Prévia do material em texto
UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS FACULDADE DE DIREITO DE ALAGOAS GRADUAÇÃO EM DIREITO CRIMINOLOGIA Prof. Hugo Leonardo Rodrigues Santos A NEUTRALIZAÇÃO DA VÍTIMA COMO PARADIGMA PRESENTE NOS CÓDIGOS PENAL E PROCESSUAL PENAL BRASILEIROS E A VIOLAÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS Autor: Luciano Soares Silvestre1 3º Período Noturno INTRODUÇÃO Os estudos sobre Vitimologia (OLIVEIRA, 1999; CORDEIRO, 2014, MOSCOVITS, 2019) demonstram que a vítima de um delito já ocupou um papel muito mais relevante na persecução penal do que ocupa atualmente. A partir da formação dos Estados Nacionais, o crime deixa de ser uma ofensa à vítima que teve seu bem jurídico lesado ou exposto a perigo de lesão, para ser visto como uma violação à lei do Estado. Quando tira o protagonismo da vítima, colocando-a num papel secundário, como mera noticiante do fato ocorrido, o Estado viola uma série de direitos fundamentais. Esse processo, também conhecido como neutralização da vítima, acaba gerando nesta um sofrimento adicional àquele que ela passou na ocorrência do delito. Isso porque a vítima busca o aparato do Estado na esperança de ser bem acolhida, ouvida e ter sua lesão reparada, quando, na realidade, se depara com uma Polícia e um Poder Judiciário preocupados com a persecução do delinquente. A temática encontra sua importância, sobretudo, quando se percebe no Brasil um descrédito acentuado, ao longo das últimas décadas, do aparelho de Estado no acossamento do delito e nas resoluções simplistas que ele propõe, sem levar em consideração o papel e a importância da vítima neste processo. Em muitos casos, por exemplo, a desistência voluntária do ofendido, tendo em vista o receio deste em dar continuidade a um processo que pode 1 Estudante de graduação do curso de Direto da Universidade Federal de Alagoas. agravar ainda mais o seu sofrimento, pode acarretar uma série de dificuldades aos órgãos do Estado na resolução do crime. DESENVOLVIMENTO Uma boa parte da doutrina chama de Idade de Ouro da Vítima ou Fase da Vingança Privada, o período no qual o conflito penal é solucionado pela própria vítima. Nesse período, é o ofendido pelo delito que assumia a persecução criminal, sendo responsável por punir pessoalmente aquele que lhe ofendera. Cordeiro (2014) destaca, porém, que nessa fase do Direito Penal não apenas a vítima podia ser a responsável pela persecução criminal, mas toda a comunidade a que ela pertencia. Sendo assim, a punição mesmo que não envolvesse um aparato estatal, representava um código de conduta de uma dada comunidade, o qual fora violado pelo ofensor. Historicamente, pode-se pontuar este período desde a formação das primeiras civilizações até o final da Idade Média. Moscovits (2015) apresenta diversas legislações penais como fonte de pesquisa, que demonstram a fase da vingança privada nesses períodos históricos. Destaca-se, por exemplo, o Código de Hamurabi (Século XVIII a.C.), codificação que consagra o famoso princípio de Talião: “Olho por olho...”. O autor comenta ainda acerca do Código de Manu (Século XII a.C.), legislação do mundo indiano que estabeleceu o sistema de castas na sociedade hindu. A mudança da vítima ocupante da posição central do conflito penal para a vítima ocupante de uma posição secundária nesse conflito se deu, sobretudo, a partir da formação dos Estados Nacionais. A paz de Westfália, um acordo de paz firmado em janeiro de 1648, após a Guerra dos 30 anos na Europa, foi responsável por ditar o formato do Estado Moderno e a conseqüente intensificação do poder das monarquias nacionais. Cordeiro (2014) afirma que esse processo ocorreu de forma lenta e não linear e que por isso não é possível indicar com precisão o momento ou o lugar em que se deu a completa neutralização do ofendido do delito. Segundo o autor, é possível apenas indicar qual o tempo em que se intensificou tal mudança. Com a formação dos Estados Nacionais, a vítima torna-se secundária não apenas na persecução criminal, mas também na dimensão do direito material. É a partir desse momento que o ofendido transforma-se em mero noticiante do fato ocorrido ao Estado, ou seja, apenas informa a lesão sofrida ao bem jurídico. Essa nova forma de organização do poder, que tem seu auge com o Estado Absolutista, moldou um Direito Penal a serviço da manutenção do status