Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
1 INTRODUÇÃO A UMA PERSPECTIVA PSICOSSOCIOLÓGICA PARA O ESTUDO DAS FORÇAS ARMADAS1 Daniela Schmitz Wortmeyer2 1. Introdução O que define a identidade de uma organização? O que possibilita a seus integrantes identificarem-se e serem identificados como partes do todo organizacional, que os transcende? Quais os amálgamas que sustentam, com relativa estabilidade, essa entidade coletiva? Haveria um núcleo essencial das organizações, ou elas seriam configuradas por uma coleção de elementos? O que é necessário para se tornar “um dos nossos”, ou seja, para efetivamente ter acesso a uma comunidade organizacional? Estabelecer um equacionamento para questões como estas é tarefa fundamental para qualquer empreendimento voltado à pesquisa e intervenção em contextos organizacionais. Longe de se reduzir a estruturas formais, mais ou menos alinhadas ao modelo burocrático weberiano, a dinâmica das organizações contemporâneas articula-se em torno de diversos elementos, materiais e imateriais, racionais e afetivos, que conferem significação ao fazer coletivo e determinam seu campo de possibilidades. Elementos que, em consequência, intermedeiam as interações da organização com outros grupos e organizações, sua permeabilidade a mudanças, a lógica conferida às atividades que executa, entre muitos outros aspectos. Para Edgar Schein, todas as teorias grupais e organizacionais distinguem dois principais conjuntos de problemas com que todos os grupos, não importa seu tamanho, têm que lidar: (1) sobrevivência, crescimento e adaptação em seu ambiente e (2) integração interna que permita o funcionamento cotidiano e a habilidade de adaptar-se. (1992, p.11, tradução nossa). 1 O presente artigo corresponde a uma adaptação de capítulos da dissertação de mestrado “Desafios da internalização de valores no processo de socialização organizacional: um estudo da formação de oficiais do Exército”, orientada pelo Prof. Dr. Wilson Moura e defendida no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em junho de 2007. 2 Graduada em Psicologia, Mestre em Psicologia Social, Capitão do Quadro Complementar de Oficiais do Exército. Atualmente atua na Academia Militar das Agulhas Negras. Principais interesses de pesquisa: socialização militar, internalização de valores em processos educacionais, cultura organizacional militar. E-mail para contato: educacaomilitar@uol.com.br. 2 Esse movimento grupal e organizacional de simultânea adaptação externa e interna revela-se como complexo e multifacetado, relacionando-se tanto a condições histórico-sociais em nível macro, quanto a aspectos psicossociais inerentes à existência humana compartilhada com outros. Somem-se a isso as particularidades do projeto comum a ser empreendido pelo grupo, que apresentará questões adicionais ligadas à natureza e significação da atividade, a serem resolvidas individual e coletivamente. Grosso modo, pode-se dizer que a organização dos seres humanos em torno de um fazer coletivo não é algo que está programado de antemão, em sua carga genética ou algum outro código predeterminado, e sim consiste em um grande desafio a ser resolvido na convivência social. Uma vez que um grupo conseguiu encontrar soluções para tal desafio, estruturando sua interação de modo a garantir a satisfação de determinadas necessidades comuns, tende a transformá-las em hábitos, empreendendo um processo de institucionalização de condutas que irá conferir estabilidade e previsibilidade à convivência social (BERGER; LUCKMANN, 1985). Paulatinamente, são construídos códigos que permitem a comunicação e a identificação no grupo. Estes se embasam em significados compartilhados, que conferem sentido e direção ao empreendimento comum. Temos, assim, a sedimentação de um processo de aprendizagem coletiva ao longo do tempo em uma cultura, que necessita ser transmitida às gerações vindouras para dar continuidade ao modo de vida que se consolidou como o mais adequado para aquele grupo. Existe, portanto, a necessidade de aculturação, de socialização dos novos membros, para que a cultura e o pacto social se perpetuem. O objetivo deste artigo é explorar possibilidades de análise das