFESSORES TÓPICO 3 – A CONSTRUÇÃO DAS REPRESENTAÇÕES SOBRE ÁFRICA, AFRICANOS E AFRO- BRASILEIROS TÓPICO 4 – SUBSÍDIOS PARA TRABALHAR A HISTÓRIA DA ÁFRICA PLANO DE ESTUDOS Esta unidade está dividida em quatro tópicos. Ao final de cada um deles você encontrará atividades que o(a) auxiliarão na apropriação dos conhecimentos aqui disponibilizados. H I S T Ó R I A D A Á F R I C A H I S T Ó R I A D A Á F R I C A POR QUE ESTUDAR ÁFRICA, TRÁFICO E AFRICANOS NO BRASIL? 1 INTRODUÇÃO TÓPICO 1 UNIDADE 1 A inserção do africano no mundo atlântico foi consequência de um processo que teve o objetivo de exploração do trabalho. Do século XVI ao XIX, aproximadamente 4.010.000 indivíduos foram trazidos de suas terras de origem, na África, amontoados em porões de navios e submetidos como escravos no Brasil. Hoje, o contingente dos afrodescendentes chega a cerca de 80 milhões de pessoas, 46,2% da população nacional, o que tem levado à afirmação de que o Brasil seria a segunda maior nação com população de origem africana no mundo, ficando atrás da Nigéria. Nestes quase cinco séculos, o trabalho negro possibilitou que a metrópole portuguesa num primeiro momento e as elites brancas nativas em outro constituíssem fortunas. Este grande amálgama que se convencionou chamar de cultura brasileira é também devedor das línguas, das habilidades e dos saberes africanos. Das apreciações culinárias aos movimentos corporais, das expressões idiomáticas às produções musicais, das formas de convivência às manifestações religiosas, cada um de nós brasileiros, traz um pouco daquelas Áfricas ancestrais dentro de si. No entanto, a tão propalada democracia racial de que tanto nos orgulhamos, e que está presente no discurso das condições de igualdade no Brasil, ainda está longe de ser realidade. Há muito já se percebeu que a grande riqueza cultural e o diferencial do Brasil residem em ser um país mestiço em que povos se misturaram. São negros, brancos e amarelos; bantos, iorubas, nagôs, tupinambás, guaranis, carijós, portugueses, italianos, alemães, japoneses e tantos outros. No entanto, no processo de construção histórica e social do Brasil, alguns desses povos não foram reconhecidos pelas suas contribuições e acabaram sendo ignorados, inferiorizados, invisibilizados ou tratados de forma desqualificada na historiografia nacional, mencionados em muitas vezes como os dominados, incivilizados. Entre esses povos encontram-se os africanos. A nova historiografia brasileira e estudos recentes vêm avançando na crítica aos UNIDADE 1TÓPICO 14 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A preconceitos embutidos nos discursos científicos de século XIX e XX. Vêm também resignificando visões distorcidas da presença africana e resgatando as multifacetadas presenças negras no país. No Brasil, o início do século XXI é o marco que representa este avanço e a concretização de um novo olhar ao Continente Africano. Em 9 de janeiro de 2003, foi aprovada a Lei nº 10.639, tornando obrigatório o ensino de história e cultura africana e afro-brasileiras nos níveis de Ensino Fundamental e Médio. Os currículos deverão incluir temáticas que orientem a presença, a contribuição africana e afrodescendente nas disciplinas escolares. Se no Brasil, os primeiros anos do século XXI são importantes, pois concretizaram os resultados de ações em prol das reivindicações dos movimentos negros, o ano de 2010 projetará o Continente Africano mundialmente. Os olhares estarão voltados para este continente, que é sede da Copa do Mundo. Assim, espera-se nessa unidade, não responder, mas alinhar conhecimentos no sentido de compreendermos a importância do porque estudar África, tráfico e africanos no Brasil. IMP OR TAN TE! � Caro(a) acadêmico(a)! Cabe aqui orientar que o Continente Africano está inserido em quatro momentos das divisões temporais da história ocidental: A Pré-História, a Idade Antiga, a Idade Moderna e a Idade Contemporânea. No entanto, não se pode desconsiderar que a menção a este continente se faz dentro de uma situação de imposição de uma historiografia eurocêntrica que coloca o Continente Africano como palco de acontecimentos e ações que favoreceram os europeus. Desta forma, chamamos atenção para a compreensão de que os marcos da história ocidental não auxiliam na compreensão da História da África. Para reforçar essa orientação, leia ao final deste tópico o texto de Joseph Ki-Zerbo. 2 UM CONTINENTE NO CURRÍCULO DA EDUCAÇÃO BÁSICA Diversas políticas de reparação, reconhecimento e valorização da população afro- brasileira vem sendo concretizadas. Uma dessas ações é a Lei nº 10. 639, de 9 de janeiro de 2003, que tornou obrigatório o ensino de História e Cultura Africana e afro-brasileira no currículo oficial. UNIDADE 1 TÓPICO 1 5 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A Esta lei é importante na medida em que a sociedade brasileira reconhece o valor da história e da cultura africana, trazida pelos escravizados para o Brasil e hoje, da afro-brasileira, dos descendentes destes escravizados. No entanto, esta Lei é resultante da atuação de alguns políticos e, principalmente, da pressão exercida por grupos de defesa dos direitos dos negros. Ou seja, a Lei 10. 639 não é um produto da burocracia, mas um produto da união de forças vindas da sociedade brasileira. Desta forma, passamos a conhecer um pouco das ações que culminaram nessas diretrizes curriculares. 2.1 O MOVIMENTO NEGRO E A LUTA PELA INSERÇÃO DA HISTÓRIA DA ÁFRICA Como já sinalizado, as reivindicações dos grupos de defesa das ideologias africanas e afro-brasileiras foram fundamentais para compreender a determinação da Lei nº 10.639. Neste item, busca-se abordar ações que precederam a instituição dessa lei. 2.1.1 Um panorama das lutas e conquistas das ações afro no Brasil O entendimento de que os movimentos sociais pelos direitos culturais, políticos, seja ele qual for, não é um ato neutro, mas é fundamental para a discussão do contexto das lutas e reivindicações dos grupos que defendem a ideologia africana e afro-brasileira. Para iniciarmos um diálogo sobre essas ações no Brasil, é necessário conceituar movimentos sociais. Movimentos sociais são movimentos populares de representação de um grupo de interesses cuja ação social é orientada, o que descaracterizacomo espontâneo, a fim de obter transformações políticas e econômicas em um novo cenário de transformações naturais, e sociais, levando em consideração a metodologia adotada, sua organização, seu contexto geográfico, seus representantes, ideologia, políticas, vitórias, derrotas, estrutura e experiência para se consolidar como representativo dentro de uma sociedade. (BRAGA, 1999). As primeiras expressões do Movimento Negro no Brasil podem ser representadas a partir das formas de resistência dos africanos a escravidão ainda nos navios que os transportavam até o continente americano. Os quilombos, que representam no período escravista a expressão concreta da resistência negra são também configurações desse movimento negro. No final do século XIX, algumas iniciativas de denúncia à discriminação racial se fazem presentes no cenário brasileiro. Entre elas, pode ser citada a criação do jornal paulista O Menelick, em 1915, que foi seguido de vários outros jornais, que buscaram denunciar a condição UNIDADE 1TÓPICO 16 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A NO TA! � do negro na sociedade brasileira. Todavia, é somente a partir dos anos 30 do século XX, que organizações em defesa aos direitos dos negros começaram a surgir no Brasil. A população negra em São Paulo, sentindo a necessidade de um movimento de identidade étnica e enfrentando as barreiras de uma imprensa branca (grande Imprensa) impermeável aos anseios e reivindicações da comunidade, recorreu à solução mais viável, que era fundar uma imprensa alternativa, em que os seus desejos, as denúncias contra o racismo, bem como a sua vida associativa, cultural e social se refletissem. Para mais informações sobre O Menelick acessar o texto: SANTOS, P. de S.; SALVADORI, M. A. B. CIDADANIA E EDUCAÇÃO DOS NEGROS ATRAVÉS DA IMPRENSA NEGRA EM SÃO PAULO (1915-1933). Disponível em: <http://www.faced.ufu.br/colubhe06/anais/ arquivos/323PedroSouzaSantos _e_Maria AngelaSalvadori.pdf>. Acesso em: 24 abr. 2010. Em 1931, Henrique Cunha e José Correia Leite fundaram a Frente Negra Brasileira (FNB), que chegou a transformar-se em partido político em 1936. O Primeiro congresso afro-brasileiro, realizado em Recife em 1934, reuniu intelectuais e homens do povo interessados em compreender a influência africana na formação do Brasil. O congresso buscou valorizar a tradição africana a fim de torná-la mais próxima da sociedade que ainda relutava em reconhecer e aceitar sua presença na cultura nacional. Esse Congresso foi organizado por Gilberto Freyre e pelo psiquiatra Ulisses Pernambucano. Participaram ainda nomes proeminentes da sociedade brasileira como: o pintor Cícero Dias, Jorge Amado e Renato Mendonça. O Teatro Experimental do Negro (TEN) fundado em 1944, no Rio de Janeiro, por Abdias do Nascimento, foi responsável por expressiva produção teatral em que se buscava dinamizar a consciência da negritude brasileira e combater a discriminação racial. Ainda sob a orientação do TEN, foi realizado em 1950, na cidade do Rio de Janeiro o Congresso do Negro Brasileiro que trouxe para o cenário temas, como: a sobrevivência religiosa e folclórica africana e afro- brasileira, formas de luta (capoeira, batuque, pernada), línguas africanas, entre outros temas abordados pelos integrantes de diversas entidades de defesa ao direito do negro. Ainda nos anos 50, iniciaram-se os primeiros estudos sobre preconceitos e estereótipos raciais em livros didáticos no Brasil. Estes estudos foram coibidos pela ditadura militar instaurada no Brasil na década posterior. O regime militar oficializou a democracia racial e a militância que ousou desafiar esse mito foi acusada de imitadora dos ativistas norte-americanos. UNIDADE 1 TÓPICO 1 7 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A Nos anos 80, com a redemocratização do país, os estudos sobre preconceitos e estereótipos raciais em livros didáticos são retomados. Os resultados desses estudos apresentavam a depreciação de personagens negros, associada a uma valorização dos brancos. A Comissão de Educação do Conselho de Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra e o Grupo de Trabalho para Assuntos Afro-brasileiros promoveram, em 1984, no estado de São Paulo, discussões com professores de várias áreas sobre a necessidade de rever o currículo e introduzir conteúdos não discriminatórios na educação. Atendendo a reivindicações do Movimento Negro, o estado da Bahia, em 1986, inseriu a disciplina Introdução aos Estudos Africanos na Educação Básica das escolas estaduais. Em 1996, o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) instituiu como critério de avaliação dos livros didáticos comprados e distribuídos as temáticas que abordavam as questões raciais. Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), em 1998, apresentavam a inclusão da Pluralidade Cultural entre os temas transversais, como orientação ao trabalho do professor. Em 2003, a publicação da Lei nº 10.639 tornou obrigatório o ensino de História da África e dos afro-brasileiros na Educação Básica. Entre as entidades que buscaram denunciar o racismo e organizar a comunidade Negra no Brasil, podemos destacar: • O Grupo Palmares, criado em Porto Alegre em 1971. • O CECAN (Centro de Estudos e Arte Negra), fundado em São Paulo em 1972. • O SINBA (Sociedade de Intercâmbio Brasil-África), inaugurado no Rio de Janeiro em 1974. • O Bloco Afro Ilê Aiyê, fundado em Salvador, também no ano de 1974. • O MNU (Movimento Negro Unificado), criado em São Paulo em 1978. A segunda Assembleia Nacional do MNU, realizada em Salvador no mesmo ano, declarou a data de 20 de novembro, dia da morte de Zumbi dos Palmares como o Dia da Consciência Negra. Na comemoração do centenário da abolição no Brasil, uma série de manifestações denunciava as condições dos negros no país. Aprovava-se uma nova constituição, e duas importantes reivindicações do MNU viraram textos constitucionais – a criminalização do racismo (Art. 5º) e o reconhecimento da propriedade das terras de remanescentes de quilombos (Art. 68) do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT). Com o governo Fernando Henrique Cardoso, foi criado um Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização da População Negra, dando a partida nas primeiras iniciativas de ação afirmativa na administração pública federal. Em 2001, foi realizada a III Conferência Mundial de Combate ao Racismo, na cidade de Durban na África do Sul, que mobilizou o governo e as entidades do UNIDADE 1TÓPICO 18 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A Movimento Negro e resultou em novos acontecimentos, como a reserva de vagas para negros em algumas universidades do país e novos compromissos assumidos pelo Estado em âmbito internacional. (FCRCN-MG - Fundação Centro de Referência da Cultura Negra). FONTE: Adaptado de: <http://www.webartigos.com/articles/20706/1/MOVIMENTO-NEGRO/pagina1. html>. Acesso em: 28 jun. 2010. E ainda, em março de 2003, o governo Federal criou a Seppir (Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial) e instituiu a Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial. O objetivo dessas ações é promover alteração positiva na realidade vivenciada pela população negra e rumar para uma sociedade democrática, justa e igualitária, revendo os desumanos séculos de preconceitos, discriminação a que foram submetidos os afro-brasileiros. Nesse sentido, podemos afirmar que atualmente no Brasil, se tem criado condições para uma maior abertura para se discutir os problemas da sociedade negra, como as conferências contra a intolerância racial. Esse movimento se organizou em associações, grupos de apoio, fundações etc., com os objetivos de buscar a efetivação dos direitos à igualdade, promovera equidade entre a sociedade, através de ações afirmativas e políticas de integração social. Mas as velhas demandas continuam sendo lutas constantes do genérico Movimento Negro, como a luta pelo fim do racismo e exclusão da sociedade negra no mercado de trabalho e do conjunto de direitos que constituem dignamente um cidadão ativo no meio em que vive. 2.2 AÇÕES AFIRMATIVAS E AS COTAS PARA AFRODESCENDENTES NAS UNIVERSIDADES Ocorrida em Durban, na África do Sul, entre os dias 31 de agosto e 8 de setembro de 2001, a Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Conexa reuniu mais de 2.500 representantes de 170 países, incluindo 16 chefes de Estado, cerca de 4.000 representantes de 450 organizações não governamen tais (ONG) e mais de 1.300 jornalistas, bem como representantes de organismos do sistema das Nações Unidas, instituições nacionais de direitos humanos e público em geral. Essa conferência representou um evento de importância primordial nos esforços empreendidos pela comunidade internacional para combater o racismo, a discriminação racial e a intolerância em todo o mundo. UNIDADE 1 TÓPICO 1 9 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A EST UDO S F UTU RO S! � Remissão a Leituras – Caro(a) acadêmico(a)! Para aprofundar os seus conhecimentos no que diz respeito à Conferência Mundial contra o racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância conexa, sugerimos a leitura do documento resultante desse movimento. Disponível em: <https://www.safernet.org.br/site/ sites/default/files/Racismo.pdf>. Acesso em: 24 abr. 2010. Entre as ações resultantes desta conferência, encontra-se no plano educacional a adoção do sistema de cotas para negros nas universidades. O que justificaria a adoção das ações afirmativas para afrodescendentes no sistema educacional brasileiro? Para responder essa questão vamos ler o texto de Flavia Piovesan, em que são apresentados elementos para refletir sobre esse questionamento. TRÊS SÃO OS ARGUMENTOS QUE SUSTENTAM A NECESSIDADE DE TAIS MEDIDAS NO CASO BRASILEIRO O primeiro deles refere-se à própria exigência de uma educação voltada para valores e para a promoção da diversidade étnico-racial. Se o objetivo maior do processo educacional há de ser o pleno desenvolvimento da personalidade humana, guiado pelo valor da cidadania, do respeito, da pluralidade e da tolerância, afirma-se como absolutamente legítimo o interesse da Universidade em promover a diversidade étnico-racial, o que traduziria o benefício de maior qualidade e riqueza do ensino e da vivência acadêmica, contribuindo, ainda, para a eliminação de preconceitos e estereótipos raciais. O segundo argumento é de ordem político-social. Se se pretende uma sociedade mais democrática, com a transformação de organizações, políticas e instituições, o título universitário ainda remanesce como um passaporte para ascensão social e para a democratização das esferas de poder, com o “empoderamento” dos grupos historicamente excluídos. Para ampliar o número de afrodescendentes juízes(as), advogados(as), procuradores(as), médicos(as), engenheiros(as), arquitetos(as), dentre outros, o título universitário mostra-se essencial. Acentua-se, ainda, que os afrodescendentes constituem menos de 2% dos estudantes nas Universidades públicas brasileiras, embora sejam 45% da população brasileira, que é a segunda maior população negra do mundo, com exceção da Nigéria. A pirâmide dos estudantes universitários brasileiros aponta na sua base os negros(as) provenientes das escolas públicas, seguidos dos brancos(as) das escolas públicas, por sua vez, seguidos dos negros(as) de escolas privadas e tendo em seu ápice os brancos(as) de escolas privadas. As ações afirmativas, enquanto medidas especiais e temporárias, simbolizariam medidas compensatórias, destinadas a aliviar o peso de um passado discriminatório, que faz do UNIDADE 1TÓPICO 110 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A Brasil um dos últimos países a abolir a escravidão. Significariam, ainda, uma alternativa para enfrentar a persistência da desigualdade estrutural que corroeu a realidade brasileira, por sucessivas décadas. Além disso, permitiriam a concretização da justiça em sua dupla dimensão: redistribuição (mediante a justiça social) e reconhecimento de identidades (mediante o direito à visibilidade de grupos excluídos). Por fim, há o argumento jurídico, pois a ordem constitucional, somada aos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos ratificados pelo Brasil (em especial a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial), acolhem não apenas o valor da igualdade formal, mas também da igualdade material. Reconhecem que não basta proibir a discriminação, sendo necessário também promover a igualdade, por meio de ações afirmativas. Além disso, a Constituição Federal de 1988 estabelece o princípio do pluralismo no campo do ensino e consagra como objetivos fundamentais da República, a construção de uma sociedade justa e solidária, com a redução das desigualdades sociais – o que vem a conferir lastro jurídico aos demais argumentos já expostos. FONTE: PIOVESAN, Flavia. STF e a Diversidade Racial. Disponível em: <http://www.mundojuridico. adv.br>. Acesso em: 24 abr. 2010. O sistema de cotas para afrodescendentes nas universidades justifica-se diante da constatação de que a universidade brasileira, ao longo da história desta instituição no Brasil, foi um espaço de formação profissional de maioria esmagadoramente branca, valorizando assim apenas um segmento étnico, onde a condição racial constituiu um fator de privilégios para brancos e de exclusão e desvantagens para os não brancos. No entanto, se por um lado as políticas de ação afirmativa representam uma conquista, por outro, elas representam uma série de impactos sociais a exemplo: • instauração, no espaço acadêmico, de um mecanismo reparador das perdas infringidas à população negra brasileira; • acusar a existência do racismo e combatê-lo de forma ativa; • possibilidade de avaliação das consequências da inclusão de negros e negras na vida universitária; • convivência plural e diária com a diversidade humana em sua variedade de experiências e perspectivas; • estímulo da confiança de crianças e adolescentes negros em sua capacidade de realização; • estímulo aos estudantes negros para demandar de suas escolas um melhor nível educacional; • conscientização sobre o que é ser negro no Brasil; UNIDADE 1 TÓPICO 1 11 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A • irradiação dessas influências benéficas para todo o país. 3 DIRETRIZES CURRICULARES NACIONAIS PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS E PARA O ENSINO DE HISTÓRIA E CULTURA AFRO- BRASILEIRA E AFRICANA A Lei nº 10.639, de 2003, alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira em seu artigo 26 A, oportunizou a elaboração de um documento com vistas a orientar o trabalho na educação. Art. 26 – A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura afro-brasileira. § 1º O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo de História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil. § 2º Os conteúdos referentes à História e Cultura afro-B=brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras. FONTE: Disponívelem: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2003/L10.639.htm>. Acesso em: 22 abr. 2010. As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura afro-brasileira e Africana destinadas a orientar os trabalhos educacionais, fundamentar a prática docente e dar sustentação à obrigatoriedade da Lei nº 10.639, foi posto em circulação, a partir de março de 2004. Neste item, vamos buscar compreender os princípios que norteiam este documento. 3.1 POLÍTICAS DE REPARAÇÕES, DE RECONHECIMENTO E VALORIZAÇÃO DE AÇÕES AFIRMATIVAS As chamadas políticas de ação afirmativa ou políticas compensatórias são muito recentes na história das ideologias antirracistas. Estas ações visam oferecer aos grupos discriminados e excluídos um tratamento diferenciado para compensar as desvantagens devidas à sua situação de vítimas do racismo e de outras formas de discriminação. UNIDADE 1TÓPICO 112 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A As ações afirmativas atendem as determinações do Programa Nacional de Direitos Humanos, aos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, com o intento de combater o racismo e a discriminação, como a Conferência da ONU em Durban, África do Sul em 2001. 3.2 EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS 3.3 HISTÓRIA E CULTURA AFRO-BRASILEIRA E AFRICANA: PRINCÍPIOS NORTEADORES DO TRABALHO PEDAGÓGICO As relações étnico-raciais dizem respeito à reeducação de diferentes grupos étnicos, no caso brasileiro em específico, aos grupos negros e não negros. Dependendo de ações que priorizem trabalhos conjuntos, articulações entre processos educativos escolares, políticas públicas e movimentos sociais. Vale a pena destacar que as mudanças éticas, culturais, pedagógicas e políticas nas relações étnico-raciais nãos se limitam à escola. Mas exigem esforços da sociedade como um todo. De acordo com as Diretrizes Curriculares, a educação das relações étnico-raciais deverá oportunizar aprendizagens, troca de conhecimento, desenvolvimento de projetos que visem à construção de uma sociedade justa, igual, equânime aos diferentes grupos étnicos. É importante compreendermos que a obrigatoriedade da inclusão da História e Cultura afro-brasileira e Africana nos currículos da Educação Básica não apresenta o objetivo em mudar, ou substituir o foco etnocêntrico assentado nas raízes europeias por um africano. Todavia, o de ampliar o foco nos currículos escolares para a diversidade cultural, racial, social e econômica brasileira. Assim, é preciso ter a clareza que o art. 26 A, acrescido à Lei nº 9.394/96, promove bem mais que a inclusão de novos conteúdos. Ele oportuniza o repensar das relações étnico-raciais, sociais, pedagógicas no sentido de orientar a reelaboração de estratégias que promovam novos olhares para a educação. Para exemplificar, citamos alguns dos princípios que estruturam as Diretrizes Curriculares UNIDADE 1 TÓPICO 1 13 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A 3.3.1 Consciência política e histórica da diversidade 3.3.2 Fortalecimento de identidade e de direitos Este princípio deve conduzir: • à igualdade básica de pessoa humana como sujeito de direitos; • à compreensão de que a sociedade é formada por pessoas que pertencem a grupos étnico-raciais distintos, que possuem cultura e história próprias, igualmente valiosas e que em conjunto constroem, na nação brasileira, sua história; • ao conhecimento e à valorização da história dos povos africanos e da cultura afro-brasileira na construção histórica e cultural brasileira; • à superação da indiferença, injustiça e desqualificação com que os negros, os povos indígenas e também as classes populares às quais os negros, no geral, pertencem, são comumente tratados. FONTE: Lei nº 10.639, 9 jan. 2003. O princípio deve orientar para: • o desencadeamento de processo de afirmação de identidades, de historicidade negada ou distorcida; • o rompimento com imagens negativas forjadas por diferentes meios de comunicação, contra os negros e povos indígenas; • as excelentes condições de formação e de instrução que precisam ser oferecidas, nos diferentes níveis e modalidades de ensino, em todos os estabelecimentos, inclusive os localizados nas chamadas periferias urbanas e nas zonas rurais. FONTE: Lei nº 10.639, 9 jan. 2003. UNIDADE 1TÓPICO 114 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A 3.3.3 Ações educativas de combate ao racismo e a discriminação O princípio encaminha para: • a conexão dos objetivos, estratégias de ensino e atividades com a experiência de vida dos alunos e professores, valorizando aprendizagens vinculadas às suas relações com pessoas negras, brancas, mestiças, assim como as vinculadas às relações entre negros, indígenas e brancos no conjunto da sociedade; • condições para professores e alunos pensarem, decidirem, agirem, assumindo responsabilidade por relações étnico-raciais positivas, enfrentando e superando discordâncias, conflitos, contestações, valorizando os contrastes das diferenças; FONTE: Lei nº 10.639, 9 jan. 2003. LEITURA COMPLEMENTAR OS QUADROS CRONOLÓGICOS Os quadros cronológicos da história da África põem também um problema muito delicado: tudo depende da região considerada. Certos setores, como a costa oriental ou a orla sul do Sara, evoluíram durante longos períodos, a par e passo com o mundo árabe. Outros, desde o início do tráfico de escravos (a costa da Guiné), estiveram estreitamente ligados à Europa. Enquanto certas regiões apenas tomarão contato com o mundo moderno no século XX. A data de 1591 (Tondibi), tão significativa para o Sudão ocidental, não tem o mesmo valor para os reinos Luba ou Lunda. Mas, por outro lado, datas como a tomada de Constantinopla (1453), que não exerceram qualquer influência direta na história da África, não podem ser utilizadas como pontos de referência. As expressões Idade Média e Renascimento não terão, portanto, o mesmo sentido (se algum tem) para a nossa história. Da mesma maneira, as datas da Magna Carta inglesa, das Revoluções Americanas e Francesa, da Revolução Soviética de Outubro, por muito significativas que sejam para a história universal, não podem servir de marcos específicos para a história da África. Mesmo a data da colonização, tão importante para a história recente da África e para a delimitação das atuais fronteiras dos Estados, não constitui a única e nem a principal charneira em torno da qual se ordenaria toda a história destes países. O único método justo consistiria ao que parece, em estabelecer divisões de base que englobem as grandes épocas históricas dominadas pelo mesmo complexo de fenômenos. No interior dessas épocas é necessário demarcar regiões históricas caracterizadas por situações e condições particulares no decorrer de todo o período, e apenas no decorrer dele. Enfim, no interior de cada região histórica, em primeiro lugar analisada como tal, é preciso observar políticas que oferecem uma originalidade suficiente. Tendo em conta estes princípios, poder- UNIDADE 1 TÓPICO 1 15 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A se-iam distinguir as fases seguintes: 1º As civilizações paleolíticas caracterizadas por leadership incontestável da África. 2º A revolução neolítica e as suas consequências (desenvolvimento demográfico, migrações etc.). 3º A revolução dos metais ou a passagem dos clãs e reinos e impérios. 4º Os séculos de reajustamento: primeiros contatos europeus; tráfico de escravos e suas consequências (século XV-XIX). 5º A ocupação europeia e as reações africanas até ao movimento de libertação após a segunda guerra mundial. 6º A independência e os seus problemas. É bem evidente quenunca existe uma separação perfeitamente nítida e que nem todas as regiões de África entram ao mesmo ritmo em cada um destes períodos. Mas o cenário geral não deixa de ser este. Esta divisão tem a vantagem de pôr em realce os principais elementos motores da evolução humana, ou seja, os fatores socioeconômicos. É por esta razão que as grandes viragens não podem ser assinaladas pelos famosos marcos cronológicos em que a data de uma batalha leva à mudança de capítulo em certos compêndios escolares. De resto, ainda que se quisesse utilizar datas precisas, isso seria as mais das vezes impossível. Não se vá dizer, por esse motivo, que seja impossível escrever uma história da África, nem que se tenha de fazer tantas histórias quantas as regiões com ritmo de evolução diferente. Não se escreveram histórias da Europa quando, por exemplo, a revolução industrial em Inglaterra precedeu por vezes de um século a sua chegada à Europa meridional e central? Aliás, mesmo no interior de cada país não se veem ritmos históricos absolutamente diferentes? Não acederam certas regiões à vida moderna um ou dois séculos depois de outras? Poder-se-ão assim distinguir como grandes regiões os países da África Ocidental até ao Kanem, subdividindo talvez os países da savana e os da floresta; os países da África do Norte, da África Oriental, da África Central e da África do Sul. No entanto, deve-se sublinhar de forma bem clara que se trata apenas de divisões, digamos, operacionais, metodológicas, para maior comodidade. Com efeito, as relações que uniram fortemente todas estas partes integrantes são suficientes, apesar dos obstáculos naturais e do nível medíocre das técnicas de deslocação, para que se possa afirmar que tem havido, desde a pré-história, certa solidariedade histórica continental entre o vale do Nilo e o Sudão até à floresta guineense; entre aquele mesmo vale e a África Oriental, com, entre outras coisas, a dispersão dos Lwos; entre o Sudão e a África UNIDADE 1TÓPICO 116 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A Central pela diáspora dos Bantos; entre a África Central e a África Oriental pelo comércio transcontinental, etc. houve trocas inter-africanas que constituem um puzzle apaixonante e explicam as analogias surpreendentes que se verificam através do continente do ponto de vista das estruturas políticas e das culturas materiais ou artísticas. FONTE: KI–ZERBO, Joseph. Os quadros cronológicos. In: História da África Negra. Publicações Europa-América, s/d. p. 32-34. UNIDADE 1 TÓPICO 1 17 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A RESUMO DO TÓPICO 1 Neste tópico, você viu que: • A Lei nº 10.639 não é um produto da burocracia, mas um produto da união de forças vindas da sociedade brasileira. • As reivindicações dos negros por melhores condições sociais no Brasil não é recente. Pelo contrário, desde a chegada do africano ao Brasil, já são perceptíveis indícios de que os africanos não foram totalmente submissos ao processo que os escravizou. • Em 2001, a III Conferência Mundial de Combate ao Racismo realizado em Durban, na África do Sul, delineou os contornos das ações que resultaram no movimento pela reserva de cotas para afro-brasileiros nas Universidades brasileiras. • A compreensão de como estão estruturadas as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das relações étnico-raciais e para o ensino de História e Cultura afro-brasileira e Africana, é fundamental para a inserção da temática em sala de aula. UNIDADE 1TÓPICO 118 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A AUT OAT IVID ADE � Caro(a) acadêmico(a)! Resolva as questões a seguir: 1 Dos aspectos a seguir, quais você associaria à imagem do continente africano? Quais sinônimos você associaria a este continente? Após as suas escolhas, justifique sua resposta. • A África é sinônimo de: a) Riqueza. b) Pobreza. • A África é sinônimo de: a) Estabilidade política. b) Instabilidade política. • A África é sinônimo de: a) Atraso. b) Desenvolvimento. • A África é sinônimo de: a) Saúde. b) Doença. • A África é sinônimo de: a) Tribo. b) Civilização. 2 A Lei nº 10.639 não é um produto da burocracia, mas um produto da união de forças vindas da sociedade brasileira. A partir desse apontamento, elabore um texto a respeito da luta pelas reivindicações do direito negro no Brasil. FONTE: Disponível em: <http://www. guiageografico.com/mapas/mapa/ africa-globe.gif>. Acesso em: 25 abr. 2010. FIGURA 1 – IMAGEM DO CONTINENTE AFRICANO H I S T Ó R I A D A Á F R I C A A LEI 10.639 E A FORMAÇÃO DE PROFESSORES 1 INTRODUÇÃO TÓPICO 2 UNIDADE 1 As diretrizes curriculares para a educação étnico-racial e para o ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana sinalizam que entre os direitos dos cidadãos brasileiros, encontram-se o de cursar cada um dos níveis de ensino e de serem orientados por professores qualificados e com formação para lidar com as tensas relações produzidas pelo racismo e discriminações, sensíveis e capazes de conduzir a reeducação das relações entre diferentes grupos étnicos. O fator chave para a implementação da Lei nº 10.639 é a formação dos professores. Eles serão os atores fundamentais desse processo. Para isso é necessário difundir, divulgar a proposta dessa lei, bem como ampliar o acesso à produção histórica em relação ao Continente Africano. Os conteúdos pertinentes ao ensino de história da África vêm se constituindo como uma realidade aos cursos de formação de professores. Essa realidade é problemática, sobretudo, porque se tem a obrigatoriedade da inserção dos conteúdos referentes a essa temática no currículo da educação básica. Mas as iniciativas em proporcionar formação específica nessa temática ao professor se encontram em processo de construção no ensino brasileiro. No entanto, não se pode negar e nem deixar de citar os núcleos de estudos afro-brasileiros e africanos junto às universidades federais, estaduais e também as iniciativas em âmbito estadual, municipal, privadas entre outros, engajados em divulgar e difundir as questões relacionadas aos estudos da África. Desta forma, este tópico objetiva delinear e refletir sobre os desafios em introduzir a temática história e cultura afro-brasileira e africana nas salas de aula. O professor ao trabalhar com esta temática deve atentar para não reproduzir a condição de inferioridade e, em contrapartida, também, deve estar atento para não criar uma ideia de enaltecimento das sociedades africanas. Seu trabalho deverá possibilitar o entendimento do processo histórico, UNIDADE 1TÓPICO 220 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A social, político e econômico que coloca a África na pauta de discussão em alguns momentos da História Geral e do Brasil. 2 ENSINAR A RIQUEZA E A DIVERSIDADE DA HISTÓRIA E CULTURA AFRICANA Para nós brasileiros, a África, como já sinalizado, tem uma importância peculiar, sendo juntamente com Portugal uma das grandes matrizes da nossa sociedade. No entanto, como apresentar um continente rico em sua diversidade, como alinhar a significativa contribuição africana ao processo de construção histórica do Brasil. Se, esse mesmo continente é ainda alvo da divulgação de imagens depreciativas, onde os conflitos étnicos, genocídios, crianças famélicas e aidéticas, líderes corruptos e cruéis são apontados como sendo a realidade das muitas sociedades que compõem a mosaica África. Essa realidade é indicativa de que não basta fazer referência à África e à história e cultura afro-brasileira nas salas de aula, é preciso atentar para a abordagem dos conteúdos que serão trabalhados. Ela aponta, também, para anecessidade da formação docente, uma vez que os problemas decorrem da estratificação de um imaginário sobre a África, que a concebe como um continente pobre, subdesenvolvido, subalterno e incivilizado. 3 PROBLEMÁTICA DIDÁTICA 3.1 AS FONTES DE ENSINO PARA HISTÓRIA DA ÁFRICA Considerando o olhar negativo sobre a África e africanos que predominou na sociedade brasileira durante um longo período, a questão abordada diz respeito ao problema com as fontes para ensino de História desse continente. O problema reside em: onde buscar leituras que propiciem informações sobre o Continente Africano, sua história e sua diversidade? Como só há pouco tempo o tema passou a fazer parte do currículo escolar e a incorporar as preocupações dos pesquisadores, a carência de material e de fontes é relevante. Nortear os estudos sobre a África na perspectiva de desnaturalizar, de desmistificar a imagem negativa e errônea que se construiu ao longo do tempo, requer um esforço didático sobre um corpo de obras interdisciplinares desprovidas de preconceitos ideológicos e que UNIDADE 1 TÓPICO 2 21 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A 4 AS NOVAS ABORDAGENS NO ENSINO DE HISTÓRIA DA ÁFRICA levem a compreender a configuração histórica desse continente e das sociedades africanas. No Brasil existe um descompasso entre a produção acadêmica e os saberes que circulam nos espaços da educação básica, isto é, o conhecimento científico produzido nas universidades, nem sempre chegam às escolas. O livro didático, instrumento importante na difusão do conhecimento, nem sempre é produzido à luz de novos saberes. EST UDO S F UTU RO S! � Caro(a) acadêmico(a)! No próximo tópico, abordaremos com mais profundidade as questões acerca da História da África e a produção do livro didático. Para mudar a forma como em geral lidamos com conteúdos relativos à África e os africanos, é indispensável conhecer acerca de suas realidades passadas e presentes. Para isso, já sinalizamos a importância de um esforço didático. Para auxiliá-lo disponibilizamos no ambiente virtual, um acervo contendo indicações de leituras sobre a História da África. DIC AS! Disponível no ambiente virtual da Uniasselvi – favor inserir o link da uniasselvi. No entanto, é relevante lembrar que não são somente as fontes escritas que proporcionam conhecimento sobre a África. Caro(a) acadêmico(a)! Para compreendermos a dinâmica que transfere um continente desprovido de história, constituído por sociedades ditas incivilizadas, composto por sujeitos inferiorizados para um continente rico em diversidade cultural, formado por diferentes sociedades com estruturas políticas, religiosas específicas, que viveram processos históricos variados e que devem ser entendidos como parte da história da humanidade. Precisamos voltar um pouco na história das disciplinas que compõem o Curso de História da Uniasselvi. UNIDADE 1TÓPICO 222 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A A disciplina de Processos Historiográficos possibilitou-nos compreender a dinâmica das novas correntes historiográficas que nos revelaram a existência, a possibilidade de novos olhares para a História. Ou seja, que existe uma variedade de abordagens históricas (como a questão de gênero, das migrações, da elaboração dos padrões próprios de organização política, econômica e social, dos valores estéticos, filosóficos e culturais, entre vários outros). A África também se insere nessa perspectiva de um novo olhar para a história. Precisamos romper com a visão de que esse continente se constitui num bloco monolítico. Isto é, precisamos perceber a existência de várias Áfricas dentro de um extenso território. Áfricas que apresentaram e apresentam diferenças e semelhanças. É fundamental que se entenda que a História desse continente não começa com a vinda dos escravos para as Américas, que não inicia com o colonialismo dos séculos XV e XVI e que também não começa e nem se esvai com a história da civilização egípcia. Na verdade, a história da África pré-colonial é uma história rica, em que povos estão organizados, no mínimo em clãs. Muitos deles formando reinos, estados e impérios, portanto com estruturas políticas diferentes (algumas com mais governo centralizado, outras com governo menos centralizado), mais estruturas políticas definidas. Importante evidenciar que os africanos que vieram para as Américas, em específico para o Brasil, como cativos e que aqui se tornaram escravos, muitas vezes eram originários da nobreza africana. DIC AS! Livro “Reis Negros no Brasil Escravista – História da Festa de Coroação de Rei Congo” (Editora UFMG, 2002, 390 páginas), de Marina de Mello e Souza, professora de História da África na Universidade de São Paulo. FONTE: Disponível em:<http://www1.folha.uol.com.br/folha/sinapse/ images/sps4_19.jpg>. Acesso em: 25 abr. 2010. FIGURA 2 – CAPA DO LIVRO REIS NEGROS NO BRASIL ESCRAVISTA O livro busca traçar o processo histórico no qual as festas de coroação de Rei Congo se constituíram, privilegiando a perspectiva do encontro de culturas diferentes, que, em dado contexto de dominação social produziu manifestações culturais mestiças. Para tanto, foi necessário aprofundar o conhecimento da história e da cultura da África Centro- Ocidental, que compreende a região chamada pelos portugueses, dos séculos XVI ao XIX, de Congo e Angola e preencher uma lacuna nos estudos de manifestações culturais afro- brasileiras, no que diz respeito às contribuições do mundo banto. UNIDADE 1 TÓPICO 2 23 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A 4.1 OS NOVOS DESAFIOS 4.2 A CULTURA NEGRA EM SALA DE AULA: ERROS E ACERTOS Um dos objetivos do acesso à História da África é possibilitar elementos que desnaturalizem a África como terra de escravos e os africanos como inferiores. O professor engajado nesse desafio será, num primeiro momento, obrigado a desconstruir os estereótipos e preconceitos que povoam o imaginário social em relação à África. E ainda, compreender que a história desse continente requer a conjunção de dois fatores essenciais: construir uma sensibilidade empática para com a experiência histórica dos povos africanos, e uma constante atualização dos referenciais sobre África, africanos e afro-brasileiros. A obrigatoriedade do ensino da História da África está atrelada às múltiplas interações do corpo social brasileiro, estimulando o surgimento do que há de melhor, mas também aguçando as tendências mais conservadoras ligadas a um passado escravista mal assumido. É nesse sentido que o novo esforço do educador pode se transformar num fator democratizante. (WEDDERBURN, 2005). Ainda segundo esse autor, um novo olhar sobre a África se converte numa exigência pragmática, acadêmica, cultural e política. As medidas capazes de garantir a generalização do ensino da história da África num país onde prepondera cultural e demograficamente o componente surgido desse continente, correspondem, efetivamente, a uma perspectiva de construção nacional de longo alcance. Desta forma, inserir a história de um continente em sala de aula não será uma tarefa fácil, como já sinalizado, exigirá comprometimento e constante pesquisa. Abordar questões como discriminação, racismo, preconceito, nem sempre é algo confortável. Tratar de temas que geram polêmicas são, ainda, práticas inovadoras no universo da escola. UNIDADE 1TÓPICO 224 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A IMP OR TAN TE! � Preconceito racial é o conceito negativo com relação a uma determinada raça. Discriminação racial implica ações discriminadoras baseadas em princípios preconceituosos. As discussões que envolvem o Continente Africano, certamente,não fugirão de discussões, reflexões, posicionamento, enfim, a inserção dessa temática dará novos contornos às aulas. Seguem sugestões sobre como abordar o tema. Erros Abordar a história dos negros a partir da escravidão. Acertos Aprofundar-se nas causas e consequências da dispersão dos africanos pelo mundo e abordar a história da África antes da escravidão. Apresentar o continente africano cheio de estereótipos, como o exotismo dos animais selvagens, a miséria e as doenças, como a AIDS. Enfocar as contribuições dos africanos para o desenvolvimento da humanidade e as figuras ilustres que se destacaram nas lutas em favor do povo negro. Pensar que o trabalho sobre a questão racial deve ser feito somente por professores negros para alunos negros. A questão racial é assunto de todos e deve conduzir para a reeducação das relações entre descendentes de africanos, de europeus e de outros povos. Acreditar no mito da democracia racial. Reconhecer a existência do racismo no Brasil e a necessidade de valorização e respeito aos negros e à cultura africana. FONTE: BENCINI, Roberta. Educação não tem cor. Revista Nova Escola. Ano XIX, n. 177, nov. 2004, p. 47-53. UNIDADE 1 TÓPICO 2 25 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A RESUMO DO TÓPICO 2 Neste tópico, você viu: • A inserção da temática História e Cultura Africana e Afro-brasileira é um desafio na educação brasileira. • A África, junto com Portugal, é uma das grandes matrizes da sociedade brasileira. • Não basta fazer referência à África e à história e cultura africana e afro-brasileira na sala de aula. É preciso atentar para a abordagem dos conteúdos que serão trabalhados. • Precisamos romper com a visão de que o Continente Africano se constitui num bloco monolítico. Precisamos perceber as diversas Áfricas que compõem esse extenso continente. • Desnaturalizar a África como terra de escravos e africanos como inferiores. UNIDADE 1TÓPICO 226 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A AUT OAT IVID ADE � Exercite seus conhecimentos adquiridos, resolvendo as questões a seguir: 1 Elabore um pequeno texto sobre a importância das fontes para o ensino da História da África. Sugestão: Aponte dificuldades, possibilidades e o uso em sala de aula. 2 Reflita sobre o seguinte apontamento: O livro didático, instrumento importante na difusão do conhecimento, nem sempre é produzido à luz de novos saberes. 