quo. Isso significa que o grande objetivo da persecução criminal era frear condutas que afrontassem essa nova estrutura de poder. Com isso, o Estado tomou para si o conflito penal de tal maneira que a vítima do delito já não era mais protagonista deste. Elas passaram a ser tratadas de maneira homogênea, alheias à solução do conflito pelo Estado, nas palavras de Cordeiro, não se levando em consideração as particularidades, necessidades e aspirações de cada vítima. O sistema penal expropria o conflito das pessoas diretamente envolvidas nele. Quando o problema cai no aparelho judicial, deixa de pertencer àqueles que o protagonizaram. A infração penal gera para a vítima um trauma físico, material e/ou psicológico. Todo esse sofrimento que a vítima tem com o acontecimento do crime, de acordo com o professor de Criminologia Lélio Braga Calhau, pode ser chamado de vitimização primária. Para além da vitimização primária, a neutralização da vítima no sistema penal, como consequência da ideia de que o delito deve ser visto como violação da lei do Estado e não como violação das relações pessoais, traz uma séria conseqüência: a intensificação do sofrimento da vítima após a infração criminal. Tal intensificação pode ser identificada como vitimização secundária ou sobrevitimização. A sobrevitimização, de acordo com Cordeiro (2014) corresponde “àquela causada pelas instâncias formais que detêm o controle sobre o âmbito social (delegacias, Ministério Público etc.) abrangendo os custos pessoais derivados da intervenção do sistema legal que incrementam os padecimentos da vítima”. Ao procurar amparo da polícia, muitas vezes a vítima não é tratada como deveria, isto é, como um sujeito de direitos, mas sim como mero objeto de investigação, na melhor das hipóteses. Esse processo de sobrevitimização é ainda pior quando a vítima encontra um aparelho estatal que faz pouco caso da sua situação. A título de exemplo, tem-se o fato ocorrido na cidade de Belo Horizonte e noticiado pelo Portal BHAZ (2019) no qual uma jovem de 23 anos desistiu de prestar queixa contra o ex-companheiro após ficar quase 9 horas aguardando na unidade local de atendimento à mulher vítima de crime de violência doméstica. Tendo comparecido ao local com uma amiga, além do filho (um bebê de colo), a vítima logo indagou os policiais acerca da prioridade, ao que teve como resposta irônica: “todos ali têm prioridade” (FERNANDES, 2019). A vítima relatou ainda que uma outra mulher presente, que tinha sido ameaçada com uma faca pelo marido também desistiu. A notícia informa que, por meio de nota, a Polícia Civil do Estado de Minas Gerais lamentou o corrido e disse que, naquele dia “registrou um movimento maior que o habitual”(FERNANDES, 2019). Tal fato revela o explícito despreparo dos profissionais responsáveis pelo amparo às vítimas de infrações criminais. Quando muito, eles consideram que o seu papel se resume à investigação. Nesse caso, até esse direito foi quebrado, tendo em vista a desistência da vítima em prestar queixa. Isso demonstra que até o papel de mero noticiante do crime vem sendo mitigado. A legislação, por seu turno, também encontra-se deficitária, como se constata no pequeno destaque dado à vítima no Código Penal, até porque, como afirma Schmidt (1999), as leis materiaisnão se destinam a proteger direitos da vítima, mas eleger os bens jurídicos relevantes da sociedade que exigem uma proteção do Estado, bem como delimitar a punição daqueles que atingirem o bem jurídico penalmente protegido. O Código Penal (1940) utiliza-se da vítima no momento de aplicação da pena. A primeira forma encontra-se prevista no artigo 59, quando permite que o comportamento da vítima seja considerado para fins da fixação da pena de acordo com a sua participação no delito. O comportamento da vítima também pode constituir uma circunstância atenuante, conforme o artigo 65, inciso II, alínea c, ou, até mesmo, como causa de diminuição de pena, no caso do homicídio privilegiado. Por outro lado, o tipo da vítima pode constituir uma causa agravante do delito, conforme o rol previsto no artigo 61, inciso II, do Código Penal (1940). Contudo, essas previsões legais que fazem referência à vítima não atuam em seu favor, pois servem apenas para aumentar ou diminuir a pena do condenado. A preocupação do Código Penal (1940) com a vítima somente é visível quando garante uma