organizações, particularmente das forças armadas, introduzindo a ótica da cultura e dos consequentes processos de socialização de seus integrantes, segundo uma perspectiva oriunda da psicologia social das organizações. Nesse intuito, iniciaremos com uma breve revisão de conceitos originários da antropologia acerca da cultura, seguindo com a análise de concepções da cultura no campo organizacional e de referenciais teóricos voltados à sua interpretação. Por fim, esboçaremos uma interpretação de aspectos da cultura das organizações militares, em especial das forças armadas, e sinalizaremos implicações dessa perspectiva analítica para projetos de pesquisa e intervenção relacionados a este campo. 2. Discussões sobre a substância da cultura Ao realizar uma revisão dos aspectos fundamentais da cultura comumente aceitos pelas principais tendências da antropologia, Omar Aktouf identificou que “a cultura implica uma interdependência entre história, estrutura social, condições de vida e experiências subjetivas das pessoas” (1996, p. 50). Isto é, a noção de cultura compreenderia praticamente tudo o 3 que implica a convivência social: das formas de produção dos bens materiais, sociais e imateriais, que incluem desde uma dada estrutura social, com seus papéis, normas e padrões de comportamento, conhecimentos e tecnologia, até as crenças, mitos, valores e símbolos. A cultura seria, portanto, um “complexo coletivo feito de „representações mentais‟ que ligam o imaterial e o material”(AKTOUF, 1996, p. 51). Assim, para compreender a cultura seria necessário considerar esse todo, que engloba o modo de vida e as representações da realidade compartilhadas por um dado grupo social e que o identifica em relação a outros grupos. Ou seja, estamos diante de um fenômeno que é, simultânea e indissociavelmente, objetivo e simbólico, e que necessita ser analisado à luz do processo histórico em que está inserido. “Se deixarmos de lado o aspecto físico, material e concreto de toda cultura, teremos ocasião de observar os elementos que exprimem sua especificidade e mais a desvendam ao observador externo: os mitos, os ritos, os rituais, os valores, os heróis, etc.”(AKTOUF, 1996, p. 52). Dentre os diversos elementos que constituem a cultura, Aktouf considera que os mitos contribuem profundamente para a constituição de crenças, valores e identidade. Eles estão ligados a significados ontológicos, ou seja, correspondem a teorias acerca das origens do homem, da natureza e do destino da atividade humana, das relações do homem com o mundo e dos homens entre si. O mito é uma tentativa de explicação das origens e do funcionamento do universo. Por intermédio das cerimônias e dos ritos, ele nos lembra constantemente quem somos e de onde viemos. Ele é a representação viva, através da reatualização cerimonial, do ato primordial. Ele é confirmação da identidade e das origens dos que oficiam ou dos que participam de uma cerimônia. Ele é, ao mesmo tempo, explicação e lembrança das origens e união-reabsorção dos contrários; ele concilia atos e crenças entre si. Ele proporciona tanto modelos para a conduta dos homens quanto „significado e valor para a existência‟. Ele é sempre, e sobretudo, „considerado como uma história sagrada‟ e, como consequência, como „uma história verdadeira‟.” (ELIADE, 1963 apud AKTOUF, 1996, p. 54). Podemos observar, portanto, que o mito conserva relação com a experiência cotidiana da comunidade: “Existem relações estreitas entre a palavra, o mito, alenda sagrada de uma tribo, de um lado, e seus atos rituais, suas ações morais, sua organização social e mesmo suas atividades práticas, de outro lado.” (MALINOWSKI, 1975, apud AKTOUF, 1996, p. 54). Clifford Geertz (1989) defendeu que o conceito de cultura necessitava ser delimitado pela antropologia, a fim de preservar sua utilidade explicativa. Observou que Kluckhohn, em estudo clássico, conseguiu elencar onze definições para cultura, que compreendem desde “modo de vida global de um povo”, até “uma forma de pensar, sentir e acreditar”, “um celeiro de 4 aprendizagem em comum” e “comportamento aprendido”, entre outras (GEERTZ, 1989, p. 14). Geertz alerta para os perigos de um excessivo subjetivismo nos estudos sobre