3 Aponte os novos desafios ao ensino de história da África. 4 No item 4.2 desse tópico, apresentamos possíveis erros e acertos à abordagem da História e Cultura Africana e Afro-brasileira. Escolha um desses itens e escreva um texto analisando a possibilidade desse tipo de abordagem em sala de aula. H I S T Ó R I A D A Á F R I C A A CONSTRUÇÃO DAS REPRESENTAÇÕES SOBRE ÁFRICA, AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS 1 INTRODUÇÃO TÓPICO 3 UNIDADE 1 As ideias e imagens que povoam os cenários mentais da sociedade brasileira sobre a África e os africanos são resultados de um intenso processo de apropriação e invenção do diversificado e heterogêneo conjunto de formas e sentidos utilizados para observar às sociedades daquele continente. Representações formadas por elementos herdados de uma longa e multifacetada tradição e por outros fabricados a partir das experiências históricas que mostram os africanos e afro-brasileiros como submissos, inferiorizados, incivilizados e passíveis de escravização, o certo é que, boa parte dessas imagens, associa os africanos a uma série de leituras depreciativas, apesar de existirem também os esforços em sentido contrário. A imagem caricatural do africano na sociedade brasileira é a do negro acorrentado aos grilhões do passado, imagem construída pela insistência e persistência das representações da África como a terra de origem dos negros escravizados, de um continente sem história e repleto de amimais selvagens. A África é tida sempre como a diferente com relação aos outros continentes, há um bloqueio sistemático em pensar o africano sem o vínculo da escravidão. O imaginário social brasileiro tem dificuldades no processo do exercício da cidadania na formulação do modelo de origem dos afro-brasileiros. E são essas imagens que, ainda, povoam os livros didáticos no Brasil. Para delinear essa reflexão acerca da representação do continente africano no imaginário social brasileiro, leia o fragmento do texto de Anderson Ribeiro Oliva. VISÕES SOBRE A ÁFRICA Em recente viagem à África, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva demonstrou a intenção do Estado brasileiro, pelo menos de forma simbólica, de quebrar o silêncio de algumas décadas nas relações econômicas e diplomáticas mais vantajosas entre as duas UNIDADE 1TÓPICO 328 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A margens do Atlântico. Deixando de lado as perspectivas figurativas do tour pela região sul do Continente – São Tomé e Príncipe, Angola, Moçambique, Namíbia e África do Sul - o presidente, em seus improvisados, e, portanto, mais reveladores discursos, cometeu o que foi para alguns uma gafe, para outros uma dura ofensa à África. Ao fazer comentários sobre a limpeza e organização de Windhoek, capital da Namíbia, Lula evidenciou as imagens que incorporamos e perpetuamos sobre o Continente. Não tiremos as palavras do presidente, sua íntegra nos ajuda à reflexão sobre nosso imaginário acerca da África e dos africanos. Estou surpreso porque quem chega a Windhoek [capital da Namíbia], não parece estar num país africano. Poucas cidades do mundo são tão limpas, tão bonitas arquitetonicamente e têm um povo tão extraordinário como tem essa cidade [...]. A visão que se tem do Brasil e da América do Sul é de que somos todos índios e pobres. A visão que se tem da África é de que também é um continente só de pobre (CORREIO BRAZILIENSE, 2003, p. 2). Não iremos crucificar o presidente como outros fizeram. Não que concordemos com tal disparate conclusivo, até porque, tendo oportunidade de se corrigir nos dias seguintes, Lula afirmou que apenas constatou o óbvio. Porém, é muito mais enriquecedor analisar os pensamentos do nosso chefe de Estado por outra dimensão. Independente de Lula ter formação superior ou não, ser presidente ou cidadão comum, nordestino ou gaúcho, pobre ou rico, sua postura de admiração com uma “cidade limpa” na África é surpreendentemente comum. Para ser mais claro: excluindo um seleto grupo de intelectuais e pesquisadores, uma parcela dos afrodescendentes e pessoas iluminadas pelas noções do relativismo cultural, nós, brasileiros, tratamos a África de forma preconceituosa. Reproduzimos em nossas ideias as notícias que circulam pela mídia, e que revelam um Continente marcado pelas misérias, guerras étnicas, instabilidade política, AIDS, fome e falência econômica. As imagens e informações que dominam os meios de comunicação, os livros didáticos incorporam a tradição racista e preconceituosa de estudos sobre o Continente e a discriminação à qual são submetidos os afrodescendentes aqui dentro. A África não poderia ter, fazendo uma breve inversão do olhar presidencial, ruas limpas, um povo extraordinário e bela arquitetura. Seguindo esse raciocínio, a viagem não poderia ter outra dimensão do que a econômica, e o Brasil não poderia ter outra postura do que a de ajuda humanitária à África, já que, por sermos tão melhores do que eles, seria ilógico esperar algo de lá. Para além da educação escolar falha, é certo afirmar que as interpretações racistas e discriminatórias elaboradas sobre a África e incorporadas pelos brasileiros são resultado do casamento de ações e pensamentos do passado e do presente. Neste caso, percebe-se que as representações deturpadassobre o Continente Africano não são uma exclusividade brasileira dos dias do presidente Lula. As distorções, simplificações e generalizações de sua história e de suas populações são comuns a várias partes e tempos do mundo ocidental. Dessa forma, sem continuarmos a reproduzir leituras e falas como a citada, é muito provável que o imaginário de nossas futuras gerações sobre a África não sofra modificações significativas. FONTE: OLIVA, Anderson Ribeiro. A História da África nos bancos escolares: representações e UNIDADE 1 TÓPICO 3 29 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A imprecisões na literatura didática. p. 421-461. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo. php?script=sci_arttext&pid=S0101-546X2003000300003&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 25 abr. 2010. 2 AS REPRESENTAÇÕES DO NEGRO NOS LIVROS DIDÁTICOS DE HISTÓRIA Até que ponto a imagem retratada do negro nos livros didáticos, de forma mascarada, contribuiu para a formação de uma cultura que discrimina e exclui? Esse questionamento está presente nas discussões que envolvem a produção do livro didático no Brasil. E, vem colocando este importante veículo de difusão de saberes e conhecimentos como um dos agentes responsáveis pelo processo que retirou os africanos e afro-brasileiros da construção da história do Brasil. Os livros didáticos costumam resumir a participação dos africanos e seus descendentes ao papel de escravos no Brasil Colônia, e a uma breve menção à escravidão, mais do que aos próprios escravos, no período imperial. Nesse caso, não é raro se mencionarem brevemente as leis emancipacionistas (Lei Eusébio de Queiroz, Lei do Ventre Livre e Lei dos Sexagenários) e se falar mais demoradamente da Lei Áurea – mesmo que, em um esforço crítico, tente-se questionar o caráter “redentor” da lei e da Princesa que a assinou. Sobre a África, pouquíssimo; dificilmente as referências vão além da escravidão moderna, da partilha imperialista e, no período pós- Segunda Guerra Mundial, do processo de descolonização – sempre em pouquíssimas linhas. Há exceções, é claro, mas por serem poucas e pouco difundidas, elas acabam confirmando a regra: o ensino de História da África no Brasil é muito deficiente. Além disso, essa abordagem, longe de proporcionar elementos para que o estudante possa compreender a África, os africanos e as nossas origens culturais (e, muitas vezes, suas próprias origens familiares), contribui para difundir ainda mais o preconceito: o africano é apresentado como escravizado, primitivo, tutelado, explorado. Não se fazem referências às diversas civilizações africanas, antigas e originais, muitas delas extremamente ricas e influentes em sua época, nem aos complexos modos de vida que se desenvolveram no continente. Pior ainda: algumas tentativas de aprofundar um pouco o tema servem, ao contrário, para reforçar o preconceito, como ao mencionarem apressadamente a escravidão africana anterior à presença europeia. Este é um terreno perigoso, pois, se não compreendermos o conceito de escravidão em seu contexto correto, corremos o risco de acreditar que a escravidão, por já existir na África por volta de 1500, seria plenamente justificável quando praticada pelos europeus. Caro(a) acadêmico(a)! Para nos aprofundarmos nas discussões em torno da produção do livro didático e da história da África vamos ler o texto que segue. UNIDADE 1TÓPICO 330 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A O LIVRO DIDÁTICO DE HISTÓRIA ENTRE REPRESENTAÇÕES Se levarmos em consideração que a grande maioria dos autores de livros didáticos são historiadores, ou pelo menos professores de História, os manuais escolares – com seus textos escritos e imagéticos – ganham o status de serem representações da História. Da mesma forma, seria natural pensar que as mesmas serão (re)significadas pelos seus leitores, sejam eles professores ou alunos. Entendemos, portanto, que os textos e os recursos imagéticos presentes em um livro didático – mapas, figuras, fotografias, pinturas, charges ou desenhos – são produtos da interpretação e da representação de certa realidade pelos seus autores. Os próprios manuais guardam uma larga possibilidade de entendimento a partir do contexto no qual foram fabricados, do momento historiográfico vivenciado, das diversas demandas e influências que se apresentaram na elaboração desse tipo de material e de ideologias ou mentalidades circulantes. Ao escrever um texto sobre a formação dos Estados nacionais europeus e ignorar a multiplicidade étnica da África pré-colonial, ou utilizar imagens de africanos escravizados e brutalizados e não aquelas em que aparecem resistindo ou interagindo ao tráfico, o autor está fazendo uso de uma série de critérios: sua formação acadêmica, suas convicções ideológicas, seu contexto histórico, o público para quem está elaborado o material, a intenção das editoras, as limitações de sua formação para tratar todos os assuntos e as pressões do mercado editorial. De certa forma, seu trabalho final é o resultado de seus olhares direcionados e cheios de significados e interpretações, resultando num tipo de representação da história. O livro didático [...] é um importante veículo portador de um sistema de valores, de uma ideologia, de uma cultura. Várias pesquisas demonstraram como textos e ilustrações de obras didáticas transmitem estereótipos e valores dos grupos dominantes, generalizando temas, como família, criança, etnia, de acordo com os preceitos da sociedade branca [...]. (BITTENCOURT, 1997, p. 72). A partir das palavras e imagens – significantes – presentes nos livros, os próprios alunos irão construir suas representações – significados – ou somente absorverão as representações elaboradas pelos autores. De acordo com Zamboni Com relação à produção do conhecimento em sala de aula, lidamos direta- mente com a construção e elaboração de imagens e palavras. Neste aspecto, a compreensão dos sentidos das palavras é de fundamental importância [...] Quando uma palavra adquire determinado significado, pode ser aplicada a outras situações: é a aplicação de um conceito a novas situações concretas, é um tipo de transferência. (ZAMBONI, 1998, p. 94-95). Entretanto, acreditamos que a construção de significados em sala de aula não se limita às palavras ou textos escritos. As imagens, além de contribuírem para o processo de ensino-aprendizagem em História (ibidem: 75), também informam uma maneira de os alunos olharem os indivíduos ou grupos sociais que convivem com eles. A imagem enquanto representação do real estabelece identidade, distribui UNIDADE 1 TÓPICO 3 31 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A papéis e posições sociais, exprime e impõe crenças comuns, instala modelos formadores, delimita territórios, aponta para os que são amigos e os que se deve combater. (MEIRELES, 1995, p. 101). Seria plausível, então, pensar que se uma criança africana, europeia ou brasileira for acostumada a estudar e valorizar apenas ou majoritariamente elementos, valores ou imagens da tradição histórica europeia elas irão construir interpretações ou representações influenciadas pelas mesmas. Da mesma forma, se as imagens reproduzidas nos livros didáticos sempre mostrarem o africano e a História da África em uma condição negativa, existe uma tendência da criança branca em desvalorizar os africanos e suas culturas e das crianças africanas em sentirem-se humilhadas ou rejeitarem suas identidades. FONTE: OLIVA, Anderson Ribeiro. A História da África nos bancos escolares: representações e imprecisões na literatura didática. p. 421-461. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo. php?script=sci_arttext&pid=S0101-546X2003000300003&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 25 abr. 2010. No entanto, não se desconsideraque o PNLD e a legislação brasileira têm estado atentos à representação de negros (e indígenas) nos materiais didáticos. A questão vem sendo tratada em concordância com as principais tendências do movimento negro, sob dois ângulos: a proibição do racismo em livros e outros materiais didáticos, a exortação à inclusão dos aportes de negros (inclusive da África contemporânea) e indígenas na história e construção do país. 2.1 AS CONSEQUÊNCIAS PARA A FORMAÇÃO DA IDENTIDADE NEGRA NO BRASIL A identidade negra é uma construção social, histórica, cultural e plural. Implica a construção do olhar de um grupo étnico-racial ou de sujeitos que pertencem a um mesmo grupo sobre si mesmo, a partir da relação com o outro. Construir uma identidade negra positiva em uma sociedade que, historicamente, ensinou ao negro, desde muito cedo, que para ser aceito é preciso negar-se a si mesmo, é um desafio enfrentado pelos afro-brasileiros. Será que, a escola está atenta a essa questão? Será que incorporamos essa realidade de maneira séria e responsável quando discutimos a importância da diversidade cultural? Assim, quando pensamos a articulação entre educação, cultura e identidade negra, falamos de processos densos, movediços e plurais, construídos pelos sujeitos sociais no decorrer da história, nas relações sociais e culturais. Processos que estão imersos na articulação entre o individual e o social, entre o passado e o presente, entre a memória e a história. Nessa perspectiva, quando pensamos a escola como um espaço específico de formação, inserida num processo educativo bem mais amplo, encontramos mais do que currículos, disciplinas escolares, normas, projetos. Encontramos um espaço passível de interferir UNIDADE 1TÓPICO 332 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A na construção da identidade negra. O olhar lançado sobre o negro e sua cultura, na escola, tanto pode valorizar identidades e diferenças quanto pode estigmatizá-las, discriminá-las, segregá-las e até mesmo negá-las. É importante lembrar que a identidade construída pelo negro se dá não só por oposição ao branco, mas também, pela negociação, pelo conflito e pelo diálogo com este. As diferenças implicam processos de aproximação e distanciamento. Nesse jogo complexo, vamos aprendendo, aos poucos, que as diferenças são imprescindíveis na construção da nossa identidade. Sendo entendida como um processo contínuo, construído pelos negros nos vários espaços institucionais ou não em que circulam, podemos concluir que a identidade negra também é construída durante a trajetória escolar desses sujeitos. Nesse percurso, os negros deparam-se, com diferentes olhares sobre o seu pertencimento racial, sobre a sua cultura, sua história, seu corpo e sua estética. Muitas vezes esses olhares se chocam com a sua própria visão e experiência da negritude. Estamos no complexo campo das identidades e das alteridades, das semelhanças e diferenças e, sobretudo, diante das diversas maneiras como estas são tratadas pela sociedade. DIC AS! Caro(a) acadêmico(a)! Como sugestão assista ao documentário Vista a minha pele, dirigido por Joel Zito de Araújo. Nesta história invertida, os negros são a classe dominante e os brancos foram escravizados. Os países pobres são Alemanha e Inglaterra, enquanto os países ricos são, por exemplo, África do Sul e Moçambique. Maria é uma menina branca, pobre, que estuda num colégio particular graças à bolsa de estudo que tem pelo fato de sua mãe ser faxineira nesta escola. A maioria de seus colegas a hostilizam, por sua cor e por sua condição social, com exceção de sua amiga Luana, filha de um diplomata que, por ter morado em países pobres, possui uma visão mais abrangente da realidade. Maria quer ser “Miss Festa Junina” da escola, mas isso requer um esforço enorme, que vai desde a superação do padrão de beleza imposto pela mídia, onde só o negro é valorizado, à resistência de seus pais, à aversão dos colegas e à dificuldade em vender os bilhetes para seus conhecidos, em sua maioria, muito pobres. Maria tem em Luana uma forte aliada e as duas vão se envolver numa série de aventuras para alcançar seus objetivos. O centro da história não é o concurso, mas a disposição de Maria em enfrentar essa situação. Ao final, ela descobre que, quanto mais confia em si mesma, mais capacidade terá de convencer outros de sua chance de vencer. Outra opção pode ser o filme “A família da Noiva”, que apresenta um preconceito às avessas do que costuma ser apresentado pelos meios de comunicação. UNIDADE 1 TÓPICO 3 33 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A DIC AS! Elenco: Bernie Mac, Ashton Kutcher, RonReaco Lee, Gus Lynch, Phil Reeves, Zoe Saldana, Sherri Shepherd, Amanda Tosch. Direção: Kevin Rodney Sullivan FONTE: Disponível em: <http://www.itapevacity.com.br/cinema/ afamiliadanoiva.jpg> . Acesso em: 25 abr 2010. 2.2 O NEGRO E A LITERATURA A temática afro-brasileira é uma temática marginal na literatura culta brasileira. No entanto, na literatura popular, há a existência de uma escrita que é também negra. De uma escrita onde duas culturas se sucederam. A negra africana, que foi trazida pelos cativos escravizados e a negra brasileira, que se desenvolveu no Brasil, a partir da primeira, mas com certa autonomia. A literatura africana, em consequência a afro-brasileira, se origina a partir do resgate da tradição oral. Na África, a cultura parte de uma tradição oral, como forma de conhecimento, como forma de herança. A resistência do mercado editorial no Brasil a esse tipo de literatura, ainda é significativa, haja vista, a pouca divulgação de obras com essa temática. No entanto, o acesso ao pensamento africano, a forma de ser, de viver, que é diferente da cultura europeia, cultura esta que se faz presente no currículo da educação básica, precisa ser acessada. Os professores precisam chamar a atenção para a importância do contato com esse tipo de literatura. FIGURA 3 – CARTAZ DO FILME O PAI DA NOIVA Gênero: Comédia Distribuidora: Fox Film Sinopse: A Família da Noiva é uma nova versão para o filme Adivinhe Quem Vem para o Jantar, de 1967. Kutcher interpreta um jovem branco que enfrenta problemas quando começa a namorar uma bela garota negra, já que o pai dela não vê o relacionamento com bons olhos devido à diferença racial. FONTE: <http://www.cinepop.com.br/ filmes/familiadanoiva.htm>. Acesso em: 25 abr. 2010. UNIDADE 1TÓPICO 334 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A Numa cultura oral como a africana, o griot conserva a memória coletiva. A figura do griot tem uma enorme importância na conservação da palavra, da narração, do mito. Na prática, eles funcionam como escritores sem papel. Ortografam na oralidade aquilo que deve permanecer embutido na memória e no coração dos seus familiares e conterrâneos, no sentido de manter incrustada a identidade do seu ser e das suas raízes, fundamentada, em grande parte, no seu passado. Os griots são os guardiães, intérpretes e cantores da História oral de muitos povos africanos. FONTE: Disponível em: <HTTP://pt.wikipedia.org/wiki/Griot>. Acesso em: 25 abr. 2010. 3 ÁFRICA, AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS NAS VIDEOTECAS A imagem do negro difundido nos meios midiáticos, geralmente, é apresentada de forma superficial estereotipada, ou ainda, é pautada na depreciação, minimização ou negação existencial. Na maioria, personalidades negras e fatos históricos, fora do âmbito euro-norte- americano, têm sua participação ignorada ou minimizada na obra. (JÚNIOR et al., 2000). A produção televisionada no Brasil é projetada mundialmente a partir da produção de telenovelas, que têm seus direitos comprados por países estrangeiros, ou seja, a produção da dramaturgiabrasileira é veiculada em diversos países. Se a televisão possibilita a difusão de informações acessível a todos, sem distinção social e cultural, é imprescindível perceber o lugar destinado aos personagens negros. As telenovelas ao caracterizar o negro de maneira estereotipada trazem para o mundo da ficção, um imaginário que permeia as relações entre brancos e negros no Brasil, revelando o universo presente nessas relações, atualizam e perpetuam crenças e valores pautados por esse imaginário, que não modernizou as relações interétnicas na sociedade brasileira. (LIMA; MOTTER; MALCHER, 2000). FIGURA 4 – GRIOTS DE SAMBALA, REI DE MEDINA (POVO FULA, MALI), 1890 UNIDADE 1 TÓPICO 3 35 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A Até a década de 80 do século passado, a propaganda publicitária apresentava negros desempenhando funções subalternas – como trabalhadores braçais de vários tipos. A presença era caracterizada pela secundariedade da ação mostrada na mídia, ou seja, o negro, geralmente, não ocupava o lugar de destaque na publicidade. Sua presença estava associada a complementar o cenário, nunca a de beneficiário de determinado produto. Nos anos 90, quando afro-brasileiros passam a ser vistos como consumidores, a imagem do negro na mídia torna-se recorrente. Criam-se produtos específicos destinados aos negros. Com isso modelos e atores afro-brasileiros ganham destaque e espaço nos meios de comunicação. (LAHNI et al., 2007). Apesar do aumento de novelas com maior participação de negros em papéis até mesmo principais, em grande parte, eles ainda são representados de maneira negativa e estereotipados: de morador de favela ou de caráter duvidoso. Poucos representam personagens com sucesso profissional. Portanto, discutir acerca desses estereótipos existentes na mídia é uma maneira de contribuir para reflexão acerca de ideias racistas e preconceituosas na televisão e na sociedade brasileira. UNIDADE 1TÓPICO 336 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A DIC AS! Caro(a) acadêmico(a)! Sugerimos uma série de filmes e documentários que abordam as questões africanas e afro- brasileiras na mídia e que poderão ser utilizados para trabalhar essa temática. KIRIKU E A FEITICEIRA D i r e ç ã o : M i c h e l O c e l o t , 7 0 m i n u t o s , 2 0 0 2 . Uma história que celebra a coragem, a curiosidade e a astúcia sobre uma comunidade subjugada. NARCISO RAP Direção: Jéferson De, 18 min, 2003. FALA TU Direção: Guilherme Coelho, 74 minutos, 2004. CAFUNDÓ Direção: Paulo Betti e Clóvis Bueno, 102 minutos, 2005. FILHAS DO VENTO Direção: Joel Zito Araújo, 85 minutos, 2005. ALMA NO OLHO Direção: Zózimo Bulbul, 11 minutos,1974. ANICETO DO IMPÉRIO EM DIA DE ALFORRIA Direção: Zózimo Bulbul, 12 minutos,1981. PEQUENA ÁFRICA Direção: Zózimo Bulbul, 14 minutos, 2002. SAMBA NO TREM Direção: Zózimo Bulbul, 22 minutos, 1999/2000. REPÚBLICA TIRADENTES Direção: Zózimo Bulbul, 36 minutos, 2005. ABOLIÇÃO Direção: Zózimo Bulbul, 160 minutos, 1988. CAROLINA Direção: Jéferson De, 15 minutos, 2003. A NEGAÇÃO DO BRASIL Direção: Joel Zito Araújo, 92 minutos, 2000. UNIDADE 1 TÓPICO 3 37 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A 4 ÁFRICA, AFRICANOS E AFRO-BRASILEIROS NOS BRINQUEDOS E BRINCADEIRAS Chicotinho Queimado, Escravos de Jô, Samba Lelê, entre outros são brincadeiras que perpassam o universo infantil no Brasil, sejam nos espaços formais como a escola, ou nos espaços informais, como as brincadeiras de rua. Se por um lado, essas brincadeiras renovam os contextos de opressão onde foram construídas. Por outro, carregam uma memória afetiva difícil de ser apagada. Nesse sentido, as brincadeiras infantis que reiteram ou descartam a desumanização sofrida pelos negros, podem ser também, aliadas no processo de resgatar a valorização das ações afirmativas que têm o negro como centro. Músicas, danças, jogos podem ser instrumentos para a maior densidade da referência africana e afro-brasileira. Para compreendermos esse universo das representações infantis, vamos ler o texto a seguir. REDESCOBRINDO BRINQUEDOS CANTADOS NA AFRICANIDADE BRASILEIRA Todos os povos têm suas brincadeiras pertinentes às necessidades expressivas de cada cultura. Como sonhar acordado, brincar é expor-se de dentro para fora. Segundo a Musicoterapia o som tem propriedades físicas que incidem sobre o corpo humano de forma objetiva e subjetiva, movendo o sujeito afetivamente, interferindo no seu desenvolvimento biopsicossocial. Vamos fazer uma breve leitura de alguns brinquedos do folclore brasileiro que perpassam as instâncias da arte de brincar, cantar, dançar e imaginar. Os brinquedos cantados surgem na espontaneidade da cultura popular. Geralmente são cantigas anônimas acompanhadas de movimentos expressivos, saltitantes e ou dramatizados. Nestes brinquedos, em geral, as crianças imitam o mundo do adulto vivenciando emoções, sensações e conflitos como veículos de elaboração e amadurecimento. Dos três povos que inicialmente formaram a cultura brasileira, o português trouxe maior influência para os brinquedos cantados. A oralidade que caracteriza o processo de transmissão das brincadeiras e brinquedos cantados de certa forma transformou as cantigas e os modos de brincar, ocorrendo a mistura dos costumes africanos com os lusitanos, além das variações regionais de uma mesma brincadeira (CASCUDO,1988). No entanto, os ritmos e danças africanas deram um tempero mais brejeiro ao legado lúdico brasileiro. Até o século XIX, as brincadeiras das crianças eram muito limitadas pela rigidez patriarcal imposta ao comportamento infantil, e porque os infantes eram vistos como miniadultos. Freyre (2005) conta que muitas crianças brancas eram criadas pelas escravas africanas juntamente com seus filhos negros, os quais eram mais habilidosos com a natureza, UNIDADE 1TÓPICO 338 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A mais dados a traquinagens e à criatividade devido a sua condição servil. Outro aspecto característico das brincadeiras infantis no tempo colonial brasileiro, é que as crianças ao acompanharem seus pais no labor cotidiano da casa grande ou do eito repetiam em suas brincadeiras estes afazeres e também o contexto de violência vivido na época. (FREYRE, 2005). Nos brinquedos cantados, encontra-se o canto, a poesia, a dança, a brincadeira, o compartilhar, devido à simplicidade musical, riqueza simbólica e ludicidade peculiar; as vivências através destes elementos lúdicos conquistam a criança como aquilo que é próprio do seu tempo. Os termos brincar e jogar são referenciados como sinônimos por Cascudo (1988). Nos principais idiomas internacionais (inglês, francês, alemão e espanhol), brincar e jogar também serve para definir atividades artísticas como a interpretação teatral ou musical (Santa Roza,1993). Na língua portuguesa, o termo “brincar” vem do latim vinculum e significa laço, união. No entanto, é o termo lúdico da nossa língua, também proveniente do latim “ludus”, que melhor abrange e define as atividades artísticas, culturais, brincadeiras e jogos. (ibid.) Passando para o lado prático, vamos brincar com quatro exemplos curiosos do cancioneiro infantil brasileiro. O primeiro se chama “Uma, duas angolinhas”, é um brinquedo cantado tipo parlenda em roda, com as crianças sentadas e um solista ao meio dando beliscos nas mãos de cada colega enquanto cantam as quadrinhas: Uma, duas angolinhas, Finca o pé na pampulhinha O rapaz que faz o jogo faz o jogo de capão Capão sobre capão, Fica aí Mané João Aquele que tirar a mão por último vai levar um be-lis-cão. Além do beliscão refletindo a ideia da galinha d’angola beliscando as mãos de cada participante,a protagonista da música, uma ave, é um dos mais importantes mitos iorubanos sobre a origem da criação do mundo; conta Lopes (2004) que “a galinha d’angola ciscou sobre as águas iniciais uma porção de terra e a espalhou por todas as direções fazendo nascer terra firme”. Por este mito e outras razões ela também é considerada a primeira iaô e é o animal mais importante dentro da tradição dos orixás. No divertido brinquedo cantado “O Saci Pererê”, as crianças em pé na roda, devem cantar e imitar as habilidades do saci mostradas na música: O Saci Pererê, pula numa perna só, Ele toca o tambor, toca como ele só. O Saci Pererê, pula numa perna só, Ele toca o pandeiro, toca como ele só. (...) UNIDADE 1 TÓPICO 3 39 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A Esta brincadeira é aberta a improvisações na letra, onde se podem colocar quantos instrumentos quiser para o Saci tocar e consequentemente para as crianças imitarem. O Saci Pererê, elemento tradicional no nosso folclore, aproxima-se de várias figuras da mítica iorubana como: Exu (em suas traquinagens); Arôni (duende iorubano de uma perna só, ligado a Ossãim, e que vive nas matas); e ainda é referenciado a uma palavra do campo semântico da magia e do sortilégio em ioruba “Ásasí”, conforme assinalado em Lopes (2004 e 2006). Outro brinquedo cantado de significado muito expressivo é o Tangolomango; as crianças brincam em roda também para contagem de números decrescentes, no qual um participante deve deixar a roda ao final de cada verso. Eis algumas quadras desta cantiga: Eram dez irmãs numa casa, Uma delas foi tocar o fole, Deu um Tangolomango nela, E das dez ficaram nove. Eram nove irmãs numa casa, Uma delas foi fazer biscoito, Deu um Tangolomango nela, E das nove ficaram oito. Eram oito irmãs numa casa, Uma delas foi amolar canivete, Deu um Tangolomango nela, E das oito ficaram sete. [...] A simbologia contida nesta brincadeira em que cada momento uma criança deixa de fazer parte do grupo acometida pelo Tangolomango vai de encontro às diversas referências a esta palavra como “Uma doença atribuída a feitiçaria, bruxedo, azar, infelicidade, morte” (LOPES, 2004). Nota-se que este assunto é bastante difícil para o entendimento das crianças e carregado de discriminação e preconceito racial, social entre outros. Como é de praxe, vamos terminar em samba com uma brincadeira muito conhecida no sudeste brasileiro, onde as crianças finalizam a música sambando conjuntamente na roda – como fazem os adultos. Samba Lelê tá doente, Tá com a cabeça quebrada, Samba Lelê precisava, É de umas boas lambadas, Samba, samba, samba ô Lelê, Samba, samba, samba ô Lalá. (bis) Nosso velho conhecido samba não poderia ficar de fora das brincadeiras das crianças. Samba é um nome genérico para várias danças brasileiras e para a própria música; contudo, foi registrado em Angola o verbo samba querendo dizer “cabriolar, brincar, divertir-se”; é remetido também a palavra semba de origem Bantu significando o mesmo que umbigada. A propósito, “Lê” é o nome do menor dos três atabaques da orquestra ritual dos candomblés jeje-nagô (LOPES, 2004). As crianças se divertem aprendendo e ensinando a dança do samba umas às outras. Este parece ser o maior objetivo dos brinquedos cantados: transmitir a cultura pela oralidade e pela corporeidade, favorecendo a vivência, a elaboração e o desenvolvimento da criança. Buscamos neste trabalho retomar um pouco o tema da africanidade permeada em nossa cultura desde a infância. Há centenas de outros exemplos, mas, precisaríamos de UNIDADE 1TÓPICO 340 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A um espaço específico para mostrá-los. Acredito que dar à criança a oportunidade de brincar, cantar e dançar é investir num caminho de busca da essência do ato, da mente, da voz e do pertencimento inventando o prazer de ser feliz! Para ambientar o final deste artigo, deixo alguns versos de uma música popular brasileira do compositor Gonzaguinha que é um exemplo de ciranda: REDESCOBRIR Como se fora brincadeira de roda (memória) Jogo do trabalho na dança das mãos (macias) O suor dos corpos na canção da vida (história) O suor da vida no calor de irmãos (magia) (...). FONTE: GUERRA, Denise. Redescobrindo brinquedos cantados na africanidade brasileira. Revista África e Africanidades. Ano 2. n. 5. Maio 2009. Disponível em: <http://www. africaeafricanidades.com>. Acesso em: 26 abr. 2010. UNIDADE 1 TÓPICO 3 41 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A Neste tópico, você viu que: • As ideias e imagens que povoam os cenários mentais da sociedade brasileira sobre a África e os africanos são resultados de um intenso processo de apropriação e invenção do diversificado e heterogêneo conjunto de formas e sentidos utilizados para observar as sociedades daquele continente. • Às imagens e informações que dominam os meios de comunicação, os livros didáticos incorporam a tradição racista e preconceituosa de estudos sobre o Continente e a discriminação a que são submetidos os afrodescendentes aqui dentro. • Até que ponto a imagem retratada do negro nos livros didáticos, de forma mascarada, contribuiu para a formação de uma cultura que discrimina e exclui? • A identidade negra é uma construção social, histórica, cultural e plural. Implica a construção do olhar de um grupo étnico-racial ou de sujeitos que pertencem a um mesmo grupo sobre si mesmo, a partir da relação com o outro. • A escola não é um espaço passível de interferir na construção da identidade negra. • O olhar lançado sobre o negro e sua cultura, na escola, tanto pode valorizar identidades e diferenças quanto pode estigmatizá-las, discriminá-las, segregá-las e até mesmo negá-las. • A literatura africana, em consequência a afro-brasileira, se origina a partir do resgate da tradição oral. Na África, a cultura parte de uma tradição oral, como forma de conhecimento, como forma de herança. • As brincadeiras infantis que reiteram ou descartam a desumanização sofrida pelos negros, podem ser também, aliadas no processo de resgatar a valorização das ações afirmativas que tem o negro como centro. RESUMO DO TÓPICO 3 UNIDADE 1TÓPICO 342 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A AUT OAT IVID ADE � Exercite seus conhecimentos adquiridos, resolvendo as questões a seguir. 1 No item 2.1 desse tópico, refletimos sobre a construção da identidade negra no Brasil. A partir das questões apresentadas, elabore um texto compreendendo o papel da escola nesse processo. 2 Reflita sobre o papel do negro nas telenovelas brasileiras. Sugestão: se possível, estabeleça um contraponto do lugar ocupado pelos personagens negros, anterior e posterior a Lei nº 10.639. Utilize para a construção do texto exemplos da teledramaturgia brasileira. 3 As brincadeiras infantis, muitas vezes reforçaram o imaginário coletivo, isto é, possibilitam a perpetuação de imagens e estereótipos que são difíceis de romper. No item 4 deste tópico, refletimos sobre algumas brincadeiras de conotação africana. Nesse sentido, aponte brinquedos e brincadeiras infantis que tenham feito parte do cotidiano de sua infância, analisando-as como possibilidade de terem reforçado esse imaginário distorcido em relação aos africanos e afro-brasileiros. H I S T Ó R I A D A Á F R I C A SUBSÍDIOS PARA TRABALHAR A HISTÓRIA DA ÁFRICA 1 INTRODUÇÃO TÓPICO 4 UNIDADE 1 A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei 9394/96, retificando a posição da Constituição Federal de 1988, determina que “o ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes etnias para a formação do povo brasileiro (art. 26, § 4º). Em cumprimento a este dispositivo legal,o Ministério da Educação (MEC), elaborou para o Ensino Fundamental, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN). A grande inovação dessa proposta são os temas transversais (Convívio Social e Ética, Pluralidade Cultural, Meio Ambiente, Orientação Sexual, Saúde, Trabalho e Consumo). Estas temáticas deverão perpassar as diferentes áreas do conhecimento na escola, ou seja, os temas transversais serão abordados pelas disciplinas curriculares (Língua Portuguesa, Matemática, História, Geografia, Ciências e Artes) permitindo com isso, práticas interdisciplinares. A temática Pluralidade Cultural de acordo com o Documento do MEC, [...] diz respeito ao conhecimento e à valorização das características étnicas e culturais dos diferentes grupos sociais que convivem no território nacional, às desigualdades socioeconômicas e à crítica às relações sociais discriminatórias e excludentes que permeiam a sociedade brasileira, oferecendo ao aluno a possibilidade de conhecer o Brasil como um país complexo, multifacetado e algumas vezes paradoxal. Esse mesmo documento aponta como objetivos do ensino fundamental o conhecimento e a valorização da pluralidade do patrimônio sociocultural do país, bem como aspectos socioculturais de outros povos e nações, devendo os alunos e professores se posicionarem contra quaisquer formas de discriminação baseada em diferenças culturais, de classe social, de sexo, de etnia ou outras características individuais e sociais. Somado a esses esforços, em 2003, foi sancionada a Lei nº 10.639, que estabeleceu as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino UNIDADE 1TÓPICO 444 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A a da temática História e Cultura Afro-brasileira. Tornando obrigatório o estudo da História da África e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional. A lei determina, ainda, que os conteúdos pertinentes a essa temática sejam trabalhados no contexto de todo o currículo escolar, especialmente no âmbito das disciplinas de Arte, Literatura e História do Brasil. No entanto, as outras áreas do conhecimento escolar não estão isentas de integrarem essa temática à produção e resignificação de seus saberes. Pelo contrário, se hoje, o discurso que perpassa a escola é um discurso pautado na interdisciplinaridade do conhecimento, como não agregar esse tema a outras disciplinas do currículo. Assim, vamos refletir sobre a prática docente e a prática interdisciplinar para a resignificação da história da África e afro-brasileira. 2 POSSIBILIDADES INTERDISCIPLINARES PARA O ENSINO DE HISTÓRIA DA ÁFRICA O trabalho interdisciplinar converge para um ponto unitário, em que a integração das áreas do conhecimento e a relação delas com a realidade de quem aprende, tornam o conhecimento dinâmico sob o ponto de vista da aprendizagem. A interdisciplinaridade vem vislumbrando novos territórios de integração entre os saberes, buscando um conhecimento comum e que se contraponha à repartição epistemológica do saber. De acordo com as Diretrizes Curriculares vigentes na educação brasileira, o grande objetivo da educação no país, hoje, é propiciar ao educando uma aprendizagem interdisciplinar. As disciplinas que compõem o currículo da Educação Básica são entendidas como campos do conhecimento e se identificam pelos respectivos conteúdos estruturantes e por seus quadros teóricos conceituais. Nesse sentido, se tornam pressupostos para a interdisciplinaridade. A partir das disciplinas, as relações interdisciplinares se estabelecem quando: • conceitos, teorias ou práticas de uma disciplina são chamados à discussão e auxiliam a compreensão de um recorte de conteúdo qualquer de outra disciplina; • ao tratar do objeto de estudo de uma disciplina, buscam-se nos quadros conceituais de outras disciplinas referenciais teóricos que possibilitem uma abordagem mais abrangente desse objeto. Entendida nessa perspectiva, a interdisciplinaridade rompe a hierarquia entre as disciplinas e alinha os saberes entre elas. Possibilitando a resignificação dos saberes dessas áreas iniciada sob o olhar de uma disciplina. UNIDADE 1 TÓPICO 4 45 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A Assim, a temática África e afro-brasileiros que tem seu ponto de partida na História, poderá ser trabalhada em outras disciplinas. Embora a Lei 10. 639 cite as disciplinas de História, Artes e Língua Portuguesa como norteadoras do trabalho, é possível a interação das diferentes áreas do conhecimento no processo de inserção dessa temática na produção do conhecimento escolar. Vamos refletir sobre algumas disciplinas e a temática África e afro-brasileiros. 2.1 O ENSINO DE HISTÓRIA DA ÁFRICA E A DISCIPLINA DE HISTÓRIA 2.2 O ENSINO DE HISTÓRIA DA ÁFRICA E A GEOGRAFIA Em História, como já sinalizado, torna-se necessário desmistificar visões equivocadas acerca do negro somente como escravo, da África como continente primitivo e atrasado, da passividade quanto à escravidão e do mito da democracia racial. Como exercício introdutório, é pertinente abordar as representações elaboradas sobre os africanos, identificando e desconstruindo os argumentos racistas e estereótipos. É importante, também, destacar o uso adequado de conceitos, evitando o anacronismo e o esquecimento das características das históricas africanas. Deverão ser estudados os grandes reinos africanos (Mali, Congo, Zimbábue, Egito, entre outros) e suas organizações políticas, sociais, religiosas, econômicas; os povos escravizados trazidos para o Brasil e as consequências da Diáspora Africana; os movimentos de resistência dos africanos em solo brasileiro, enfim, delinear a presença dessa etnia na sociedade brasileira. Segundo as Diretrizes Curriculares para o ensino de geografia, esta área de conhecimento deve criar estratégias que levem os alunos a pensar a realidade geograficamente e despertar a consciência espacial. Para isto, deverá ser empreendida uma educação que contemple a heterogeneidade, a diversidade, a desigualdade e a complexidade do mundo atual. Tendo esta disciplina como conteúdos estruturantes a dimensão econômica da produção no/do espaço; geopolítica, dimensão socioambiental e a dinâmica cultural e demográfica poderá, em consonância com a Lei nº 10.639/03, focar o processo de miscigenação de povos; a distribuição espacial da população afrodescendente no Brasil e suas contribuições na construção da nação; a diáspora africana; composição da população brasileira pela cor, segundo o último censo, abrangendo as diferenças de renda e escolaridade; discussões sobre práticas UNIDADE 1TÓPICO 446 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A de segregação racial, sobre o mito da democracia racial no Brasil; fazer um levantamento das comunidades quilombolas locais, entre tantas outras. O uso de mapas é um recurso que possibilita mostrar esse continente na escola. Pois possibilitam tanto a reprodução das características geográficas quanto da distribuição das múltiplas sociedade e hegemonias políticas africanas. Outra possibilidade é apresentar a reinvenção dos contornos políticos nos últimos dois séculos a partir da ação colonial europeia e dos processos de independência africana, que fazem parte da história contemporânea desse continente. 