indenização decorrente da sanção penal condenatória. O artigo 91, inciso I, do Código Penal considera como efeito da condenação a obrigação de indenizar o dano causado pelo delito. Nesse caso, a sentença condenatória gera um título executivo para a vítima buscar sua indenização no âmbito cível. Com as alterações trazidas pela Lei 11719/08, o Código de Processo Penal passou a exigir, na sentença penal condenatória, a fixação de valores mínimos para a reparação do dano. Moscovits (2015) afirma que esse tratamento dispensado à vítima já rendeu ao Brasil, inclusive, uma responsabilização internacional por violações aos Direitos Humanos perante à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, na oportunidade em que foi recomendada, entre outras medidas, a multiplicação de delegacias especializadas para o atendimento à mulher, bem como a capacitação e a sensibilização dos funcionários judiciais e policiais para compreender a importância de não tolerar a violência doméstica. A realidade atual, conforme exemplo supracitado, demonstra que as autoridades policias tratam as vítimas todas da mesma maneira, como se um crime fosse igual aos outros. A vitimização secundária mostra o quão deficiente é o Sistema Penal brasileiro e como ele desrespeita os direitos fundamentais. A existência desses órgãos formais de controle social deveria ser um modo de evitar a vitimização, não intensificá-la. Ao contrário, o ofendido se frustra ao se deparar com uma prática penal que não o ouve, não o atende, que negligencia seus direitos fundamentais e que muitas vezes, além disso, ainda o faz reviver todo o horror da infração penal sofrida. Sendo a dignidade da pessoa humana um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, pode-se dizer que a forma como é estruturado o processo penal no país viola a Constituição Federal de 1988 e uma parte dos direitos fundamentais nela previstos. Isso porque o nosso sistema penal atual exclui e neutraliza a vítima, negando-lhe a dignidade. Elencados de maneira exemplificativa no artigo 5º, os direitos fundamentais trazem uma série de garantias processuais ao indivíduo que tem seu direito lesionado ou ameaçado. O inciso XXXV comenta acerca da inafastabilidade da jurisdição. Já o inciso LV garante ao indivíduo o direito ao contraditório e à ampla defesa. A persecução penal e todo o Processo Penal brasileiro acabam por violar tais princípios. Isso porque, conforme observa Barros (2013), em um Estado Democrático de Direito no qual é prevista a inafastabilidade da jurisdição, é inaceitável a ideia de que a vítima não possa participar do processo penal como sujeito de direitos. A não participação da vítima no processo penal faz com que o processo não seja justo para ela, que foi a mais prejudicada ao ter seu bem jurídico ferido. Desse modo, a não participação da vítima faz com que o processo penal não respeite o devido processo legal nem as garantias constitucionais por ele exigidas. Os próprios órgãos do Estado que deveriam zelar pela garantia desses direitos, se colocam contra o indivíduo. Isso pode ser exemplificado a partir de outro fato recente, noticiado pela revista Veja (2018). Um promotor de justiça do Rio Grande do Sul entrou com um processo contra dois pais de vítimas da boate Kiss. Indignados com a impunidade do caso, os familiares dos jovens mortos colocaram cartazes cobrando responsabilização das autoridades. Cartazes com charges e dizeres contra o promotor Ricardo Lozza e o então prefeito Cezar Schirmer, atual secretário de segurança do Estado, foram espalhados nas ruas da cidade o que fez com que Lozza processasse os autores por terem ofendido sua honra e para “cessar ofensas indevidas”. O Poder Judiciário do Rio Grande do Sul, no entanto, encerrou o processo contra os pais, O juiz Leandro Augusto Sassi, da 4ª Vara Criminal da Comarca de Santa Maria, considerou “a ausência de justa causa para o prosseguimento da ação penal”. O fato citado revela mais um exemplo de sobrevitimização à medida que, após a perda dos entes queridos numa tragédia da proporção que teve o acidente na Boate Kiss, os seus familiares não teriam sequer, na acepção do promotor, o direito fundamental à liberdade de expressão, ou seja, de cobrarem das autoridades que seja dada uma solução adequada ao caso que os aflige. Para além do sofrimento da perda dos filhos, os pais são acometidos por