a cultura, assim como critica as tentativas de se impor um esquematismo despersonalizante ao fenômeno. Sua argumentação é em favor de um conceito essencialmente semiótico: Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do significado. (GEERTZ, 1989, p. 15). [...] a cultura é melhor [sic] vista não como complexos de padrões concretos de comportamento – costumes, usos, tradições, feixes de hábitos –, como tem sido o caso até agora, mas como um conjunto de mecanismos de controle – planos, receitas, regras, instruções (o que os engenheiros de computação chamam de “programas”) – para governar o comportamento. (Ibid., p. 56). Geertz ressalta, ainda, que “o homem é precisamente o animal mais desesperadamente dependente de tais mecanismos de controle, extragenéticos, fora da pele, de tais programas culturais, para ordenar seu comportamento” (1989, p. 56). O objetivo da antropologia interpretativa seria procurar compreender esse contexto simbólico que caracteriza a cultura, analisando o fluxo das ações sociais e as fórmulas que os homens utilizam para definir sua experiência cotidiana. Assim, a análise cultural intentaria estabelecer uma “conversa” com os grupos pesquisados, a partir da tentativa de interpretação de seus pressupostos, porém estaria fadada inevitavelmente à incompletude. Há uma série de caminhos para fugir a isso – transformar a cultura em folclore e colecioná-lo, transformá-la em traços e contá-los, transformá-la em instituições e classificá-las, transformá-la em estruturas e brincar com elas. Todavia, isso são fugas. O fato é que comprometer-se com um conceito semiótico de cultura e uma abordagem interpretativa do seu estudo é comprometer-se com uma visão da afirmativa etnográfica como “essencialmente contestável”[...]. (GEERTZ, 1989, p. 39, grifo no original). O estudo da cultura envolveria, por conseguinte, a abordagem de ações e significados, das relações entre o material e o imaterial, buscando compreender os sentidos das práticas sociais, no bojo da multiplicidade de manifestações que compõem a experiência compartilhada de uma coletividade. Trata-se de um fenômeno eminentemente complexo, que não pode ser reduzido aos elementos que o compõem, tampouco às representações mentais dos sujeitos que dela participam. Considerando o pensamento de Geertz de que “as formas da sociedade são a substância da cultura”, parece-nos pertinente fazer referência às 5 reflexões de Peter Berger e Thomas Luckmann, teóricos da sociologia do conhecimento, acerca da construção social da realidade e dos processos de socialização. Estes autores descreveram o percurso através do qual, no decorrer de um processo histórico, condutas que se revelaram funcionais para solucionar determinadas demandas da existência humana transformam-se em hábitos, que conferem estabilidade e previsibilidade à interação social e propiciam um equilíbrio psicológico aos sujeitos. Esse processo de tipificação de condutas é denominado institucionalização, sendo baseado na divisão das tarefas e na definição de papéis a serem desempenhados pelos indivíduos (BERGER; LUCKMANN, 1985). Selznick concorda que: Institucionalização é um processo. É algo que acontece a uma organização ao longo do tempo, refletindo a história distintiva da própria organização, as pessoas que têm estado nela, os grupos que ela abriga e os interesses adquiridos que eles criaram, e o modo como se adaptou ao seu ambiente. Naquilo que é talvez seu sentido mais significativo, “institucionalizar” é infundir valor através das exigências técnicas da tarefa à mão. (SELZNICK, 1957 apud SCOTT, 1996, p. 18, tradução nossa). Desta forma, ao organizar-se em torno de uma tarefa, um grupo não atua apenas racionalmente, não desenvolve apenas relações instrumentais, mas estabelece vínculos (afetivos) e constrói uma história comum, ao longo da qual determinadas estruturas são impregnadas de valor. W. Richard Scott afirma que, “ao assumir um conjunto distintivo de valores, a organização adquire uma estrutura de caráter, uma identidade” (1996, p.18, tradução nossa). Berger e Luckmann analisam ainda o fato de que, ao longo do tempo, toda instituição produz um “conhecimento” que permite sua legitimação, isto é, a