2.3 O ENSINO DE HISTÓRIA DA ÁFRICA E A EDUCAÇÃO FÍSICA A Educação Física, tendo como conteúdos estruturantes: esporte; jogos e brincadeiras; dança; ginástica e lutas, poderá explorar as práticas corporais nas danças como o batuque, frevo, jongo, samba, lundu, maracatu, congada e a capoeira (única luta que é praticada ao som de instrumentos e cantos), buscando seusignificado no contexto histórico social; brinquedos e brincadeiras da cultura africana. As Diretrizes Curriculares que orientam o ensino da Educação Física, trazem a capoeira como conteúdo básico por meio de uma abordagem teórico-metodológica que procure “estudar o histórico da capoeira, a diferença de classificação e estilos da capoeira, enquanto jogo/luta/ dança, musicalização e ritmo, ginga, confecção de instrumentos, movimentação, roda etc.” Um grupo de capoeira da comunidade poderia ser convidado a fazer uma apresentação para toda a escola ao término do estudo. Ou poderiam ser mostrados jogos de origem africana como o apresentado a seguir. UM jOGO DE TABULEIRO QUE VEIO DA ÁFRICA Há mais de 200 jogos africanos conhecidos por mancala, que simulam uma semeadura. Eles podem ser jogados individualmente ou até por quatro pessoas e são compostos pelos mesmos tipos de peça – um tabuleiro de madeira com covas e sementes populares da África. Um deles é o Kalah, que, por ter regras simples, é indicado para crianças a partir de 6 anos. O Kalah ajuda a desenvolver a atenção e a concentração das crianças, pois uma jogada errada se transforma em vantagem para o adversário. A capacidade de antecipação é outra importante competência que os alunos adquirem. O objetivo dos competidores é acumular o maior número de sementes, mas nem sempre a melhor jogada é a que possibilita conseguir uma grande quantidade delas de uma só vez. Durante a brincadeira, os pequenos UNIDADE 1 TÓPICO 4 47 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A também vão ficar craques na contagem, já que precisam controlar as sementes a cada jogada. REGRAS A cada jogada, participam duas crianças, sentadas frente a frente e tendo o tabuleiro entre elas. Cada jogador fica com um potinho à sua direita (chamado de casa de acumulação ou reservatório). São colocadas três sementes em cada cova. O primeiro jogador pega as sementes de uma delas e as redistribui, uma por cova, no sentido anti-horário. Sempre que o percurso incluir o próprio reservatório, ele deposita ali uma semente - que passa a pertencer apenas ele. Ao passar pelo reservatório adversário, o jogador não coloca sementes. Toda vez que a última semente cair no reservatório da própria criança, ela joga de novo. Ela pode partir de qualquer cova de seu campo. Há outra maneira de se apropriar de sementes do monte que está sendo distribuído cair em uma cova vazia do próprio campo, o jogador pode pegar todas as sementes que estão na cova da frente, no campo adversário. O jogo termina quando as sementes já estiverem nos reservatórios dos jogadores ou quando não houver mais sementes no próprio campo para jogar. Vence que acumular mais sementes. FONTE: Adaptado de: MARAGON, Cristiane. Um jogo de tabuleiro que veio da áfrica. Revista Nova Escola. Ano XX, n. 187, novembro 2005. p. 64-65. FONTE: Disponível em: <http://www.katiachedid.com.br/files/atividades/57e43e61a9155933c2be63b fa c09d0f9.pdf>. Acesso em: 26 abr. 2010. DIC AS! Caro(a) acadêmico(a)! Para saber mais sobre Educação Física e o ensino da cultura africana e afro-brasileira sugerimos a leitura das Diretrizes Curriculares. Disponível em: <http://www.diaadiaeducacao.pr.gov.br/diaadia/diadia/arquivos/ File/diretrizes_2009/2_edicao/edfisica.pdf>. Diretrizes Curriculares da Educação Básica Educação Física. FIGURA 5 – FORMAS DE JOGAR O KALAH UNIDADE 1TÓPICO 448 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A 2.4 O ENSINO DE HISTÓRIA DA ÁFRICA E A DISCIPLINA DE ARTE As habilidades e competências desenvolvidas a partir da disciplina de Arte levam o aluno a compreender a importante contribuição dos elementos culturais africanos nas expressões artísticas brasileiras. De acordo com a Lei nº 11.769/08 que estabelece a obrigatoriedade do ensino da música na educação básica, na disciplina de Arte, norteada pelos conteúdos estruturantes “movimentos e períodos”, há possibilidades de se trabalhar a música africana e a música popular brasileira, a contribuição da cultura africana na formação da Música Popular Brasileira por meio da origem do batuque, do lundu e do samba até chegar ao Movimento Hip Hop (Movimento norte-americano constituído por três vertentes: o RAP - música; o Break – dança e o grafite – artes plásticas). Esse movimento chegou ao Brasil em 1980 e sofreu a influência da cultura local onde o RAP ganhou influência do samba e o break tem um paralelo com a capoeira. Em “Artes Visuais” poderão ser feitas máscaras, esculturas, ornamentos, pintura corporal e penteados característicos da cultura africana explorando a estrutura de Fractais (Física e Matemática). A inserção da arte africana na escola contribui para o rompimento da hegemonia da cultura europeia, ainda presente nas escolas brasileiras. No entanto, em relação ao trabalho docente, isso irá requer comprometimento e muita pesquisa, pois não podemos esquecer que as contribuições culturais dos africanos e posterior dos afro-brasileiros é rica e se apresenta sob uma significativa diversidade. FONTE: Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Arte_ da_%C3%81frica>. Acesso em: 28 abr. 2010. FIGURA 6 – MÁSCARA DO SÉCULO XVI, NIGÉRIA, EDO, CORTE DE BENIN, MARFIM, METROPOLITAN MUSEUM OF ART UNIDADE 1 TÓPICO 4 49 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A 2.5 A LÍNGUA PORTUGUESA, A LITERATURA E A HISTÓRIA DA ÁFRICA No campo da literatura, existem excelentes trabalhos direcionados para o ensino fundamental. Contos, romances e ficções históricas possibilitam acessar parte da mentalidade africana. Existe no Brasil uma série de obras que evidenciam as tradições, a cultura, as relações sociais, aspectos econômicos, políticos entre outros que permitem compreender o pensar sobre a construção da memória, da identidade e como esta se transforma em narrativa de experiências. No entanto, ao trabalhar a narrativa literária de forma interdisciplinar na perspectiva de utilizá- la como aporte teórico metodológico na compreensão da História da África, devemos estar atentos para o fato de que a obra literária mostra uma realidade que lhe é própria, ou seja, a sua realidade ficcional. Mas, que é possível através dela compreender processos sociais, e uma possível reflexão sobre determinada estrutura social. A apresentação de escritores como Joel dos Santos Rufino, Ana Maria Machado, Geni Guimarães, Aroldo Macedo, entre outros, bem como de compositores e cantores como Gilberto Gil, Milton Nascimento, artistas como Di Cavalcanti, Cândido Portinari, Tarsila do Amaral que incluem a figura do negro em suas obras são possibilidades que mostram e valorizam o pensamento africano e afro-brasileiro nas expressões culturais e, que oportunizam ações didáticas em sala de aula. DIC AS! Escrito por Joel do Santos Rufino, O Presente de Ossanha conta a história de dois meninos e dois mundos distintos. Um negro, pobre, escravo e sem nome; o outro branco, com nome, rico e o direito de fazer do negrinho um ‘brinquedo’. Baseado em um conto de José Lins do Rêgo, o autor recria a história sob o ponto de vista do menino sem nome acrescentando informações da cultura africana e do mundo mítico do moleque escravo. FONTE: Disponível em: <http://www.livrariacultura.com.br/scripts/cultura/ resenha/resenha.asp?nitem=3193757&sid=892722135106456192 3505667&k5=20153902&uid>. Acesso em: 26 abr. 2010. FIGURA 7 – CAPA DO LIVRO O PRESENTE DE OSSANHA UNIDADE 1TÓPICO 450 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A DIC AS! Escrito por Ana Maria Machado o livro Menina Bonita do Laço de Fita conta a história de um coelhinho bem branquinho que faz de tudo para ficar pretinho como aquela menina do laço de fita que ele acha linda. Mas ele nãosabe como a menina herdou aquela cor. FONTE: Disponível em: <http://www.livrariacultura.com.br/scripts/cultura/ resenha/resenha.asp?nitem=93908>. Acesso em: 26 abr. 2010. 2.6 A BIOLOGIA E O ENSINO DA HISTÓRIA DA ÁFRICA 2.7 A SOCIOLOGIA E O ENSINO DA HISTÓRIA DA ÁFRICA Em Biologia, a discussão deverá estar voltada para a desmitificação das teorias racistas através do estudo das características biológicas dos diversos povos; pesquisa e análise das condições de vida e de saúde das populações africanas e afrodescendentes relacionando-as com os aspectos políticos, econômicos, sociais e culturais das respectivas comunidades. As competências e habilidades desenvolvidas na disciplina de Biologia levam o aluno a perceber que o planeta é habitado por diferentes tipos biológicos. E que nenhuma diferença biológica deve justificar a superioridade ou a inferioridade entre as etnias. A Sociologia, cujo papel histórico está além da leitura e de explicações teóricas para a sociedade, tem como tarefa primordial explicitar e explicar problemáticas sociais concretas e contextualizadas, desconstruindo pré-noções e preconceitos que quase sempre dificultam o desenvolvimento da autonomia intelectual e de ações políticas direcionadas à transformação social. Enquanto disciplina, fundamentada em conteúdos estruturantes como: “O processo de socialização e as instituições sociais”, “A cultura e a indústria cultural”, “Trabalho, produção e movimentos sociais”, “Poder, política e ideologia”, “Cidadania e movimentos sociais” e tendo FIGURA 8 – CAPA DO LIVRO MENINA BONITA DO LAÇO DE FITA UNIDADE 1 TÓPICO 4 51 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A 3 ESPAÇOS DE VALORIZAÇÃO, RESGATE E DIFUSÃO DA MEMÓRIA, DA HISTÓRIA E DA CULTURA AFRICANA E AFRO-BRASILEIRA como tarefa inadiável a formação de novos valores, de nova ética e de novas práticas sociais que apontem para a possibilidade de construção de novas relações sociais, poderá se incumbir de pesquisar a luta do afrodescendente pelo direito de igualdade através do Movimento Negro, da Lei nº 10.639/03, das cotas raciais para o ingresso nas universidades. Também poderá abordar o aspecto religioso através da desmitificação da umbanda e do candomblé (sincretismo religioso). Repensar a história africana com vistas à sua valorização e perceber que não existe cultura superior ou inferior, mas conhecer e respeitar as diferenças é o que busca a Lei nº 10.639/03. Caro(a) acadêmico(a)! Lembramos também das outras áreas do conhecimento como: matemática, física, língua estrangeira, filosofia, que poderão articular saberes para a ressignificação e releitura da História da África e afro-brasileira. Tratar da importância e valorização da cultura negra dentro da escola, criando espaços para manifestações que proporcionem reflexão crítica da realidade e afirmação positiva dos valores culturais negros pertencentes a nossa sociedade será um dos desafios que farão parte do seu trabalho enquanto professor. No entanto, para uma temática recente na historiografia, será necessária a busca por recursos teóricos metodológicos. Nesse sentido, a pesquisa será uma ferramenta indispensável ao seu trabalho. UNIDADE 1TÓPICO 452 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A IMP OR TAN TE! � Como já sinalizado, ao longo do texto desta unidade, existe uma diversidade de fontes de pesquisa que lhe serão indispensáveis de consulta, para o trabalho com a temática da História da África e afro-brasileira. No entanto, com o intento de contribuir ao seu trabalho, apontamos alguns recursos de pesquisa aos espaços de difusão da cultura africana e afro-brasileira, tais como: Os museus como o Ilê Ohun Lailai – Museu do Ilê Axé Opô Afronjá – em Salvador na Bahia – <www.geocities.com/ileaxeopoafonja>. <http://www.museuafrobrasil.com.br/apresentacao.asp>. Localizado no Parque Ibirapuera em São Paulo, o Museu Afro Brasil está voltado à pesquisa, conservação e exposição de objetos relacionados ao universo cultural do negro no Brasil. <http://museucapixabadonegro.blogspot.com>. Localizado em Vitória no Espírito Santo. O Museu é um marco da resistência da cultura de origem africana neste estado. Desenvolve diversas atividades no campo das artes, da história, das ciências sociais e antropologia. Os portais como: <www.ceert.org.br>. Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades. <http://portaldaculturanegra.wordpress.com/>. Portal da Cultura Negra que divulga informações sobre pesquisas, congressos e eventos sobre a temática. <http://www.bnb.df.gov.br/>. A Biblioteca Nacional criou uma seção onde são apresentados documentos sobre o tráfico de escravos. Destacamos os Núcleos de Estudo e Pesquisa Afro-brasileiras (NEAB) que se desenvolvem junto às universidades brasileiras. Estes espaços têm como objetivo constituir centros de referência que articule e promova atividades de ensino, pesquisa e extensão relacionadas ao campo de estudos afro-brasileiros. Dentre os NEAB, citamos os seguintes: NEAB/UFPR; NEAB/UFJF; NEAB/UFSCAR; NEAB/UFU; NEAB/UDESC; NEAB/UERJ entre outros. UNIDADE 1 TÓPICO 4 53 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A Neste tópico, você viu que: • A grande inovação dos Parâmetros Curriculares Nacionais são os temas transversais que possibilitam a inserção de outros conteúdos em sala de aula para que sejam trabalhados de forma interdisciplinar. • A Lei 10.639 determina que os conteúdos relacionados à temática História e Cultura Africana e Afro-brasileira sejam trabalhados, preferencialmente, em todas as disciplinas da Educação Básica. • O grande objetivo da educação no país, hoje, é propiciar ao educando uma aprendizagem interdisciplinar. • A interdisciplinaridade rompe a hierarquia entre as disciplinas e alinha os saberes entre elas. • Em História, torna-se necessário desmistificar visões equivocadas acerca do negro somente como escravo, da África como continente primitivo e atrasado, da passividade quanto à escravidão e do mito da democracia racial. • O uso de mapas é um recurso que possibilita mostrar o continente africano na escola. • As habilidades e competências desenvolvidas a partir da disciplina de Arte levam o aluno a compreender a importante contribuição dos elementos culturais africanos nas expressões artísticas brasileiras. • No campo da literatura, existem excelentes trabalhos direcionados para o ensino fundamental. RESUMO DO TÓPICO 4 UNIDADE 1TÓPICO 454 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A 1 Caro(a) acadêmico(a)! Ao longo desse tópico, procuramos estabelecer uma relação entre as áreas do conhecimento e a temática História e Cultura Africana e Afro- brasileira, de forma a compreender a interdisciplinaridade entre essas áreas. O desafio para essa autoatividade é a elaboração de um planejamento de ações docentes que apresentem um trabalho interdisciplinar. Então mãos à obra! AUT OAT IVID ADE � UNIDADE 1 TÓPICO 4 55 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A AVAL IAÇÃ O Prezado(a) acadêmico(a), agora que chegamos ao final da Unidade 1, você deverá fazer a Avaliação referente a esta unidade. UNIDADE 1TÓPICO 456 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A H I S T Ó R I A D A Á F R I C A UNIDADE 2 A INVENÇÃO DA ÁFRICA OBjETIVOS DE APRENDIZAGEM Nessa unidade vamos: compreender as propostas teóricas para a escrita da História da África; refletir sobre as diferentes formas de organização política, econômica e cultural na África; perceber as configurações internas e externas das relações de comércio no Continente Africano; analisar a influência do mundo islâmico sobre o Continente Africanona perspectiva de perceber as alterações em âmbito econômico, social, político e cultural ocorridos neste continente. TÓPICO 1 – AS MUITAS ÁFRICAS: ASPECTOS DA HISTORIOGRAFIA AFRICANA TÓPICO 2 – FORMAS DE ORGANIZAÇÃO DAS SOCIEDADES AFRICANAS TÓPICO 3 – AS RELAÇÕES COMERCIAIS EM ÁFRICA TÓPICO 4 – A ÁFRICA E O ISLAMISMO PLANO DE ESTUDOS Esta unidade está dividida em quatro tópicos. Ao final de cada um deles, você encontrará atividades que o(a) ajudarão a refletir e a fixar os conhecimentos abordados. H I S T Ó R I A D A Á F R I C A H I S T Ó R I A D A Á F R I C A AS MUITAS ÁFRICAS: ASPECTOS DA HISTORIOGRAFIA AFRICANA 1 INTRODUÇÃO TÓPICO 1 UNIDADE 2 Em 1972, o historiador africano Joseph Ki-Zerbo questionava a circulação e a difusão dos saberes sobre a África. Apontava ele para o fato de que a valorização do passado desta terra estava associada a fatores de ordem interna e externa a este continente. De ordem interna, o autor apontava ser o interesse resultado do ardor subjetivo ao processo de independência de numerosos países africanos. Durante a colonização, a sua história não passava de mero apêndice, de acrescento à história do país colonizador. [...]. Quebrado que foi o parêntese colonial, estes países assemelham-se um pouco ao escravo libertado que se põe à procura dos seus e quer saber a origem dos antepassados. Quer também transmitir aos filhos aquilo que encontrou. Daí a vontade de integrar a história africana nos programas escolares. (KI-ZERBO, 1972, p. 8) Inicia-se uma intensa produção historiográfica dentro do continente africano com o objetivo de resgatar a historicidade desse continente e projetá-lo no espaço mundial. Várias correntes africanistas se difundem em diversos países. De resto, a África saía da obscuridade para integrar o cenário da história em âmbito mundial, tornando-se um tema de interesse às outras áreas do conhecimento. Muitos eram os que se perguntavam: mas, no fundo, quem são estes africanos, que estão no ponto fulcral da atualidade? Que fizeram até aqui? Donde vêm? Por que só é possível conhecer bem um povo, como um indivíduo, se esse conhecimento alcança certa dimensão histórica? Para julgar ou extrapolar não é suficiente o conhecimento da realidade atual. É o conhecimento de toda a curva que conta. (KI-ZERBO, 1972). Nesse sentido, inicia-se um movimento de projetar a história do continente africano distanciada de uma história fragmentada. Lembrando que estudamos na Unidade 1 que a História da África está inserida em alguns períodos da História Geral, pois não existiam, até então, linhas de pesquisa histórica que trouxesse o Continente Africano como ator principal no processo historiográfico. A partir desse movimento, é perceptível o interesse em escrever uma história que fosse capaz de mostrar uma “História da África Total”, isto é, uma história que UNIDADE 2TÓPICO 160 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A retornasse aos primórdios deste continente e que o historicizasse ao longo dos anos. No entanto, a historiografia sobre a África padeceu, durante muito tempo, dos preconceitos racistas dos estudiosos. São inúmeros os casos de historiadores que simplesmente não conseguiam acreditar que os povos africanos fossem capazes de criar culturas originais e civilizações sofisticadas. Atribuíam a formação dos impérios africanos a povos brancos, chamados hamíticos ou camitas, que teriam espalhado misteriosamente sua sabedoria sobre populações ignóbeis. O historiador burquinense Joseph Ki-Zerbo (1995, p. 14) nos indica que essa tendenciosidade tem várias motivações entre as quais uma das mais importantes é, certamente, o racismo. Também são elementos importantes a conjuntura colonialista em que se criaram os estudiosos (que de certa forma engendrou o próprio racismo) e o pensamento pós-colonialista. Mas, o principal problema, para ele, seria a própria dificuldade de se trabalhar com as fontes em relação à história da África. As perspectivas historiográficas em relação ao continente africano organizam-se sob dois olhares: um de ordem interna e outro de ordem externa. Nesse sentido, temos muitas Áfricas que serão descobertas ao longo de nossos estudos. 2 RACISMO E RACIALISMO 3 PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO EXTERNO SOBRE A ÁFRICA O filósofo ganês Kwame Anthony Appiah (1997) estabeleceu uma distinção entre racismo e racialismo. Racialismo, no seu entender, seria simplesmente a concepção de que existem grupos humanos – raças – essencialmente diferentes entre si, por algumas características físicas que são parte de um conjunto. Cada raça, então, teria determinadas características específicas, que permitiriam identificar a qual delas um determinado indivíduo pertence apenas por suas características físicas. Mas, essa noção não estabelece juízo de valor ou gradação moral entre as raças; fazer-se isso já configuraria racismo, ou seja, a crença de que cada raça tem um lugar determinado e um valor intrínseco, geralmente estabelece-se uma hierarquia moral entre elas. Na forma que o racismo assumiu em nossa cultura, mesmo entre os estudiosos até algumas décadas atrás, isso iria ao ponto de tentar-se negar a capacidade da “raça negra” de produzir civilizações originais por conta própria, dependendo sempre de viajantes capazes, brancos, para lhes trazer cultura. Em outros termos, o racismo chega a negar a inteligência e, portanto, a plena humanidade dos africanos e de seus descendentes. Em 1830, em seu curso intitulado Curso sobre a Filosofia da História, Hegel declarava que “A África não é uma parte histórica do mundo. Não tem movimentos, progressos a mostrar, UNIDADE 2 TÓPICO 1 61 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A movimentos históricos próprios dela. Quer isto dizer que a sua parte setentrional pertence ao mundo europeu ou asiático. Aquilo que entendemos precisamente pela África é o espírito a-histórico, o espírito não desenvolvido, ainda envolto em condições de natural e que deve ser aqui apresentado apenas no limiar da história do mundo”. (KI-ZERBO, 1972, p. 10). O manual L’Historie de l’Afrique Orientale, escrito por Coupland, em 1928, fazia a seguinte referência sobre as sociedades africanas: pode-se dizer que a África propriamente dita não tivera história. A maior parte de seus habitantes tinha permanecido durante tempos imemoriais, mergulhados na barbárie. Tal fora, ao que parece, o desígnio da natureza. Eles permaneciam no estagnamento, sem avançar nem recuar. Em 1957, Gaxotte escreveu para a Revue de Paris: estes povos (referindo-se aos africanos) nada deram à humanidade. “E deve ter havido qualquer coisa neles que os impediu. Nada produziram. Nem Euclides, nem Aristóteles, nem Galileu, nem Lavoisier, nem Pasteur. As suas epopeias não foram cantadas por nenhum Homero”. (KI-ZERBO, 1972, p. 11). Essas visões sobre a África explicam-se a partir do movimento científico do século XIX, século da organização das ciências, quando as crenças científicas, provenientes das concepções do Darwinismo Social e do Determinismo Racial, colocaram os africanos nos últimos degraus da evolução das raças humanas. Apontados como: infantis, atrasados, primitivos, incapazes de aprender ou fazer, incapazes de evoluírem, os povos africanos se tornavam objetos da benfazeja ajuda europeia por meio das intervenções imperialistas no continente. Não podemos esquecer que neste mesmo período o pensamento histórico está passando por adequações, surgindo uma espécie de história científica. Esta ciência histórica desconsiderava a história vivenciada no Continente Africano, ou seja, os povos africanos não possuíam papel de destaque na história da humanidade. Primeiro em função da ausência,em grande parte das sociedades abaixo do Saara, de códigos escritos – havia a predominância da tradição oral entre esses povos e segundo por serem classificados em sociedades que não possuíam mobilidade. Estas reflexões circulavam nas perspectivas historiográficas até aproximadamente a década de 60 do século XX. A mudança dessa perspectiva é anterior aos movimentos de independência das colônias africanas, iniciadas na década de 50 e estendidas até o final da década de1970. De certa forma, pode-se afirmar que neste período, inicia-se uma espécie de revolução nos estudo sobre a África. As pesquisas e investigações sobre este continente se diversificaram e ampliaram suas abordagens. UNIDADE 2TÓPICO 162 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A 4 PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO INTERNO SOBRE A ÁFRICA O movimento de independência de alguns países africanos, iniciados nos anos de 1950 e estendidos até o final da década de 1970, de certo modo, forçava a construção de histórias nacionais para cada região “inventada” pelos europeus e reinventada pelos africanos. A independência criou, por parte de uma nova elite política e intelectual, a necessidade da elaboração das identidades africanas dentro do continente e deste diante do mundo. Para esse intento, era necessário retornar ao passado em busca de elementos que legitimassem uma História Africana rica e diversificada, tanto quanto a História da Europa. Segundo Appiah (1997), era necessário ter qualidades e forças em um mundo competitivo em uma África submersa em problemas dos mais diversos tipos. Para o filósofo africano, entre esses primeiros pensares pós-independência estaria o aparecimento de ideologias que defendiam e resignificavam a identidade africana: o pan-africanismo e a negritude. Estas duas ideologias buscavam enfatizar a existência de uma identidade comum que serviria como símbolo distintivo e de qualificação dos africanos em relação ao resto da humanidade. Essas ideias tiveram grande influência nos movimentos negros para além da África. 4.1 A HISTORIOGRAFIA “AFROCÊNTRICA” Após as independências nacionais africanas, como já foi sinalizado, diversos estudiosos se dedicaram a combater a ideia de que a África seria um continente sem história, como tradicionalmente entendia a historiografia eurocêntrica a respeito. Buscando valorizar a história africana e principalmente combater os preconceitos acadêmicos a respeito, esses historiadores, muitos deles africanos formados em prestigiosas universidades dos Estados Unidos ou da Europa – procuraram utilizar, em seus estudos, dos mesmos argumentos e da mesma metodologia que tradicionalmente se utiliza para a história europeia. Dessa forma, esses historiadores “afrocêntricos” procuraram valorizar os grandes reinos e grandes monumentos erguidos pelos africanos, destacando a originalidade das civilizações do continente e, especialmente, denunciando a grande desarticulação pela qual a África passou com o advento da escravidão moderna. Em seu entender, a história africana seria merecedora de estudos em vista da grandiosidade que atingiram vários povos, e que a presença europeia destruiu sem procurar conhecer. Por vezes, chegavam a afirmar a superioridade africana em relação às demais regiões do mundo. Dentre esses estudiosos, incluem-se Basil Davidson, Roland Oliver e Joseph Ki Zerbo. Ki-Zerbo (1922-2006), autor de diversas obras, entre elas História da África Negra – foi um dos maiores estudiosos africanos de todos os tempos e um dos principais articuladores da independência de Burkina Faso. UNIDADE 2 TÓPICO 1 63 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A Muitos foram os críticos dessa perspectiva. Um deles alegou que, se a África é uma região de grande autonomia e criatividade, não necessita de parâmetros europeus para ser estudada (OLIVA, 2003). Os críticos certamente têm razão em suas argumentações. No entanto, é importante termos em mente que, dado o nível de desconhecimento geral da população sobre a História da África, e em vista do enorme preconceito que ainda recai sobre os africanos e os afrodescendentes, uma abordagem que ressalte a originalidade e a riqueza da África anterior aos europeus, sem exageros, por certo, não apenas tem cabimento, como se torna essencial. Em outras palavras, os desafios vivenciados pelos historiadores dos anos 1960 e 1970, no que diz respeito ao preconceito contra os africanos, ainda estão longe de serem solucionados. IMP OR TAN TE! � Caro(a) acadêmico(a)! Para aprofundarmos nosso conhecimento em relação às teorias afrocêntricas vamos ler o texto de Molefi Kete Asante, traduzido pelo professor Renato Nogueira Júnior, ativista e intelectual, engajado em pesquisas e práticas afrocentradas no Laboratório de Estudos Afro-brasileiros da UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro). Afrocentricidade é um paradigma baseado na ideia de que os povos africanos devem reafirmar o sentido de agência para atingir a sanidade. Durante os anos de 1960, um grupo de intelectuais afro-americanos inseriram os Estudos Negros nos departamentos das universidades, começando a formular maneiras originais de análise do conhecimento. Em muitos casos, estes novos modos foram denominados de conhecimento numa “perspectiva negra” como oposição ao que tem sido considerado “perspectiva branca” da maior parte do conhecimento na academia americana. No fim dos anos de 1970, Molefi Kete Asante começou a falar sobre a necessidade de uma orientação Afrocêntrica da informação. Em 1980, ele publicou o livro Afrocentricidade: a teoria da mudança social, o que promoveu pela primeira vez um debate detalhado do conceito. Embora o termo seja anterior ao livro de Asante e tenha sido usado por muitas pessoas, incluindo Asante nos anos de 1970 e Kwame Nkrumah na década de 1960, a ideia intelectual não tinha base enquanto conceito filosófico antes de 1980. O paradigma Afrocêntrico é uma mudança revolucionária no pensamento proposto como uma correção construtural da desorientação negra, descentramento e falta de agência negra. A Afrocentrista formula a pergunta: “O que as pessoas africanas fariam se não existissem pessoas brancas”? Em outras palavras, quais as respostas naturais que se deveriam dar nos relacionamentos, atitudes em relação ao meio ambiente, padrões de parentesco, preferências por cores, tipo de religião, referências históricas de povos africanos se não tivesse ocorrido nenhuma intervenção do colonialismo e escravização? Afrocentricidade responde esta questão assegurando o papel central do sujeito africano dentro de seu contexto histórico, por conseguinte, removendo a Europa do centro da realidade UNIDADE 2TÓPICO 164 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A africana. Deste modo, Afrocentricidade promove uma ideia revolucionária porque estuda ideias, conceitos, eventos, personalidades e processos políticos e econômicos de um ponto de vista do povo negro como sujeito e não como objeto, baseando todo conhecimento na autêntica interrogação sobre a localização. Isso torna legítimo perguntar: “Donde vem a mina?” ou “onde tá o mano?” “Você tá sufocado com a pressão?” Estas são avaliações e questões relevantes que permitem à pessoa que investiga precisar cuidadosamente o lugar da resposta, o lugar psicológico ou cultural. Como o paradigma da afrocentricidade admite a centralidade de africanas(os), isto é, ideais e valores negros são tomados como as formas mais elevadas de expressão da cultura africana, sua conscientização é um aspecto funcional para uma abordagem revolucionária do fenômeno. O aspecto estrutural e o aspecto cognitivo de um paradigma são incompletos sem o aspecto funcional. Há algo além do conhecimentonum sentido afrocentrado; existe também o fazer. Afrocentricidade sustenta que todas as definições são autobiográficas. Uma das suposições-chave da(o) afrocentrista é que todas as relações são baseadas em centros e margens e nas distâncias de cada lugar do centro ou da margem. Quando povo negro tem seu ponto de vista centrado, tomando nossa própria história como centro; então, nos enxergamos como agentes, atores e participantes, ao invés de marginalizados na periferia da experiência política ou econômica. Com este paradigma, seres humanos descobriram que todos os fenômenos são expressos através de duas categorias fundamentais espaço e tempo. Além disso, no momento que compreendemos que as relações se desenvolvem e o conhecimento se amplia nos tornarmos aptos a apreciar as questões considerando espaço e tempo. A intelectual ou ativista afrocentrada sabe que um modo de expressar afrocentricidade se chama demarcação. Quando uma pessoa traça uma fronteira cultural em torno de um espaço cultural particular num tempo humano, isto é denominado de demarcação. Isto pode ser feito através do anúncio de um determinado símbolo, da criação de laços especiais ou da menção de heroínas e heróis da história e cultura africana. O que significa que fora a citação de pensadores revolucionários da nossa história, ou seja, além de Amilcar Cabral, Frantz Fanon, Malcom X e Kwane N’kruman nós devemos estar preparados para ações imediatas conforme nossa interpretação do que é melhor e mais interessante para o povo negro, isto é, de pessoas negras enquanto população historicamente oprimida. Isso é extremamente necessário para o avanço neste processo político. Afrocentricidade é a essência de nossa regeneração porque ela é a orientação com a qual filósofos contemporâneos como Haki Madhhubuti e Maulana Karenga, entre outros, têm articulado uma imagem mais interessante do povo africano. O que é melhor do que operar e agir segundo nosso próprio interesse coletivo? O que é mais gratificante do que enxergar o mundo com nossos próprios olhos? O que repercute mais nas pessoas do que compreender que somos o centro de nossa história e não qualquer um? Se nós podemos, durante o processo de conscientização, reivindicar nosso espaço como agentes da transformação progressiva, então podemos modificar nossa UNIDADE 2 TÓPICO 1 65 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A condição e mudar o mundo. Afrocentricidade mantém nossa reivindicação por espaço, exclusivamente, se entendermos as características gerais da afrocentricidade também como aplicações práticas de campo. As cinco características do método afrocêntrico: • O método afrocêntrico considera que nenhum fenômeno pode ser apreendido adequadamente sem ser localizado primeiro. Um fenômeno deve ser estudado e analisado a partir das relações de tempo e espaço psicológicos. Ele deve sempre ser localizado. Ou seja, este é o único modo para investigar as complexas inter-relações entre ciência e arte, projeto e execução, criação e manutenção, geração e tradição e tantas outras áreas atravessadas pela teoria. • O método afrocêntrico considera o fenômeno múltiplo, dinâmico e em movimento e, portanto, ele é imprescindível para uma pessoa anotar cuidadosamente e registrar de modo preciso a localização do fenômeno em meio às flutuações. O que significa que o(a) investigador(a) deve saber onde ele ou ela se encontra no processo. • O método afrocêntrico é uma forma de crítica cultural que examina a ordem e os usos etimológicos das palavras e termos para reconhecer a localização das fontes de um(a) autor(a). O que nos permite articular ideias com ações e ações com ideias baseadas no que é pejorativo e ineficaz, e, baseado no que é criativo e transformador em níveis políticos e econômicos. • O método afrocêntrico procura descobrir o que está por trás das máscaras da retórica do poder, privilégio e hierarquia para estabelecê-lo como o principal lugar de produção de mitos. O método estabelece uma reflexão crítica que revela que a percepção do poder monolítico não passa da projeção de uma armação de aventureiros. • O método afrocêntrico localiza a estrutura imaginativa de sistemas econômicos, partidos políticos, política de governo, forma de expressão cultural através da atitude, direção e linguagem do fenômeno, seja ele texto, instituição, personalidade, interação ou evento. FONTE: Disponível em: <http://conscienciarevolucionaria-kassan.blogspot.com/2009/11/dr_17.html>. Acesso em: 12 maio 2010. 4.2 O PENSAMENTO DE CHEIK ANTA DIOP O historiador, antropólogo e médico senegalês Cheik Anta Diop (1923-1986) foi um dos principais críticos da historiografia tendenciosa sobre a África. Na década de 1950, defendeu a UNIDADE 2TÓPICO 166 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A tese de que a civilização egípcia antiga havia sido uma cultura formada por negros africanos. Essa é apenas uma de suas teorias controversas (mas cada vez mais aceitas, com ressalvas, pelos estudiosos). A originalidade e a fecundidade de suas ideias merecem uma menção destacada neste tópico introdutório sobre a História da África. O ponto central da tese de Diop, mencionada anteriormente, era a dificuldade de se estabelecer com precisão o significado de “negro”. Buscando eliminar o estigma que a palavra carregava, Diop apontou que o conceito de “negro” deveria ser expandido para se assemelhar ao de “branco”. A definição corrente de “negro”, entre os estudiosos da época, era tão restrita que excluía povos como os núbios e os egípcios – que eram classificados como “brancos” ou como tendo origens supostamente europeias. Para Diop, era a ideologia (ou o racismo, poderíamos dizer) a origem dessa restrição: a intenção seria negar à “raça negra” qualquer iniciativa de civilização, por considerá-la incapaz disso. A controversa origem dos egípcios, no seu entender, negava completamente essas teorias. Diop afirmava que o Egito, longe de ser uma cultura formada a partir de uma vertente europeia (ou euro-asiática) de civilização, era parte de um berço civilizatório de origem africana. As características desse berço meridional seriam, em muitos pontos, opostas às do berço euro-asiático: por ser uma região de recursos naturais muito abundantes, a África ensejaria mais a cooperação e a paz do que as disputas territoriais e a agressividade das populações; as sociedades seriam matriarcais e o papel social da mulher, consideravelmente maior. Os estudiosos atuais são reticentes em relação a essas ideias, que parecem criar uma dicotomia entre civilizações do Norte e do Sul. Ao fazer isso, Diop estaria mitificando as sociedades africanas, apresentando-as como harmoniosas e pacíficas, em oposição às culturas europeias. Algumas das ideias de Diop, formuladas em uma época que não permitia a sua verificação, revelaram-se corretas: ele postulava que haveria uma forte conexão entre as línguas de diversas partes do continente, especialmente entre as do Egito e de regiões ao sul do Saara, como o wolof do Senegal. Diop rejeita a ideia de ‘brancos civilizadores’ entre os africanos. Estudiosos modernos, embora questionem essa relação específica, percebem outras que Diop não notou, como as línguas do Chade, línguas cuxíticas do norte da África e línguas semíticas da Etiópia (como o amárico). 4.3 O PENSAMENTO DE JOSEPH KI-ZERBO Pertencente a uma das principais gerações de pensadores africanos, o historiador Joseph Ki-Zerbo, assim como Diop, defendia a ideologia de uma África historicizada “A África que o mundo necessita é um continente capaz de ficar de pé, de andar em seus próprios pés. É uma África consciente do seu próprio passado e capaz de continuar reinvestindo este passadoUNIDADE 2 TÓPICO 1 67 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A 5 PROBLEMAS METODOLÓGICOS 6 AS FERRAMENTAS HISTORIOGRÁFICAS em seu presente e futuro”. (KI-ZERBO, 1972, p. 80) A perspectiva histórica difundida por este historiador estava associada à iniciativa de modificar as leituras e visões sobre a África, procurando redimensionar sua história, inclusive colocando-a como ponto de partida para explicar a História Ocidental. Devendo as investigações focarem a África em sua trajetória. As histórias dos reinos e civilizações africanas foram utilizadas como exemplo de capacidade e organização, transformação e produção africanas, que nada ficava a dever aos padrões europeus. À parte os preconceitos raciais dos estudiosos do século XIX e apesar das modernas metodologias historiográficas, que passaram a dar mais importância a registros de outras naturezas, além das fontes escritas – em uma linha denominada história total, é inegável que os historiadores se ressentem da carência de fontes históricas escritas sobre a África. Além disso, as poucas fontes disponíveis não estão bem distribuídas por épocas e por regiões, concentrando-se em algumas partes do continente, ao passo que outros locais e períodos passam praticamente “em branco”. É claro que isso dificulta um pouco o trabalho do historiador, que se sente obrigado, mais do que simplesmente atraído por uma opção metodológica, a se utilizar de outros tipos de fontes para realizar sua tarefa. Mas isso certamente não inviabiliza estudos consistentes sobre a História da África. As fontes escritas sobre a História da África antiga são, em sua maioria, provenientes dos relatos de viajantes muçulmanos (árabes ou não) pelas regiões sob a influência do Islã – para citar alguns, Ibn Hawkal, Al Bakri, Mahmud Kati, Al Idrisi e o célebre Ibn Battuta. Por esse motivo, são mais comuns nas regiões do norte da África e no Sahel, ao passo que as regiões de floresta e outras mais ao sul praticamente não foram relatadas. Mas, além dessas fontes, têm-se descoberto documentos espalhados por toda a África, em diversas línguas: hauçá, bamum, suaíle. Certamente esses documentos não são tão numerosos quanto se gostaria e deixam ainda muito mais lacunas do que preenchem. Esse não é, como nos lembra Ki-Zerbo, um quadro tão diferente da Idade Média europeia, quando uma quantidade mínima de pessoas era alfabetizada e os documentos escritos eram bastante raros. Por outro lado, a Arqueologia e a Linguística têm um papel extremamente relevante para os estudos de história da África. A primeira, por recolher os objetos que permitem suprir UNIDADE 2TÓPICO 168 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A a carência de informações escritas, e muitas vezes de forma mais verdadeira do que um documento que pudesse ser produzido “para ser encontrado”. A segunda, porque o estudo das influências que uma língua africana exerceu sobre outra nos dá pistas sobre o modo de vida original dessas populações e sobre as relações de parentesco étnico entre os vários povos. Além do mais, os relatos da tradição oral têm permitido confirmar muitas das informações transmitidas pelos viajantes e, com base nessas relações de parentesco étnico, é possível fazer inferências sobre o comportamento de povos sobre os quais se tem pouca informação direta. A partir dos anos 1980, a historiografia africana ganhou um grande impulso com a publicação de uma coleção organizada pela UNESCO intitulada História Geral da África, em oito volumes. Editada em várias línguas, dentre elas o português. A coleção trata em profundidade de todos os períodos da história africana, em artigos escritos por especialistas em cada área. Fato raro em obras de História, mas perfeitamente compreensível em um trabalho dessa magnitude, a coleção não foi organizada por um único historiador, mas por um grande comitê, com cada volume a cargo de pelo menos um historiador diferente. A História Geral da África da UNESCO tem servido, desde a sua publicação, como obra essencial de referência sobre a história africana, e deu um considerável impulso a esses estudos em todo o mundo. DIC AS! Prezado(a) Acadêmico(a)! Fica então a sugestão: procure a coleção História Geral da África e retire de lá toda a informação que puder. Para os temas desta Unidade, em especial, os volumes mais relevantes são o Volume I – Metodologia e Pré-História Africana, organizado por Joseph Ki-Zerbo; o Volume IV – África do Século XII ao Século XVI, organizado por Djibril T. Niane. Também os volumes VI e VII, que tratam da dominação colonial, são bastante importantes. LEITURA COMPLEMENTAR A ÁFRICA Nei Lopes Com uma vasta extensão de terras que somam cerca de 8.000 km de norte a sul, 7.600 km de leste a oeste, totalizando 30.000.000 km2 de superfície, o continente africano pode ser dividido em cinco grandes regiões. A primeira seria a África do Norte, que se estende do Atlântico ao Mar Vermelho, compreendendo o Saara, Marrocos, Argélia, Tunísia, Líbia e Egito. A segunda, a África Ocidental, seria aquela região situada abaixo do Saara e do deserto da Líbia, a oeste do planalto da Etiópia e acima da grande floresta tropical e dos pântanos do Alto Nilo, compreendendo a Mauritânia, Senegal, Gâmbia, cabo Verde, Mali, Níger, Chade (parte), Guiné-Bissau, Guiné-Conacri, Serra UNIDADE 2 TÓPICO 1 69 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A Leoa, Libéria, Costa do Marfim, Gana, Burkina Faso, Togo, Benin, Nigéria e parte da República dos Camarões. A essas duas macrorregiões que são as que mais de perto interessam ao nosso trabalho, poderíamos acrescentar: • África Central – abaixo de uma linha imaginária que vai de Duala, no Camarões, até a região dos Grandes Lagos (Vitória, Tanganica etc.), compreendendo Camarões (parte), República Centro-Africana, parte do Sudão, parte do Chade, Congo, Gabão, Guiné Equatorial, Zaire e as ilhas de São Tomé e Príncipe, no Atlântico. • África Oriental – a leste e abaixo do planalto da Etiópia, incluindo a região dos grandes lagos e compreendendo Sudão (parte), Etiópia, Djibuti, Quênia, Tanazânia, Ruanda, Burundi, Somália, Uganda e as ilhas Madagascar, Comores, Maurício, Reunião e Seychelles, no Oceano Índico. • África Austral – compreendendo Angola, Zâmbia, Malaui, Moçambique, Zimbábue, Botsuana, Namíbia, Lesoto, Suazilândia e África do Sul. Essas macrorregiões comportam também regiões bastantes características, como o Saara; o Sael que é a zona situada entre o Saara e a Savana e que se estende pelos atuais países Mali, Níger e Chade; o Darfur na República do Sudão; a grande floresta tropical; o deserto de Calaari etc. E dentro dessas regiões, muito importante é a presença e a vida do Nilo, do Congo, do Zambese e do Níger, os quatro maiores rios africanos. FONTE: (LOPES, 2006) FONTE: Disponível em: <http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/ continente-africano/imagens/mapa-da-africa.gif>. Acesso em: 16 maio 2010. FIGURA 9 – CONTINENTE AFRICANO UNIDADE 2TÓPICO 170 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A Neste tópico, você estudou que: • Para podermos ensinar história da África adequadamente, precisamos nos desfazer de uma série de preconceitos que cercam esse continente. Esses preconceitos tiveram reflexos nos estudiosos até pouco tempo atrás. • Para combater os preconceitos racialistas (que supõem a existência de raças) e racistas (que dizem que uma é inferior à outra) de vários estudiosos, Cheikh Anta Diop devotou sua carreira. Várias de suas conclusões são controvertidas, mas em geral os estudiosos atuais lhe dão razão em grande parte de suas conclusões. • Para combater o pensamento eurocêntrico que cercava os estudos de história da África, uma corrente de estudiosos,nos anos 1960 e 1970, criou uma historiografia “afrocêntrica”. Apesar de criticados por alguns exageros, as obras desses estudiosos são fundamentais para a revisão dos conceitos sobre o continente. • A historiografia sobre a África sofre de alguns problemas metodológicos, como a carência de fontes escritas. Para contorná-los, o estudioso precisa, muitas vezes, recorrer a outras fontes, como a Arqueologia, a Linguística e os relatos orais. • O filósofo ganês Kwame Anthony Appiah estabeleceu uma distinção entre racismo e racialismo. • A ciência histórica do século XIX desconsiderava a história vivenciada no continente africano, ou seja, os povos africanos não possuíam papel de destaque na história da humanidade. • Afrocentricidade é um paradigma baseado na ideia de que os povos africanos devem reafirmar o sentido de agência para atingir a sanidade. • A perspectiva histórica difundida por Joseph Ki-Zerbo estava associada à iniciativa de modificar as leituras e visões sobre a África, procurando redimensionar sua história, inclusive colocando-a como ponto de partida para explicar a História Ocidental. RESUMO DO TÓPICO 1 UNIDADE 2 TÓPICO 1 71 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A Resolva as questões a seguir para exercitar seus conhecimentos: 1 Tente observar a si mesmo(a) e perceber quais são as suas próprias ideias a respeito da África, dos africanos e de seus descendentes. Você classificaria essas ideias como preconceituosas? De que forma você acredita que isso pode vir a influenciar a sua relação com os estudos e o ensino de História da África? 