um processo que, ao cabo, sequer foi considerado relevante. Por fim, tem-se o exemplo da sobrevitimização de crianças que vivenciam a violência sexual. Para qualquer indivíduo, sobretudo para aqueles que sequer atingiram um grau desenvolvido de autodeterminação, recontar a versão do crime sexual é revivê-lo, o que intensifica os danos causados. Há uma tortura psicológica quando se pede que a criança narre os fatos acontecidos ao Conselho Tutelar, à Polícia Civil ou Militar, por diversas vezes, sendo que tal prova deveria ser produzida em juiz e sob acompanhamento psicológico. Os princípios previstos no ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) de proteção integral e melhor interesse do menor são veementemente esquecidos em benefício da punição do acusado. Neste sentido, quanto menos necessário que a vítima volte a rememorar aquela situação, melhor para o seu psicológico e para que consiga se reestruturar após o dano causado. CONCLUSÃO Os exemplos aqui apresentados demonstram como o processo de sobrevitimização ainda é uma constante em se tratando da resolução de infrações criminais no país. Apesar de a Criminologia apontar para um terceiro momento da vitimização, que corresponde ao retorno do ofendido a uma posição na qual ele seja visto como protagonista do delito cometido contra si, a sua ausência ainda é bastante marcada nos códigos Penal e Processual Penal brasileiro, o que influencia no comportamento das instituições responsáveis pela investigação e persecução penal. É certo que o reforço do ius puniendi estatal, quando a vingança privada passa a ser proibida e, muitas vezes, punida, traz consequências positivas para a sociedade, visto que quebra o ciclo vicioso e autodestrutivo da vingança. Porém, não se pode fazer com que a vítima seja totalmente apagada deste processo, tento em vista que, apesar da ofensa ao bem jurídico ser um interesse social fundamental, o ofendido diretamente acaba passando por um processo de sobrevitimização que sequer é enxergado pelo Estado. REFERÊNCIAS BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. Disponívelem: >> http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm << Acesso em: 03 de Julho de 2019. BRASIL. Decreto-Lei 2848. Código Penal, 1940. Disponível em:>> http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm<<. Acesso em: 03 de Julho de 2019. CORDEIRO, Euller Xavier. A participação da vítima no processo penal. Franca: 2014. FERNANDES, Vitor. Vítima fica 9h na Delegacia da Mulher, é alvo de deboche de policiais e desiste de fazer BO: ‘Total desrespeito’. Portal BHAZ, 2019.p.1. Disponível em: >> https:// bhaz.com.br/2019/07/10/vitima-desiste-delegacia-mulher/<<. Acesso em: 03 de Julho de 2019. MOSCOVITS, Levy. A vítima do delito e sua evolução dentro da Criminologia. Disponível em:>>http://jus.com.br/artigos/37414/a-vitima-do-delito-e-sua-evolucao-dentro-da- criminologia<<. Acesso em: 03 de Julho de 2019. OLIVEIRA, Ana Sofia Schmidt. A vítima e o direito penal: uma abordagem do movimento vitimológico e de seu impacto no direito penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999. SPERB, Paula. Processo contra pais de vítimas da boate Kiss é encerrado: promotor acusava pais de jovens mortos no incêndio de terem ofendido sua honra. Veja, 2018, p.1. Disponível em: >>https://veja.abril.com.br/blog/rio-grande-do-sul/processo-contra-pais-de-vitimas-da- boate-kiss-e-encerrado/<<. Acesso em: 03 de Julho de 2019. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. Disponível em: >> http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm << Acesso em: 03 de Julho de 2019. BRASIL. Decreto-Lei 2848. Código Penal, 1940. Disponível em:>> http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm<<. Acesso em: 03 de Julho de 2019. FERNANDES, Vitor. Vítima fica 9h na Delegacia da Mulher, é alvo de deboche de policiais e desiste de fazer BO: ‘Total desrespeito’. Portal BHAZ, 2019.p.1. Disponível em: >> https:// bhaz.com.br/2019/07/10/vitima-desiste-delegacia-mulher/<<. Acesso em: 03 de Julho de 2019. SPERB, Paula. Processo contra pais de vítimas da boate Kiss é encerrado: promotor acusava pais de jovens mortos no incêndio de terem ofendido sua honra. Veja, 2018, p.1. Disponível em: >>https://veja.abril.com.br/blog/rio-grande-do-sul/processo-contra-pais-de-vitimas-da-boate-kiss-e-encerrado/<<. Acesso em: 03 de Julho de 2019.