justificação de sua existência perante o corpo social, o qual deve ser transmitido às gerações posteriores para que seja garantida sua perpetuação. Tal conhecimento decorre da atitude reflexiva dos sujeitos sobre suas práticas, e não das práticas em si, ou seja, corresponde a uma representação mental, subjetiva, da realidade objetivada. Assume, porém, o caráter de verdade inequívoca, tornando-se naturalizado. “Os significados institucionais devem ser impressos poderosa e inesquecivelmente na consciência do indivíduo” (1985, p. 98), por meio de um processo educacional. Para Jodelet, “a posição ocupada pela representação no ajustamento prático do sujeito a seu meio fará com que seja qualificada por alguns de compromisso psicossocial” (2001, p. 28). No decorrer do processo em que o movimento instituinte (de criação de soluções e estruturas) de um grupo vai se cristalizando em instituições, existe uma tendência, como menciona Schein (1992), de que essas instituições percam sua perspectiva histórica, passando a ser concebidas como “produto 6 da natureza das coisas” (ENRIQUEZ, 1997, p.80) e não como uma construção humana. As instituições passariam a funcionar, portanto, como um sistema de normas e interdições, que estabelece ideais de conduta e confere uma identidade social aos indivíduos. A inserção dos sujeitos na cultura, portanto, implicaria a assimilação desses significados institucionalizados, com base nos quais seria constituída sua identidade, ainda que seja por oposição à norma. 3. Caminhos para análise da cultura em contextos organizacionais A problemática da organização e estruturação das sociedades, bem como da constituição, reprodução e transformação das culturas ao longo da história, tem sido largamente estudada por diversos autores, oriundos de disciplinas e escolas distintas. Tradicionalmente, a cultura é tema clássico da antropologia, etnologia e sociologia; da mesma forma o é sua transmissão através das gerações, mediante o processo de socialização dos novos membros de uma dada coletividade. Mais recentemente, conceitos como cultura e socialização foram apropriados por estudiosos do campo organizacional, de modo que a cultura organizacional passou inclusive a figurar como a nova “panaceia” para os problemas das organizações contemporâneas, muitas vezes à revelia da compreensão complexa do fenômeno já delineada extensamente pelos antropólogos. Aktouf observou que a emergência da noção de cultura organizacional ou cultura de empresa ocorreu a partir do final da década de 1970, assumindo por vezes configurações um tantoafastadas dos conceitos originais da antropologia. Este autor considera “abusivo” o uso do termo cultura por muitos teóricos, que a tomam como um fenômeno “diagnosticável, reconhecível e, desde que se tome certas precauções metodológicas, pode ser transformada, manipulada e mudada e até ser inteiramente criada por líderes, campeões, heróis e modelos, que lhe imprimem valores e símbolos”(AKTOUF, 1996, p. 40). Aktouf chama a atenção para o fato de que uma cultura pressupõe a existência de um passado compartilhado, com memórias e representações que são retransmitidas às novas gerações. Ou seja, existe uma dimensão histórica que não pode ser olvidada, se o que se pretende é analisar uma cultura, e não um discurso superficial dos dirigentes da organização. A própria questão da dimensão mítica necessitaria ser analisada com cautela. Os mitos não são apenas historietas e anedotas, porém possuem um caráter sagrado, fornecendo uma explicação cosmológica à atuação dos indivíduos. Eles são constantemente revividos e atualizados na coletividade, produzindo uma intensa identificação entre seus membros. A mitogênese é um processo que não pode ser simplesmente imposto a um grupo, tendo sido gerado fora dele, da experiência vivida. Além disso, o conceito de cultura, tomado em toda a 7 sua profundidade, implica uma inter-relação entre as representações e as ações sociais em si: O problema essencial levantado pela questão da cultura reside, precisamente, na relação entre imaterialidade e materialidade, é neste ponto que a literatura e a prática da “cultura de empresa” parecem escorregar. Entretanto, praticamente todos os