2 Defina Afrocentrismo. E quais as suas implicações para a História da África? 3 Faça um pequeno texto explicando as ideias sobre o Continente Africano e o pensamento de Cheik Anta Diop e o pensamento de Joseph Ki-Zerbo (Dica: aponte as diferenças e as semelhanças entre estes autores). 4 Defina: África Central; África Oriental e África Austral. AUT OAT IVID ADE � UNIDADE 2TÓPICO 172 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A H I S T Ó R I A D A Á F R I C A FORMAS DE ORGANIZAÇÃO DAS SOCIEDADES AFRICANAS 1 INTRODUÇÃO 2 ÁFRICA, BERÇO DA HUMANIDADE TÓPICO 2 UNIDADE 2 Durante muito tempo, estudiosos europeus consideraram que a África seria uma região desprovida de história. Misturando argumentos metodológicos e ideologias preconceituosas, os pesquisadores argumentavam que os poucos registros escritos que havia da ocupação humana anterior à presença europeia – ou, pelo menos, da presença muçulmana – no continente não seriam suficientes para conferir aos povos do “Continente Negro” o status de povos históricos. Nada mais falso. Como já discutimos no tópico anterior, uma grande diversidade de fontes de pesquisa nos permitem traçar um quadro histórico do continente que é, se não completo (e quando o é?), pelo menos relativamente abrangente. Os historiadores da corrente pan-africanista argumentavam – talvez com certo exagero – que as lacunas presentes na história da África pré-colonial não seriam maiores do que as da Europa medieval, que lhe é contemporânea. E o quadro que emerge das fontes disponíveis é surpreendente. As enormes riquezas do continente e a engenhosidade do povo africano criaram sociedades sofisticadas no continente desde que se tem notícia. Isso vem ocorrendo pelo menos desde os primeiros cronistas, por volta do século VIII d.C., mas em algumas regiões do continente, há sólidos registros de ocupação muito anterior. No presente tópico, vamos estudar o início disso tudo: como a população africana chegou a ser o que é e de que forma algumas sociedades se organizaram antes que o Islamismo atingisse com toda a sua intensidade o continente. Como você já sabe, a partir de seus estudos sobre a Pré-História, o gênero humano UNIDADE 2TÓPICO 274 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A surgiu no continente africano. Há cerca de dois milhões de anos, o Homo erectus havia desenvolvido ferramentas de pedra rudimentares, mas bastante adequadas ao seu modo de vida. Posteriormente, a nossa espécie Homo sapiens surgiu também em território africano e de lá se espalhou por todo o mundo. Importante notar que a conformação física do homem original, ao contrário do que costumam apresentar os manuais a respeito, era muito mais semelhante à das populações africanas modernas do que do fenótipo “europeu” de ser humano, branco, que costuma aparecer no início da fila evolutiva. Em seus estudos, o historiador Joseph Ki-Zerbo, aponta que as técnicas desenvolvidas pela espécie homo e que são características das diferentes fases da Pré-História parecem ter- se sobreposto e coexistido durante longos períodos na África. Essa posição de Ki-Zerbo vem a reforçar a importância da História da África para a história da humanidade de uma perspectiva africanista. Vamos ler um excerto da proposição de Ki-Zerbo: Onde se passou este primeiro ato grandioso de um drama que ainda não terminou? Foi quase por certo em África, pois era aí que as condições se apresentavam mais favoráveis. Foi também que, embora a prospecção arqueológica esteja apenas a dar os primeiros passos e a conservação dos restos fósseis seja muito difícil por causa da acidez dos solos, se descobriu a mais numerosa, a mais completa e a mais contínua série de restos pré-históricos. É em África, e apenas em África, sobretudo nos planaltos orientais e meridionais, que se encontram todos os elos que nos ligam aos mais longínquos antepassados do homem. De resto, é também em África, que se encontram “antepassados” ou, antes, os parentes presumíveis do homem. Como observa W.W. Howells, “os grandes macacos de África, gorilas e o chipanzé, estão mesmo mais próximos do homem que qualquer dos três em relação ao orangotango da Indonésia”. Já Darwin declarava: “É provável que os nossos primeiros antepassados tenham vivido na África, em vez de em qualquer outra parte”. Esta intuição é confirmada todos os dias por novas descobertas. O P.e Teilhard de Chardin, quando a si, escreve: “Deve ter sido no coração da África que o homem emergiu pela primeira vez”. FONTE: KI-ZERBO, Joseph. A Hominização. In: História da África Negra. Publicações Europa- América, s/d. p. 54-55. O excerto denota uma valorização, por parte do autor. Lembre-se caro(a) acadêmico(a), que refletimos no tópico anterior sobre as correntes afrocêntricas. 3 ÁFRICA, BERÇO DA CIVILIZAÇÃO A África também foi o local de origem de diversas culturas extremamente sofisticadas, que realizavam todas as atividades do que costumamos definir como civilização: agricultura, criação de animais, metalurgia do ferro etc. Dessa maneira, a concepção preconceituosa que se UNIDADE 2 TÓPICO 2 75 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A 4 CIVILIZAÇÕES AFRICANAS: POVOS E REINOS teve, durante muito tempo, da incapacidade dos africanos de produzirem civilizações originais é completamente descabida. Nem mesmo as explicações baseadas em um povo “hamítico” fazem sentido, pois as civilizações africanas foram capazes de desenvolver técnicas próprias bastante avançadas, se comparadas às técnicas de outros lugares do mundo na mesma época e mesmo posteriormente. Além disso, os povos africanos sempre estiveram plenamente envolvidos no concerto mundial e estabeleceram relações comerciais com praticamente todas as regiões do mundo. Antes da chegada dos europeus ao continente, os povos africanos haviam navegado os mares (inclusive o Oceano Atlântico) à procura de novos mercados e novas terras, tendo estabelecido contatos com a Arábia, a Europa, a Índia, a China e a Ásia Oriental. Especula-se a possibilidade de eles terem atingido inclusive o Continente Americano.Nossos estudos tendem a perceber uma África rica em sua diversidade. Queremos dizer que há diferenças entre os povos africanos – perceptíveis a qualquer um que procure fugir do lugar-comum de considerar os africanos “todos iguais, por serem negros” – e, evidentemente, com enormes diferenças linguísticas e culturais. Apesar disso, são relativamente poucos os grandes grupos linguísticos originais dos povos africanos, pelo menos até onde as fontes disponíveis permitem aos estudiosos postular. Estudos modernos delimitaram a existência de quatro grandes grupos linguísticos na África: afro-asiáticos, Níger-Congo, Nilo-Saariano e Cóisan. FONTE: Disponível em: <http://2.bp.blogspot.com/_RIJcj0D4__M/SrMb_ WGbGQI/AAAAAAAAADk/cNkHoZZQil8/S259/mapa+ling+africa. png>. Acesso em: 12 maio 2010. FIGURA 10 – DISTRIBUIÇÃO DOS GRUPOS ÉTNICO-LINGUÍISTICOS AFRICANOS UNIDADE 2TÓPICO 276 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A 4.1 OS POVOS AFRO-ASIÁTICOS 4.2 OS POVOS NILO-SAARIANOS O ramo africano do tronco linguístico afro-asiático (composto também de línguas semíticas como o árabe, o hebraico e o aramaico, entre outras) compreende povos que vivem em toda a região entre o Chifre da África (Somália e Etiópia) e o deserto do Saara, até a região do Magrebe (Marrocos e Argélia). São povos formados pela mistura entre os povos autóctones e os migrantes de outros continentes, especialmente do Oriente Médio. A maioria dos estudiosos acredita que o local de origem desse tronco linguístico – inclusive das línguas semíticas – seja o nordeste da África, entre o Egito e a Etiópia. Estes povos se espalharam pela costa e pelo interior do continente, pelo vale do rio Nilo, pela Etiópia, chegando ao atual Marrocos. Dentre os principais povos dessa origem estão os berberes, azenagues e tuaregues do deserto do Saara. ATEN ÇÃO! Prezado(a) acadêmico(a)! Lembre-se das teorias de Cheikh Anta Diop, discutidas no tópico anterior. Diop afirmava que o Egito foi um centro irradiador de cultura, o que parece se confirmar a partir da análise das origens linguísticas de toda aquela região – inclusive dos povos do Oriente Médio. Os povos nilo-saarianos espalhavam-se das nascentes do rio Nilo (próximo ao Lago Vitória) até o coração do deserto do Saara e eram, portanto, em sua maioria, nômades ou criadores de gado. Havia, no entanto, alguns povos desse grupo que praticavam a agricultura e o artesanato, ou que passaram a beneficiar-se do comércio transaariano e em função desta atividade, geralmente, se convertiam ao islamismo, ou a formas africanas de islamismo. Disputaram com os bantos a ocupação da região dos lagos Vitória e Tanganica. UNIDADE 2 TÓPICO 2 77 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A 4.3 OS POVOS NÍGER-CONGOLESES EST UDO S F UTU RO S! � Prezado(a) acadêmico(a)! Há uma relação muito íntima entre as atividades comerciais transaarianas dos povos que viviam no Sahel e a adoção da religião islâmica, que será vista em mais detalhes no próximo tópico. Nos últimos anos, estabeleceu-se um consenso de que a enorme variedade de línguas existentes nas regiões do litoral atlântico (no Senegal) até o Oceano Índico (em Moçambique e no Quênia) e da República Centro-Africana até o Natal (na África do Sul) tem uma origem comum. Os povos do grupo Níger-Congo ocupam, assim, a maior parte do continente africano e mantêm características linguísticas semelhantes – em especial, a alternância entre vogais e consoantes na mesma sílaba, a nasalisação e o sistema tonal, que dá às línguas, como o iorubá e o banto, ouvidos nas cerimônias das religiões afro-brasileiras, suas características tão peculiares. O grupo níger-congolês é dividido em cinco subgrupos. O mais numeroso é o dos bantos, que teriam surgido provavelmente na região da atual Nigéria e, ao longo de mais de 2.500 anos, empreenderam uma grande migração por toda a região central da África, até o Oceano Índico. Conforme a região onde se estabeleciam, receberam nomes diferentes: ovimbundos, cassanjes, bacongos e lundas na região de Angola e do Congo, zulus, sesotos e suazis no sul, iaôs na costa do Índico. Nessa região, o idioma suaíli, de origem banta e com influência do árabe e de outras línguas da região, tornou-se uma língua franca. Os demais grupos se estabeleceram na África Ocidental: os kwa (como os ashantis, os iorubás e os ibos) das florestas do baixo Níger; os mandê (como os songai e os soninquê), que vivem no alto Níger e construíram alguns dos impérios mais notáveis da África, ao sul do Saara; os fulas, mandingas e jalofos do litoral atlântico, no atual Senegal; e os mossis, que vivem no Alto Volta (no atual Burkina Faso). Os povos desse grande grupo linguístico estão diretamente relacionados à história do Brasil, pois os escravos trazidos para cá eram originários de diversos pontos da enorme região geográfica que ocupavam. Conforme a origem, eram denominados bantos, quando eram do grupo étnico de mesmo nome, ou sudaneses, quando originados dos outros grupos níger-congoleses. Também por esse motivo nossos estudos sobre a História da África se concentrarão, direta ou indiretamente, sobre os povos originados deste grupo. UNIDADE 2TÓPICO 278 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A 4.4 OS POVOS KHOI-SAN 5 AS CIVILIZAÇÕES AFRICANAS ANTIGAS No extremo sul da África, nas regiões da atual Namíbia e norte da África do Sul, a expansão dos bantos não conseguiu assimilar ou exterminar alguns povos autóctones, caçadores e coletores, mas que aprenderam a pastorear o gado. Os povos dessa região – os hotentotes (chamados de cóis) e os bosquímanos (conhecidos como sãs) – são conjuntamente conhecidos como cóisans. A principal característica de seus idiomas são os sons de estalidos (golpes com a língua), que servem como consoantes comuns; são características que não ocorrem em nenhuma outra língua do mundo, exceto alguns idiomas bantos de povos que vivem próximos aos seus territórios (como o xhosa e o zulu, povos da África do Sul), que os receberam por influência. Estudos recentes com DNA mitocondrial, que tentam apontar as relações de parentesco entre os diversos povos, indicam que os povos khoi-san são, provavelmente, os grupos geneticamente mais próximos da matriz original de todos os seres humanos. O olhar histórico restrito que a nossa cultura tradicionalmente põe sobre a África, centrado nas realizações e na sociedade europeias, acaba reforçando uma imagem extremamente negativa do continente, que reduz os africanos a escravos. Ora, essa visão ignora deliberadamente a longa e complexa história africana ocorrida antes da chegada dos europeus, que por mais de cinco mil anos legaram à África um papel muito relevante na história mundial. Uma das intenções desta Unidade é apresentar algumas das civilizações que fizeram parte dessa história, em diversas épocas diferentes. Bem como perceber que algumas sociedades em África formaram grandes reinos, como o Egito, o Mali, Daomé, que praticavam atividades ligadas ao comércio e à mineração. E outras se constituíram em pequenos agrupamentos que subsistiam da caça, coletavam o que a natureza oferecia ou plantavam para o sustento do grupo. Todavia, todas, das mais complexas as mais singulares, se organizavam a partir da fidelidade ao chefe e as relações de parentesco. Nesse sentido, o chefe, cercado de seus dependentes era o núcleo básico da sociedade em África. UNIDADE 2 TÓPICO 2 79 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A 5.1 O DESERTO DO SAARA FONTE: Disponível em: <http://ancientafricah.wikispaces.com/file/view/kingdoms. jpg/30343384/kingdoms.jpg>. Acesso em: 16 maio 2010. O deserto do Saara é o mais extenso de todos os desertosquentes do mundo, embora não seja o mais inóspito. Estendendo-se do litoral do oceano Atlântico, nos territórios da Mauritânia, Saara Ocidental e Marrocos, até o Mar Vermelho, no Egito, o deserto do Saara se constituiu em uma barreira praticamente intransponível para os seres humanos até a introdução do camelo na África, vindo da península Arábica, em algum momento por volta do século III d.C. O rio Nilo, que nasce na região do Lago Vitória, é o único grande curso de água a cruzar o Saara. O deserto atingiu sua conformação atual progressivamente. Após a última era glacial, há cerca de 10 mil anos, a região era consideravelmente mais úmida do que hoje e, aos poucos, a faixa arenosa foi aumentando. Estudos recentes indicam que ainda hoje o deserto avança rapidamente em direção ao sul – cerca de 50 quilômetros por ano. Existem indícios de ocupação humana muito antiga no deserto, não apenas no vale do FIGURA 11 – REINOS E IMPÉRIOS AFRICANOS UNIDADE 2TÓPICO 280 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A Nilo, onde a ocupação pré-dinástica, mas já em uma sociedade complexa e organizada em torno dos excedentes de produção agrícola, data pelo menos de 6000 a.C. Mesmo no interior, civilizações complexas se desenvolveram há muito tempo. O povo dos garamantes, de origem berbere, é um bom exemplo: construiu um sofisticado sistema de irrigação no interior da atual Líbia, e foi mencionado por Heródoto (484 – 425 a.C.) e Tácito (56 – 117 d.C.). 5.1.1 No Oriente: Egito, Sudão, Núbia e Aksum A civilização egípcia é, de todas as que surgiram na África, a mais célebre e uma das mais antigas. Suas grandes realizações são lembradas até hoje como maravilhas da técnica e suas concepções religiosas influenciaram diversas culturas, rituais e correntes filosóficas futuras. E foi uma cultura desenvolvida por uma população que era, em sua maioria, negra. Os egípcios se fixaram no vale do rio Nilo durante o processo de desertificação do Saara, e o grande afluxo de migrantes para essa região tão estreita obrigou a uma organização muito elaborada. Por outro lado, a própria conformação do vale do Nilo dava à região uma unidade natural, que levava os governantes dos reinos do Norte e do Sul a se enfrentarem, buscando unificar as duas regiões. O período Dinástico se iniciou por volta de 3500 a.C., quando o reino do norte foi conquistado pelo sul. Ainda mais ao sul, acima da primeira catarata, vivia um povo que os gregos denominaram Cush – os Núbios. Era uma região bastante rica em ouro e, ainda que também fizesse parte do vale do Nilo, não havia sido tão favorecida pela natureza quanto o Egito. A produtividade era menor, e por isso a região não atingiu a mesma prosperidade dos vizinhos do norte. A Núbia seria, assim, explorada por eles em um primeiro momento, para mais tarde impor seu domínio sobre as regiões egípcias. Mais ao sul surgiu o reino de Aksum, que mais tarde se tornaria a Etiópia. A presença estrangeira na região tradicionalmente foi bastante marcante. Situada em posição estratégica, separada da Arábia e do Iêmen pelo mar Vermelho, a Etiópia logo se tornou um ponto de encontro de diversas etnias. As lendas da rainha de Sabá, que teria seduzido o rei hebreu Salomão, fazem referência à presença de judeus negros (os Falachas) na região, possivelmente emigrados na época da expansão islâmica. O Cristianismo foi introduzido pelo monge Fromentius, no século IV, mas logo a igreja etíope separou-se do rito ortodoxo e adotou rituais próprios, baseados em celebrações judaicas e animistas e um calendário de origem egípcia (copta). O cristianismo copta da Etiópia ofereceu uma resistência feroz ao avanço muçulmano, e ainda hoje encontra seguidores no país. UNIDADE 2 TÓPICO 2 81 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A 5.2 O SAHEL IMP OR TAN TE! � A expansão do Cristianismo: o cristianismo nasceu do judaísmo, religião a que pertencia Jesus, cuja pregação está calcada nos escritos judaicos. Foram os seguidores de Jesus que propagaram a crença de que ele era o Cristo, filho de Deus e que ressuscitou dentre os mortos antes de ascender aos céus. De todos os apóstolos propagadores do evangelho, isto é, da boa- nova, São Paulo se destacou como o mais ativo, pregando pelo Mediterrâneo. A conversão de todos os povos conhecidos à nova religião, criada a partir de Cristo, era a meta dos pregadores que divulgavam o cristianismo. O Império Romano, o mais influente e poderoso da época, cujos governantes haviam ordenado a crucificação de Jesus e uma perseguição cruel aos primeiros cristãos, até mesmo decapitando São Paulo e crucificando São Pedro, aderiu ao cristianismo no século IV. No século VI, alguns principados da Núbia e o reino da Etiópia eram os únicos estados cristãos fora da área de influência do Império Romano. Sua ocupação pelos bárbaros não eliminou o cristianismo, que se tornou religião sob a qual os reinos europeus se estruturaram. No século XVI, Portugal e Espanha, envolvidos em Grandes Navegações, se tornaram os grandes centros difusores do catolicismo, ao justificar seu direito sobre as terras e os povos com quem entravam em contato em nome de sua missão evangelizadora. FONTE: Souza (2007) Sahel é o nome que se dá à faixa de savana que ocorre ao sul do deserto do Saara. O termo vem do árabe sahil, ‘costa’, pois a região era referida como sendo uma praia para o verdadeiro ‘mar interior’ que é o Saara. Por volta de 5000 a.C., as populações do Sahel plantavam sorgo, uma variedade de arroz e criavam galinhas d’angola. Mil anos mais tarde, o avanço do deserto do Saara moveu a faixa do Sahel cada vez mais para o sul. As populações do Sahel se adaptaram a um modo de vida seminômade, movendo seus rebanhos centenas de quilômetros para o norte ou para o sul, de acordo com o regime de chuvas. O principal rio que percorre o Sahel é o Níger, que apresenta características bastante peculiares: apesar de ter sua nascente relativamente próxima do oceano, corre para dentro do continente, em direção ao deserto. Ao passar por um complexo de lagos e pântanos no interior do Sahel (chamado o ‘delta interior do Níger’), o rio altera seu curso para o sul em direção ao oceano, onde deságua em um grande delta na atual Nigéria. Em toda sua extensão, e particularmente nos deltas interior e exterior, o Níger permite uma produção agrícola considerável UNIDADE 2TÓPICO 282 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A e a formação de inúmeros agrupamentos humanos, de pequenas aldeias a grandes impérios, como os de Gana, do Mali e de Gaô. Além das atividades agrícolas, esses assentamentos se dedicavam, muitas vezes, ao comércio transaariano. Apesar de se adaptar com perfeição ao deserto do Saara, o camelo não conseguia fazer o mesmo no Sahel, de modo que era preciso transferir as cargas para outros meios de transporte mais adequados. Assim, surgiram no Sahel inúmeros entrepostos comerciais, como Timbuktu, Jenné e Gaô, na bacia do Níger, Kanem e Bornu, na região do lago Chade e, ainda mais a leste, Darfur, no atual Sudão. 5.2.1 A África Ocidental 5.2.2 O Reino de Gana A África Ocidental, como descrita aqui, corresponde às regiões do Sahel Ocidental e das florestas do litoral entre a Costa do Marfim e a Nigéria. Os árabes denominavam esta região – bem como o Sahel oriental, próximo à costa do Oceano Índico – de Bilal Al-Sudan (o país dos negros). Por esse motivo, muitas vezes a região é chamada de Sudão Ocidental. A presença árabe, por sinal, é um elemento importante praticamente desde o início do Islamismo. Foram os cronistas muçulmanos a maior fonte de informações de que dispomos sobre essa região. Mesmo assim, durante um tempo sua influência foi indireta,concentrando-se no estabelecimento de rotas comerciais com a região do Sahel, ao passo que nas florestas mais ao sul, sua presença mal foi notada. A partir do século XII, no entanto, a presença muçulmana seria mais intensa. Neste momento, descreveremos apenas a primeira fase. A presença islâmica mais direta será tratada no próximo tópico. O comércio transaariano, descrito anteriormente, permitiu o surgimento de diversos núcleos de poder na região do Sahel. A necessidade de comércio e a incapacidade de adaptação dos camelos às regiões menos desérticas teriam favorecido a consolidação dos domínios políticos na região. Em relação ao camelo, enquanto propriedade material, Costa e Silva (2006) aponta ter sido essa prática responsável pela formação de uma elite e também pela intensificação do comércio transaariano. A primeira grande organização política que se beneficiou do comércio transaariano parece ter sido o reino de Gana. A região foi organizada em uma posição estratégica no Sahel – ao norte das curvas divergentes que fazem os rios Senegal e Níger, a meio caminho do deserto e das ricas minas de ouro e de sal da bacia do Senegal. A composição étnica era uniforme: a UNIDADE 2 TÓPICO 2 83 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A população era composta principalmente de soninquês (também chamados saracolês), povos da família mandê (um dos grupos Níger-Congoleses descritos anteriormente). O autor africano Joseph Ki-Zerbo (1972) aponta a hipótese descrita no Tarik al Fettach, que Gana teria sido originada por uma dinastia de príncipes brancos e que os soninquês teriam tomado o controle do Império e então, dessa suposta miscigenação teria surgido uma dinastia puramente negra. O autor aponta ainda, a fragilidade da hipótese, haja vista, que foi escrita 12 séculos depois do acontecimento e serve mais do que outra coisa para dar prestígio para as famílias nobres depois da dominação islâmica. A origem a partir dos soninquês é a que parece mais aceitável, pois eles teriam se fortalecido e se fechado para se defender de ataques. FONTE: Disponível em: <http://4.bp.blogspot.com/_lrnheGDims4/SxbxRT-qlmI/ AAAAAAAAC-g/ZlqWFrpBsl8/s1600-h/imp%C3%A9rio+de+gana.gif>. Acesso em: 16 maio 2010. Mas Gana não era um estado nacional, nem tinha uma estrutura semelhante a um império europeu. Ao que tudo indica, o território nem tinha um nome oficial. O nome Gana parece ser o título do soberano, de acordo com os relatos de Abu-Bakri, que lá esteve no século XI. Também não havia um território organizado, delimitado e administrado por uma estrutura rígida de governo. Para Gana, importava menos a extensão de seus territórios do que a relação que estabelecia com os seus dominados. A principal motivação das guerras era a conquista de aldeias e grupos humanos que pudessem fornecer tributos, escravos requisitados pelos comerciantes do Magrebe e soldados, para defenderem a região dos reinos vizinhos de Takrur, Gaô e outros, bem como dos berberes do Saara. O objetivo da conquista era, portanto, a captura de pessoas que traziam dos territórios que ocupavam. Do exército de Gana, dizia-se FIGURA 12 – LOCALIZAÇÃO DO REINO DE GANA UNIDADE 2TÓPICO 284 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A que o soberano conseguia reunir cerca de 200 mil homens em um breve espaço de tempo, dos quais 40 mil arqueiros. Era, portanto, um exército poderoso, embora se utilizasse muito mais da infantaria (soldados a pé) do que da cavalaria. IMP OR TAN TE! � Prezado(a) acadêmico(a)! Perceba que essa forma de conquista é praticamente oposta ao estilo europeu, especialmente na Idade Média. Lá, o objetivo eram as conquistas territoriais, que trariam consigo, entre outros benefícios, o contingente de vassalos e servos que lá habitavam. O poder de Gana atingiu seu apogeu por volta da virada dos séculos X - XI, quando as disputas com os vizinhos cessaram. A enorme riqueza proporcionada pelo comércio de ouro, sal e outros produtos, como a noz-de-cola, estimulante muito procurado pelos muçulmanos e escravos, permitiu que o soberano de Gana criasse uma corte cheia de pompa, que impressionou até os viajantes muçulmanos habituados ao luxo. O sal era uma mercadoria tão necessária que chegou a ter o mesmo valor do abundante ouro, possivelmente até mais. A capital, Kumbi ou Kumbi Saleh, de acordo com as descrições dos cronistas Ibn Hawkal e Abu Bakri, era composta de duas cidades gêmeas, uma habitada pelos animistas e a outra por comerciantes e dignatários muçulmanos, situadas a seis milhas de distância uma da outra e unidas por uma larga avenida. A cidade real (animista) era rodeada de bosques sagrados, e, por isso, os árabes a denominaram El-Ghaba (a floresta). UNI A noz-de-cola é um produto muito valorizado entre as sociedades mulçumanas. Deste fruto é extraído um sumo de gosto amargo, que saciava a sede e produzia uma sensação de bem-estar devido ao seu alto teor de cafeína. Era um dos poucos estimulantes permitidos entre os povos islamizados, tinha alto valor de troca. No Brasil, é utilizado na realização de alguns cultos africanos. FONTE: Disponível em: <http://www.infonetnews.com/images/noz1.jpg>. Acesso em: 15 maio 2010. FIGURA 13 – NOZ-DE-COLA UNIDADE 2 TÓPICO 2 85 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A UNI Caro(a) acadêmico(a)! O excerto abaixo descreve uma prática do reino de Gana. Leia-a com atenção e reflita sobre as semelhanças com outras civilizações, por exemplo: os incas e os astecas na América executavam práticas semelhantes em seus rituais. Quando morreu Gana, ergueu-se uma grande cabana de madeira para acolher seu corpo. Ali se colocavam suas vestes, suas armas, os objetos que usara para comer e beber, e comida e bebida. Conduziram-se para dentro do túmulo os criados que tinham servido ao rei. Ki-Zerbo diz que isso era para prevenir para que não ocorressem envenenamentos. Vedava-se a porta. O povo jogava terra sobre a cabana, até que houvesse uma espécie de colina. Ao redor, cavava-se um fosso. Ao morto, eram oferecidos sacrifícios humanos e bebidas fermentadas. Fonte: O Fascinante Mundo da História. FONTE: Disponível em: <http://www.google.com.br/ imgres?imgurl=http://1.bp.blogspot.com/_lrnheGD>. Acesso em: 16 maio 2010. A partir do século XI, no entanto, esse reino próspero entrou em convulsão. Aos poucos, as províncias do sul deixaram de ser leais a Gana e a maciça presença de muçulmanos no reino provavelmente contribuiu para desestabilizar o governo e colocá-lo à mercê dos exércitos vindos do norte. A nova dinastia dos Almorávidas, que comandava o Magrebe (atuais Marrocos e Argélia) e a península Ibérica, investiu contra o reino de Gana e conseguiu conquistá-lo em 1076. O vácuo de poder na região duraria algumas décadas, até o surgimento do reino do Mali, no século XII. 5.2.3 Os Reinos Iorubás e o Benim As regiões de floresta do baixo Níger, na atual Nigéria, passaram a ser ocupadas, possivelmente entre os séculos VI e XI, pelo grupo étnico ibo, também denominado iorubá. Sua estrutura de organização era bastante democrática para os padrões da região: organizavam-se em aldeias, que chegavam a reunir milhares de habitantes. As aldeias eram independentes umas das outras, embora, às vezes, ligadas pelas devoções a uma mesma divindade e por ancestrais em comum. Assim, não se pode falar propriamente na formação de reinos iorubás, mas antes de confederações de cidades. UNIDADE 2TÓPICO 286 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A FONTE: Disponível em: <http://www.google.com.br/imgres?imgurl=http://1. bp.blogspot.com/_lrnheGDims4/SxLMDa53UlI>. Acesso em: 16 maio 2010. As origens dos ibos estão mergulhadas em relatos mitológicos, de modo que é muitodifícil determinar com precisão sua validade. A cosmologia dos iorubás é repleta de divindades (chamadas orixás), que possivelmente se referiam aos ancestrais reais, divinizados após a morte. O grande antepassado de todos os ibos é Odudua, que teria dado origem aos sete reinos iorubás: Owu, Sabé, Popo, Benim, Ilé, Ketu e Oyó. No candomblé brasileiro, ligado diretamente às tradições iorubás, Odudua é cultuado como um orixá feminino, o que remete à herança matrilinear dos povos ibo. A descendência era reconhecida pela via materna, já que era a única de que se poderia ter completa certeza. NO TA! � Prezado(a) acadêmico(a)! Se você tiver interesse em saber mais sobre as crenças e a cosmologia ioruba, que foi reinterpretada no Brasil e se constituiu no Candomblé. Uma ótima introdução é o livro de Juana Elbein dos Santos, Os nàgô e a morte: Pàdè, Àsèsè e o culto Égun na Bahia. Petrópolis: Vozes, 1986. A cidade de Ilé Ifé era reconhecida por todos os iorubás como a fonte de poder e de legitimidade dos soberanos. Para lá eram levados seus restos mortais; o soberano de Ifé, chamado Oni, era considerado o grande sacerdote dos orixás. Mesmo após a Diáspora (nome dado atualmente pelos estudiosos para a migração forçada dos africanos para trabalharem como escravos na América), Ifé manteve a reputação de local sagrado. FIGURA 14 – LOCALIZAÇÃO DO REINO IORUBÁ UNIDADE 2 TÓPICO 2 87 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A No século XVI, enquanto outros reinos iorubás ascenderam, Ifé entrou em declínio. A presença de comerciantes na costa atlântica fortaleceu as cidades mais próximas dos lugares em que ancoravam, trazendo em seus navios novas mercadorias, que passaram a ser desejadas pelos chefes africanos. Mas, mesmo com a ascensão de outros reinos e o seu empobrecimento econômico, Ifé manteve a importância religiosa. Todos os chefes das várias cidades-estados que teriam sido fundadas por descendentes de Odudua iam até Ifé para terem seus poderes confirmados pelo oni. O reino de Oyó, legendariamente fundado por Oranyan e comandado por seu filho Xangô, localizava-se ao norte, na confluência dos rios Níger e Benue e chegou a ter uma grande proeminência na região. Seus governantes, os alafngs, recebiam seu poder dos orixás, que lhes emprestavam um poder de atuação sobre a natureza – axé. Mas seu poder não era absoluto, e estava sujeito a inúmeras formas de controle por parte de um Conselho de Estado. Eles eram eleitos pelo Conselho e seu reinado parece ter sido limitado, inicialmente, a quatorze anos. Também dos descendentes de Oranyan teria surgido o reino do Benim. Ali, no entanto, o poder estava bem mais centralizado na figura do soberano (Obá) do que em Oyó. Detinha um poder absoluto, mas era vigiado de perto pelo Conselho de Estado. Como soberano, tinha o monopólio das transações comerciais, o que lhe proporcionava (e ao reino) riqueza suficiente para erguer uma capital que deslumbrou os viajantes que a conheceram. O reino do Benin entrou em contato com os portugueses nos últimos anos do século XV, quando uma expedição portuguesa chegou à capital do reino e estabeleceu os primeiros contatos com o Oba que foi favorável aos portugueses autorizando práticas comerciais. O comércio com os portugueses envolvia além de escravos, armas, pimentas, vestimentas, marfim etc. O líder do reino Benin ainda permitiu que missionários cristãos construíssem igrejas no reino, que seus súditos batizassem, no entanto ele não se converteu ao cristianismo, como fez o rei do Congo (Manikongo). 5.2.4 O reino do Congo Mais ao Sul, na margem meridional do baixo rio Congo, existiu um reino que se tornou conhecido não só pela influência que teve sobre os povos da região. Mas porque mantiveram estreitos laços com os europeus. Estes por sua vez mantiveram uma significativa produção de observações sobre estes povos, que foram utilizadas como fontes para a compreensão da estrutura social, econômica e política desses povos. Estes viviam a margens do rio Gongo. UNIDADE 2TÓPICO 288 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A FONTE: Souza (2007) Os membros desse grupo, que seguiam a liderança de Nimi a Lukeni, passaram a ser chamados de muchicongos e ocuparam terras já habitadas por outros povos bantos. Por meio de casamentos e alianças, os recém-chegados se misturaram aos antigos moradores dessas áreas, mas guardavam para si as posições de maior autoridade e poder. Sob a liderança dos muchicongos, radicados na capital (Banza Congo), se formou uma federação de províncias às quais pertenciam conjuntos de aldeias. Nestas aldeias continuaram em vigor os poderes tradicionais das famílias, as candas, que as haviam fundado. Nas aldeias, um chefe e seu conselho tratavam de todos os assuntos referentes à vida da comunidade. Já um conjunto delas estava submetido à autoridade de um chefe regional, que fazia a ligação delas com a capital, de onde o ntotila, ou mani Congo, governava todo o reino. (SOUZA, 2007). O reino do Congo se formou a partir da mistura, por meio de casamentos, de uma elite tradicional com uma elite nova, descendente de estrangeiros que vieram do outro lado do rio. O primeiro contato com os portugueses aconteceu por volta de 1483, que encontraram uma sociedade hierarquizada, com aglomerados populacionais que funcionavam como capitais regionais e uma capital central, na qual o mani Congo, como o oba do Benin e muitos outros chefes de diversos grupos, vivia em construções grandiosas, cercado por mulheres e filhos, conselheiros, escravos ritos. (SOUZA, 2007). No reino do Congo viviam agricultores que muitas vezes participavam dos conflitos internos ao reino e externos. As aldeias (lubatas) e cidades (banzas) pagavam tributos ao mani Congo, geralmente com o que produziam: alimentos, tecidos, sal, metais como o cobre por exemplo. FIGURA 15 – LOCALIZAÇÃO DO REINO DO CONGO UNIDADE 2 TÓPICO 2 89 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A Nos mercados regionais eram trocados produtos de diferentes regiões do reino. A capital do reino, Banza Congo, encontrava-se na confluência de várias rotas comerciais. O mani Congo controlava o comércio, o trânsito de pessoas, recebia os impostos, exercia a justiça, buscava garantir a harmonia das pessoas do reino. (SOUZA, 2007). Os limites eram traçados pelo conjunto de aldeias que pagavam tributos ao poder central, devendo fidelidade e recebendo proteção, tanto dos assuntos desse mundo, como dos assuntos do além, pois o mani Congo era responsável, também, pelas boas relações com os espíritos e ancestrais. Quando os portugueses entraram em contato com esse reino, perceberam que seria um bom parceiro comercial. Trataram de manter relações amistosas com ele. Em contrapartida, o mani Congo e os chefes, também perceberam a importância de uma boa relação com os portugueses. Por mais de três séculos os portugueses e congoleses mantiveram relações comerciais, políticas pautadas pela independência dos dois reinos, mas os portugueses acabaram por controlar a região, que hoje corresponde ao norte de Angola. 5.2.5 O reino do Monomotapa Uma das mais impressionantes demonstrações da sofisticação cultural dos bantos pode ser encontrada no sul da África. É um conjunto de ruínas monumentais feitas de pedra, chamados Zimbabués. Eram enormes muralhas de pedra chegando a 5 metros de altura por mais 2 de largura sem nada para uni-los a não ser a sobreposição de uma pedra na outra. Existem vários desses zimbabués no país que recebeu esse nome e no norte da África do Sul. Essas construções estavam articuladas em um reino que os portugueses, quando chegaram até lá, denominaram Monomotapa – de Mwene Mutapa, título dado ao soberano. O Monomotapa erabastante próspero, rico em marfim, ouro e outros metais, e estabeleceu um contato comercial bastante intenso com os outros continentes. Os xonas habitavam também essa região e comercializavam sal, cobre e gado com seus vizinhos do interior. Vivendo em terras férteis e envolvidos com intercâmbios comerciais, desenvolveram uma sociedade muito pouco conhecida, mas provavelmente com uma chefia centralizada, que combinava poderes administrativos com poderes religiosos. (SOUZA, 2007). A presença de comerciantes árabes e portugueses no interior do continente, querendo controlar o comércio de ouro e marfim, aumentou os conflitos e as tensões existentes entre os diferentes povos. Mesmo sem encontrar as riquezas esperadas, os portugueses se instalaram naquelas terras, procurando manter relações amistosas com os chefes locais. Muitas vezes se casavam com as filhas destes, fortalecendo os laços que os uniam a eles. Desta forma, UNIDADE 2TÓPICO 290 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A se formou naquela região um grupo que ocupava lugar privilegiado no comércio por trocarem ouro e o marfim vindos do interior por tecidos, contas, objetos de metal trabalhados, barras de cobre e sal oriundo da costa. (SOUZA, 2007). Por volta dos séculos XVII e XVIII, houve um comércio de escravos. No entanto, foi um comércio que não atingiu as proporções da costa ocidental da África. Estes escravos destinavam-se à Índia, enquanto que os escravos da costa ocidental eram enviados para o Brasil e o resto do continente americano. UNIDADE 2 TÓPICO 2 91 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A Neste Tópico, você estudou que: • O deserto do Saara ofereceu uma barreira natural à passagem humana até a introdução do camelo, por volta do século III d.C. Após esse momento, o deserto se transformou em uma importante rota comercial. • Dos quatro grandes grupos linguísticos, nos quais os estudiosos dividem a África, o mais extensamente representado é o dos Níger-Congoleses, que se estende da região do Senegal até a costa do Oceano Índico. • Na região ao sul do deserto do Saara, chamada Sahel, desenvolveram-se vários reinos africanos importantes. O primeiro de que se tem notícia é o de Gana. • Nas florestas da Nigéria, os povos iorubá desenvolveram uma estrutura política bastante descentralizada. • A expansão dos bantos pelo centro do continente africano foi uma das maiores migrações humanas de que se tem notícia e teria durado por volta de 2.500 anos. • No sul da África, as imponentes construções de pedra chamadas zimbabués fizeram parte de um reino conhecido como Monomotapa. • No século VI, alguns principados da Núbia e o reino da Etiópia eram os únicos estados cristãos fora da área de influência do Império Romano. • A presença de comerciantes árabes e portugueses no interior do continente, querendo controlar o comércio de ouro e marfim aumentou os conflitos e as tensões existentes entre os diferentes povos em África. RESUMO DO TÓPICO 2 UNIDADE 2TÓPICO 292 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A Para exercitar seus conhecimentos, resolva as questões a seguir: 1 Elabore uma descrição sobre o reino de Gana. 2 Elabore uma descrição sobre o reino do Congo. 3 “A presença de comerciantes árabes e portugueses no interior do continente, querendo controlar o comércio de ouro e marfim, aumentou os conflitos e as tensões existentes entre os diferentes povos em África”. Essa afirmação representa um processo de transformação interna e externa ao continente africano. Reflita sobre essa afirmação e elabore um texto onde estejam presentes apontamentos referentes a esta afirmação. AUT OAT IVID ADE � H I S T Ó R I A D A Á F R I C A AS RELAÇÕES COMERCIAIS EM ÁFRICA 1 INTRODUÇÃO 2 ORGANIZAÇÃO DO COMÉRCIO EM ÁFRICA ANTERIOR A PRESENÇA EUROPEIA TÓPICO 3 UNIDADE 2 As sociedades africanas desenvolveram formas de vida adequadas a cada região, vivendo, durante muito tempo, do que conseguiam retirar da natureza. A relação de trocas permitiu que diversos grupos tivessem acesso a coisas que não produziam. Por exemplo, as populações costeiras e as que viviam às margens de rios e lagos trocavam peixes por grãos cultivados nas regiões de savana, que também trocavam coisa com produtores de tubérculos e criadores de animais. Trocavam-se ainda, sal, tecidos, ferro, ouro, noz-de-cola, marfim e escravos. Os diferentes grupos trocavam seus produtos por meio de comércio de longa e curta distância. O comércio era um mecanismo importante nas relações estabelecidas entre as diferentes sociedades em África, pois possibilitava, não somente a troca de produtos, mas também de elementos culturais que muitas vezes foram incorporados às tradições locais das diferentes sociedades africanas. Um exemplo foi a influência do islamismo exercida em algumas regiões da África a partir das caravanas e dos comerciantes que circulavam nas bordas e no interior deste continente. O objetivo deste tópico é possibilitar que você perceba que o continente africano estabeleceu contato com outros povos para além da África anterior ao contato com o europeu, em específico os portugueses. As relações comerciais entre as sociedades africanas e povos vindos de outras regiões além da África, organizavam-se da seguinte forma: comércio de longa distância e de curta distância. UNIDADE 2TÓPICO 394 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A O comércio de longa distância era o mais lucrativo, pois nele se trocavam mercadorias de maiores valores, mercadorias raras, que apenas os mais poderosos podiam pagar. Esse tipo de atividade exigia um investimento maior, pois era preciso comprar mercadorias a serem negociadas; providenciar o transporte e a segurança das cargas; esperar o melhor momento para negociar. No entanto, a margem de lucro era suficientemente grande para sustentar um grupo de comerciantes ricos, próximos dos poderes centrais das sociedades nas quais viviam. (SOUZA, 2007). O comércio a curta distância se organizava a partir da vida da aldeia, das cidades próximas, das províncias, envolvendo as regiões vizinhas. O excedente de um grupo era trocado pelo de outro. Se nem todos os povos africanos estavam envolvidos com o comércio a longa distância, como o que estava presentes nas cidades do Sael, nas cidades da costa oriental e na costa atlântica a partir do século XV, quase todos os povos mantinham algum tipo de troca com seus vizinhos mais ou menos próximos. Rotas fluviais e terrestres existiam nas bacias dos rios mais importantes e nas regiões entre eles. A vitalidade do comércio dentro do continente africano, de curta e longa distância, põe por terras a ideia de sociedades isoladas umas das outras, vivendo voltadas apenas para si mesmas. (SOUZA, 2007). 3 O MAR MEDITERRÂNEO E O MAR VERMELHO O mar Mediterrâneo foi desde o início da História uma região de intenso comércio, de intensas trocas de bens, experiências, invenções e ideias. Se lembrarmos dos distintos períodos da História que já estudamos, conseguimos perceber que o mar Mediterrâneo sempre esteve presente nas relações entre povos em diferentes períodos. Estava ligado pelas embarcações e pelas caravanas ao resto da Europa e Ásia. O que se inventava numa terra distante não demorava a circular pelas águas do Mediterrâneo. A ligação entre o norte da África e o mar Mediterrâneo possibilitou a entrada do cristianismo, que já no século IV estava presente na região de Cartago, atual Tunísia. A partir do século VII o islã se expandiu pelo norte da África, pelo vale do rio Nilo, pelas rotas do Saara, e também pela costa ocidental, através do mar Vermelho, do golfo de Áden e dooceano Índico. Seus ensinamentos foram levados pelos exércitos e pregadores, uns submetendo os povos, outros os convertendo. No entanto, foram os mercadores os principais intermediários entre o que vinha de fora e o que já existia no continente. O comércio, como já sinalizado, permitiu que povos distantes entrassem em contato, mesmo que indiretamente, o que facilitou a transmissão de conhecimentos e crenças. (SOUZA, 2007). UNIDADE 2 TÓPICO 3 95 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A 3 A ÁFRICA CENTRAL: A DISPERSÃO DOS BANTOS Os mercadores da península Arábica tinham acesso à região do rio Nilo e da Etiópia desde o tempo do Império Egípcio. Pelo golfo de Áden chegavam navios de mais longe onde eram feitas as trocas de mercadorias, que só compensavam porque eram comercializadas a altos preços. Em meados do século XI, os povos da região do Marrocos adotaram o islamismo, levando-o para as regiões do Senegal e Níger. Os povos do Sudão central, como os Bornu e Canem, somente incorporaram essa religião a partir do século XIII, pois se encontravam ligados ao norte da África por camelos e comerciantes que atravessavam o Saara. Darfur e Senar também sofreram a intervenção islâmica. Nesta perspectiva, todo o Sael entrou em contato com a religião islâmica e adotou em maior ou menor grau elementos da sociedade árabe. (SOUZA, 2007). A palavra banto foi usada para designar as numerosas falas aparentadas presentes em uma superfície do Continente Africano que compreende aproximadamente 9 milhões de quilômetros quadrados ao sul deste continente, da baía de Biafra a Melinde. A semelhança entre as línguas bantas fez supor que haviam se propagado de um núcleo original. Em 1913, o africanista H. H. Johnston apontava ter sido a propagação da língua banta resultado de conquistas militares que havia imposto o uso da língua aos dominados. Banto significa “povo”, ou “os homens”. É o plural de mundo, o “homem”. O termo existe em quase todas as línguas bantas. E é o mais antigo com a sua acepção. (SILVA, 2006). O núcleo banto de onde estes iniciaram um movimento de dispersão ficava próximo ao médio Benué, na fronteira da Nigéria com os Camarões. De acordo com Silva (2006), seriam populações que ali viviam desde muito tempo e que possivelmente moravam a distância uma das outras. Viviam da agricultura, da pesca e da coleta e da caça, criavam animais, necessitando para isso de um vasto espaço geográfico. Os que ocupavam o norte foram lentamente se deslocando para o sul, devido ao ressecamento saariano. O agricultor mudava de sítio tão logo se esgotava o solo e o solo quando pobre exauria-se em três ou quatro anos. O pastor deixava-se conduzir pelas cabras e bois. A coleta arrastava quem fazia as inesperadas distâncias, pois as árvores frutíferas, as plantas tuberoras se disseminavam pelo largo espaço. A própria natureza da caça pede amplas áreas vazias de homens: ela tem de ser itine- rante, para não se esgotarem os animais. E, se a vida de aldeia recomenda a proximidade dos rios e das fontes, a pesca a exige. (SILVA, 2006, p. 213). Em torno do ano 1000 da nossa era, os bantos já ocupavam a região que ocupam até hoje, UNIDADE 2TÓPICO 396 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A nos atuais estados de Camarões, Guiné Equatorial, Gabão, República Democrática do Congo, República do Congo, Angola, Uganda, Ruanda, Burundi, Quênia, Tanzânia, Maláui, Moçambique, Suazilândia, Lesotto, Zimbábue, Zâmbia, Botsuana e República da África. Nestes três últimos países, há uma parcela significativa de povos falantes de cóisan (hotentotes e bosquímanos), que se concentraram nessa região depois da expansão banta. (SOUZA, 2007). Inicialmente, como sinalizado, nômades, caçadores, coletores, os povos bantos tornaram-se agricultores vivendo em aldeias e passaram a dominar a técnica de metalurgia. Atividade essa, que lhes conferiu certa superioridade sobre os povos que não a conheciam. O povo banto configurava-se por grupos de populações aparentadas pela língua, com modos de vida semelhantes, mas com particularidades culturais que os diferenciavam uns dos outros. Ambundos, imbangalas, bacongos, cassanjes, ovimbundos, lubas, lundas, quiocos são alguns dos grupos banto que viviam na região das florestas e savanas da África centro- ocidental e central. (SOUZA, 2007). Ao sul viviam os remanescentes dos povos coletores e caçadores desalojados pelos bantos, os bosquímanos e os hotentotes, que pastoreavam o gado. Lembrando que esse animal era muito importante para essas sociedades, constituindo-se em moeda de troca com outros grupos. Na parte sul oriental e centro-oriental, na região dos rios Limpopo e Zambeze, habitava grande variedade de povos bantos, como zulus, xonas, maraves e iaôs. No interior, na região dos lagos Vitória e Tanganica, pastores vindos do Sael se misturaram aos bantos agricultores. Coexistindo por muito tempo de forma harmônica. FONTE: Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/ commons/9/9b/Bantu_expansion.png>. Acesso em: 18 maio 2010. FIGURA 16 – EXPANSÃO DOS POVOS BANTOS UNIDADE 2 TÓPICO 3 97 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A Todavia, alguns povos que os bantos encontraram pelo caminho foram desalojados, exterminados ou assimilados, a ponto de restarem hoje poucos grupos humanos descendentes dessas populações autóctones. A maior parte deles está concentrada no sul da África, nas regiões do entorno dos desertos de Kalahari e da Namíbia e constituem o já mencionado grupo cóisan. UNI Caro(a) acadêmico(a)! Como sugestão assista ao filme Os Deuses devem estar loucos I (Ano: 1980Direção: Jamie Uys). O filme tem início no deserto do Kalahari, no Botswana, junto à África do Sul, numa pacata e semidesértica paisagem, coberta por uma vegetação arbórea esparsa, mostrando uma cena da vida quotidiana de um grupo de bosquímanos quando uma garrafa de coca-cola é lançada por um piloto de uma aeronave de pequeno porte. A partir desse fato, a vida do chefe bosquímano muda radicalmente. O filme propicia uma imagem da paisagem africana. FONTE: Disponível em: <http://www.filmesraros.com/loja/product_ info.php?products_id=151>. Acesso em: 17 maio 2010. 4 AS RELAÇÕES COM O LITORAL DO OCEANO ÍNDICO Observando o mapa acima, percebemos que o movimento do povo de origem banta abrangeu uma área extensa no continente africano. De acordo com Silva (2006), quando os bantos começaram a se espalhar pelas praias do Índico, ali já existiam, pequenos entrepostos comerciais aonde vinham ter navios de nações distantes – romanos, árabes, persas. Vinham buscar incenso, marfim, chifres de rinoceronte, peles de pantera. E traziam em troca, lanças, adagas e machados de ferro, tecidos de algodão, vidros, vasos de cerâmica. A conversão de povos africanos ao islamismo intensificou as relações comerciais. Os mercadores mulçumanos passaram a buscar no interior os produtos que desejam adquirir, constituindo, assim, rotas comerciais no interior do continente. Silva (2008) referindo-se ao comércio mulçumano aponta que, mesmo que transpostas as praias, na maior parte da região a terra era hostil, coberta por uma vegetação espinhenta, a nyka, em que estava presente a mosca tse-tsé. No entanto, a ambição da riqueza faria com que os habitantes do litoral ameno se arriscassem a entrar no interior. Entravam com os mercadores, mas não contribuíam para UNIDADE 2TÓPICO 398 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A a difusão de novas técnicas, de novos instrumentos e de novas ideias, a não ser o islamismo e, posteriormente, as armas de fogo, que tornaria menos perigosas as caçadas. Além dos árabes, também os indianos frequentavam o litoral oriental da África econtribuíram para o aspecto variado das cidades, nas quais se dava o comércio com povos do interior, de onde vinham principalmente ouro e marfim. Quando o europeu chegou a essa parte da África encontrou relações comercias já constituídas, como mostra a figura a seguir: FONTE: Hernandez (2008) 5 PELO OCEANO ATLÂNTICO A costa atlântica foi à última região da África a manter contato com povos vindos de fora. A exploração desta parte da África pelos portugueses aconteceu no início do século XV. Nesta região, os estrangeiros entraram em contato com povos berberes islamizados, muitas vezes atacados e aprisionadas para serem vendidos como escravos na Europa e até mesmo no norte da África. De acordo com Souza (2007), à medida que os portugueses navegavam mais para o sul, iam entrando em contato com povos negros. Em 1445, construíram em Arguim FIGURA 17 – INTERCÂMBIO COMERCIAL NA COSTA DO OCEANO ÍNDICO UNIDADE 2 TÓPICO 3 99 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A a primeira fortaleza que serviria de base para o comércio com os povos locais. Dois acontecimentos foram importantes no final do século XV e marcaram a intensificação da circulação europeia, em específico, os portugueses no continente africano: em 1489, Bartolomeu Dias chegou ao extremo sul do continente e em 1498, Vasco da Gama chegou até a Índia contornando o sul da África. Por meio desta viagem tem-se o conhecimento das cidades da costa africana oriental, que eram movimentados centros de comércio, com forte presença árabe. Se naquela costa os nativos e seus parceiros comerciais de velha data quase não deixaram espaço para os portugueses agirem, também na costa atlântica houve resistência ao contato. No entanto, pouco a pouco, os portugueses, e depois os ingleses, franceses e holandeses foram se tornando mais presentes na costa atlântica até que algumas populações passaram a depender inteiramente das relações comerciais estabelecidas com esses países. (SOUZA, 2007). Assim como os mulçumanos, os portugueses iniciaram um movimento de difusão da crença cristã, pois acreditavam ser sua missão levar o catolicismo entre as populações africanas. Entretanto, nos primeiros séculos a difusão do catolicismo entre os africanos foi insignificante. Se a circulação da fé católica em África, nos primeiros séculos não alterou o modo de vida dos povos africanos, não se pode afirmar isso da perspectiva social. O fato novo que interferiu radicalmente nas sociedades africanas depois da chegada dos portugueses foi a busca por escravos. Fato que provocou mudanças significativas nas regiões que entraram em contato direto ou indireto com eles. Os centros da ação dos mercadores europeus na costa atlântica da África foram as regiões dos rios Senegal e Gâmbia, onde compravam escravos; da região do forte da Mina, onde eram comercializados ouro com os portugueses; do golfo do Benin, terra de povos iorubás, onde os escravos eram a principal mercadoria; do delta do rio Níger, onde eram negociados escravos e marfim; da foz do rio Congo e do rio Cuanza. Na região do rio Gâmbia e em Luanda, atual Senegal, no século XVI, a parceria comercial entre portugueses e africanos é aos poucos substituída pela presença francesa e no delta do Níger pela presença inglesa. A presença de estrangeiros nessa costa provocou significativas mudanças nas sociedades que se envolveram com eles. A compra de escravos que serviriam de mão de obra nas colônias americanas era o principal interesse desses países europeus. Do século XVI ao XIX foi em torno do tráfico de escravos que se firmaram as relações comerciais entre africanos e europeus (SOUZA, 2007). Nessa perspectiva, o próximo tópico contempla a circulação islâmica no continente africano, a percepção da cultura islâmica junto à África é fundamental para que possamos, num segundo momento, compreender a ação europeia sobre este continente. Ação esta, como já foi comentado trará transformações significativas em África e no continente UNIDADE 2TÓPICO 3100 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A americano. 6 O COMÉRCIO TRANSAARIANO As trocas regulares de produtos deram origem ao desenvolvimento de redes comerciais internas na África. Desde o século VII, as regiões africanas estabeleciam contatos entre si. A inserção dos árabes neste continente intensificou e ampliou a circulação comercial entre os séculos XII e XVI, “estendendo-se em especial da zona sahelo-sudanesa ao Magrebe. Seguindo os itinerários dos principais produtos africanos, pode-se constatar a complexidade e o dinamismo das relações comerciais e culturais entre cidades de diferentes regiões do continente. (HERNANDEZ, 2008). Os produtos que circulavam por estas rotas eram: sal, ouro, cobre, marfim, noz-de-cola, entre outros. O sal extraído das minas de Teghazza, por exemplo, supria os mercados do Sudão ocidental. Já em Arwill, o sal extraído das margens do rio Senegal abastecia o interior do Níger. Nessa perspectiva, o sal era utilizado como moeda comercial entre as sociedades africanas. No século X, registrou-se a ocorrência do comércio de ouro desde a África Ocidental até o sul do Saara. Quatro séculos mais tarde o reino Mali influiu decisivamente na expansão do mercado de ouro evidenciando a importância da rota de Tombuctu a Kayrawam, passando por Wargla. FONTE: Hernandez (2008 p. 41) FIGURA 18 – ROTAS COMERCIAIS TRANSAARIANAS UNIDADE 2 TÓPICO 3 101 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A 7 A ÁFRICA E A RELAÇÃO COM O SOBRENATURAL O Sudão Central e a região do Chade, onde se situavam o reino de Bornu-Kanem e as cidades Hauça, foram importantes pontos de desenvolvimento do comércio intracontinental. Exportavam sal, cobre, presas de elefante, produtos manufaturados e escravos. [...] é oportuno lembra que havia três importantes rotas do Chade para o norte: de Kanem para o Egito, passando pelas minas de sal; do lago Chade indo para leste (onde, no Tibesti, eram exploradas pedras preciosas), para alcançar Aswan e, por fim, o Cairo; Kanem para Ghat e Ghadames, de onde se bipartia, com um ramo indo para a Túnis e outro para Trípoli. Nessas rotas comerciais, destacavam-se os hauçás, que, envolvidos com comércio de longa distância, eram os intermediários entre a savana e a floresta, estabelecendo inclusive contato com as cidades do delta do Níger como Oió, Ifé, Benin e Ibo de Ikwu. (HERNANDEZ, 2008, p. 40). O comércio de sal e de outros produtos foi também praticado na rota que atravessava o interior da Etiópia até o Zambeze. Mostrando que a floresta equatorial não foi uma barreira entre as savanas setentrionais e meridionais. Existem registros de trocas de técnicas, objetos e estatuetas entre a Nigéria e Angola. A tradição oral é rica em referências às trocas de ideias e à migração de povos de uma região à outra. O conhecimento do intercâmbio comercial entre as regiões em África, conduzido pelos próprios africanos ou por agentes externos (como os árabes, por exemplo), auxilia na concretização de uma unidade histórica como a de dinamismo cultural do continente africano, apresentando intecâmbios entre diversas organizações políticas de complexidade e extensão notáveis (HERNANDEZ, 2008). Afastando a noção de um continente cortado em duas partes incomunicáveis e ao mesmo tempo rompe com a ideia de uma África homogênea. A religião é uma das atividades mais universais conhecidas pela humanidade, sendo praticada por todas as culturas desde o início dos tempos. Todavia não há uma definição de religião universalmente aceita, até hoje. A religião parece ter surgido do desejo de encontrar um significado e propósito definitivos para a vida, geralmente centrado na crença e ritual a um ser (ou seres) sobrenatural.As sociedades em África não fugiam a essa prática. Os ritos, as crenças, as práticas e a difusão da religiosidade africana associam-se ao sobrenatural. Ao que muitas vezes, nos é desconhecido. Vamos ler, com muita atenção, o texto de Marina de Mello e Souza, em que a autora discute sobre a relação da religiosidade africana e o sobrenatural. UNIDADE 2TÓPICO 3102 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A O SOBRENATURAL O mundo natural é o concreto, que tocamos, sentimos, no qual vivemos. O mundo social é resultado de nossa vida em grupo e em determinado meio ambiente. O mundo sobrenatural é o das religiões, da magia, a que os homens só têm acesso parcial, por meio de determinados ritos e cerimônias. Ele é mais ou menos importante, dependendo da sociedade. Numa sociedade como a nossa, em que quase tudo é explicado pela ciência e pelo pensamento lógico e racional, o espaço do sobrenatural é bastante limitado. Já nas sociedades africanas, onde foram capturados os escravos trazidos para o Brasil, toda a vida na terra estava ligada ao além, a dimensão que só especialistas, ritos e objetos sacralizados podiam atingir. Na costa da África que vai do Senegal a Moçambique, ou seja, aquela onde portugueses e outros povos europeus negociavam escravos, e nas regiões do interior ligadas a esses litorais, quase tudo era explicado e resolvido por forças sobrenaturais, manipuladas por curandeiros, adivinhos, médiuns e sacerdotes, que foram chamados de feiticeiros pelos portugueses que primeiro chegaram à África. Estes, guiados pelo seu ponto de vista e usando seu vocabulário chamaram de feitiço as práticas mágico-religiosas que viam os africanos fazer. Mas, para os diferentes grupos de africanos, assim como a linhagem da qual a pessoa fazia parte, definia o seu lugar no grupo, no que diz respeito ao conhecimento, à explicação das coisas e à possibilidade de interferir no rumo da vida. Tudo girava em torno da relação entre o mundo natural e o sobrenatural. A orientação de como agir diante de várias situações da vida era traçada valendo- se do além, dos antepassados, dos ancestrais, dos heróis fundadores, dos deuses, dos espíritos e da grande variedade de seres sobrenaturais que habitavam dimensões com as quais era possível fazer contato sob certas condições específicas. Geralmente infortúnios eram considerados fruto de ações humanas impróprias conscientes ou inconscientes, que desestabilizavam a harmonia. Esta podia ser rompida quando não se cumpria um preceito, como uma oferenda a um espírito ancestral, ou quando se manipulavam de maneira mal- intencionada forças sobrenaturais em beneficio próprio e com prejuízo de alguém. Assim, se um filho ficasse doente, se uma seca arruinasse a plantação, se uma mulher não conseguisse engravidar, ou se fosse preciso descobrir que havia furtado algo, oráculos eram consultados para que as forças do além mostrassem as soluções. Ritos de possessão eram realizados para que os espíritos pudessem orientar os vivos. As lideranças nessas comunidades também eram em grande parte sustentadas pelos membros dos seus grupos. Os chefes tinham de ser confirmados pelos sacerdotes mais importantes, que trabalhavam pelo bem-estar de toda a comunidade. Esses sacerdotes consultavam as entidades sobrenaturais adequadas, fossem elas espíritos ancestrais, deuses locais, espíritos de chefes fundadores de comunidades ou espíritos responsáveis pelos UNIDADE 2 TÓPICO 3 103 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A recursos naturais da região. Por meio de ritos apropriados, os chefes eram confirmados pelas forças sobrenaturais e tornavam-se os mais importantes intermediários entre elas e os membros da comunidade. Além de serem a autoridade máxima, eles eram também os mais importantes representantes do além entre os seres vivos. Se considerarmos que a relação com o sobrenatural e todas as crenças e cerimônias necessárias para que ela se estabeleça são formas de religião, podemos dizer que esta era um elemento central em todas as sociedades africanas. A religião estava presente no exercício do poder, na aplicação das normas de convivência do grupo, na garantia da harmonia e do bem-estar da comunidade. O mundo era decifrado e controlado pela religião, que nessas sociedades tinha um papel equivalente ao que a ciência e a tecnologia têm para a nossa sociedade. FONTE: Hernandez (2008) Os cultos aos Orixás eram praticados somente entre os iorubás ou nagôs, povo que vive no sudoeste da Nigéria e no sudeste da atual República do Benin. Como outras religiões africanas, a dos orixás é constituída de um conjunto de cultos locais, ligados a santuários próprios. Quando os africanos foram trazidos para as Américas e tiveram que se ajustar a uma nova condição, seu culto, seus ritos, seus deuses também atravessaram o Atlântico e se instalaram no novo continente. Em África, a religião dos orixás não se expandiu, grupos como: os sereres, banhuns, ibos, andongos, iacas, angicos, xonas, macuas, zulus ou outros povos não foram adeptos dessa manifestação. Todavia, nas Américas, sobretudo no Brasil e em Cuba, que ela se tornou religião universal, com deuses que não pertencem exclusivamente a um povo, mas a toda a humanidade. No Brasil, esta manifestação religiosa dos orixás dez adeptos não só entre os originários de outras nações africanas, mas também entre descendentes de portugueses, espanhóis, guaranis, pataxós e muitos outros povos. UNIDADE 2TÓPICO 3104 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A Neste tópico, você estudou que: • A relação de trocas permitiu que diversos grupos tivessem acesso a coisas que não produziam. • Os diferentes grupos trocavam seus produtos por meio de comércio de longa e curta distância. O comércio era um mecanismo importante nas relações estabelecidas entre as diferentes sociedades em África, pois possibilitava, não somente a troca de produtos, mas também de elementos culturais que muitas vezes foram incorporados às tradições locais das diferentes sociedades africanas. • A partir do século VII, o islã se expandiu pelo norte da África, pelo vale do rio Nilo, pelas rotas do Saara e também pela costa ocidental, através do mar Vermelho, do golfo de Áden e do oceano Índico. • Inicialmente, os povos de origem banta eram nômades, caçadores, coletores. Posteriormente, tornaram-se agricultores vivendo em aldeias e passaram a dominar a técnica de metalurgia. Atividade essa, que lhes conferiu certa superioridade sobre os povos que não a conheciam. • Quando o europeu chegou a algumas regiões da África, encontrou relações comercias já constituídas. • Os centros da ação dos mercadores europeus na costa atlântica da África foram as regiões dos rios Senegal e Gâmbia, onde compravam escravos. • A orientação de como agir diante de várias situações da vida era traçada valendo-se do além, dos antepassados, dos ancestrais, dos heróis fundadores, dos deuses, dos espíritos e da grande variedade de seres sobrenaturais que habitavam dimensões com as quais era possível fazer contato sob certas condições específicas. RESUMO DO TÓPICO 3 UNIDADE 2 TÓPICO 3 105 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A Exercite seus conhecimentos, resolvendo as questões a seguir: 1 Explique como acontecia o comércio entre os diferentes grupos africanos, antes do contato com os árabes. 2 Os bantos iniciaram um processo de expansão territorial e ocuparam uma extensa região na África. Elabore um pequeno texto indicando como se deu essa expansão e quais as consequências para o continente africano. 3 O filme Os Deuses Devem Estar Loucos, indicado nesta unidade, apresenta o modo de vida de um grupo social africano. Que grupoera esse? Se você assistiu ao filme, faça um pequeno relato procurando identificar esse modo de vida africano e socialize-o com o seu grupo. 4 Leia o texto “O sobrenatural” e identifique as características das religiões africanas. AUT OAT IVID ADE � UNIDADE 2TÓPICO 3106 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A H I S T Ó R I A D A Á F R I C A A ÁFRICA E O ISLAMISMO 1 INTRODUÇÃO TÓPICO 4 UNIDADE 2 A partir do século VII, mas especialmente do século X em diante, as sociedades africanas começaram a sofrer a influência e a resignificar elementos de uma cultura vinda de outro continente: o islamismo. Ainda no século VII, a expansão muçulmana levou a fé islâmica até as regiões do Egito e do norte da África. Imbuídos do espírito de propagação da fé islâmica, os árabes fizeram do norte da África (chamado por eles de Magrebe, que significa extremo ocidente) o ponto de partida para a conquista da Península Ibérica. Embora tenham sido rechaçados mais ao norte, a presença muçulmana na península e na África foi duradoura. Em todas as regiões do entorno do deserto do Saara, a religião predominante é, desde então, o Islã. UNIDADE 2TÓPICO 4108 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A IMP OR TAN TE! � Caro(a) acadêmico(a)! Já estudamos na disciplina de História Medieval sobre a cultura e a civilização islâmica. Todavia, vamos relembrar algumas questões referentes à fé deste povo, representada pela religião islâmica e a expansão desta fé por outros continentes. Maomé, que viveu entre Meca e Medina de 570 a 632, foi o fundador do Islã, que significa submissão a deus, único e onipotente. No mundo moderno, o judaísmo, o cristianismo e o islamismo são as três principais religiões monoteístas, isto é, que preconizam a existência de um único deus, criador de todas as coisas. Elas se guiam por textos sagrados, estabelecidos em momentos diferentes: a Tora, a Bíblia e o Alcorão. O islã foi rapidamente difundido pela pregação de Maomé e seus seguidores, e, no século VIII, estava presente desde a Pérsia até a Península Ibérica, passado por toda a Arábia, pelo Império Turco e pelo norte da África. A religião vinha acompanhada de maneiras de viver e de governar próprias do mundo árabe, chamadas de mulçumanas. Segundo a religião islâmica, povos variados podem ser agregados em torno de uma comunidade de ideias e crenças capazes de produzir uma unidade chamada umma. Os cinco principais deveres de todo adepto do islã são: a profissão de fé, isto é, a declaração da crença em um só Deus e em Maomé como seu profeta; a oração cinco vezes ao dia; o pagamento de imposto religioso; o jejum no mês de Ramada e a peregrinação a Meca pelo menos uma vez na vida. (SOUZA, 2007). Mas a influência da cultura e da religião islâmica não se limitou, na África, à estreita faixa de terra localizada entre o mar Mediterrâneo e o deserto do Saara. Também ao sul do deserto, as civilizações do Sahel e das florestas próximas sofreram a influência dessa religião e terminaram por se integrar, de forma ativa ou indiretamente, ao mundo islâmico. Na África Oriental, em frente ao mar Vermelho, a proximidade com a Península Arábica faz parecer óbvia a influência muçulmana sobre a cultura - embora tenha havido, ali, duros enfrentamentos com os cristãos coptas da Etiópia. Também na região central da África, nas proximidades do lago Chade, o Islamismo ganhou força e terminou por se tornar predominante no reino de Kanem- Bornu. No mapa que segue, podemos ter uma dimensão da propagação da fé islâmica no continente africano no século XIII, percebamos que para além do norte da África, essa fé propagou-se para a costa do oceano Índico. UNIDADE 2 TÓPICO 4 109 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A FONTE: Disponível em: <http://www.islam.org.br/africa_mapa.gif>. Acesso em: 19 maio 2010. 2 A ISLAMIZAÇÃO DO NORTE DA ÁFRICA O Islamismo tinha muito a oferecer aos povos africanos com os quais entrava em contato. Excelentes guerreiros e mercadores, os árabes, em poucas décadas, expandiram seus domínios do litoral do Oceano Atlântico até o subcontinente indiano, o que lhes permitiu integrar sob uma mesma fé uma imensa e variadíssima região do mundo. Ao promoverem essa expansão, entraram em contato com povos muito distintos e souberam administrar as diferenças culturais e religiosas com habilidade: contrariamente à impressão preconceituosa que muitos têm, hoje em dia, da religião islâmica, os muçulmanos eram bastante tolerantes com as crenças anteriores e os costumes dos povos que conquistavam. A relação dos muçulmanos com os povos dominados por eles muitas vezes desafiava, no tocante à conversão, a lógica evangelizadora do cristianismo. Embora por todas as regiões sob seu domínio circulassem os ulemás, estudiosos eruditos que transitavam pelo Islã dedicados à propagação da fé muçulmana, e os povos dominados fossem sempre bem recebidos se decidissem converter-se, os muçulmanos não exigiam deles que adotassem a nova crença. Ao contrário, geralmente não era do seu melhor interesse que as populações do Sahel, por exemplo, se convertessem, pois elas forneciam um enorme e constante contingente de escravos e a lei muçulmana proibia a escravização de féis. Além disso, pela lei islâmica, os indivíduos não convertidos estavam obrigados ao pagamento de um imposto especial, a jizyah, como prova de submissão. Tornava-se, assim, vantajoso economicamente para os muçulmanos FIGURA 19 – EXPANSÃO ISLÂMICA NA ÁFRICA NO SÉCULO XIII UNIDADE 2TÓPICO 4110 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A manterem populações não convertidas sob seu domínio. Já para as populações dominadas, em contrapartida, a conversão era vantajosa, justamente por esses motivos. Além disso, algumas atividades econômicas, como o comércio, eram executadas com mais facilidade por muçulmanos, pois a religião lhes permitia estabelecer contatos mais sólidos em todo o Islã. 2.1 A CONQUISTA DE IFRIQIYA 2.2 O CALIFADO FATÍMIDA Após a morte de Maomé o poder no mundo islâmico passou a ser controlado pelo califado Omíada (Ummayyad), que empreendeu incessantes campanhas de conquistas territoriais: ocupou a Síria (onde estabeleceu sua capital, em Damasco), a Ásia Central (no atual Afeganistão) e o norte da África. Na região, que até então estivera sob o domínio bizantino, os conquistadores fundaram a cidade de Kairouan, que se constituiu, juntamente com Túnis, no centro da província de Ifriqiya (correspondente mais ou menos à atual Tunísia e norte da Líbia) – a antiga província romana da África, de onde retirou o nome. Os omíadas enfrentaram a oposição feroz dos berberes, povo originário da região, que terminaram por conquistar Kairouan em poucos anos. A conquista berbere facilitou a sua conversão ao Islamismo e, a partir de então, árabes e berberes atuaram juntos na expansão muçulmana; era berbere o líder dos exércitos que ocuparam Al-Andalus (a Espanha muçulmana), em 711. A partir de 800, sob a dinastia dos Aglábidas, a região de Ifriqiya prosperou e Kairouan se tornou uma das cidades mais importantes do mundo muçulmano. De lá partiam caravanas para o interior do continente, que entrou em uma longa fase de apogeu entre os séculos VIII e XVI. De acordo com o historiador árabe Ibn Battuta, o comércio era realizado por enormes caravanas, que chegavam a reunir mil camelos de uma só vez. O comércio transaariano permitiu o grande desenvolvimento do reino de Gana, como já sinalizado. Na região de Ifriqiya surgiu, em 909, uma nova dinastia: a dos Fatímidas. O nome provém de Fátima, filha do profeta Maomé, de quem os fatímidas se diziam descendentes. Após um rápido avanço, a nova dinastia conquistou todaa região do Magrebe (atuais Argélia e Marrocos, região mais ao norte do continente africano) e estendeu-se até o Egito – onde fundou a cidade do Cairo – e de lá se expandiu por uma vasta região no Oriente Médio, até Meca. Após se mudarem para o Cairo, os fatímidas deixaram Ifriqiya e o Magrebe sob o comando de chefes vassalos. Uma crise econômica, causada pela decadência do comércio transaariano, levou-os a romper com os Fatímidas (que eram xiitas) e adotarem a vertente UNIDADE 2 TÓPICO 4 111 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A 2.3 O MAGREBE SOB OS ALMORÁVIDAS 3 O SAHEL SOB A INFLUÊNCIA ISLÂMICA sunita do Islamismo. A reação fatímida levou à destruição de Kairouan, o que contribuiu para a decadência da região – ocupada, por volta de 1130, pela nova dinastia dos almorávidas. Os almorávidas eram uma dinastia sunita originada dos berberes do deserto do Saara, que seguia uma rígida disciplina militar e religiosa. Por volta de 1050, começaram a espalhar sua fé pelas regiões vizinhas e também para alguns reinos do outro lado do deserto do Saara; foi o caso de Takrur, um pequeno reino no atual Senegal. Com a conquista de Sijilmasa (na atual Argélia) e de Audaghost (no sul da atual Mauritânia), os almorávidas abriram uma rota comercial importante para o Sahel. A cidade de Audaghost havia sido conquistada pelo reino de Gana em 1070 e, cinco anos depois, sucumbiu sob o poder dos almorávidas. A conquista foi fatal para o reino de Gana, que entrou em colapso em seguida. FONTE: Disponível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/d/dc/Almohad_ dynasty_1147_-_1269_%28AD%29.PNG>. Acesso em: 20 maio 2010. A influência do islamismo sobre a região do Sahel foi apenas indireta durante vários séculos. Os comerciantes muçulmanos que tomaram conta das rotas cameleiras que cruzavam o deserto traziam as ideias e a religião junto com as mercadorias. No entanto, não havia um esforço de conversão em massa das populações ao sul do Saara. Alguns comerciantes do FIGURA 20 – A DINASTIA DOS ALMORÁVIDAS (1147-1269) EM SUA MAIOR EXTENSÃO UNIDADE 2TÓPICO 4112 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A Sahel, porém, convertiam-se, por conveniência comercial – pelos contatos que lhes traria – ou por adesão sincera à nova fé. O reino de Gana beneficiou-se amplamente dessas relações comerciais, e sua capital chegou a abrigar uma enorme população muçulmana. Mais a leste, as regiões do Kanem-Bornu se tornaram também importantes pontos de ligação entre o Sahel e o norte da África. FONTE: Disponível em: <http://exploringafrica.matrix.msu.edu/students/ images/west_african_kindomsempires.jpg>. Acesso em: 20 maio 2010. 3.1 O REINO DO MALI Após a queda do reino de Gana, o poder local foi ocupado pelo reino de Kaniaga, formado por uma população do mesmo povo soninquê de Gana. Mas o reino de Kaniaga tinha, assim como seu antecessor, uma fraqueza: não controlava diretamente as jazidas de ouro que faziam a sua prosperidade. Assim, em 1235, o poder regional foi ocupado, e seria mantido por dois séculos, por um novo reino: o Mali. As origens do reino do Mali são obscuras. Os povos mandingas ou malinquês viviam na região das minas de ouro, no alto Senegal e alto Níger. Por volta de 1050, o rei Baramendana teria se convertido ao Islamismo, após uma terrível seca que assolava seu reino. As informações disponíveis sobre o reino e seus soberanos são muito poucas até o início do século XIII, quando reinou sobre o Mali o célebre Sundiata. Após tomar o trono, conseguiu reunir um exército para derrotar o rei Kaniaga Sumaoro e estabeleceu seus domínios desde o Delta do Níger e o Adrar dos Iforas até o oceano Atlântico, garantindo, além das tradicionais minas de ouro de sua região original, também para o Bambuque, a segunda maior jazida de ouro do Sudão ocidental. O império controlava as rotas comerciais transaarianas da costa sul ao norte. Os principais produtos comercializados eram: ouro, sal, peixe, cobre, escravos, couro de animais, noz-de-cola e cavalos. FIGURA 21 – AO REINOS E IMPÉRIOS DO SAHEL OCIDENTAL, SOBRE AS DIVISÕES POLÍTICAS ATUAIS UNIDADE 2 TÓPICO 4 113 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A 3.1.1 Mansa Musa FONTE: Disponível em: <http://www.metmuseum.org/TOAH/HD/mali/hg_d_mali_ d1map.jpg>. Acesso em: 20 maio 2010. Todo esse ouro garantiu aos reis do Mali uma riqueza sem precedentes, que seria exibida com orgulho por Mansa Musa I (1312-1332). Em 1324, Mansa Musa partiu em peregrinação a Meca com o óbvio objetivo de impressionar a todos com sua riqueza. Deve ter levado tributos especiais do império, em mantimentos, cavalos, dromedários e ouro. Quando teve tudo disposto, pôs-se em marcha, acompanhado por milhares de pessoas – grandes da corte, soldados, escravos – e com cem camelos apinhados de metal amarelo (SILVA, 2006). Foi tão grande o impacto da passagem de Mansa Musa que o ouro ficou desvalorizado no Cairo por diversos anos. Mas a visita teve o poder de literalmente colocar o Mali no mapa; a partir daquele momento, até os mapas europeus fariam menção ao “rex Melli”. O antecessor de Mansa Musa, chamado Abubakar II (sobrinho de Sundiata), protagonizou uma das explorações mais inusitadas de que se tem notícia: decidido a provar que o mundo não tinha limites, organizou duas expedições de exploração do Oceano Atlântico, as primeiras a navegar em direção à América do Sul. Mas a falta de recursos técnicos adequados (não havia bússolas, por exemplo) impediu o sucesso das expedições, que não conseguiram atravessar as tempestades do Oceano. FIGURA 22 – O REINO DO MALI EM SUA MAIOR EXTENSÃO UNIDADE 2TÓPICO 4114 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A IMP OR TAN TE! � Mansa Musa aparece no mapa-múndi do maiorquino Angelino Dulcert – vestido à europeia, com cetro e coroa, tendo a mão direita uma grande pepita de ouro, que parece mostrar e oferecer a um azenegue a camelo, ele está representado no mapa do também maiorquino Abrão Cresques, desenhado em 1375, o chamado Atlas Catalão de Carlos V da França. Sua fama era de um rei riquíssimo, a do senhor do ouro. FONTE: SILVA (2006) FONTE: Disponível em: <http://www.pitt.edu/~natrooms/africa/t4a_files/image007.jpg>. Acesso em: 20 maio 2010. A extensão territorial do Mali era extensa, o ouro ostentado pelo mansa provinha possivelmente dos armazéns onde ele e seus antecessores haviam acumulado os tributos das regiões auríferas e impostos derivados a distancia. Esse comércio, de acordo com Silva (2006), era essencial ao estado, à corte, ao rei. Pouco influía na vida simples das populações. Com a taxa do tráfico de ouro, cobre, sal, escravos, tecidos, noz-de-cola e outros, o mansa comprava no Magrebe os cavalos necessários aos seus exércitos, adquiria tecidos e outros artigos de luxo com que presenteava a aristocracia e os chefes vassalos, e dava, com pompa e prodigalidade, provas de seu poder. Enquanto o mansa esbanjava riquezas, quase todos os súditos – mandês, tucolores, saracolês, bambaras, jalofos ou songais – viviam em vilarejos, em casebres de barro socado, a FIGURA 23 – REI DO MALI – MANSA MUSA EM VISITA A MECA UNIDADE 2 TÓPICO 4 115 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A cultivar o milho, o sogro e o arroz, sem outro recurso que não o da vara de furar ou da enxada curta. Do tráfico transaariano só se beneficiavam do sal, que lhe era indispensável. O comércio que lhe interessava era o que fazia chegar o peixe seco e os cereais às regiões que não os produziam. (SILVA, 2006). Onde o Islão se impusera, chegaram turbantes e longos camisolões à marroquina. E, com seu uso, a tecelagem da lã e do algodão. No entanto, na maioria das regiões do império, anudez se cobria com simples tanga de couro. As cáfilas traziam do Mediterrâneo os artigos de luxo e alguns comerciantes letrados e doutores da fé, que em breve se adaptavam ao novo ambiente. Pelo Mali não se difundiram nem as ideias, nem a arte, nem as técnicas, nem os costumes florescentes no Magrebe e no Egito. As novidades ficavam restritas a diminuta elite, nos grandes centros urbanos. Nestes centros, o islame era a religião predominante e a gente andava vestida. Nas regiões do Mali, o maometanismo era credo de poucos – da nobreza, dos comerciantes, de algumas comunidades que haviam abandonado as crenças tradicionais e deixado de fazer sacrifícios aos deuses da natureza e aos antepassados. (SILVA, 2006). Após a morte de Mansa Musa, seus sucessores não conseguiram manter a unidade de um território tão extenso. Aos poucos, os conflitos locais e as intrigas palacianas foram colocando o reino do Mali em situação delicada. Segundo Silva (2006), o declínio do império do Mali foi lento, ao longo de todo o século XV. Perdida a obediência dos soniquês, dos tuculores, dos songais e de outros povos que dele faziam parte, o Mali foi se reduzindo, ao norte, às suas antigas dimensões de país dos maliquês. Para o sudoeste, continuou a expandir-se, a esforçar-se para conservar o controle sobre o comércio do ouro, da cola e do sal – este a ter por fonte não mais as minas do deserto, e sim as praias do Atlântico. A unidade que o Sundiata dera aos mandingas vai custar a perde-se: não deixará de existir senão nos últimos dias do século XVI, e sobre um território bem mais amplo do que o tradicional, pois não se perderam as áreas colonizadas pelos malinquês nos rios Gâmbia e Casamansa. Mesmo ao norte, sobre os bancos do Níger e do Bani o mansa conservará, por algum tempo, entre os bambaras, muitos vassalos. 3.1.2 As estruturas do Reino do Mali Ao contrário do antigo império de Gana, em que os muçulmanos eram estrangeiros bem recebidos, o império do Mali contou, desde cedo, com líderes convertidos. Isso não parece significar, no entanto, que eles fossem muçulmanos fervorosos, ou pelo menos que seguissem estritamente as regras da religião: Mansa Musa, de acordo com cronistas, desrespeitava preceitos do Alcorão (como o de ter apenas quatro mulheres) e era comum o consumo de carnes proibidas aos féis. Ao mesmo tempo, o rei era tratado em sua corte como se fosse um UNIDADE 2TÓPICO 4116 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A deus, o que remetia às crenças tradicionais. No entanto, há igualmente demonstrações de fervor religioso entre eles. Algumas etnias, como os soninquês e os diúlas, que estavam em contato há mais tempo com o Islã, exibiam grande devoção. Por terem sido desligados de suas terras originais e se dedicarem ao comércio, eram sempre candidatos mais fortes à fé muçulmana. O império do Mali também diferia de Gana em um aspecto importante: era um império que congregava muito mais grupos étnicos distintos. Essa característica, aliada à enorme extensão territorial do império, tornava bastante complexa a sua administração. A solução encontrada foi a descentralização: as cerca de quatrocentas cidades tinham suas administrações próprias e os domínios fronteiriços eram, muitas vezes, apenas reinos tributários ou protetorados, sem uma subordinação mais estrita ao imperador. Toda essa flexibilidade favorecia enormemente o comércio transaariano, ao dar estabilidade ao império. Desta forma, o Mali conseguiu atingir uma prosperidade sem precedentes até aquele momento. Alguns cronistas afirmam que este teria sido o império mais rico do mundo, em sua época. FONTE: Disponível em: <http://www.ricardocosta.com/pub/images/imperiosnegros_ arquivos/36.