trabalhos de clássicos e especialistas no assunto que consultamos nos levam a aceitar que toda cultura é uma questão indissociavelmente material e imaterial. Trata-se de um fato social total em que a condição primordial é a coerência entre materialidade e imaterialidade, a concordância entre o que é histórico, a experiência vivida, os fatos e o axioma. (AKTOUF, 1996, p. 74). Isto significa que “as atitudes, crenças, valores, símbolos vêm depois, eles são gerados, alimentados e sustentados por todos estes elementos materiais” (Ibid., 76). Consideramos que a posição de Aktouf é coerente com a adotada por Geertz (1989), anteriormente explorada. A análise da cultura não pode se restringir a determinados elementos, muito menos ao discurso de determinados atores sociais. É preciso compreender a cultura em sua complexidade, atentando às sutis articulações que dão sentido à ação compartilhada entre os sujeitos. É também necessário considerar que qualquer organização está vinculada a uma cultura mais ampla, de cunho regional ou nacional, podendo inclusive amalgamar em seu interior grupos culturais distintos. Nesse sentido, Freitas assinala que “os valores transpostos para dentro das organizações encontram um respaldo, uma legitimação e uma sustentação nos valores culturais dessa sociedade mais ampla, não podendo ser estudados enquanto produções exclusivas das organizações, como se elas atuassem num vácuo” (FREITAS,1996 apud VIEIRA, 2002, p.5). Após atentar às advertências mencionadas, acreditamos ser frutífero revisar algumas tendências que se tornaram clássicas no estudo da cultura organizacional, que consideramos oferecerem elementos valiosos para a consecução do objetivo de análise das forças armadas. Edgar Schein (1992) desenvolveu uma perspectiva clínica de trabalho como consultor em organizações, baseada na análise e intervenção sobre os fundamentos motivacionais da cultura organizacional. Para Schein, a cultura não é apenas o que é compartilhado em um grupo, mas aquilo que lhe confere estabilidade estrutural. Tal estabilidade é fruto de aprendizagens construídas ao longo da história coletiva, sedimentadas em nível inconsciente, que permitem a integração e a comunicação no seio do grupo. Para o autor, uma cultura nasce a partir da atuação de lideranças em momentos críticos da história do grupo, diante de problemas de adaptação ao ambiente externo e de integração interna. Tais indivíduos teriam apresentado propostas de ação, inicialmente partindo de seu ponto de vista particular, as quais lograram ser adotadas pelo grupo e se revelaram eficazes no contexto 8 dado. O sucesso frequente de tais linhas de ação fez com que deixassem de ser debatidas ou questionadas e fossem assumidas como “verdadeiras” pelo grupo, tornando-se institucionalizadas e passando gradativamente a operar inconscientemente. Tais pressupostos passaram a ser julgados como certos e bons e a diferenciarem aquele grupo dos demais. E, no caso de serem questionados, tendem a ser imediatamente defendidos, devido ao forte investimento emocional relacionado. Schein ressalta que essa aprendizagem coletiva não ocorre apenas em um nível comportamental, pois envolve também um processo reflexivo, de atribuição de sentido à experiência, atingindo níveis abstratos. O resíduo da história comum pode ser definido como pressupostos básicos de pensamento, sentimento e ação, que passaram a atuar inconscientemente e a definir a identidade de um grupo, possibilitando a comunicação e a ação compartilhada. Em síntese, Schein define a cultura como: [...] um padrão de pressupostos básicos compartilhados, aprendidos pelo grupo na resolução de seus problemas de adaptação externa e integração interna, que atuou bem o suficiente para ser considerado válido e, então, para ser ensinado para novos membros como o modo correto de perceber, pensar e sentir em relação àqueles problemas. (1992, p.12, tradução nossa). Tal padrão atua no controle da ansiedade do grupo frente aos desafios da tarefa e da interação social. Por esse motivo, toda tentativa de mudança nos pressupostos básicos da cultura desperta uma série de resistências, provocando a mobilização de altos níveis de ansiedade. Schein chega a afirmar que a melhor forma de se conhecer os pressupostos subjacentes a uma cultura é por meio da tentativa de mudança. Este autor identifica a existência de três níveis na cultura organizacional. O primeiro nível seria acessível a um observador externo em seu primeiro contato com a organização, quando tem a possibilidade de detectar diversos elementos superficiais da cultura. São os chamados artefatos, que correspondem às estruturas e processos visíveis da organização, ligados à tecnologia, à arte, aos padrões de comportamento visíveis e auditivos, como procedimentos e rituais, entre outros indicadores. Embora sejam facilmente observáveis, tais elementos são difíceis de ser decifrados, exigindo um contato mais prolongado com a organização para que se possa apreender seu significado naquela cultura. No segundo nível da cultura encontrar-se-iam os valores manifestos, situados já em uma dimensão abstrata. São as estratégias, políticas, metas e filosofias da organização. São as justificativas adotadas para as práticas, além de idealizações e racionalizações, que podem apresentar maior ou menor congruência com os pressupostos mais profundos da cultura. Conforme já mencionado, o cerne da cultura, para Schein, está nos pressupostos básicos inconscientes que conferem estabilidade ao grupo. Tais pressupostos corresponderiam ao terceiro nível da cultura organizacional, 9 fonte última dos valores e das ações. São crenças, percepções, sentimentos e pensamentos acerca do mundo em suas diversas dimensões. Frequentemente lidam com aspectos fundamentais da vida, tais como: a natureza do tempo e do espaço; a natureza e a atividade humanas; a natureza da verdade e como alguém a descobre; o modo correto para o indivíduo e para o grupo se relacionarem um com o outro; a importância relativa do trabalho, da família e do autodesenvolvimento; os papéis próprios de homens e mulheres; e a naturezada família. Os pressupostos básicos seriam os mais difíceis de perceber na dinâmica da organização, pois tendem a ser protegidos e muitas vezes não estão claros para os próprios sujeitos envolvidos. Todavia, uma vez compreendidos, possibilitam a elucidação dos aspectos mais superficiais da cultura. Para Geert Hofstede, há alguns elementos comuns entre as diversas concepções existentes acerca da cultura organizacional: A maioria das diversas perspectivas [...] compartilham, ao menos em alguma extensão, muitos dos seguintes pressupostos sobre os fenômenos culturais: que eles são relacionados a história e tradição, têm alguma profundidade, são difíceis de compreender e esclarecer, e devem ser interpretados; que eles são coletivos e compartilhados por membros de grupos e primariamente ideativos em seu caráter, tendo que lidar com valores, compreensões, crenças, conhecimento e outros intangíveis; e que eles são holísticos e subjetivos, mais que estritamente racionais e analíticos. (HOFSTEDE et al., 1990 apud ALVESSON, 1993, p. 2, tradução nossa). Hofstede (1997) define cultura como “a programação coletiva da mente que distingue os membros de um grupo ou categoria de pessoas em face de outro” (p. 19). Para o autor, essa “programação mental” corresponde a padrões de pensamento, de sentimentos e de ação potencial, que são resultado de uma aprendizagem contínua no seio de determinados ambientes sociais. Ele afirma que quando certos padrões de pensamento, sentimentos e comportamentos se instalam na mente de cada um, torna-se necessário desaprender, antes de aprender algo diferente, e desaprender é mais difícil que aprender pela primeira vez (p. 18). Segundo Hofstede, a cultura pode ser descrita em sua totalidade por meio de quatro manifestações: símbolos, heróis, rituais e valores. Os símbolos, heróis e rituais podem ser conceituados como práticas, são visíveis ao observador externo e situam-se nos níveis mais superficiais da cultura. Seu significado, entretanto, é invisível e só pode ser compreendido enfocando-se a forma como essas práticas são interpretadas pelos indivíduos que pertencem à cultura. Os valores, por sua vez, situam-se no núcleo da cultura, referindo-se à tendência para se preferir certo estado de coisas em face de outro, ou seja, um sentimento orientado, com