%20Mali%20e%20seus%20vassalos.jpg>. Acesso em: 20 maio 2010. 3.2 O IMPÉRIO SONGHAI DE GAÔ O povo songhai havia criado, já no século XII, um reino centrado na cidade de Gaô, que por sua localização geográfica favorável, nas margens do rio Níger, tornara-se mais importante do que a antiga cidade de Kukya. As caravanas de sal que atravessavam o deserto garantiam, assim como em Gana e no Mali, a prosperidade do reino. Sabe-se que o Dia (rei) Kossoi se FIGURA 24 – REINOS VASSALOS DO IMPÉRIO MALI UNIDADE 2 TÓPICO 4 117 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A converteu ao Islamismo em 1019, mas seu povo manteve as crenças tradicionais. No final do século XIII, o reino do Mali conquistou e incorporou Gaô, onde Mansa Musa I construiu uma mesquita, ao retornar de sua peregrinação. Como vimos, a estrutura do reino do Mali era flexível, de modo que os governantes de Gaô se tornaram apenas tributários dos mandingas, mantendo a autoridade sobre o território. Mas a situação começou a mudar quando a dinastia Sunni tomou o poder em Gaô e passou a dedicar-se à expansão territorial. Aos poucos, os ataques-relâmpago sobre o Mali deram lugar a uma política de expansão que levou os songhais a conquistarem grande parte da antiga potência regional, que ficou reduzida à sua porção ocidental. FONTE: Disponível em: <http://www.metmuseum.org/TOAH/HD/sghi/hg_d_sghi_ d1map.jpg>. Acesso em: 20 maio 2010. A posição geográfica favorável, a combinação de uma agricultura eficiente e um comércio rentável permitiram, assim como haviam feito com os reinos predecessores, que o Gaô dominasse a região. A organização administrativa do império era bastante original: ao contrário dos reinos de Gana e do Mali, que eram governados como confederações. Em Gaô, o poder se concentrava nas mãos do rei e uma estrutura hierárquica rígida e centralizada foi estabelecida. Cissoko (apud UNESCO, 1982) compara a estrutura de Gaô à das monarquias europeias, que se formavam na mesma época, e considera que a centralização administrativa e a monarquia absoluta davam-lhe “um sabor moderno”. Ao mesmo tempo, as cidades comerciais, predominantemente muçulmanas, gozavam de uma autonomia maior para determinar seus destinos. Já a população songhai, por sua vez, não aceitou a nova religião, como os vizinhos malinquês haviam feito. Até o século XVI, a população de Gaô mantinha suas crenças tradicionais e a forma de Islamismo praticado pelo rei, chocava e enfurecia os muçulmanos. Isso não impediu, contudo, que uma elite muçulmana letrada se dedicasse a desenvolver os estudos religiosos. A prosperidade da região atraía estudiosos e o ambiente de tolerância FIGURA 25 – O IMPÉRIO SONGHAI (DE GAÔ) EM SUA MÁXIMA EXTENSÃO UNIDADE 2TÓPICO 4118 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A religiosa cultivado pelos reis permitia a livre circulação de ideias. Desse modo, a região do Sahel originou uma corrente humanista que exerceu grande influência sobre todo o mundo muçulmano a partir do século XV. O maior centro difusor de cultura estava em Timbuctu, onde surgiu uma importante universidade que chegou a comportar mais de 180 escolas corânicas. Ensinava-se teologia, exegese, hadiths (tradições) e jurisprudência, juntamente com gramática, retórica, lógica, astronomia, história e geografia. Mas toda essa tradição não tinha bases na sociedade local e estava restrita a uma elite islamizada. Por esse motivo, praticamente nada sobreviveu para a posteridade, com a destruição das cidades em que se desenvolvia. 3.3 O SUDÃO CENTRAL: O KANEM-BORNU E OS HAÚÇAS 3.3.1 O Kanem-Bornu 3.3.2 Os Estados Hauçás Ao redor do lago Chade surgiram povoações em que se encontravam nômades e sedentários, pelo menos, a partir do ano 800 d.C. Os primeiros povos a criarem um reino na região eram provavelmente negros, de acordo com os indícios que se podem retirar de diversos relatos. A região, que ficou conhecida como Kanem, recebeu influência do Islamismo a partir do final do séculoXI – no entanto, assim como nas demais regiões do Sahel, a religião não foi adotada pela população, que manteve suas crenças tradicionais. No século seguinte, os reis do Kanem promoveram uma política de conquistas, chegando até os estados hauçás, no oeste, e até as montanhas do Tibesti, ao norte. No século XIV, uma guerra civil de origem religiosa levou à ocupação do Bornu, no lado oposto do lago Chade. A região do Kanem-Bornu tornou-se, com as conquistas sobre os hauçás um dos maiores reinos africanos da época. Sua influência estendia-se até a região de Camarões, ao sul, e chegava mesmo ao Egito e à Tripolitânia (atual Líbia), ao norte. Assim como no Mali e no Songhai, uma das atividades mais lucrativas, e motivo de boa parte da expansão do Kanem-Bornu, era a captura e comércio de escravos destinados aos muçulmanos. Os povos hauçás viviam em uma região estratégica: a meio caminho entre as rotas comerciais do Songhai e do Kanem-Bornu, o que lhes possibilitava ganhos econômicos, mas tornava a defesa uma das suas principais preocupações. As cidades hauçás, por isso, tornaram-se verdadeiras fortalezas, que garantiam proteção aos camponeses quando dos UNIDADE 2 TÓPICO 4 119 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A 4 A ÁFRICA ORIENTAL E O ISLÃ 4.1 OS CONFLITOS RELIGIOSOS NA ETIÓPIA frequentes ataques dos povos vizinhos. Essa segurança permitiu o amplo desenvolvimento do comércio, que atravessou um período de prosperidade durante o século XV. Nessa época, os hauçás parecem ter adotado uma forma bastante sincera de Islamismo, o que não deixava de ser incomum para a região. Mas as principais cidades hauçás – Zaria, Cano e Katsina – envolveram-se em constantes lutas pela hegemonia local, o que terminou por enfraquecer todas elas. Desse modo, os estados hauçás, já intrinsecamente frágeis por sua reduzida dimensão e sua posição estratégica, acabaram sucumbindo aos estados vizinhos, mais fortes, de Bornu e do Songhai. Neste item, estudaremos os conflitos religiosos na Etiópia entre cristãos e muçulmanos e a civilização Swahilli, principalmente sua cultura e idioma. A atitude inicial dos reinos etíopes com o islamismo foi bastante cordial. Diz a tradição que, quando Maomé anunciou sua missão ao mundo, apenas o rei da Etiópia respondeu, saudando-o; apesar de não ter continuado cristã, a Etiópia foi entendida pelos muçulmanos como um local contra o qual não se poderia fazer a guerra santa. Essa cordialidade, no entanto, não durou muito: preocupados com o avanço etíope no Mar Vermelho, os califas conquistaram a região e relegaram a Etiópia a um reino interior. Ao mesmo tempo, a região entrou em conflito com o patriarcado cristão de Alexandria e uma dinastia de reis não salomônicos passou a governar. O mais célebre desses reis foi Lalibela, que ordenou a construção de várias igrejas escavadas na rocha – formava-se um cubo pela extração da rocha ao redor, formando-se um fosso. O resultado é um edifício robusto e impressionante, que demonstrava uma elevada habilidade arquitetônica. UNIDADE 2TÓPICO 4120 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A FONTE: Disponível em: <http://saiporai.files.wordpress.com/2009/09/277.jpg>. Acesso em: 20 maio 2010. 4.2 A CIVILIZAÇÃO SWAHILLI 5 O COMÉRCIO NA ÁFRICA ISLÂMICA Próximo dali, na costa oriental africana (a região conhecida como Chifre da África, na Somália, e as regiões dos atuais Quênia e Tanzânia), os árabes também serviam como intermediários do comércio de ouro e escravos vindos das bacias do Limpopo e do Zambeze. Por volta do ano 1000, instalaram-se nas ilhas litorâneas, especialmente em Quíloa. O tipo de comércio que realizavam não levou sua influência direta para o interior do continente. No entanto, no litoral, começou a surgir uma cultura híbrida, composta por uma população mestiça que se intitulava xiraze e que falava um idioma de origem banta com grande influência árabe: o swahilli (ou suaíle). No Tópico 3 desta unidade, estudamos sobre as relações comerciais em África, percebemos a importante relação de comércio com os árabes e a presença islâmica neste continente. Vimos que, o período que corresponde aos séculos XII a XVI significaram, para a África, um período generalizado de progresso econômico. A presença do Islamismo, em grande parte do continente, como vimos, permitiu um grande desenvolvimento, não apenas econômico, mas também nos planos político e cultural. Sob a influência muçulmana, surgiram novos e poderosos reinos, um intercâmbio cultural muito intenso e um maciço aumento populacional. A África aparecia, nesse período, como uma gigantesca e próspera fronteira econômica – situação que seria completamente quebrada a partir do século XVI, com a presença europeia. As principais rotas comerciais da África pré-colonialista eram as percorridas pelas FIGURA 26 – A IGREJA DE SÃO JORGE, EM LALIBELA (ETIÓPIA) UNIDADE 2 TÓPICO 4 121 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A caravanas cameleiras através do deserto (no Tópico 3, apresentamos um mapa das rotas comerciais transaarianas). A principal dessas rotas, mencionada por Al Yakubi no Kitab al Boudan (o Livro dos Países), ligava Sijilmassa, no Marrocos, a Walata e Timbuktu, no Sahel. Essa rota acabou prevalecendo sobre as rotas para Awdaghost, que eram utilizadas durante o apogeu de Gana. A razão principal dessa mudança – que certamente ajudou o reino do Mali a consolidar seu domínio sobre o Sudão ocidental – era a exploração das minas de sal-gema de Teghazza, comprado a peso de ouro. Com o tempo, as necessidades das caravanas levaram as rotas mais para oeste. Assim, Wargla tomou o posto de Sijilmassa como principal destino caravaneiro. Outro produto importante era o cobre, extraído do Wadai e do Darfur e amplamente comercializado no Kanem-Bornu – juntamente, é claro, com escravos. Este produto, aliás, era praticamente a única constante no comércio caravaneiro; acompanhava tanto os carregamentos de peles, marfim, goma, pimenta e noz-de-cola vindos do Sahel Ocidental quanto as cargas de sal, ferro, cobre, tecido etc., vindas do Magrebe e do Leste. Para compreendermos um pouco mais sobre a relação do Islão e o tráfico de escravos em África, vamos ler com muita atenção o texto do historiador Paul E. Lovejoy, em que o autor sinaliza que a escravidão islâmica ocorridas nos séculos VIII, IX e X traziam consigo a cultura de escravizar sociedades de parentesco. As guerras santas que expandiam o Islã aprisionavam escravos, e justificavam o ato como base na religião. O uso dado aos escravos eram os seguintes: nos serviço militar, administrativo e doméstico. Em algumas sociedades islâmicas, os escravos também executavam tarefas que eram mais diretamente relacionadas com a produção e o comércio. Na tradição islâmica, a escravidão era vista como um meio de converter os não mulçumanos. Esses diferentes usos dos escravos, a distinção mais clara entre escravos e livres e o emprego ocasional de cativos nas atividades produtivas demonstram uma diferença nítida entre a escravidão nas sociedades baseadas no parentesco e a escravidão da lei e da tradição islâmicas. Se a relação da escravidão do africano no mundo islâmico atendia a um propósito que não tinha como eixo condutor a obtenção de lucros e nem a exploração da mão de obra. No mundo Atlântico, o comércio de escravos não atenderá a mesma lógica. Na próxima unidade, estudaremos o tráfico de africanos e o mundo Atlântico. Indicamos o filme Amistad como atividade. A indicação deste filme se justifica pela necessidade de buscarmos visualizar alguns elementos presentes na estrutura do tráfico entre a África e a América como: a captura de africanos, o transporte, a viagem pelo Atlântico,entre outros. UNIDADE 2TÓPICO 4122 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A DIC AS! AMISTAD (AMISTAD, EUA, 1997) DIREÇÃO: STEVEN SPIELBERG O filme é baseado em uma história real ocorrida em 1839. Nessa data, os escravos que eram transportados da África se rebelam e assumem o comando do navio. Entretanto, como desconheciam os mecanismos de navegação, numa frustrada tentativa de voltar FONTE: Disponível em: <http://faceaovento.files.wordpress.com/2009/11/ amistad-jpeg.jpg>. Acesso em: 20 maio 2010. LEITURA COMPLEMENTAR O FATOR ISLÂMICO A existência de escravos em sociedades que enfatizavam o parentesco e a dependência pessoal permitia a sua integração numa vasta rede de escravidão internacional. Essa integração provavelmente já se difundia no passado, mas apenas para aquelas áreas mais perto da bacia do Mediterrâneo, do golfo Pérsico e do oceano Índico. Nos séculos VIII, IX e X, o mundo islâmico tinha se tornado o herdeiro dessa longa tradição de escravidão, continuando o padrão de incorporar escravos negros da África às sociedades ao norte do Saara e ao longo das costas do oceano Índico. Os Estados muçulmanos desse período interpretavam a antiga tradição escravista de acordo com a sua nova religião, mas muito dos usos dados aos escravos eram os mesmos de anteriormente – eles eram utilizados nos serviços militares, administrativos e domésticos. As designações, os tratamentos das concubinas e outras características da escravidão foram modificados, mas a função dos cativos na política e na sociedade era em grande parte a mesma. Apesar da antiga tradição, a principal preocupação aqui é com a consolidação da escravidão no seu contexto islâmico, pois durante mais de setecentos anos antes de 1450, o mundo islâmico era praticamente o único eixo de influência externa na economia da África. FIGURA 27 – CAPA DO FILME AMISTAD ao seu país de origem, acabam sendo capturados por um navio americano na costa dos Estados Unidos. Talvez o que mais chame a atenção no filme seja a forma brutal em que os negros eram tratados durante o transporte transatlântico. Os escravos eram mantidos sob péssimas condições. Recebiam pouca comida e água, sofriam estupros, e eram mantidos acorrentados em espaços muito pequenos. Além disso, muitos contraiam doenças que, naquelas condições, eram fatais. Poucos conseguiam sobreviver à viagem. UNIDADE 2 TÓPICO 4 123 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A Inicialmente os escravos eram prisioneiros capturados nas guerras santas que expandiram o Islã da Arábia pelo norte da África e através da região do golfo Pérsico. A escravização era justificada com base na religião, e aqueles que não eram mulçumanos eram legalmente passiveis de escravização. Antes que os primeiros califados fossem estabelecidos, os escravos vinham em grande parte das áreas de fronteira onde a guerra santa era ainda travada. Assim, uma antiga divisão foi estabelecida entre as terras islâmicas centrais e a fronteira, e o grau de especialização passou a definir este sistema de escravidão. As províncias islâmicas centrais constituíam o mercado para os escravos; o abastecimento vinha das regiões de fronteira. Os cativos não eram necessariamente negros, embora os negros sempre constituíssem uma porção significativa da população escrava. Eles também vinham da Europa Ocidental e das estepes do sul da Rússia. Eram muitas vezes prisioneiros de guerra, não muçulmanos que tinham resistido à expansão do islamismo. A escravidão era concebida como uma espécie de aprendizagem religiosa para os pagãos. Anteriormente, aos judeus e cristãos residentes era concebido um status especial de “pessoas do livro”, sendo reconhecidos como homens livres sujeitos a taxas e limitações especiais sobre as liberdades civis, mas livres de escravização. Alguns cristãos eram escravizados durante as guerras, principalmente na Europa Ocidental, mas a maioria dos escravos vinha de outros lugares. A natureza da demanda por escravos revela alguns aspectos importantes do comércio. As mulheres e crianças eram preferidas em maior número que os homens. Tinham também mais probabilidade de serem incorporadas à sociedade mulçumana. Os meninos, fossem eles eunucos ou não, eram treinados para o serviço militar ou doméstico, e alguns dos mais promissores eram promovidos. As mulheres também se tornavam domésticas e as consideradas mais belas eram colocadas em haréns, um fator que influenciava fortemente os preços de escravos. Os homens adultos e a mulheres menos atraentes eram destinados às tarefas mais baixas e trabalhosas, e sua população tinha que ser constantemente reabastecida através de novas importações. Essa escravidão não era uma instituição autoperpetuadora, e aqueles nascidos no cativeiro formavam uma parcela relativamente pequena da população escrava. A maioria dos filhos de escravos era assimilada pela sociedade mulçumana, apenas para serem substituídos por novas importações. Emancipação, concubinato, servidão doméstica, postos políticos e posição militar também dificultavam o estabelecimento de uma classe de escravos com uma distinta consciência de classe própria. A raça também era minimizada como um fator na manutenção da condição servil. A exigência religiosa de que os novos escravos fossem pagãos e a necessidade de importações contínuas para manter a população escrava tornou a África negra uma importante fonte de escravos para o mundo islâmico. Como a África subsaariana inicialmente estava além das terras islâmicas, os mulçumanos e outros comerciantes procuravam por escravos na África. Guerras locais, criminosos condenados, sequestros e provavelmente dívidas eram fontes de escravos para os comerciantes visitantes, que reuniam os cativos em pequenos grupos para transporte através do mar Vermelho e subindo a costa oriental africana, ou se reuniam para formar caravanas para a marcha através do Saara. O comércio de exportação foi relativamente modesto antes do século XV e na verdade não se expandiu consideravelmente até o século XIX. As exportações chegavam a uns poucos UNIDADE 2TÓPICO 4124 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A milhares de escravos por ano na maioria das vezes, e como as áreas afetadas eram quase sempre muito extensas o impacto local era geralmente minimizado. Na tradição islâmica, a escravidão era vista como um meio de converter os não muçulmanos. Assim, uma das tarefas do senhor era a instrução religiosa, e teoricamente os muçulmanos não podiam ser escravizados, embora na prática isso fosse muitas vezes violado. A conversão não levava automaticamente à emancipação, mas a assimilação à sociedade do senhor, julgada de acordo com a observância à religião, era considerada um pré-requisito para a emancipação e normalmente garantia melhor tratamento. Um aspecto da tradição religiosa e da tradição legal era que a emancipação, como um ato de libertação dos escravos, e de mudança da sua condição, estava claramente definida. Nas sociedades baseadas no parentesco, a emancipação era um processo reconhecido pela integração progressiva de sucessivas gerações através do casamento, até que as pessoas pertencessem integralmente ao grupo. Muitas vezes, não havia ato de emancipação no sentido exato da palavra. Na prática islâmica, havia. As funções desempenhadas pelos escravos eram também diferentes, em parte porque as estruturas das sociedades islâmicas eram frequentemente de uma escala maior que entre os grupos de parentesco. Nos grandes estados islâmicos da bacia do Mediterrâneo, por exemplo, os cativos eram usados no governo e no serviço militar, ocupações que não existiam em sociedades sem estado. Oficiais e soldados escravos muitas vezes mostravam-semuito leais por causa da dependência pessoal para com o seu senhor. Os eunucos formavam uma categoria especial de escravos que não parece ter sido característica da maioria das sociedades não muçulmanas baseadas no parentesco. Os eunucos, que podiam ser utilizados em funções administrativas e como fiscais dos haréns, eram particularmente dependentes, sem nem mesmo a chance de estabelecer interesses que fossem independentes do seu senhor. Sob a influência do Islã, a prática se difundiu pela África subsaariana, junto com o emprego de escravos no exército e na burocracia. A visão islâmica das mulheres escravas também era diferente daquela baseada no parentesco. A lei islâmica limitava o número de esposas a quatro, embora apenas as considerações materiais e os caprichos pessoais limitassem o número de concubinas. Tanto em contextos islâmicos quanto em não islâmicos, os homens podiam ter quantas mulheres pudessem sustentar, mas a determinação legal era diferente. O costume islâmico enfatizando uma linha mais clara entre escravos livres, permitia a emancipação de concubinas que tivessem filhos de seu amo. Legalmente, elas tornavam-se livres com a morte de seu senhor, mas não podiam ser vendidas uma vez que tivessem filhos. Na prática, também as esposas de origem escrava das sociedades baseadas no parentesco raramente eram vendidas, e essa posição aumentava a probabilidade de que se tornassem membros do grupo familiar, e, por conseguinte livres. Os termos de referência diferiam, mas a prática era bastante similar. Em muitas sociedades islâmicas, os escravos também executavam tarefas que eram mais diretamente relacionadas com a produção e o comércio. Certamente a escala de atividade UNIDADE 2 TÓPICO 4 125 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A econômica nas bacias do Mediterrâneo e o oceano Índico envolvia maior comércio, um nível mais alto de desenvolvimento tecnológico e a possibilidade de exploração mais especializada do trabalho escravo do que na maior parte da África negra até a época recente. Na verdade, aos escravos frequentemente eram designadas tarefas que não eram diretamente produtivas, as quais, pelo contrário, alimentavam uma hierarquia política e social que explorava uma população de camponeses livres, artesãos e populações servis não escravas. Embora os escravos fossem mais frequentemente utilizados em funções domésticas (incluindo sexuais) ou no governo e no serviço militar, ocasionalmente eles eram empregados na produção, como nas minas de sal da Arábia, da Pérsia e do norte do Saara. Outros cativos eram utilizados nos empreendimentos agrícolas em larga escala e na fabricação artesanal. A frequência e a escala desse trabalho, muito embora não fosse a principal relação de produção, eram bastante diferentes da utilização de cativos nas economias menos especializadas das sociedades africanas baseadas no parentesco. Esses diferentes usos dos escravos, a distinção mais clara entre escravos e livres e o emprego ocasional de cativos nas atividades produtivas demonstram uma diferença nítida entre a escravidão das sociedades baseadas no parentesco e a escravidão da lei e da tradição islâmicas. A diferença mais importante era que o escravismo nas terras islâmicas tinha passado por uma transformação parcial do tipo que Finley identifica como significativa na institucionalização da escravidão. Um sistema econômico plenamente baseado no trabalho escravo não tinha aparecido na maior parte do mundo islâmico entre 700 e 1400, apesar da importância dos cativos administrativos e militares na manutenção da sociedade islâmica. Concubinas e escravos domésticos eram comuns e afetavam a natureza do casamento como uma instituição e a organização das famílias abastadas. A adaptação de práticas similares na África subsaariana igualmente envolveu mudanças. FONTE: Lovejoy (2002) UNIDADE 2TÓPICO 4126 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A Neste tópico, você estudou que: • O Islamismo exerceu uma profunda influência sobre as populações africanas, tanto ao norte como ao sul do Saara. • O avanço muçulmano pelo Continente Africano levou à conquista de toda a região do Egito, da Tripolitânia (Líbia), Ifriqyia (Tunísia) e Magrebe (Marrocos) nos primeiros anos de existência da religião. • Ao sul do Saara, a presença dos comerciantes muçulmanos incentivou a formação de reinos, como o de Gana, Mali, Gaô e Kanem-Bornu, que prosperaram com o comércio de ouro, sal, noz-de-cola e escravos. • Uma demonstração da riqueza do Mali foi dada por seu rei Mansa Musa I, que, em sua peregrinação a Meca, levou uma enorme comitiva e gastou tanto ouro no Cairo que chegou a manter desvalorizada a moeda local por vários anos. • A região da Etiópia passou a sofrer com os conflitos entre os cristãos coptas e os muçulmanos. • No Chifre da África, a ocupação árabe, a partir do século X, deu origem à cultura e ao idioma swahilli. • O uso dado aos escravos eram os seguintes: no serviço militar, administrativo e doméstico. • Os cativos não eram necessariamente negros, embora os negros sempre constituíssem uma porção significativa da população escrava. • Assistir ao filme Amistad é fundamental para o estudo da próxima unidade. RESUMO DO TÓPICO 4 UNIDADE 2 TÓPICO 4 127 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A Exercite seus conhecimentos adquiridos, resolvendo as questões a seguir: 1 Elabore um texto descrevendo as estruturas dos impérios do Mali. 2 Qual é a principal diferença entre os estados hauçás e seus vizinhos do Gaô e do Kanem-Bornu? 3 Que papel teve o comércio intercontinental para a África até o século XVI? 4 Observe a história em quadrinhos abaixo. Ela representa um fato histórico do reino do Mali. Descreva esse fato indicando as implicações sobre os povos africanos. AUT OAT IVID ADE � FONTE: Disponível em: <http://www.omurtlak.com/resim. php?resim=http%3A//www.chestercomix.com/images/ comics/ancient-africa-2.gif>. Acesso em: 20 maio 2010. 5 Leia o texto “O Fator islâmico” e em seguida elabore um pequeno texto identificando a condição do escravo neste período. FIGURA 28 – A VIAGEM DE MANSA MUSA UNIDADE 2TÓPICO 4128 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A AVAL IAÇÃ O Prezado(a) acadêmico(a), agora que chegamos ao final da Unidade 2, você deverá fazer a Avaliação referente a esta unidade. H I S T Ó R I A D A Á F R I C A UNIDADE 3 ESCRAVIDÃO: A ÁFRICA ESCRAVISTA E ESCRAVIZADA OBjETIVOS DE APRENDIZAGEM A partir desta unidade você será capaz de: • compreender o comércio entre Europa, África e América. Comércio este que criou uma comunidade transnacional; • refletir sobre a estrutura do comércio de escravos na África, para que se possa compreender as relações de troca que se estabeleceram entre africanos e europeus; • refletir sobre as transformações ocorridas a partir do tráfico de escravos no continente africano e também no mundo além África; • compreender os mecanismos que retiraram da África milhares de pessoas e as inseriram em uma nova realidade social, econômica e cultural; • visualizar os números do tráfico atlântico; • compreender a circulação do africano enquanto escravo na sociedade brasileira; • compreender que os povos africanos inseridos no mundo atlântico não foram somente receptores de elementos culturais foram também, transmissores e mantenedores desta cultura; • avaliar as contribuições da cultura africana na construção da sociedade e da cultura no Brasil. PLANO DE ESTUDOS Esta unidade está dividida em cinco tópicos. Ao final de cada um deles, você encontrará atividades que o(a) ajudarão a refletir e a fixar os conhecimentosabordados. TÓPICO 1 – O ESCRAVO NA ÁFRICA TÓPICO 2 – A RELAÇÃO DO COMÉRCIO DE ESCRAVOS ENTRE EUROPEUS E AFRICANOS TÓPICO 3 – TRANSFORMAÇÕES NAS SOCIEDADES AFRICANAS DECORRENTES DO COMÉRCIO ATLÂNTICO TÓPICO 4 – A DIÁSPORA AFRICANA TÓPICO 5 – OS AFRICANOS NO BRASIL H I S T Ó R I A D A Á F R I C A H I S T Ó R I A D A Á F R I C A A escravidão é uma ação praticada desde a antiguidade clássica até a época recente, tornando-se um importante fenômeno da história. Segundo Lovejoy (2002), a África esteve intimamente ligada a esta história, tanto como fonte principal de escravos para as antigas civilizações, o mundo Islâmico, a Índia e as Américas, quanto como uma das regiões onde a escravidão era comum. De maneira geral, a escravidão se expandiu e se tornou o eixo central da economia africana. De acordo com o mesmo autor, a expansão escravista ocorreu em dois níveis ligados ao comércio exterior. Em primeiro lugar, a escravidão ocupou uma área geográfica cada vez maior, difundindo-se para fora daquelas regiões diretamente envolvidas com comércio exterior de cativos. Em segundo lugar, o papel dos escravos na economia e na sociedade tornou-se crescentemente importante o que resultou em transformações da ordem social, econômica e política. Não que a escravidão não existisse na África antes da chegada dos europeus, pelo contrário. Nas unidades anteriores sinalizamos que a estrutura escravista já era prática pertinente às diversas sociedades africanas. Existem registros de escravidão em alguns reinos africanos ao sul do Saara, bem como nas regiões do norte do continente que faziam parte do mundo islâmico. Mas essa escravidão era de um tipo completamente diferente da que veio a se instalar dali por diante. Não é possível comparar os dois sistemas em termos de quantidade de cativos, natureza das atividades que desempenhavam e crueldade de tratamento que recebiam. Tampouco se podem igualar as consequências que trouxeram, falando demográfica e sociologicamente. A escravidão moderna, promovida pelos europeus, causou danos muito mais severos ao continente – dos quais a África até hoje não se recuperou adequadamente. No entanto, a crise do Continente Africano não pode ser atribuída exclusivamente aos europeus. Os próprios africanos se tornaram parte integrante do comércio de escravos que se tornou cada vez mais lucrativo. Também alguns reinos muçulmanos, até então satisfeitos com um papel de intermediários comerciais, lançaram-se em campanhas de conquista que O ESCRAVO NA ÁFRICA 1 INTRODUÇÃO TÓPICO 1 UNIDADE 3 UNIDADE 3TÓPICO 1132 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A desarticularam antigos reinos ao sul do Saara. Embora isso não justifique nem diminua o impacto nefasto da presença europeia (antes pelo contrário, no caso dos reinos africanos fornecedores de escravos), é uma ressalva importante a ser feita, a fim de evitar que se caia no maniqueísmo de se atribuir todos os males da África exclusivamente aos europeus, embora seja deles grande parte da responsabilidade. Desta forma, esta unidade tratará do processo de escravidão buscando compreender o comércio entre Europa, África e América. Comércio este que criou uma comunidade transnacional que integrou os territórios dos dois lados do oceano Atlântico. Observe o mapa a seguir, ele indica a relação de um mundo sem fronteiras, unido pela mercantilização de humanos. FONTE: Disponível em: <http://2.bp.blogspot.com/_lOSe7CxJx6Q/SXk3YGdqqBI/ AAAAAAAAAfo/wGQD1RbW4dI/s400/Mapa+Escravos.jpg>. Acesso em: 23 maio 2010. 2 O CONCEITO DE ESCRAVIDÃO E ESCRAVISMO Antes de iniciarmos nossos estudos, vamos pensar sobre o que significa de fato, escravidão e escravismo. Aparentemente, não há grande dificuldade em compreendermos o primeiro termo (escravidão), pois ele parece se referir a uma situação em que seres humanos são tratados como mercadoria, como seres destituídos de autonomia e mesmo de vontade, livremente comprados e vendidos, e não tem qualquer direito reconhecido. No entanto, a realidade não é tão simples assim. Grande parte das sociedades humanas, ao longo da história, estabeleceu relações FIGURA 29 – AS ROTAS DO TRÁFICO DE ESCRAVOS AFRICANOS PARA AS AMÉRICAS UNIDADE 3 TÓPICO 1 133 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A 2.1 A SEMÂNTICA E A ESCRAVIDÃO entre seus membros que podem ser descritas como escravistas. Mas, justamente por isso, podemos imaginar que esse conceito tem servido a relações de dominação bastante diferentes entre si. Essa noção se torna fundamental quando estudamos a história da África, pois sem ela não podemos colocar no contexto correto uma afirmação que se costuma repetir sobre esse continente: havia escravidão na África desde antes da presença europeia, possivelmente desde tempos imemoriais. Essa frase, tomada em um contexto inadequado, traz muito mais danos do que benefícios, pois poderia servir para uma justificativa da escravidão europeia: já havia escravos por lá, os europeus não teriam feito nada de muito diferente do que já existia. Várias definições foram propostas para saber o que é ou não um escravo. No geral se aceita que uma pessoa destituída de seus direitos sociais, afastada de seu grupo de origem, obrigada a cumprir tarefas determinadas pelo seu senhor (quase sempre desagradáveis e penosas), passível de ser fisicamente castigada e, principalmente, vendida, é um escravo. Nessa perspectiva, um cativo só se torna escravo quando era comprado. (SOUZA, 2007). Já o escravismo é um conceito bem mais preciso. Refere-se a sociedades fundadas na utilização do trabalho escravo, dentre as quais as antigas colônias americanas são o exemplo mais bem-acabado. A apropriação do trabalho de outrem no interior de uma sociedade não faz com que ela seja definida como escravista, sendo necessário para isto que esta forma de exploração seja central para a economia em questão, como ocorreu no Brasil até o final do século XIX. O continente africano não conheceu o escravismo, talvez com exceção apenas de algumas economias monocultoras do século XIX, voltadas para a exportação de mercadorias como óleo de palmeira (dendê), amendoim, café, algodão e cravo. Salvo esses poucos exemplos, decorrentes da atuação de comerciantes europeus em algumas regiões, ou de sociedades da Antiguidade, como o Egito, o trabalho escravo não foi o motor das sociedades africanas (SOUZA, 2007). Assim, o sentido da escravidão nas Américas constitui-se em um processo dessemelhante em número e uso em relação ao escravo em África. O antropólogo francês Meillassoux (1995) estudou a fundo os significados da escravidão, especialmente na África, em seu clássico “Antropologia da escravidão: o ventre de ferro e dinheiro”, leitura obrigatória para os que desejam entender esse fenômeno. O autor apresenta os diferentes significados da escravidão e coloca no contexto correto a escravidão africana pré-moderna (ou pré-islâmica) com relação a outros tipos de escravidão. Meillassoux (1995) parte do conceito ocidental de escravidão, para demonstrar o quanto ele é limitado e contraditório. Para ele, duas categorias no pensamento ocidental são utilizadas para definir escravidão: o direito e a semântica. Em outras palavras, a escravidão se tornou, na UNIDADE 3TÓPICO 1134 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A cultura ocidental, um conceito e uma forma de exploração prevista em lei. O grande erro que se costuma cometer é aplicar esse conceito, da forma como ele é entendido pela cultura ocidental, as formas de exploração existentes em outras culturas, utilizando-o indiscriminadamente para descrevê-las. Segundo ele: Nas sociedades africanas, como nas sociedadesantigas (Vidal-Naquet, 1965-1967), os termos traduzidos como “escravo” também podem se aplicar a categorias mais extensas, às vezes a todos aqueles que estão ou estiveram em uma relação qualquer de sujeição leiga ou religiosa com um parente mais velho, um soberano, um protetor, um líder etc. Geralmente, esses termos sig- nificam subjugado, submetido, dependente, servo, algumas vezes discípulo. Em contrapartida, a maioria das sociedades escravagistas possui vocabulário extenso, recobrindo diversas condições de sujeição que não têm mais equi- valentes em nossas línguas e que traduzem uniformemente como “escravo”. (MEILLASSOUX, 1995, p. 9). O problema está no termo escravidão, presente nos idiomas ocidentais, que é abrangente demais para descrever tantas relações distintas e complexas, sobretudo quando não havia, de fato, um interesse em compreender cada sociedade dentro de suas próprias especificidades culturais. Com isso, criou-se um conceito pouco útil, que serve mais para encobrir do que para revelar e pior, dotado de uma forte carga ideológica negativa. 2.2 O DIREITO E A ESCRAVIDÃO Mesmo em relação ao direito a confusão existe. A noção que se tem comumente de escravo, como objeto de direito, é de uma mercadoria, que pode ser comprada e vendida livremente, a cargo de seu proprietário, um objeto. No entanto, Meillassoux (1995), argumenta que isso nunca aconteceu. Todas as atividades que os escravos executam, por mais simples que sejam, sempre fazem referência à sua humanidade e pressupõem inteligência. Até porque, do contrário, seria mesmo impossível conseguir sua obediência. Ou seja, o escravo- objeto é uma ficção ideológica, que se transformou em uma ficção jurídica quando teve que ser colocado em lei. Por outro lado, também é um equívoco comum definir-se a escravidão simplesmente a partir da subordinação a um senhor. Os escravos não são os únicos subjugados – também as mulheres, os filhos, os agregados e outros estão, em diversas sociedades, submetidos ao poder absoluto do chefe da família e, portanto, podem ser até mesmo espancados e mortos por ele. Em contrapartida, muitos escravos gozam de privilégios, acumulam poder e propriedades, são letrados e chegam a ter, eles próprios, seus escravos. UNIDADE 3 TÓPICO 1 135 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A 2.3 PARENTES E ESTRANHOS 3 TORNAR-SE ESCRAVO NA ÁFRICA O que faria, então, de alguém um escravo, na África Ocidental? Como foi a escravidão antiga, aquela que “já existia” quando os europeus chegaram? Meillassoux (1995) aponta que as sociedades tradicionais, baseadas na agricultura e na unidade dos clãs, tratavam a todos os seus membros – que eram ligados por laços de parentesco – como iguais. Isso acontecia porque cada membro era um ativo produtor de alimentos e contribuiria para reproduzir a própria sociedade e era nisso que consistia sua vinculação com a comunidade. Mas as comunidades não poderiam ser muito fechadas, para se evitar a endogamia. Assim, era sempre necessário recrutar estrangeiros, que pudessem contribuir para reconstruir seus contingentes. Aqui, no entanto, há uma diferença entre o papel que uma mulher e um homem podem desempenhar: cada mulher aumenta muito o potencial de reprodução da sociedade, o que não acontece com um homem. Se, portanto, não é como reprodutor que o homem tem sua principal utilidade – a menos que seja adotado por algum membro da comunidade –, ele deverá se tornar um produtor. Como ele não possui vinculação com nenhuma família, torna-se privado de direitos, e seu trabalho será apropriado por toda a comunidade. Ele é, em tese, um escravo, ou seja, incapaz de ser parente. Porém, as sociedades escravistas não passam a existir com um escravo ou dois. Isso só ocorre quando há um contingente tão grande deles, renovável de forma contínua e institucional, a ponto de o seu trabalho permitir liberar toda uma classe de membros da comunidade. Essa classe passaria, então, a dedicar-se à exploração do trabalho dos escravos e à sua reprodução – geralmente por meio de guerras periódicas ou a compra regular (exemplos são, respectivamente, as escravidões romanas e árabes). Claro que isso está fora do alcance de sociedades de economia de subsistência. É apenas em economias integradas ao mundo exterior que isso se torna possível. (MEILLASSOUX, 1995). A forma mais simples de conseguir escravos eram as guerras, com os prisioneiros sendo postos a trabalhar ou sendo vendidos pelos vencedores. Todavia, um homem podia se tornar escravo caso perdesse seus direitos de membro da sociedade. Geralmente, esses direitos eram perdidos devido às seguintes situações: impossibilidade de pagar dívidas, condenação por transgressão e crimes cometidos ou mesmo incapacidade de manter-se. Na África, era comum, famílias se entregarem como escravas a quem pudesse salvá-las, isto ocorria devido à falta de alimentos para a sobrevivência. Neste último caso, a escravização era compreendida como voluntária. UNIDADE 3TÓPICO 1136 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A Vamos analisar algumas das formas de ser (tornar-se) escravo na África a partir da perspectiva de Paul Lovejoy. 