um lado positivo e outro negativo. Os valores começam a ser adquiridos muito precocemente, na infância, e geralmente são 10 inconscientes para o indivíduo. O autor destaca que pode haver contradições entre os valores manifestos como desejáveis, que correspondem mais à ideologia de um grupo social, e os valores efetivamente desejados pelos sujeitos, que correspondem às escolhas efetuadas em situações concretas. Observamos, portanto, que há diversas semelhanças entre as concepções acerca da cultura, de modo geral, e da cultura organizacional, especificamente, conforme acabamos de revisar. Vemos que a cultura é fruto da aprendizagem coletiva de um grupo, em que determinados modelos de conduta foram impregnados de valor e passaram a desempenhar uma função psíquica essencial, relacionada ao controle e à previsibilidade da interação social. É também semelhante entre as concepções aqui mencionadas a noção de que a cultura é um fenômeno complexo, que pode incluir uma rica gama de práticas compartilhadas, cuja raiz encontra-se em uma “programação mental” coletiva, definidora da visão de mundo própria do grupo, considerada como a forma correta de pensar, sentir, perceber e agir. A esse respeito, lembramos novamente uma advertência de Aktouf: “uma cultura não significa necessariamente unidade, homogeneidade ou monolitismo” (1996, p. 51). Pode haver (e geralmente há) paradoxos e oposições no seio da cultura, visões de mundo concorrentes, conflitos, jogos de forças. Podemos depreender ainda que, para os autores mencionados, um aspecto fundamental da cultura é a necessidade de sua transmissão para as gerações vindouras, por meio de um processo educacional. Por conseguinte, os novos membros do grupo devem ser socializados, para que possam se adaptar à cultura, através de sua internalização, e reproduzi-la, a fim de serem integrados à coletividade. Para Schein (1992), uma boa forma de decifrar os pressupostos básicos de uma cultura seria analisar o processo de socialização de seus novos membros. Este processo seria determinante para o ajustamento do comportamento do indivíduo à organização, pois lhe transmitiria o que é essencial naquele contexto. O ajustamento seria induzido por meio da transmissão de uma série de conteúdos que dizem respeito, basicamente, aos objetivos fundamentais da organização, aos meios escolhidos para alcançá- los, às responsabilidades dos membros e aos padrões comportamentais necessários para um desempenho eficaz, assim como a todo um conjunto de regras ou princípios relativos à conservação da identidade e integridade da organização (SCHEIN, 1968 apud VIEIRA, 2002, p. 21). Contudo, Schein (1992) considera que a socialização inicial dos novatos, que ocorre geralmente de maneira formal, é superficial. Os “segredos grupais” só serão revelados aos que conseguirem ingressar nos círculos mais íntimos da cultura. Em consequência, os pressupostos básicos são transmitidos implicitamente ao longo da socialização, por intermédio dos mecanismos de controle social adotados pelos membros mais antigos em relação aos novatos. 11 John Van Maanen considera que “a socialização organizacional ou „processamento de pessoas‟ refere-se à maneira pela qual as experiências de aprendizagem de pessoas que assumem novos cargos, status, ou papéis nas organizações são estruturadas por outras pessoas dentro da organização”(1989, p. 45). Seja de modo formal ou informal, sistemático ou assistemático, um processo de ensino e aprendizagem sempre se põe em curso quando um indivíduo atravessa fronteiras organizacionais. E, de um modo ou de outro, a tendência dos membros mais experientes da cultura é buscar ajustar os iniciantes à lógica institucional preexistente, às crenças e valores que conferem estabilidade ao grupo. Embora fuja aos objetivos deste artigo abordar em profundidade o desenvolvimento dos processos de socialização organizacional, mencionaremos sumariamente alguns aspectos que têm se destacado em pesquisas contemporâneas acerca do tema. A multidimensionalidade dos processos de socialização organizacional tem sido evidenciada pelas tendências de pesquisa das últimas duas décadas, que se propuseram a investigar diversos fatores que