3.1 A GUERRA 3.2 PROCEDIMENTOS JUDICIAIS A escravidão quase sempre tinha início por meio de violência, que reduzia a posição de uma pessoa de uma condição de liberdade para uma condição de escravo. O tipo mais comum de violência era a guerra, na qual os prisioneiros eram escravizados. Variações na organização de tal violência – incluindo ataques cujo objetivo era adquirir escravos, banditismo e sequestro – indicam que a escravização violenta pode ser vista como inserida em uma sucessão contínua da ação política em larga escala, em que a escravização pode ser apenas um subproduto da guerra e não a sua causa, ou como uma atividade criminal em pequena escala, em que escravizar é o único objetivo da ação. Tomados em conjunto, as guerras, os ataques em busca de escravos e o sequestro foram responsáveis pela maior parte de novos escravos na história. Mesmo quando o objetivo da guerra não era a captura de escravos, a ligação entre guerra e escravidão era muito estreita. (LOVEJOY, 2002). FONTE: Disponível em: <http://www.klepsidra.net/klepsidra4/africa.html>. Acesso em: 23 maio 2010. Na história dos povos africanos, algumas fontes apontam para o fato de que procedimentos judiciais foram responsáveis por alguns episódios de escravização. A escravidão era entendida como uma forma de punição principalmente para crimes como assassinato, roubo, adultério e FIGURA 30 – CAPTURA DE NEGROS DESTINADOS À ESCRAVIDÃO, NA REGIÃO DO CONGO UNIDADE 3 TÓPICO 1 137 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A 3.3 A ESCRAVIZAÇÃO VOLUNTÁRIA 4 OS USOS DO ESCRAVO NA ÁFRICA bruxaria. Os métodos pelos quais os criminosos suspeitos eram escravizados variavam bastante, e muitas vezes eles eram vendidos para fora de suas próprias comunidades. Não obstante, essa forma de escravização estava mais uma vez fundamentada na violência, apesar de legitima aos olhos da sociedade em questão. A posição social de uma pessoa era radicalmente reduzida: o novo escravo podia perder sua qualidade de membro da comunidade, e a sua punição podia confirmar um status que era transmitido aos seus descendentes. (LOVEJOY, 2002). Essa prática entre os povos africanos era recorrente quando a ameaça de morrer de fome não deixava à pessoa nenhum outro recurso. Todavia, esse não era um caso de violência consciente por parte da sociedade ou de um inimigo. Podia haver causas estruturais que colocavam pessoas em situações nas quais elas não podiam ter assegurada a sua sobrevivência e achavam necessário escravizar a si mesmas. Essa dimensão estruturalpodia trazer com ela uma dimensão que era em última análise de exploração e violência. No entanto, a escravização voluntária não era comum, e provavelmente foi responsável por apenas uma pequena percentagem dos escravos na maioria dos lugares. Além disso, a possibilidade de escravização voluntária dependia da existência de uma instituição escravista na qual a violência era fundamental, se não existisse tal instituição, uma pessoa não poderia tornar-se um escravo, mas um cliente ou algum outro tipo de dependente. O fato de que a posição de escravo pudesse ser atribuída em tais circunstâncias indica que outras posições servis não eram adequadas, seja porque fossem raras ou porque sua definição excluía tais casos. (LOVEJOY, 2002). Na África, o escravo era a única forma de propriedade privada reconhecida por lei. Como a terra abundava e era um bem coletivo, o fator escasso na produção de bens era a mão de obra. Os africanos usavam escravos, sobretudo, na agricultura, e como esse trabalho era realizado por mulheres, a maioria dos escravos nas sociedades africanas era do sexo feminino. Uma vez que um homem podia se casar com várias mulheres, muitas escravas eram incorporadas à família dos seus senhores, aumentando assim o poder da linhagem deles na comunidade local. Os africanos também escravizavam crianças, pois elas poderiam assimilar facilmente os valores culturais do grupo dominante. (SILVA, 2002). Os escravos eram ainda usados em funções tais como: tarefas domésticas, serviços burocráticos e até militares, chegando a ocupar cargos que iam de simples soldados até comandantes. UNIDADE 3TÓPICO 1138 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A O cativo devia lealdade somente a seu amo. Essa prática permitiu aos escravizados ocuparem importantes postos junto à vida política de alguns estados africanos, pois à medida que os soberanos viam seu poder limitado por oficiais rivais, eles logo os substituíam por cativos. Um exemplo desse uso de escravos na administração política ocorreu entre os anos de 1754 a 1774, quando os governantes do Império Oió, no interior da Nigéria, vincularam muitos escravos à administração dos territórios que ligavam o império à costa africana. Para compreendermos a circulação de escravos e as atividades desenvolvidas por estes em diversas sociedades africanas, vamos ler com muita atenção o texto a seguir: A ESCRAVIDÃO NA ÁFRICA Se considerarmos a escravidão como: situação na qual a pessoa não pode transitar livremente nem pode escolher o que vai fazer, tendo, pelo contrário, fazer o que manda seu senhor; situação na qual a pessoa pode ser castigada fisicamente e vendida caso seu senhor assim ache necessário; situação na qual o escravo não é visto como membro completo da sociedade em que vive, mas como inferior e sem direitos, então a escravidão existiu em muitas sociedades africanas bem antes de os europeus começarem a traficar escravos pelo oceano Atlântico. Nas sociedades organizadas em torno dos chefes de linhagens, em aldeias ou federações de aldeias, podiam viver estrangeiros, capturados em guerras ou trocados por produtos como sal e cobre que eram subordinados a um senhor e podiam ser chamados de escravos. Eles podiam ser castigados ou vendidos e tinham de fazer o que seu senhor determinasse. Dava-se preferência a mulheres, que cultivavam a terra, preparavam os alimentos e tinham filhos. Os filhos das escravas com homens livres da família do seu senhor ou com ele mesmo geralmente não eram escravos. A princípio não tinham os mesmos direitos dos filhos de mulheres livres, trazendo a marca da escravidão, mas a cada geração esta ia diminuindo, até desaparecer. Ter escravas que aumentassem a capacidade de trabalho e de reprodução da família era uma forma de uma linhagem se fortalecer diante das outras. Nos reinos que reuniam várias aldeias e federações de aldeias e nos quais o rei vivia numa capital, cercado de sua corte, de suas mulheres e de seus soldados, era a maior e mais frequente a presença de escravos. As guerras de expansão ou para sufocar rebeliões eram a principal maneira de adquiri-los, mas estes podiam ainda ser comprados ou condenados a pagar com a perda da liberdade o desrespeito às regras locais. As mulheres, além dos trabalhos rurais e domésticos, também eram recrutadas para aumentar o harém do rei; os homens, além de trabalhar no campo, engrossavam os exércitos e faziam parte das caravanas como carregadores ou remadores. Entre os acãs os escravos eram encarregados de minerar o ouro, e entre os tuaregues eram encarregados de minera sal. Em algumas sociedades, como a dos tuaregues, havia UNIDADE 3 TÓPICO 1 139 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A castas de escravos, que viviam à parte, embora o mais comum era que se integrassem gradualmente à descendência da família de seu senhor. Alguns poucos podiam se destacar pelos trabalhos prestados, sendo, por exemplo, condutores de caravanas ou chefes militares, podiam se tornar poderosos, conquistar privilégios, acumular riquezas e mesmo possuir escravos, sem, no entanto deixarem de serem considerados escravos. Essa situação era mais comum nas sociedades islamizadas, nas quais a escravidão se assemelhava à que existia no mundo árabe. Nos reinos do Sudão ocidental e nas cidades- estado do Sael, governados por elites muçulmanas, os escravos trabalhavam em vastas plantações de grãos, pertencentes aos grandes chefes e aos reis, carregavam cargas, conduziam camelos e canoas, faziam parte dos exércitos, mas também podiam estar próximos aos centros de poder, como conselheiros dos reis, como comandantes de exércitos, como eunucos que tomavam conta dos haréns, formados em grande parte por escravas. Os filhos desta com os homens da família de seus senhores eram livres, elas também eram libertadas depois de darem filhos. Aliás, não era raro o senhor libertar seus escravos, principalmente se estes lhe prestassem bons serviços. Havia, assim, uma hierarquia dentro da condição de escravo que ia desde o mais desprezado, como aquele que fazia os serviços desagradáveis e extenuantes como trabalhar no campo e carregar cargas, até o que ocupava postos de responsabilidade e era admirado pelos seus talentos. O que fazia deste último um escravo, apesar de seu prestígio, era o fato de, por ser estrangeiro, não ter laços de parentesco ou solidariedade na sociedade em que vivia, na qual era reconhecido como membro na qualidade de subordinado a um senhor. Não fossem a proteção deste e as oportunidades dadas por ele, o escravo não seria ninguém; por isso mantinha-se fiel a ele. Se o traísse e escapasse com vida, seria reduzido ao último nível da escala social. A escravidão estava mais presente nas capitais dos reinos, nas cidades-estado e nos grandes centros de comércio, onde havia maior circulação de riquezas, maiores possibilidades de acumulação de bens e diferenças mais marcadas entre os grupos sociais. Além de os escravos serem integrados nessas sociedades, também eram uma mercadoria importante nas rotas do Saara. Parte dos cativos, obtidos geralmente por meio de guerras ou ataques a aldeias desprotegidas, era negociada com os comerciantes que os levariam para o norte da África. Os que não ficavam trabalhando ali podiam ser mandados para o outro lado do Mediterrâneo, mas iam principalmente para a península Arábica, sendo preferidas as mulheres. As escravas belas e jovens podiam alcançar preços bastante elevados, pagos pelos que as desejavam ter entre suas esposas e podiam arcar com o seu preço. Além de serem comerciados entre as sociedades africanas não islamizadas e nas rotas do Sael e do Saara, esta sim islamizadas, os escravos estavam entre as mercadoriasexportadas para a península Arábica pelos portos da costa oriental, pelos quais podiam UNIDADE 3TÓPICO 1140 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A também ser levados para a Pérsia e a Índia, junto com mercadorias de luxo, como marfim, ouro, peles e essências naturais. Assim, quando os primeiros europeus chegaram à costa atlântica africana, e entre outras coisas se interessaram por escravos, abriu-se mais uma frente do comércio de gente, mas este já era velho conhecido de muitos povos africanos. FONTE: Souza (2007, p. 47-49) 5 A ESCRAVIDÃO PRÉ-MODERNA 5.1 A ESCRAVIDÃO E O ISLAMISMO Ao contrário do que imagina o senso comum, escravidão não foi um fenômeno restrito à Idade Antiga e ao período moderno. A Idade Média também foi época de uma acentuada atividade de escravização de pessoas, em diversas partes do mundo. Não era comum, portanto, apenas entre os muçulmanos. Ao contrário, mesmo a Europa abrigava escravos nesse período. A base da escravidão medieval eram as guerras justas, ou guerras santas. Era permitido aos cristãos escravizar muçulmanos e vice-versa. Ambos podiam escravizar livremente os povos pagãos e o fizeram com muita frequência. A própria palavra escravo se origina de sklavinoi, termo grego para eslavo, pois era esse povo que ocupava as regiões planas do norte da Europa que os cristãos (e também muçulmanos) retiravam a maior parte dos cativos. Os árabes, além de buscarem os eslavos (denominados saqaliba, da mesma raiz grega de escravo, e com o mesmo significado), tinham à disposição os cristãos capturados pelas incursões de piratas no Mar Mediterrâneo e os africanos trazidos do sul do Saara pelas caravanas. Os escravos destinados aos árabes, geralmente, eram recrutados para servirem aos muçulmanos mais ricos, realizando quaisquer tipos de atividades. Os homens muitas vezes eram castrados (eunucos) para servirem como camareiros, guardas do harém, soldados e trabalhadores em geral. As mulheres costumavam se tornar concubinas ou serviçais do palácio. A posse de escravos, no mundo muçulmano, era principalmente um luxo, que demonstrava o status social de seu proprietário. O escravo era, portanto, sobretudo um bem de consumo, muito diferente de sua função na América, que era, sobretudo, ferramenta de trabalho. Uma prova disso era a elevada proporção de mulheres em relação a homens: enquanto na escravidão americana os homens costumavam ser muito mais numerosos (duas, cinco ou até quinze vezes). Na escravidão árabe a proporção era inversa. UNIDADE 3 TÓPICO 1 141 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A IMP OR TAN TE! � Eunuco é o escravo castrado, que alcançava altos preços nos mercados muçulmanos. Valiosos como guardiões dos haréns dos sultões, governantes das cidades islâmicas, muitas vezes também eram conselheiros muito próximos dos chefes, que acreditavam na sua fidelidade excepcional. A maioria dos eunucos vinha do Sudão central, havendo povos que dominavam conhecimentos especiais relativos à técnica de castração que minimizavam a porcentagem de mortos em decorrência da mutilação. (SOUZA, 2007). LEITURA COMPLEMENTAR O TRÁFICO DE ESCRAVOS EM MOÇAMBIQUE Marina de Mello Souza Antes da circum-navegação do continente africano pelos portugueses, cidades-estado da costa oriental eram bases avançadas de comerciantes árabes, persas e indianos, que lá iam buscar cascos de tartaruga, chifres de rinoceronte, madeira, peles, âmbar, cobre, ferro, escravos, ouro e marfim. A chegada dos portugueses, no início do século XVI, modificou essa situação, pois eles não só construíram fortalezas na costa como entraram no continente, onde teceram laços com as sociedades locais, casaram com as filhas dos chefes, dos seus parceiros comerciais, dos que lhes deixavam se instalar no território que controlavam. Ponto de apoio para as expedições que iam para a Índia, as fortalezas não eram a única marca da presença portuguesa nessa costa. No interior, os portugueses e seus descendentes iam se africanizando cada vez mais e serviam de elo entre as sociedades locais e os interesses da Coroa e dos comerciantes, ao mesmo tempo em que defendiam seus próprios interesses, nem sempre coincidentes com os da política lusitana. Os afro-potugueses que se instalaram na Zambézia usavam escravos nos exércitos, nos trabalhos agrícolas e domésticos, mas o seu comércio nos portos do litoral só se tornou significativo a partir do fim do século XVIII. Se até o século XIX tinham sido poucos os africanos da África oriental traficados no Brasil, na fase final do comércio de pessoas eles foram muitos. Em 1830 eram embarcados cerca de 30 mil escravos por ano naqueles portos. O aumento da vigilância britânica sobre os navios negreiros que navegavam pelo golfo do Benin e a crescente procura por escravos por parte de algumas economias americanas coincidiu ainda com fatores internos ao continente africano que facilitaram a captura de pessoas para serem vendidas como escravos. No início do século XIX, grandes secas, seguidas de invasões de gafanhotos, afetaram por décadas a economia de povos que habitavam ao sul do rio Limpopo, fundada na agricultura e no pastoreio, atividades que foram praticamente extintas pelas catástrofes naturais. Nesse quadro, o banditismo ganhou força, com grupos armados UNIDADE 3TÓPICO 1142 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A atacando os mais fracos, que eram saqueados e escravizados; houve uma intensificação das migrações e dos conflitos, com diferentes grupos disputando as terras menos áridas; houve uma proliferação dos senhores da guerra, à frente de exércitos que podiam proteger os fracos que se juntassem a eles, ou saquear os que lhes resistissem. As antigas chefaturas xonas, tongas, carangas e maraves, que habitavam os férteis planaltos do interior do Zambeze, a região das grandes zimbabués e do antigo reino do Monomotapa, tiveram de ceder espaço aos angúnis que partiram do sul em direção ao norte fugindo das secas e dos gafanhotos, promovendo guerras, ocupando novos territórios e capturando pessoas que muitas vezes acabavam vendidas como escravas para o tráfico dirigido tanto para a América como para as colônias francesas do Índico, as plantações de cravo em Zanzibar, e outras zonas de influência mulçumana. FONTE: Souza (2007) UNIDADE 3 TÓPICO 1 143 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A Neste tópico, você estudou que: • Existem registros de escravidão em alguns reinos africanos ao sul do Saara, bem como nas regiões do norte do continente que faziam parte do mundo islâmico. • Escravidão, diz respeito a uma situação em que seres humanos são tratados como mercadoria, como seres destituídos de autonomia e mesmo de vontade, livremente comprados e vendidos e que não têm qualquer direito reconhecido. • Escravismo é um conceito que se refere a sociedades fundadas na utilização do trabalho escravo, dentre as quais as antigas colônias americanas são o exemplo mais bem-acabado. • A forma mais simples de conseguir escravos eram as guerras, com os prisioneiros sendo postos a trabalhar ou sendo vendidos pelos vencedores. • Na África, o escravo era a única forma de propriedade privada reconhecida por lei. RESUMO DO TÓPICO 1 UNIDADE 3TÓPICO 1144 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A Exercite seus conhecimentos, resolvendo as questões a seguir: 1 Explique os termos escravismo e escravidão. Aponte as diferenças ou semelhanças entre esses dois conceitos. 2 Redija um texto sobre a condição do escravo na África. Evidencie as formas de se tornar escravo nas sociedades africanas, as diferenças entre ser escravo na África e em outras regiões como nas colônias na América. AUT OATIVID ADE � H I S T Ó R I A D A Á F R I C A A RELAÇÃO DO COMÉRCIO DE ESCRAVOS ENTRE EUROPEUS E AFRICANOS 1 INTRODUÇÃO TÓPICO 2 UNIDADE 3 As relações comerciais entre a África e a Europa não foram diferentes do comércio internacional nesse período, pois os africanos foram comerciantes experientes, e de modo algum foram dominados pelos mercadores europeus em razão do controle comercial ou da superioridade técnica em manufatura ou no comércio. (THORNTON, 2004). Os estudos em História da África (podem ser citados historiadores como: Paul Lovejoy, Jhon Thornton, Walter Rodney, entre outros), e mais especificamente sobre a estrutura do tráfico negro, evidenciam a cumplicidade de sociedades africanas nesse processo. Ou seja, a historiografia apresenta uma discussão de que o tráfico de africanos só foi possível e tomou enormes proporções entre os séculos XV e XIX devido à cooparceria estabelecida entre africanos e europeus. A presença do europeu no tráfico de escravos ampliou e intensificou as relações de comércio. No entanto, as sociedades africanas imprimiam a escravidão um significado diferente da escravidão na Europa ou nas Américas coloniais. Nesse sentido, o comércio de escravos não deve ser visto como um impacto externo e funcionando como uma espécie de fator autônomo na História da África. Ao contrário, ele desenvolveu-se e foi organizado de forma racional pelas sociedades africanas que dele participaram, as quais tinham completo controle sobre o mesmo, até que os escravos embarcavam nos navios europeus para levá-los para as sociedades do Atlântico. (THORNTON, 2004). Este tópico terá como objetivo refletir sobre a estrutura do comércio de escravos na África, para que possamos compreender as relações de troca que se estabeleceram entre africanos e europeus. UNIDADE 3TÓPICO 2146 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A 2 A ESTRUTURA SOCIAL E A ESCRAVIDÃO NA ÁFRICA Os europeus negociavam escravos com Estados centralizados, e com sociedades descentralizadas. Entre as sociedades descentralizadas citam-se os balantas da Guiné-Bissau, que resistiram às invasões de seus vizinhos por meio do tráfico. Os balantas vendiam escravos em troca de metais, que transformavam em ferramentas que lhes serviam para expandir a agricultura, garantindo-lhes a independência. Ou ainda, grupos africanos como os: efiques, ibibios e ibos da Baía de Biafra que viram no comércio de escravos uma oportunidade para enriquecer. Esses grupos comercializavam escravos com ingleses e franceses. Portanto, seja para sobreviver, seja para lucrar, as sociedades africanas encontraram espaço suficiente para estruturar, participar e manter o comércio de escravos. Como já foi mencionado anteriormente, a escravidão estava fundamentada em estruturas legais e institucionais das sociedades africanas. O escravo era uma forma de propriedade privada que produzia rendimentos reconhecidos nas leis africanas. Como a terra abundava e era vista como um bem coletivo, o fator escasso na produção de bens era a mão de obra. O que levou a escravidão ser tão difundida nas sociedades africanas foi à ausência de propriedades privadas de terras. Para o historiador Thornton (2004), a posse territorial é em última instância uma simples ficção legal. Ser proprietário não significa mais do que possuir a terra, e o que realmente importava, entre as sociedades africanas, era a posse do produto que ela produz. Nessa perspectiva, a posse ou o controle do trabalho (pessoas ou escravos) poderia prover o direito da posse a terra. Assim, quanto mais escravos, mais seria garantida a produção na terra e isso lhe dava o direito da posse sobre essa terra. Essa estrutura das sociedades africanas em relação a terra divergia da estrutura europeia, onde a terra, durante muito tempo foi o bem mais importante. No entanto, essa estrutura permitiu às elites políticas e econômicas da África vender um grande número de escravos e, assim fomentar o comércio atlântico. Essa característica expandiu a escravidão, o seu comércio e o papel em produzir uma riqueza estável aliado ao desenvolvimento econômico (Thornton, 2004). E é precisamente nesse ponto, que a escravidão foi tão importante na África e levou a exercer um papel tão significativo no continente, se os africanos não eram proprietários de um fator de produção (a terra), eles poderiam possuir outro, o trabalho. Ou seja, os africanos detinham o meio de produzir nesta terra – a mão de obra. UNIDADE 3 TÓPICO 2 147 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A 3 O COMÉRCIO DE ESCRAVOS A forma como o comércio de cativos ocorria na África variava de acordo com a organização interna de cada sociedade africana com quem os europeus negociavam. Essa questão já foi mencionada no início deste tópico. Nas sociedades com governo centralizado, os soberanos garantiam um abastecimento regular de escravos nos portos onde as embarcações estrangeiras ancoravam para negociar com o encarregado pelo comércio externo do Estado. Alguns desses portos haviam sido reinos independentes que foram tomados por vizinhos mais poderosos, como por exemplo: os reinos de Aladá e Ajudá, na Baía do Benin, conquistado pelo reino de Daomé nos anos de 1724 e 1727. Segundo Thornton (2004), muitos grandes estados africanos eram coleções de outros menores incorporados por meio de aliança ou conquista. De forma geral, os governantes desses estados menores constituídos continuavam a exercer autoridade local e o poder do estado mais importante era confrontado por eles. Um exemplo é apresentado pela descrição anônima do Império do Grande Fulo, escrita no século XVI que mostra que ele dominava todo o vale do Senegal e compunha-se de cerca de vinte unidades menores. O desenvolvimento de recursos privados próprios foi um importante recurso utilizado pelos governantes para criar um estado centralizado. Os escravos que poderiam ser propriedade privada do rei ou de outro membro da elite poderiam ser também propriedade do Estado e formavam um conjunto de trabalhadores e soldados. Os escravos eram encontrados em todas as partes da África atlântica, desempenhando todo tipo de tarefas. Quando os europeus chegaram à África e se ofereceram para comprar escravos, não é surpreendente que tenha sido imediatamente aceitos. Pois, além de os escravos serem encontrados em profusão na África, existia um comércio de escravos bem desenvolvido. Os europeus penetraram nesse mercado da mesma forma que qualquer africano ou muçulmano penetrava. (THORNTON, 2004). Todavia, os europeu buscavam permissão dos soberanos para instalar feitores na costa. Muitas dessas feitorias concorriam para conseguir a exclusividade no comércio com os africanos, em detrimento de outras nações europeias. Algumas das importantes feitorias foram: Elmina, Cabo Corso e a Ilha de Goréa transformadas, posteriormente em polos comerciais (atualmente são centros turísticos). UNIDADE 3TÓPICO 2148 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A FONTE: Disponível em: <http://www.farolcomunitario.com.br/imagens/elmina_fort. jpg>. Acesso em: 25 maio 2010. As relações de comércio com as sociedades africanas com o governo descentralizado, como já informado neste tópico, ocorriam de forma mais informal. As embarcações ancoravam nos portos da costa, onde recebiam pessoas interessadas em negociar. Muitas vezes, o africano “negociante” deixava seus próprios cativos ou até familiares como penhor pelas mercadorias que levavam para trocar por escravos. Quando retornavam com escravos, esses africanos “negociantes” os entregavam ao capitão da embarcação que devolvia os penhores junto com o pagamento. No entanto, caso esses africanos“negociantes” retornassem sem escravos e sem mercadoria, os capitães partiam, levando os penhores humanos a bordo. Sabemos que os escravos vendidos no tráfico vinham de diversas partes do interior da África. Por exemplo: de Serra Leoa, eles vinham de áreas próximas à costa, mas os que embarcavam no Congo ou Angola vinham de terras mais distantes. Os comerciantes os trocavam por bens trazidos da costa, mas quando isso era impossível, trocavam escravos por: manilhas de ferro ou cobre, conchas de cauril (um molusco africano) e por tecidos. As caravanas de cativo percorriam longas distâncias e geralmente marchavam de mãos atadas e ligados uns aos outros pelo pescoço com forquilhas de madeira. Quando chegavam a costa, os comerciantes entregavam os escravos aos intermediários do trafico, que negociavam com os capitães das embarcações negreiras. Durante o período de espera pela concretização das negociações, os escravos permaneciam presos nas fortalezas, feitorias ou quintais de propriedade dos intermediários. Ficavam muitas vezes expostos à subnutrição prolongada e a doenças contagiosas. Os intermediários do tráfico procuravam concluir logo as transações para evitar a perda da “mercadoria”. No século XIX, quando o tráfico de escravos se tornou ilegal, as condições para o embarque de escravos pioraram, pois os negociantes não podiam mais contar com uma estrutura FIGURA 31 – FORTE ELMINA EM GANA, ÁFRICA, FOI CENTRO DE COMÉRCIO ESCRAVO UNIDADE 3 TÓPICO 2 149 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A dirigida para facilitar a atividade. Nesse período, uma prática comum entre os negociantes do tráfico foi encher os barracões situados em lugares distantes da costa africana, a fim de ocultá- los da fiscalização responsável pela supressão do tráfico. Diante de tudo isso, não podemos entender os africanos como simples vítimas do tráfico de escravos. A intensificação do comercio de cativos apoiava-se em um sistema bem desenvolvido de escravidão, de mercado, de escravos e de distribuição que preexistia a qualquer contato com a Europa. De acordo com Thornton (2004), a instituição da escravatura era disseminada na África e aceita em todas as regiões exportadoras, e a captura, o transporte e a venda de escravos eram circunstâncias normais na sociedade africana. A organização social preexistente foi, também, responsável pelo desenvolvimento do comércio atlântico de escravos. FONTE: Disponível em: <http://www.temalivre.net/wp-content/uploads/2010/01/ escravos_haiti-vertentes.ufba_.br_.jpg>. Acesso em: 25 maio 2010. 4 AS FORMAS DE CAPTURA A captura dos escravos era, também, promovida por companhias especializadas, que inicialmente recebiam o direito de monopólio de exploração. Inglaterra, França, Portugal e Espanha exploravam indiscriminadamente esta atividade, cujos números cresciam ano após ano. Em 1697, a Coroa inglesa extinguiu o monopólio e os números explodiram. A atividade era favorecida pela necessidade de se criarem estruturas muito simples na própria África para a exploração. Em vez de grandes cidades, bastavam simples feitorias que abrigavam uns poucos europeus e contavam com os próprios africanos para fazerem todo o serviço: das incursões para o interior, munidos de espingardas e munição compradas dos europeus, muitas FIGURA 32 – ESCRAVOS SENDO CONDUZIDOS PARA FORTALEZAS PARA SEREM COMERCIALIZADOS UNIDADE 3TÓPICO 2150 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A vezes por quinquilharias, até a manutenção dos barracões onde ficavam os capturados até a chegada do próximo navio. O tratamento dos escravos era cruel. O francês Pruneau de Pommegorge (apud Ki- Zerbo, p. 273), relatou uma situação em que se viu compelido a comprar uma escrava que estava prestes a ser separada de seu filho, que “à noite [...] seria atirado às feras”. O local de cativeiro enquanto aguardavam o carregamento despertava nos africanos um sentimento incontrolável de revolta. Pommegorge relata o tratamento que receberam alguns desses revoltosos (KI-ZERBO, p. 274): [...] Ao regressarem do trabalho, os escravos são cercados, postos a ferros e bem amarrados. No dia seguinte são todos chamados. Mas o processo é intentado contra dois ou três cabecilhas, que eram chefes na sua região. Os dois chefes, longe de negarem o fato ou de procurarem subterfúgios, responderam, com afoiteza e coragem, que era perfeitamente verdade, que deviam tirar a vida a todos os brancos da ilha, não porque os odiassem, mas para que não se pudessem opor à sua fuga e ao meio que lhes era oferecido de se irem juntar ao seu jovem rei. Que todos sentiam a maior das vergonhas por não haverem morrido por ele, com as armas na mão, no campo de batalha, mas que atualmente, uma vez que não podiam fazê-lo, preferiam a morte ao cativeiro. A esta resposta, verdadeiramente romana, todos os outros cativos gritaram num coro unânime: ‘Denguela, denguela!’ — ‘É verdade, é verdade!’ Reuniu-se o conselho da direção para deliberar. Para dar um exemplo a todo o país, foi decidido que os dois chefes da revolta fossem mortos no dia seguinte diante de todos os cativos e da população da ilha reunida… No dia seguinte são reunidos na savana todos os cativos. Em frente desta abertura foram colocados dois pequenos canhões, carregados, não com bala, mas apenas com a bucha. Enfim, na extremidade desta abertura foram postos os dois chefes da revolta e mortos pelo artilheiro, servindo eles de projétil. Os infelizes foram atirados e caíram mortos a quinze passos do ponto donde haviam sido disparados. Todos os outros cativos, impressionados com tão terrível exemplo de severidade, entraram para os barracões na maior das consternações. Se esta execução parece horrenda e desumana, ela é uma consequência necessária do comércio infame que quase todos os europeus fazem naquelas paragens. Guerras, sequestros, razias foram responsáveis pela maioria dos cativos, tanto daqueles exportados como daqueles retidos em África. O processo de escravidão envolveu as potências europeias, as colônias na América e, sobretudo a própria África. Ao articular a captura de escravos na África, a colonização da América e o desenvolvimento da indústria na Europa, o comércio negreiro criou uma rede comercial internacional. O fluxo dessa rede circulava nos três mundos (África, América e Europa). Para entendermos essa articulação entre o comércio de escravos e a circulação de pessoas que foram responsáveis por esse processo, vamos ler, com muita atenção, o texto de Alberto Costa e Silva sobre um importante negociante de escravos baiano: Francisco Félix de Souza, o Chachá, um dos exemplos de pessoas que serviram de intermediário entre mundos diferentes facilitando as relações econômicas e sociais entre eles. UNIDADE 3 TÓPICO 2 151 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A LEITURA COMPLEMENTAR O SENHOR DOS DESGRAÇADOS Por volta de 1800, desembarcou na Costa dos Escravos, no Golfo do Benim, um baiano chamado Francisco Félix de Souza. Tinha 46 anos de idade, se realmente nascera em 1754, em Salvador, de pai branco e mãe ameríndia, cabocla ou cafuza. De seus tempos no Brasil nada se sabe, exceto que estudou o suficiente para se tornar guarda-livros e escrivão do forte português de S. João Batista de Ajudá, no reino do Daomé, hoje República do Benin. Dizia- se na época que talvez fosse foragido da justiça ou condenado ao desterro. Se, em 1803, já estava no forte em Ajudá, vivera antes em Badagry e Popô Pequeno (ou Anexô), onde se casara com a filha do soberano de Gliji, Comalangã. A moça chamava-se Jijibu e, menina, havia estudado na Bahia. É provável que o sogro o tenha ajudado a iniciar-se como negreiro, entregando-lhe cativos para que oscomercializasse. Isso explicaria ter-se tornado traficante de gente quem disse ter descido na África sem um centavo, para pagar o que comer, recolhia cauris, conchas usadas como moedas, depositados nos altares dos voduns. Tinha um organismo tão forte que resistiu às privações e às doenças de uma região insalubre. Em cada dez recém-chegados, seis morriam no primeiro ano, vítimas de doenças tropicais. Francisco Félix manteve-se, porém, com boa saúde até a velhice. O baiano começou a prestar serviços a mercadores europeus ou brasileiros e logo lhes ganhou a confiança. No negócio de escravos não faltava lugar para auxiliares, prepostos e parceiros menores. Rapidamente, Francisco foi-se firmando como comerciante de escravos. Deve tê-lo favorecido o seu cargo no forte de S. João Batista, sobretudo após 1806, quando, havendo o governo português abandonado a fortaleza, dela passou a cuidar como se fosse o comandante. Um de seus trunfos seria a facilidade com que aprendia idiomas. Não tardou em tornar-se, por ter aprendido as línguas locais, um excelente intermediário entre os nativos e os capitães dos navios. O outro trunfo foi o de ter-se tornado rapidamente apreciado pela “integridade inflexível e indiscutível” com que “conduzia todas as suas operações comerciais” – palavras de um oficial britânico, que tinha tudo para lhe ser hostil. Com a fama de honesto, pôde participar no sistema de crédito que sustentava o tráfico: contra a promessa de futura entrega de cativos, era comum que se adiantassem mercadorias em confiança aos reis e mercadores. No início, Francisco negociava para os outros, mas, com os ganhos, começou a operar por conta própria. E a guardar os seus escravos em depósitos próximos ao litoral, à espera do melhor momento para vendê-los aos navios. A fim de evitar que as febres e as diarreias causassem estragos nas tripulações, os barcos negreiros paravam o menor tempo possível em cada porto. Que dispusesse de escravos armazenados tinha condições, por isso, de vendê-los a um melhor preço, determinado pela UNIDADE 3TÓPICO 2152 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A ânsia do capitão de fechar o carregamento. Francisco Félix não tardou em aprender essa lição. O que não aprendeu foi muito a lidar com o soberano do Daomé, Adandozan. No início da segunda década do século XIX, Francisco já devia ser um comerciante de importância. Tinha sócios e financiadores na Bahia, que lhe mandavam as mercadorias com que adquiria escravos. E o seu grande fornecedor era o rei. A Adandozan, Francisco adiantava mercadorias. Quando o rei se descuidou do pagamento, o baiano foi à capital Abomé para queixar-se. O soberano recebeu-o numa varanda do palácio. Recostado em almofadas, estava de torso nu. Tinha duas centenas de mulheres ao redor, de fuzil na mão, a abaná-lo com flabelos ou a espantar as moscas com rabos de cavalo encastoados em prata. Uma delas, de joelhos diante dele, sustentava uma escarradeira de ouro. Guarda-sóis grandes e coloridos completavam a girar a cena. Ao cobrar o que o rei lhe devia, Francisco mostrou-se desrespeitoso. Irritado, Adandozan mandou prendê-lo. E, a fim de que perdesse a petulância de branco, determinou que periodicamente o mergulhassem num tonel de índigo, para escurecer-lhe a pele. Na prisão, Francisco ajustou com um príncipe daomeano, Gapê, um pacto de sangue, que os obrigava a se ajudar mutuamente até a morte. Daí que Gapê não tenha tardado em arranjar a fuga de Francisco da prisão. Da região de Popô Pequeno, onde se refugiou, o baiano passou por sua vez, a abastecer Gapê de armas de fogo e também tecidos, tabaco e outros bens, que, distribuídos com largueza, conquistavam aderentes. Pôs-se, assim, em marcha uma conjura, da qual resultou a deposição de Adandozan. Gapê subiu ao poder com nome de Guezo. E mandou buscar Francisco Félix, a quem fez cabeceira, grande chefe. Concedeu-lhe terras em Ajudá e, mais importante ainda, o tornou seu único agente comercial. Ao nobilitá-lo, Guezo transformou em título a alcunha que o baiano ganhara após a fuga da prisão. Ao atravessar numa piroga, escondido sob esteiras, o rio Mono, os guardas indagaram dos remeiros o que levavam, e esses responderam: chachá, isto é esteiras. Há que diga, porém, que o cognome significaria andar com passos curtos e apressados, ou seria uma corruptela de “já já”, imperativo de que abusava. Como o Chachá era o agente de Guezo, os demais mercadores só podiam fazer suas transações depois que ele vendesse todos os escravos do rei e os dele próprio. Tornou-se com isso senhor quase absoluto do mercado. Não foi, como se disse, o vice-rei de Ajudá, o “chefe dos brancos” ou yovogan. Mas isso não o impediu de tornar-se, graças à irmandade com o rei o mais poderoso de Ajudá, o mais rico do Daomé e talvez o maior mercador de escravos de seu tempo. Á sua condição de agente e amigo de Guezo somava-se a de funcionário informal de d. João VI, pois continuava a cuidar do forte. Não vivia, porém, nele. Construía um casarão UNIDADE 3 TÓPICO 2 153 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A enorme, Singbomey, numa área próxima, o futuro Bairro Brasil. Símbolo de riqueza e poder. Singbomey era a um só tempo fortificação, residência, entreposto, banco, hospedaria e oficina, tendo ao lado o depósito de escravos. Possuía também um mirante, de onde o Chachávigiava as manobras do esquadrão britânico que, desde 1816, combatia a exportação de escravos de Ajudá. O colar de lagunas, esteiros, furos e riso que corria paralelo ao litoral dificultava a ação britânica. Os traficantes iludiam os poucos navios do esquadrão antitráfico, ao transferirem, pelas águas internas, os escravos de um porto para outro. O Chachá tornou-se mestre nesses deslocamentos. Contava, ao longo da costa, não só com informantes que o mantinham a par dos movimentos britânicos, mas também com sócios e agentes. E navios próprios, pois passara a ser dono também de embarcações. Por essa época, já era enorme a prole de Francisco Félix. Casado pelas normas daomeanas com várias mulheres, conhecem-se pelos nomes 63 de seus filhos, mas se diz que seriam mais de 100. O Chachá deles exigia que procedessem na rua como europeus. Não trajavam como daomeanos, mas à brasileira: os homens de branco, de botas e chapéus de panamá; as mulheres, de vestidos longos, cintados e sem decotes, calçadas com sapatos fechados. O pai exigia que frequentassem a escola e a igreja que mantinha no forte. Ali aprendiam a ler e escrever em português, rudimentos de matemática e a doutrina cristã. A alguns mandou completar a educação na Bahia ou em Portugal. Vinculado pelos matrimônios a muitas outras famílias, Francisco tinha a base de poder ampliada pelos agregados, escravos domésticos e outros dependentes. E o número dos que a ele se arrimaram cresceu ainda mais, graças aos ex-escravos que retornavam do Brasil. O Chachá conseguia de Guezo terras onde assentá-los e os apoiava em tudo. Tornou-se o protetor e o líder deles. E não é impossível que, entre aqueles que ajudou, figurassem alguns que ele próprio, anos antes, vendera. Os ingleses, que tanto o combateram, deixaram dele esta descrição: um homem afável, hospitaleiro e prestativo, “o mais generoso e o mais humano das costas da África”, para usar as palavras de um cônsul britânico. Seria assim com os seus iguais, porém duríssimo com os escravos que endereçava à venda. Exercia um ofício fundado na crueldade. A sua casa-grande dividia-se em duas partes: numa, com dependências próprias para cada uma de suas mulheres, vivia com a família; noutra, acolhia os capitães dos navios que aportavam em Ajudá. Não devia cobrar a hospedagem, mas tinha meios de arrancar-lhes dinheiro, sem desdouropara a hospitalidade que lhe atribuíam, pois montara uma casa de jogos, com belas mulheres, bilhares, roleta e tudo o mais. Sua hospitalidade estendia-se até mesmo, no auge da repressão ao tráfico, aos comandantes dos cruzadores britânicos. Não hesitava recebê-los para jantar, a mesa arrumada UNIDADE 3TÓPICO 2154 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A com talheres de prata, copos de cristal, pratos de porcelana e tolhas de linho. Quando em 1843, o príncipe de Joinville ali jantou, serviram-no em baixela de prata, numa sala iluminada por tocheiros e candelabros de igreja, tudo de prata maciça. O brinde aos reis da França foi acompanhado por 21 salvas de canhão. A pompa do jantar ao príncipe disfarçava a decadência. No apogeu de sua carreira, estimou-se a fortuna do Chachá em US$ 120 milhões, uma enormidade à época. No fim, ele mal tinha como pagar suas dívidas em Salvador e em Havana, e essas cresciam porque não abandonara seu comportamento perdulário. Avançado nos anos, não mais memorizava os empréstimos e perdera a energia para cobrá-los. Os devedores, entre os quais, o próprio Guezo, não lhe pagavam. E seus filhos, a quem passara parte dos negócios, não tinham as qualidades dele, nem um pacto de sangue com o rei. O pior de tudo é que os britânicos estavam a somar êxitos na repressão. Não só apresaram numerosos carregamentos pelos quais o Chachá era responsável, mas até mesmo navios de sua propriedade – 34, conforme Joinville. Francisco Félix de Souza faleceu em 8 de maio de 1849, com 94 anos de idade. Correu à época que teria sido envenenado por Guezo, mas a acusação era evidentemente falsa. O rei o estimou até o fim. Não só fez representar por dois dos seus filhos e oitenta amazonas nos ritos funerários, como enviou sete pessoas para serem imoladas no túmulo do amigo. Esses e outros sacrifícios humanos teriam sido feitos em honra do Chachá, apesar da oposição de seus filhos. Mas há que diga que prevaleceram as razões desses últimos. Certo é que as festividades fúnebres duraram alguns meses, com amazonas a dançarem na praça de Ajudá, e sacerdotes a imolarem pombos, bodes e outros animais, e muitos batuques, e muitos tiros. Se havia naquela época um padre em Ajudá, esse certamente encomendou o corpo de Francisco Félix e rezou a missa de sétimo dia. O Chachá era católico e devoto de São Francisco de Assis. Não perdia missa, mas patrocinava também um santuário dedicado ao vodum Dagoun, que, dizia-se, trouxera do Brasil. Foi nisso e em tudo o mais um centauro cultural: europeu e africano. Do mesmo modo que, após 1822, ficou sendo brasileiro e português. Nos seus domínios hasteava a bandeira das quinas ou a verde-amarela, conforme as conveniências do momento. Saía à rua de chapéu, calças, colete e paletó, mas coberto por um grande guarda-sol e acompanhado de tambores, pífanos e amazonas a dispararem para o ar as suas espingardas. FONTE: KI-ZERBO. História da África Negra, volume I. Publicações Europa-América, s/d. UNIDADE 3 TÓPICO 2 155 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A Neste tópico, você estudou que: • As relações comerciais entre a África e a Europa não foram diferentes do comércio internacional nesse período, pois os africanos foram comerciantes experientes, e de modo algum foram dominados pelos mercadores europeus em razão do controle comercial ou da superioridade técnica em manufatura ou no comércio. (THORNTON, 2004). • A presença do europeu no tráfico de escravos ampliou e intensificou as relações de comércio. • Ser proprietário não significa mais do que possuir a terra, e o que realmente importava, entre as sociedades africanas, era a posse do produto que ela produz. • A forma como o comércio de cativos ocorria na África variava de acordo com a organização interna de cada sociedade africana com quem os europeus negociavam. • Os europeus constituíram feitorias na África com o objetivo de manterem o comércio de escravos. • Guerras, sequestros, razias foram responsáveis pela maioria dos cativos, tanto daqueles exportados como daqueles retidos em África. RESUMO DO TÓPICO 2 UNIDADE 3TÓPICO 2156 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A Exercite seus conhecimentos adquiridos resolvendo as questões a seguir: 1 “A presença do europeu no tráfico de escravos ampliou e intensificou as relações de comércio. No entanto, as sociedades africanas imprimiam à escravidão um significado diferente da escravidão na Europa ou nas Américas”. Explique essa afirmação. 2 Qual era a relação das sociedades africanas com a posse da terra? Explique quais eram as formas de acessar e manter a terra entre as sociedades africanas. 3 Como ocorriam as negociações entre africanos e europeus em relação ao comércio de escravos? AUT OAT IVID ADE � H I S T Ó R I A D A Á F R I C A TRANSFORMAÇÕES NAS SOCIEDADES AFRICANAS DECORRENTES DO COMÉRCIO ATLÂNTICO 1 INTRODUÇÃO 2 O ESVAZIAMENTO DO INTERIOR TÓPICO 3 UNIDADE 3 O impacto da presença europeia sobre o continente africano foi devastador. Em diversas regiões do continente, as sociedades se desagregaram por causa do comércio de escravos, como foi o caso do Congo e do Sahel Ocidental. Ao longo de mais de três séculos, milhões de africanos foram retirados de sua terra natal para servirem de mão de obra à produção econômica em larga escala no Continente Americano. As justificativas que os europeus encontraram para esse comércio humano trariam, a longo prazo, outras consequências igualmente devastadoras. Vistos como atrasados, subumanos ou incapazes, os africanos e seus descendentes foram vítimas, e continuam sendo até hoje, de um preconceito racial extremamente difundido e danoso à sociedade. O impacto negativo da escravidão, portanto, estendeu-se por um tempo muito maior do que a sua vigência na sociedade ocidental e não parece estar próximo do fim. O intento deste tópico é refletir sobre as transformações ocorridas a partir do tráfico de escravos no continente africano e também no mundo além África. Pois o comércio de escravos não provocou, somente, transformações entre as sociedades africanas, provocaram mudanças, rupturas nas estruturas políticas, econômicas, sociais e culturais nas sociedades onde estes africanos foram inseridos como mão de obra. O tráfico de escravos passou a ser um negócio tão lucrativo para europeus e africanos que acabou gerando consequências dramáticas do ponto de vista demográfico. Esta foi a principal diferença, geograficamente falando, entre a escravidão moderna e suas formas anteriores, para o Continente Africano: a quantidade muitas vezes maior de escravos capturados. UNIDADE 3TÓPICO 3158 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A Alguns estudiosos tentaram diminuir o impacto da escravidão europeia por meio de sofismas, como o de que a escravidão teria ajudado a concentrar população no litoral do continente. Isso, mais do que desonestidade intelectual, parece desconsiderar de propósito o fato de que, para que isso acontecesse, diversas regiões do interior do continente se tornaram despovoadas. A captura de escravos no Sahel desorganizado pela invasão marroquina (que será descrita logo adiante) foi tão maciça que diversos grupos étnicos se desfizeram. Diversos reis do interior tentavam se aproveitar da situação. Veja o que diz Ki-Zerbo (p. 281-282) sobre isso: O tráfico de escravos instalava, enfim, em estado crônico, a guerra, a violência intratribal e intertribal. E esta guerra fazia-se a partir daí com meios mais destrutivos. Como mais escravos permitem comprar mais espingardas e mais espingardas permitem ter mais escravos, os príncipes do litoral eram colhidos numa engrenagem infernal,posta em marcha, por sua vez, pelo negreiro e que eles próprios alimentavam, como diz Peroneal de Pommegorge, uma testemunha: “Pela nossa criminosa avidez, foram estes povos transformados em animais ferozes. Só fazem guerra uns aos outros e só destroem reciprocamente para venderem os seus compatriotas a senhores bárbaros. Os próprios reis apenas veem os seus súditos como uma mercadoria que lhes pode servir para alcançarem o que os seus caprichos desejam”. O tráfico de escravos provocou, portanto, um traumatismo moral e ideológico em numerosos africanos. Os que se ocupavam desta caça já não olhavam para o homem da mesma maneira e os Congueses, de que os primeiros europeus diziam que tinham uma elevada ideia de si próprios, haviam perdido essa ideia. O mesmo acontecia na Costa do Ouro, onde o adúltero era punido com a perda da liberdade. Com a escravatura, certos reis vieram a ter por sua conta “um grande número de mulheres que não tinham outro emprego que não fosse seduzir todas as noites jovens sem experiência”. Consumado o crime, ou mesmo durante a sua consumação, denunciavam o infeliz que tinham cativado. O processo é rápido e o culpado segue logo para o mercado. Por vezes, ao que se diz, as mulheres desempenhavam este papel, em combinação com o marido. 2.1 A DESTRUIÇÃO DO CONGO O contato dos portugueses com o Congo foi muito facilitado pelo fervor religioso do manicongo (rei) Afonso. Seu enorme respeito pelos portugueses levou o rei dom Manuel a exigir de seus emissários tratamento equivalente ao manicongo. O português Rui de Sousa afirmava que o rei parecia conhecer melhor a doutrina religiosa do que os próprios portugueses. Com apoio de Portugal, o rei Afonso reformulou o Congo, construindo escolas em que as crianças UNIDADE 3 TÓPICO 3 159 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A 2.2 A CRISE DO SAHEL OCIDENTAL pudessem ser educadas na fé cristã e não se cansava de pedir emissários e padres para instruir a população. Mas a política portuguesa não tinha como objetivo associar-se a um estado-irmão na África, e sim assimilar o Congo para a corte de Lisboa e a cristandade. Aos poucos, o manicongo foi perdendo o controle do seu reino e os emissários, que sempre chegavam em número menor do que ele pedia, serviam mais como intermediários para a dominação. A partir da ilha de São Tomé, na costa africana, não muito longe da foz do rio Congo, os flibusteiros portugueses comandados por Fernando de Melo tomaram conta do tráfico de escravos do continente. Nem as crianças da escola escaparam. Por fim, a região foi totalmente submetida à autoridade portuguesa (inclusive religiosamente, pois São Tomé foi transformada em sede da diocese que englobava o Congo) e desabou diante da sanha escravizadora dos portugueses. Em 1665, na localidade de Ambuíla, houve um grande enfrentamento militar entre tropas luso-africanas, que contavam com brasileiros, e tropas do reino do Congo, que foram completamente destruídas apesar de se estimar que contassem com mais de cem mil homens. Nessa batalha morreram o rei do Congo (dom Antônio I), pessoas importantes da nobreza congolesa e soldados. Do lado português morreram vinte e cinco soldados (dos quais apenas um era branco) e feriram-se 161 pessoas (apenas onze eram portugueses). A partir desta batalha o reino do Congo entrou num processo de desagregação e de guerras entre suas diferentes províncias. O poderoso reino havia sido reconhecido como cristão na Europa no século XVI, quando fornecia escravos e cobre aos portugueses, nunca mais voltou a força de antes. Depois desse período conturbado, os portugueses foram aprofundando suas raízes em Angola, passando a privilegiar as alianças e formas mais sutis de dominação, deixando que as guerras fossem travadas entre os africanos apenas. (SOUZA, 2007). Nem todos os problemas que a África atravessou a partir do século XVI podem ser creditados diretamente à escravidão ou aos europeus. Os próprios africanos, como vimos, engajaram-se no tráfico de escravos, fornecendo os cativos para os navios europeus. Porém, não foi apenas desta forma que os africanos lutaram entre si. Houve diversos episódios, pelo menos a partir do século XVI, em que eles próprios contribuíram para enfraquecer outros povos africanos. Lembre-se sempre de que não existia, entre eles, o conceito de África como uma terra explorada e dominada que deveria se unir por um bem maior e expulsar os dominadores. Desta forma, os conflitos entre povos africanos não são em nada diferentes dos conflitos entre povos de quaisquer regiões do mundo, nem depõem contra o caráter dos africanos em geral. Para exemplificar essa relação de conflito entre as sociedades africanas associadas ao tráfico de escravos descreve-se um episódio de luta entre dois povos africanos, que UNIDADE 3TÓPICO 3160 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A ocorreu durante o início da busca europeia por escravos e que contribuiu grandemente para o enfraquecimento das regiões do sul do Saara e, com isso, possivelmente, para o fortalecimento da escravidão moderna: a destruição, pelos sultões do Marrocos, do reino do Songhai. Durante muito tempo, o Marrocos havia exercido apenas um papel de intermediário no comércio transaariano, em uma relação que era benéfica tanto para o próprio país quanto para as regiões do Sahel. Foi dessa forma que puderam prosperar os reinos de Gana, do Mali e do Songhai. No entanto, no século XVI, os sultões do Marrocos passaram a voltar os olhos cobiçosos para o outro lado do deserto, desejando conquistar as ricas minas de sal de Teghazza. Após algumas incursões sobre o Sahel, no terceiro quartel do século XVI – em uma delas, em 1578, morreram o sultão Mohammed XI, o rei Sebastião I de Portugal e o sultão Abdul Malik –, o sultão Al-Mansur aproveitou-se de uma crise no Songhai para invadir a região, inclusive com o apoio de mercenários ingleses e espanhóis e armas de fogo. Como resultado, o Songhai foi saqueado e dividido e a anarquia passou a ser a norma dali em diante. Os longos períodos de crise social, fome e epidemias que assolaram a região nos séculos seguintes podem ter relação com essa decadência. Períodos de inundações, alternados com períodos de seca, destruíram a economia da região e praticamente reduziram as opulentas regiões do Sahel ocidental a um estado selvagem. Esta situação de desorganização política contribuiu, em grande medida, para o fortalecimento da escravidão na região. O tráfico de escravos aumentou o número de guerras, os atos de violência contra aldeias e pessoas desprotegidas fortaleceu os chefes guerreiros, influindo na história dos reinos que com ele se envolveram, uns sendo superados por outros conforme mudam as zonas de apresamento e as rotas de comércio. Além disso, o tráfico e a presença de portugueses em algumas regiões africanas como Angola e Moçambique promoveram a criação de uma sociedade mestiça, na cor, na pele e nos hábitos, misturando formas de ser africanas e formas de ser europeias. (SOUZA, 2007). 3 AS TROCAS DE ELEMENTOS CULTURAIS Se o comércio de escravos provocou transformações internas no continente africano, como vimos anteriormente. A inserção de milhares de africanos na Europa e nas colônias da América, também provocou profundas transformações nas sociedades que os receberam. De acordo com Thornton (2004), a atuação do africano no mundo atlântico teve um duplo impacto. Por um lado, eles foram trazidos para trabalhar e servir, e, em razão do esforço pessoal e de seu grande número, contribuíram significativamente para a economia. Por outro lado, eles trouxeram uma herança cultural de linguagem, estética e filosofia que ajudou a formar a nova cultura do mundoatlântico. Esses elementos da dupla contribuição dos africanos UNIDADE 3 TÓPICO 3 161 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A eram inter-relacionados. De muitos modos a natureza do trabalho dos africanos e seu lugar na economia e nas sociedades do Atlântico colonial também concorreram para moldar seu papel como atores culturais ao permitir ou negar seu acesso aos prazos, às matérias-primas e à supervisão da produção. Nesse sentido, a inserção do africano na Europa e nas colônias na América configuraram e condicionaram seu papel como transmissores de uma cultura africana e fomentadores de uma nova cultura afro-atlântica, a qual eles também compartilharam com os nativos da América, com europeus e com euro-americanos. Apesar das dinâmicas do comércio, das condições de travessia do Atlântico, das condições de trabalhos a que foram submetidos, não podemos entender o africano como um mero receptor de cultura nas sociedades europeias e americanas, eles foram também, doadores, transmissores e mantenedores de elementos culturais que configuraram a cultura nesse lugares. Isto é, a viagem da África até os locais de recepção de escravos e posterior distribuição, não tornaram submissos os africanos. Não os anularam culturalmente, ao contrário, as sociedades africanas encontraram meios, criaram estratégias para manter, transformar e transmitir elementos culturais vindos da África. Todavia, não podemos pensar que esses escravos recomeçaram uma cultura africana no Novo Mundo. O fato de terem encontrado pessoas de sua nação que ajudaram a manter vivos elementos culturais como: linguagem, crenças, estética, entre outros, não significa que elas tenham se mantido intactas. Afinal, eles encontravam-se em um novo mundo, onde novos elementos culturais perpassavam o cotidiano desses africanos. Para reforçarmos esse apontamento buscamos subsídio em Thornton (2004), que também afirma que os africanos trazidos como escravos para o Novo Mundo, entravam em um novo cenário, com um sistema político, econômico, social e cultural diferentes. Eles comunicavam- se com pessoas que não compartilhavam sua herança e não eram seus vizinhos na África, inclusive europeus e euro-americanos. Mesmo que fossem capazes de transmitir sua cultura para uma nova geração, ela não seria a mesma da África. A cultura afro-americana tornou-se muito mais homogênea do que as diversas culturas africanas que a compuseram, fundindo-as e incorporando a cultura europeia. Nesse aspecto, podemos citar a cultura brasileira que é o resultado de sincretismos e justaposições de elementos culturais indígenas, africanos e europeus. UNI Caro(a) acadêmico(a)! Para aprofundar mais essa relação de trocas culturais entre as sociedades em que os africanos foram inseridos e a cultura das diferentes sociedades africanas, recomendamos a seguinte bibliografia: THORNTON, John K. A África e os africanos na formação do mundo atlântico, Rio de Janeiro: Elsevier – Campus, 2004, em específico os capítulos 7 e 8, que tratam dessa justaposição cultural na perspectiva de compreender o africano enquanto mantenedor, receptor e transmissor de cultura. UNIDADE 3TÓPICO 3162 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A Neste tópico você estudou que: • O impacto da presença europeia sobre o continente africano foi devastador. Em diversas regiões do continente, as sociedades se desagregaram por causa do comércio de escravos. • O tráfico de escravos instalava a guerra, a violência intratribal e intertribal. • O contato dos portugueses com o Congo foi muito facilitado pelo fervor religioso do manicongo. • O tráfico de escravos aumentou o número de guerras, os atos de violência contra aldeias e pessoas desprotegidas fortaleceu os chefes guerreiros, influindo na história dos reinos que com ele se envolveram, uns sendo superados por outros conforme mudam as zonas de apresamento e as rotas de comércio. • A inserção de milhares de africanos na Europa e nas colônias da América, também provocou profundas transformações nas sociedades que os receberam. • Apesar das dinâmicas do comércio, das condições de travessia do Atlântico, das condições de trabalhos a que forma submetidos, não podemos entender o africano como um mero receptor de cultura nas sociedades europeias e americanas, eles foram também, doadores, transmissores e mantenedores de elementos culturais que configuraram a cultura nesses lugares. RESUMO DO TÓPICO 3 UNIDADE 3 TÓPICO 3 163 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A Exercite suas atividades estudadas, resolvendo as questões a seguir: 1 As consequências do comércio de escravos foram significativas para o continente africano. Elabore um texto indicando essas consequências. 2 Qual a relação do Congo com o cristianismo? 3 De acordo com Thornton (2004), a atuação do africano no mundo atlântico teve um duplo impacto. A partir desta colocação, redija um texto enfatizando a presença do africano no mundo atlântico. AUT OAT IVID ADE � UNIDADE 3TÓPICO 3164 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A H I S T Ó R I A D A Á F R I C A A DIÁSPORA AFRICANA 1 INTRODUÇÃO TÓPICO 4 UNIDADE 3 Em 1442, o português Antão Gonçalves raptou, na costa atual Mauritânia, um casal de africanos, que foram levados para Portugal, como prova de que estivera na “Terra dos Negros” (KI-ZERVO, 1972). Este fato dá início à modalidade do tráfico que iria modificar as estruturas sociais, econômicas, políticas e culturais da África e de outros países. Podemos considerar que foram ou europeus, talvez os portugueses, que introduziram essa forma degradante de escravidão, em que o africano era transformado em objeto, em mercadoria valorável economicamente e desprovido de qualquer direito. Nos primeiros 150 anos do tráfico, os portugueses foram quase os únicos a comercializar escravos. No entanto, já no século XVII, holandeses, dinamarqueses, espanhóis, franceses e ingleses passaram a compor esse cenário com impacto crescente para o continente africano. No século XVIII e XIX, as elites coloniais e pós-coloniais no continente americano (brasileira e cubana) passaram a fazer parte da comercialização de escravos africanos. O tráfico negreiro provocou um dos maiores deslocamentos populacionais da história da humanidade. O banco de dados coordenado pelo professor David Eltis, da Universidade de Emory, nos Estados Unidos, apresenta informações que, entre os séculos XVI e XIX mais de 12,5 milhões de africanos foram capturados, escravizados e exportados para a Europa, América e algumas ilhas localizadas no oceano Atlântico. Todavia, nem todos resistiram a vigem, estimasse que destes 12,5 milhões de africanos, somente 10,7 milhões teriam completado a travessia atlântica. Assim, este tópico tem o objetivo de refletir o mecanismo que retirou da África milhares de pessoas e as inseriu em uma nova realidade bem como visualizar os números do tráfico atlântico. UNIDADE 3TÓPICO 4166 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A DIC AS! Prezado(a) acadêmico(a)! Estudiosos do tráfico africano, entre eles encontram-se o professor David Eltis, da Universidade Emory (EUA); o professor Manolo Florentino da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); o professor David Richardson, da Universidade de Hull (Inglaterra), criaram um banco de dados que pode ser consultado online. Para acesso, buscar o seguinte endereço: <www. slavevoyages.org>. 2 O PIONEIRISMO PORTUGUÊS A historiografia aponta várias ações para o pioneirismo português em relação às navegações do século XV. Entre elas, encontram-se a formação de um estado centralizado, e a localização geográfica que favorecia este país,localizado na Península Ibérica. Em 1434, os portugueses abriram caminho para a exploração da África subsaariana, depois de cruzarem o Cabo Bojador. Este marco representa o avanço dos portugueses sobre o continente africano. O cabo Bojador conhecido também como Cabo do Medo ou Cabo Não, está localizado na costa do Saara Ocidental e era considerado um ponto intransponível para a época. Lendário e temido pelos europeus por acreditarem que este ponto marcava o início do fim do mundo e começo do chamado Mar Tenebroso. Acreditava-se que se a barreira de recifes fosse ultrapassada, o caminho seria sem volta. O imaginário da época acreditava que os ventos empurravam as embarcações para um abismo e que monstros marinhos habitavam a região. Em 1434, Gil Eanes, navegador de Sagres, ultrapassa esta barreira marcando uma das ações mais importantes da navegação portuguesa. FONTE: Disponível em: <http://epoca.globo.com/ especiais/500anos/990830.jpg>. Acesso em: 24 maio 2010. FIGURA 33 – CABO BOJADOR UNIDADE 3 TÓPICO 4 167 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A Nas primeiras décadas de 1470, os portugueses chegaram à Baía de Biafra, na região dos atuais Nigéria e Camarões. Todavia, o principal objetivo era a busca por terras, mercados, ouro e uma rota marítima para chegar ao Oriente. A mão de obra africana, não era, ainda, o principal objeto de interesses dos portugueses. Ao longo dos anos, os portugueses foram conquistando e se instalando nas ilhas do Atlântico e começaram a utilizar o trabalho forçado africano. Um exemplo foi a implantação do modelo de exploração mercantilista em São Tomé, que seria, posteriormente, implantado em boa parte das Américas. Este modelo baseava-se no tripé propriedade, monocultivo e trabalho escravo. O uso da mão de obra escrava africana seria transposto para outras regiões da Europa e para as colônias na América. O pioneirismo significou para os portugueses um predomínio quase absoluto no início do tráfico. O primeiro concorrente foi a Espanha que atraído pelo ouro e pelo comércio de escravos, recorreu ao papa (lembrando que os reinos de Portugal e da Espanha eram reinos Católicos, isto justifica a recorrência à autoridade máxima da Igreja Católica), para reivindicar também a participação nos negócios com a costa africana. No entanto, o papa deu causa de ganho para os portugueses que continuaram dominando as relações comerciais na costa africana. Nesse período, a descoberta e a conquista da América acarretaram um novo impulso ao comércio de escravos. Os lusitanos comercializavam com os espanhóis através de sistema de asientos, este era o nome dado a uma permissão que a coroa espanhola concedia aos seus súditos para comercializar escravos com a coroa portuguesa. As plantações surgidas no Caribe e a montagem dos sistemas mineradores estimularam a inserção de africanos nas colônias espanholas. Os primórdios do tráfico atingiram a costa atlântica. O principal polo de exportação era a África Ocidental, região que englobava o território entre os atuais Senegal e Camarões. Sendo que a região da Senegâmbia representava a principal fonte de venda de cativos, sendo seguida pela região congo-angolana. Na segunda metade do século XVI aparecem as primeiras ameaças concretas ao comércio negreiro português. Após a Reforma Anglicana, os ingleses iniciaram uma intensa expansão marítima. Atraídos pelo ouro, a Inglaterra iniciou uma exploração sistemática ao litoral africano, logo chegando a Baía de Benin. Semelhante, ao que ocorreu com os portugueses, o comércio de escravos não era inicialmente o objetivo principal dos ingleses. Todavia, não podemos pensar que os ingleses não se interessavam ou comercializavam escravos, pelo contrário, negociavam africanos por meio de pirataria contra naus portuguesas. O interesse inglês pelo comércio negreiro se intensificará a partir de 1570. Os franceses, assim como os ingleses também não constituíram um interesse primordial pelo comércio de escravos. No século XVI, o tráfico francês se restringia ao litoral entre os rios Senegal e Gâmbia. UNIDADE 3TÓPICO 4168 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A 3 A DISPUTA PELA COSTA AFRICANA 4 O APOGEU DO TRÁFICO Se no século XVI, o comércio de africanos não se configurava no principal objetivo das potências europeias, no século XVII este cenário foi diferente. Outros países (França, Inglaterra, Espanha, entre outros), passaram a traficar. Os novos países traficantes, assim como os portugueses, criaram feitorias e fortes ao longo do litoral. As colônias na América viviam um período de desenvolvimento das grandes fazendas especializadas na produção de um único produto para exportação, chamado de sistema de plantation. A base desse sistema era o trabalho escravo. Na América portuguesa, a cana de açúcar requisitava extensa e intensa mão de obra que era suprida com a vinda de escravos da África. O boom desse sistema aumentou extraordinariamente a demanda por escravos no século XVII, os europeu importavam quase sete vezes mais africanos do que no século anterior. Nesse período, a Holanda também passa a interessar-se pelo tráfico de escravos e se constituirá numa ameaça ao comércio negreiro português. Os holandeses constroem fortes na África. O primeiro deles, o forte Nassau, foi construído na Costa do Ouro em 1611. Na Senegâmbia, os holandeses construíram dois fortes na ilha de Goréa, na costa do Senegal. Em 1638, entraram em conflito direto com os portugueses instalados na região. Esse conflito resultou no deslocamento dos portugueses do forte em Elmina, localizado na região da atual Gana, para a Baía de Benin e Biafra. Nesse período, os franceses já haviam instalado uma feitoria na região de Ajudá (costa do Benin). Em 1670, os franceses expulsaram os holandeses do Senegal. Os holandeses também entraram em conflitos com os ingleses. Na Costa do Ouro, por exemplo, os holandeses perderam o domínio do comércio negreiro. E a Inglaterra consolidou seu poder nessa região, dominando também o comércio em partes do Senegal e Serra Leoa. Todavia, a corrida por escravos não se restringiu à África Ocidental, no século XVII, outras partes da África iniciaram a diáspora africana. A Inglaterra do século XVIII foi palco de um período de significativas transformações econômicas. A Revolução Industrial vivida pela Inglaterra neste século influenciou diretamente no tráfico de escravos. O sul dos Estados Unidos, no século XVIII, se especializava na produção UNIDADE 3 TÓPICO 4 169 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A de algodão que abastecia a nascente Revolução Industrial na Inglaterra. As plantations na América do Norte comercializavam escravos africanos para serem utilizados como mão de obra nas fazendas de algodão que seria exportado para a metrópole inglesa e aqueceria a indústria têxtil nesse país. No Brasil, a extração de ouro na região de Minas Gerais demandava o trabalho escravo. E, nas colônias espanholas, a produção açucareira atingiu seu desenvolvimento máximo, com destaque para Saint-Domingue (atual Haiti). Essas atividades econômicas, dependentes do trabalho escravo, foram responsáveis pela vinda de cerca de 5,6 milhões de africanos para as Américas no século XVIII. Portugueses, ingleses, franceses e holandeses disputavam ferozmente o controle das rotas negreiras. Em 1760, algumas regiões da África Ocidental poderiam ser identificadas a partir do comprador europeu. A primeira, de domínio francês, correspondia à região do cabo Branco, na atual fronteira entre o Marrocos e a Mauritânia, até Serra Leoa. Porém, os ingleses circulavam e monopolizavam o comércio de escravos entre o rio Casamansa no atual Senegal e Serra Leoa. Outraregião da costa africana estava sob o monopólio do holandeses e se estendia da região entre os cabos Palma e Três Pontas (no atual Gana). O mais disputado ponto costeiro era a região leste que se estendia do cabo Três Pontas ao rio Volta. Nesta região, a hegemonia inglesa era indiscutível. Porém, outras nações tentaram dominar o comércio, como os holandeses. Na região leste localizavam-se ainda outros dois pontos costeiros exportadores de escravos. O primeiro era a faixa litorânea que se estendia do rio Volta até Badagri, na atual Nigéria e o segundo localizava-se até o cabo Formosa, essas duas zonas sofreram a presença portuguesa. UNIDADE 3TÓPICO 4170 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A FONTE: Disponível em: <http://lh4.ggpht.com/_5ZVfrqNx7ZM/S19fsL2AcxI/AAAAAAAAPzc/ XIfRX8eGtmk/Fluxo%20de%20escravos%201601-1700%5B11%5D.jpg>. Acesso em: 23 maio 2010. Se as primeiras décadas do século XVIII foram responsáveis pela inserção de aproximadamente 5,6 milhões de africanos, as últimas décadas deste século foram responsáveis pelo início do fim do tráfico africano. O cenário europeu, no final do século XVIII, foi marcado por turbulências políticas, econômicas, sociais que culminaram em reivindicações pelo fim do tráfico de africanos. A primeira turbulência é marcada pela Independência das colônias inglesas na América em 1776 (reconhecida pela Inglaterra em 1783 depois de uma longa guerra), seguida pela Revolução Francesa, em 1789, que culminou na disseminação de um discurso onde os ideiais de igualdade contribuiriam para a proibição do comércio negreiro, primeiro na Inglaterra. Na América, a revolução Haitiana em 1791, também foi importante para o fim do tráfico e representou a independência do Haiti no início do século XIX. 5 O COMÉRCIO ILEGAL DE AFRICANOS As transformações ideológicas no final do século XVIII abriram caminho para a ascensão da burguesia e do capitalismo. Na França, após a Revolução de 1879, os traficantes franceses tiveram suas atividades proibidas pelo governo francês, que passaram a estimular outros tipos de comércio com os povos africanos. A Inglaterra mergulhada num intenso processo de industrialização, de aperfeiçoamento técnico, de expulsão dos camponeses das terras que cultivavam e de concentração de mão de obra barata nos centros urbanos, onde se localizavam as indústrias. Estas precisavam de matérias-primas, que seriam transformados em produtos FIGURA 34 – FLUXO DE ESCRAVOS 1701-1800 UNIDADE 3 TÓPICO 4 171 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A industrializados consumidos por cada vez mais pessoas. (SOUZA, 2007). Pioneira no processo de industrialização na Europa, a Inglaterra tornou-se a principal entusiasta destas transformações. Tendo abolido o comércio de seres humanos a partir de maio de 1808 e a própria escravidão em suas colônias em 1833, os ingleses passaram a defender intensamente a supressão do tráfico internacional de escravos junto às demais nações europeias e americanas, conseguindo enorme progresso a partir de 1820. A Inglaterra deu início a uma série de ações para coibir o tráfico de africanos para as Américas. Para aprofundarmos um pouco mais sobre as ações inglesas de repressão ao tráfico negreiro, vamos ler um trecho do texto de Fábio Konder Comparato, onde o autor traça um panorama dessas estratégias inglesas de supressão ao tráfico. [...] No tratado de aliança e amizade entre a Inglaterra e Portugal, assinado no Rio de Janeiro em 1810, o príncipe regente português, declarando-se “plenamente convencido da injustiça e má política do comércio de escravos”, obrigou “a que aos seus vassalos não será permitido continuar o comércio de escravos em outra parte da Costa da África que não pertença atualmente aos domínios de Sua Alteza Real”. Por cláusula secreta do mesmo tratado, D. João, em troca dos bons ofícios da Inglaterra para a restituição a Portugal de alguns territórios, notadamente aquele compreendido nos antigos limites da América Portuguesa ao lado de Caiena, comprometeu-se a abolir de pronto todo o comércio e tráfico de escravos nos estabelecimentos de Bissau e Cacheu. Cinco anos mais tarde, por um tratado assinado em Viena com a mesma Inglaterra, Portugal declarava proibir doravante, a todos os seus nacionais, “o comprar escravos ou traficar neles em qualquer parte da costa da África ao Norte do Equador”. Esse compromisso foi complementado por uma convenção assinada em Londres, em 1817, pela qual se reconhecia à Inglaterra o direito de visita e busca das naus portuguesas, suspeitas de servirem ao tráfico negreiro. Os tratados de paz de Paris de 1814 e 1815, bem como as Declarações do Congresso de Viena de 1815 e a Declaração de Verona de 1822, reconhecendo que o tráfico de escravos violava “os princípios de justiça e de humanidade”, exortaram os Estados signatários a tomar, cada qual no âmbito de sua competência, as medidas apropriadas para reprimi-lo. Os tratados de 1831 e 1833 entre a França e a Grã-Bretanha, o tratado de Londres de 1841 e o tratado de Washington de 1862 ocuparam-se da repressão do transporte de escravos africanos por via marítima, estabelecendo poderes recíprocos de visita, busca e captura dos navios suspeitos de servir ao tráfico negreiro. UNIDADE 3TÓPICO 4172 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A Tornado independente, o Brasil celebrou com a Inglaterra, em 1826, uma convenção, segundo a qual o tráfico que se fizesse depois de três anos da troca de ramificações seria equiparado à pirataria. Em 1835 a Inglaterra, verificando o reiterado descumprimento dessa convenção, conseguiu obter do Brasil a aceitação de alguns artigos adicionais ao texto de 1826. Mas tudo continuou letra morta, levando o parlamento britânico a votar, em 1845, o chamado Bill Aberdeen, pelo qual os cruzadores ingleses foram autorizados a apresar os navios negreiros Brasileiros, mesmo em alto-mar, e submetê-lo a julgamento perante as Cortes do Almirantado. Uma das justificativas britânicas para esse recurso unilateral à força foi o fato de que, pelo tratado de 1826, o transporte ilegal de escravos por via marítima seria considerado um ato de pirataria. Foi apenas cinco anos mais tarde, em 4 de setembro de 1850, poucos meses depois que o Almirantado britânico havia dado ordem a seus navios de guerra para fazerem a repressão ao tráfico até mesmo em águas e portos do Brasil, que a Assembleia Geral do Rio de Janeiro votou a lei Eusébio de Queiroz, proibindo o tráfico negreiro e estabelecendo severas punições para os infratores. Em 1885, com o continente africano praticamente ocupado in totum pelas potências europeias, o Ato Geral da Conferência de Berlim procurou reprimir não apenas o tráfico, como também a própria prática da escravidão. Mas as suas disposições aplicavam-se apenas à região do Congo. Finalmente, toda essa série de tratados culminou com a assinatura do Ato Geral da Conferência de Bruxelas, 1890, subscrito por dezessete Estados, o qual estendeu as medidas de repressão do tráfico a toda a África negra e criou a primeira organização internacional encarregada de coordenar as medidas repressoras. Num texto longo, (quase 100 artigos), em estilo de regulamento administrativo, foram tomadas disposições pormenorizadas de proteção à populações autóctones e de repressão ao tráfico negreiro. O acordo admitiu, porém, expressamente, a continuidade da escravidão doméstica, nos países signatários onde ela ainda subsistia. Não obstante representar um inegável avanço no campo da proteção internacional dos direitos humanos, o Ato Geral da Conferência de Bruxelas realizou o consenso da comitas gentium quanto à repressão do tráfico negreiro, no momento em que elese tornava praticamente insignificante no âmbito mundial. Os Estados Unidos haviam posto fim ao ciclo escravocrata com a guerra civil de 1860-65. No Brasil, que fora o principal mercado importador de escravos na primeira metade do século, o tráfico reduziu-se drasticamente após a lei proibidora de 1850 e o próprio instituto da escravidão foi abolida dois anos antes da assinatura do Ato Geral de Bruxelas. Recentemente, estimou-se que a importância do tráfico de escravos no total do comércio africano com as Américas, após atingir um pico de 94% no final do século XVIII, declinou para 81% em torno de 1820, chegando a menos de 1% a partir de 1860. FONTE: Disponível em: <http://africanomundo.blogs.sapo.pt/2007/10/?page=2>. Acesso em: 30 jun. 2010. UNIDADE 3 TÓPICO 4 173 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A Por detrás das pressões britânicas, estava a consciência da forte dependência do escravismo brasileiro em relação à importação de africanos. Sem esta, a escravidão com força preponderante de trabalho no Brasil estaria com os seus dias contados. Ou seja, o corte no fornecimento de escravos, oriundos da África, iria produzir uma séria falta de braços no Brasil e desferir grande golpe no sistema monocultor brasileiro. Nesse aspecto, a interrupção do tráfico seria um golpe mortal para o sistema econômico no Brasil. Na América, Cuba e Brasil foram os últimos países da América a traficar escravos pelo Atlântico. 6 OS NÚMEROS DO TRÁFICO A migração forçada de milhões de africanos e a escravidão atlântica foram capítulos traumáticos e complexos da história. Durante 400 anos, africanos foram retirados de suas terras e inseridos em outras partes do mundo sendo forçados e submetidos a mais degradante forma de escravidão. Os dados a seguir apresentam um panorama estatístico do número de africanos que foram forçados a deixar a África e inseridos em uma nova realidade, a escravidão. Os dados que compõem as tabelas, foram retirados do endereço site <www.slavevoyages. org>. Esta plataforma digital apresenta uma quantidade de informações referentes ao tráfico atlântico, sendo o resultado de pesquisas realizadas por diversos estudiosos do continente africano como: Manolo Florentino, David Eltis, entre outros. Escravos Exportados da África % Século XVI 277.505 2,22 Século XVII 1.875.631 14,98 Século XVIII 6.494.619 51,87 Século XIX 3.873.582 30,94 Total 12.521.337 100,00 TABELA 1 – APRESENTA O NÚMERO DE ESCRAVOS EXPORTADOS DA ÁFRICA TABELA 2 – APRESENTA O NÚMERO DE ESCRAVOS DESTINADOS A DIFERENTES REGIÕES FONTE: Disponível em: <www.slavevoyages.org>. Acesso em: 24 maio 2010. FONTE: Disponível em: <www.slavevoyages.org>. Acesso em: 24 maio 2010. Regiões de Desembarque % Brasil 4.864.374 45,41 Caribe Britânico 2.318.252 21,64 América Espanhola 1.292.912 12,07 Caribe Francês 1.120.215 10,46 América Holandesa 444.728 4,15 América do Norte 388.746 3,63 Caribe Dinamarquês 108.998 1,02 Europa 17.722 0,16 África 155.569 1,45 Total 10.711.516 100,00 UNIDADE 3TÓPICO 4174 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A 7 A TRAVESSIA ATLÂNTICA Os dados apresentados pelas tabelas no item anterior, revelam que o comércio de escravos africanos atingiu proporções gigantescas. No entanto, é necessário percebê-lo como algo além de números e estatísticas. Não podemos deixar de pensar na dimensão humana e o que essa experiência representou na vida dos milhares de africanos cativos trazidos da África e que foram introduzidos nas várias regiões que se utilizaram da mão de obra escrava. A experiência vivida por aqueles que foram brutalmente arrancados de sua terra natal e cruzaram o Atlântico para uma vida de exploração conta com poucos relatos. Apesar disso, podemos ver nas descrições disponíveis, outra faceta do horror que marcou essa gananciosa ação. Depois de capturados e negociados com os mercadores europeus, os africanos apresados sofriam várias punições físicas e eram submetidos a diversas privações. A falta de alimento era uma das terríveis táticas pela qual os traficantes buscavam garantir o controle dos africanos escravizados. Quando alimentados (a alimentação era escassa e controlada), os africanos recebiam uma débil dieta composta por carne seca, farinha de mandioca, feijão e um pouco de arroz. A ausência de nutrientes provocava doenças como, por exemplo, o escorbuto, provocado pela carência de vitamina C, a fama dessa doença acabou fazendo com que fosse também popularmente conhecida como “o mal de Luanda”, região de onde saía uma significativa quantidade de escravos para o Novo Mundo. No século XVI, as taxas de mortalidade nos navios negreiros variavam de acordo com a distância entre o porto de exportação e o de recepção. Estima-se que 30% dos africanos transportados, não chegavam ao local de desembarque. A precariedade da tecnologia naval, naquele período, contribuiu para essa mortalidade, as embarcações não possuíam condições adequadas para o transporte. No entanto, não podemos pensar que a situação dos africanos a bordo dos navios se resumia à completa desolação. Para que o número de escravos mortos durante a viagem diminuísse, alguns marinheiros organizavam pequenos grupos que circulavam pelo navio para se exercitar e tomar um pouco de sol. Dessa forma, as “mercadorias” poderiam ser valorizadas nas praças do continente americano. Essas medidas para garantir o desembarque da “mercadoria”, surtiram efeitos. No século seguinte, a mortalidade média dos escravos caiu substantivamente em relação ao século XVI, e fixou-se na média de 20% por viagem. Já no século XVIII, essa média diminuiu para 14% por viagem. O medo de motins era uma constate dentro dos navios negreiros. Os comerciantes de escravos temiam que os africanos se revoltassem durante as longas viagens. No longo período UNIDADE 3 TÓPICO 4 175 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A em que permaneciam juntos, muitos africanos passavam a se solidarizar e tramar planos de rebelião contra seus algozes. Por isso, era sempre importante ter algum marinheiro ou tripulante que fosse capaz de compreender aquilo que era conversado entre os cativos. Além disso, os africanos eram mantidos longe das armas, principalmente as armas de fogo. Acreditando que a experiência vivida nos navios negreiros marcaria os últimos instantes de sua vida, muitos escravos manifestavam certa alegria ao chegarem vivos na costa americana. A oportunidade de sobreviver aos horrores em alto mar era um alento que transformava a preservação de si em uma missão diária. Dessa forma, vários dos traços do mosaico cultural africano influíram em diversas práticas das culturas dos povos americanos. A seguir apresentamos imagens de navios negreiros, para que sejam observadas as condições de transporte desses escravos. FONTE: Disponível em: <http://4.bp.blogspot.com/_5aOFOu8RCys/SV1KpMl8XI/AAAAAAAAABs/ WTJ9O9crKAA/S742/bn2f523(navio).jpg>. Acesso em: 25 maio 2010. Os navios negreiros representam a ligação entre a África e o comércio de seres humanos destinados a suprirem a demanda de trabalho escravo na Europa e nas colônias da América. Nos porões das embarcações negreiras, milhares de seres humanos foram trancados e obrigados a viverem longos períodos de privações. Muitos morreram na travessia. Mas, os que sobreviveram foram enviados para trabalharem em diversas funções que demandavam trabalhos escravos. Desta forma, sugerimos que seja realizada a leitura do texto a seguir, comparando-a a imagem queilustra o Livro Viagem Pitoresca e histórica ao Brasil. Esta imagem foi pintada FIGURA 35 – ESQUEMA DE UM NAVIO NEGREIRO PUBLICADO POR ABOLICIONISTAS NO SÉCULO XIX UNIDADE 3TÓPICO 4176 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A pelo artista bávaro Johan Moritz Rugendas em 1835, e retrata as condições de transporte a que eram submetidos os africanos nos porões dos navios negreiros. Cabe aqui lembrar, que nos deparamos com esta imagem nos livros didáticos que tratam deste capítulo da História. FONTE: Disponível em: <http://racismoambiental.net.br/images/navio-negreiro- rugendas.jpg>. Acesso em: 24 maio 2010. A TECNOLOGIA A SERVIÇO DO COMÉRCIO DE HUMANOS Quando imaginamos um navio negreiro, a imagem que nos vem à mente é a de um porão apertado e repleto de gente que quase não cabe naquele espaço escuro. Algo bastante semelhante à a conhecida pintura do pintor e viajante bávaro Johann Mortiz Rugendas, Negros no porão do navio, feita por volta de 1835. Nessa e em outras figuras bastante divulgadas, com os cortes longitudinais de navios negreiros, o porão é a representação mais comum do tráfico, independentemente do tempo e das mudanças que tenham ocorrido na forma de construir essas embarcações. Focalizando os porões reduzidos, escuros e repletos de escravos, essas imagens cristalizadas do tráfico fazem dos navios negreiros um objeto sem história, pois parecem ter sido iguais em todos os tempos e lugares. As gravuras de Rugendas ou os desenhos divulgados nos escritos abolicionistas do século XIX são praticamente as únicas representações desse tipo de embarcações e foram transformados em retratos fiéis desse espaço físico, como se ele não tivesse sofrido transformações entre os séculos XVI e XIX. Os traficantes foram pioneiros no uso de novas tecnologias. Em meados do século XVIII, por exemplo, capitães negreiros ingleses, brasileiros e portugueses começaram a encomendar navios com uma camada de cobre que protegia o casco. O custo era alto, mas garantia mais velocidade e durabilidade às embarcações, dificultando a fixação de cracas no casco. FIGURA 36 – NEGROS NO PORÃO DO NAVIO UNIDADE 3 TÓPICO 4 177 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A Contudo, a maior novidade tecnológica veio no século XIX, quando os navios passaram a usar as máquinas a vapor, que já eram utilizadas no Brasil desde a década de 1830. Esses aparatos facilitavam a viagem, mas apresentavam desvantagem de ocupar muito espaço no porão. As tecnologias levaram à criação de novas formas de execução do trabalho a bordo, permitindo, até mesmo, uma diminuição no número de tripulantes (ainda que, nos navios negreiros, a tripulação continuasse grande para reprimir possíveis revoltas a bordo). As novidades também tiveram consequências na vida dos escravos embarcados, por diminuírem o tempo da viagem e, assim, aumentarem as chances de sobrevivência de quem vinha no porão. FONTE: Rodrigues, J. Revista História Viva, Ano VI, n. 66. A partir do texto, podemos perceber que havia uma preocupação por parte dos traficantes, em buscarem estratégias para garantir a chegada das “mercadorias humanas”, nos porto de recepção e posterior distribuição desses cativos. UNIDADE 3TÓPICO 4178 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A Neste tópico, você estudou que: • Nos primeiros 150 anos do tráfico, os portugueses foram quase os únicos a comercializar escravos. • O tráfico negreiro provocou um dos maiores deslocamentos populacionais da história da humanidade. • A descoberta e a conquista da América acarretou um novo impulso ao comércio de escravos. • No século XVII, outros países da Europa comercializaram escravos. Entre eles destacaram- se: França, Inglaterra, Espanha e Holanda. • O final do século XVIII e o início do XIX representam um boom no comércio de africanos. • No século XIX, a Inglaterra deu início a uma série de ações para coibir o tráfico de africanos para as Américas. • Durante 400 anos, africanos foram retirados de suas terras e inseridos em outras partes do mundo sendo forçados e submetidos a mais degradante forma de escravidão. • Depois de capturados e negociados com os mercadores europeus, os africanos apresados sofriam várias punições físicas e eram submetidos a diversas privações. RESUMO DO TÓPICO 4 UNIDADE 3 TÓPICO 4 179 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A Para exercitar seus conhecimentos adquiridos, resolva as questões que seguem: 1 Quais vantagens Portugal apresentava em relação aos outros países da Europa em relação ao acesso do comércio de cativos com a África? 2 No século XVII, outros países da Europa interessaram-se pelo comércio de escravos. Quais países europeus passaram a compor o cenário do tráfico negreiro? 3 Neste tópico, apresentamos o texto de Fábio Konder Comparato, que traçou um panorama das ações inglesas que objetivavam suprimir o comércio de africanos. Elabore uma síntese desse texto e apresente-o ao grupo. Busque evidenciar os interesses ingleses nessa proibição. AUT OAT IVID ADE � UNIDADE 3TÓPICO 4180 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A H I S T Ó R I A D A Á F R I C A OS AFRICANOS NO BRASIL 1 INTRODUÇÃO TÓPICO 5 UNIDADE 3 Não se pode ignorar que o tráfico de negros da África para o Brasil decorreu do processo de colonização portuguesa iniciado na segunda metade do século XV. O modelo econômico baseado na monocultura e extratividade, com utilização de mão de obra escrava, caracterizava as colonizações da época, mas nem por isso pode se deixar de ser visto e compreendido como desumano e absurdo. O tráfico de escravos da África para o Brasil faz parte da nossa história. Mesmo que se tente esquecer ou esconder, como fez Rui Barbosa quando mandou queimar a documentação existente sobre escravidão no Brasil, não se pode ignorar sua existência. Conhecer o tráfico e o comércio de escravos no Brasil é entender um pouco a importante contribuição dos africanos na formação da cultura brasileira. O Brasil recebeu mais de 4 milhões de africanos, cerca de 40% de todo o contingente desembarcado nas colônias da América (colônias inglesas, francesas, holandesas, espanholas). Todavia, enganam-se aqueles que pensam que no Brasil, os africanos foram transportados somente para o nordeste colonial, para as áreas de mineração e depois para as plantações cafeeiras do sudeste. Regiões brasileiras como a Amazônia no século XVII, o Rio Grande do Sul no século XVIII, receberam escravos que desempenharam as mais diversas funções dentro da sociedade colonial brasileira. Estes escravos também estavam presentes na criação de gado no Sergipe, nas lavouras de fumo na Bahia, no Grão-Pará, no Maranhão trabalhavam na produção de algodão, arroz e anil e ainda Goiás e Mato Grosso. O trabalho escravo constituiu-se na base da produção dirigida para a exportação, setor que mais trouxe prosperidade para o país. Na sociedade colonial brasileira, a norma era possuir escravos que fizessem os trabalhos pesados e desagradáveis e que trouxessem retorno financeiro para os seus senhores, que UNIDADE 3TÓPICO 5182 H I S T Ó R I A D A Á F R I C A tinham apenas de mandá-los e controlá-los. Mesmo após a independência política de Portugal, o trabalho escravo continuou sendo a base da economia brasileira. O escravismo foi a principal forma de utilização do trabalho africano e esteve na base da organização da sociedade brasileira durante mais de trezentos anos. Para sua manutenção, além da importância econômica, foi montado um sistema de justificação e legitimação da escravização de seres humanos. Teólogos, juristas e intelectuais argumentaram durante