engendram esse complexo fenômeno. Verificou-se que as táticas de socialização utilizadas pelas organizações desempenham um importante papel nos resultados da socialização, que tendem a ser mais homogêneos quanto maior for a institucionalização do processo (KIM; CABLE; KIM, 2005). Constatou-se, ainda, que comportamentos pró-ativos adotados pelos novatos interferirão em sua interpretação sobre as próprias táticas de socialização e sobre a realidade organizacional, com reflexos em seu ajustamento ao novo ambiente. As estratégias desenvolvidas por um novato para administrar a ansiedade decorrente da transição organizacional podem envolver comportamentos de busca de informação sobre diversos aspectos de seu papel (KIM; CABLE; KIM, 2005; THOMAS; ANDERSON, 2002), a qual frequentemente ocorre por meio de relacionamentos interpessoais informais estabelecidos com pares, subordinados e superiores - cuja perspectiva estará mais ou menos alinhada aos objetivos formais propostos pela organização (CALATAYUD; LERÍN; PLANES, 2000). Aspectos como motivações para a carreira, informações obtidas previamente ao ingresso na organização (socialização por antecipação), a evolução do ajustamento das expectativas dos novatos frente às perspectivasefetivamente encontradas na organização (CALATAYUD; LERÍN; PLANES, 2000), as percepções acerca do contrato psicológico (DE VOS; BUYENS, 2004), entre outros, contribuirão para que a socialização dos indivíduos seja bem-sucedida ou não, com efeitos sobre sua satisfação no trabalho, seu comprometimento com os valores e objetivos da organização e suas intenções de abandonar o emprego (IRVING; CAWSEY; CRUIKSHANK, 2002). Ao analisarmos os encaminhamentos das pesquisas sobre o tema, patenteia-se que a socialização organizacional está muito longe de ser um 12 fenômeno do tipo causa e efeito, em que os sujeitos envolvidos responderiam passivamente às tentativas de aculturação empreendidas formalmente pela organização. Mais do que um simples treinamento, a socialização organizacional é efetivamente a aprendizagem de uma cultura, implicando a internalização de valores, crenças, normas e práticas fundamentais para o ajustamento do indivíduo a seu papel na organização. 4. Aspectos da cultura organizacional das forças armadas Ao abordarmos particularmente um contexto organizacional militar, a fim de compreender as práticas empreendidas e os sentidos que adquirem para seus integrantes, faz-se necessário mapear as alternativas encontradas pela organização para lidar com as ansiedades e exigências práticas decorrentes de sua tarefa, assim como com as demandas decorrentes da convivência social em torno de um dado objetivo, que se converteram em valores organizacionais com o passar do tempo. Evidentemente, as forças armadas de cada país apresentam os contornos da cultura nacional. Porém, entendemos que a natureza da atividade desempenhada nesse tipo de organização permite identificar algumas características, em princípio, similares em termos de estruturas e valores organizacionais. Nesse intuito, procuraremos a partir de agora, de modo genérico e introdutório, elencar alguns traços distintivos da cultura organizacional das forças armadas. Samuel Huntington, estudioso da problemática das relações entre civis e militares nos Estados Unidos, esboça uma concepção da cultura militar: As pessoas que agem da mesma forma durante um longo período de tempo tendem a desenvolver hábitos característicos e persistentes de pensamento. A singular relação que elas mantêm com o mundo lhes dá uma peculiar perspectiva desse mundo, levando-as a racionalizar o próprio comportamento e o próprio papel. Isso é particularmente verdadeiro onde esse papel é um papel profissional. Uma profissão é mais estritamente definida, mais intensa e exclusivamente procurada e mais claramente isolada de outras atividades humanas do que o é a maioria das ocupações. O contínuo desempenho objetivo da função profissional dá origem a uma contínua weltanschauung [sic] ou “mentalidade” profissional. Nesse sentido, a mentalidade militar consiste dos valores, atitudes e perspectivas inerentes ao desempenho da função militar e que se deduzem da natureza dessa função. A função militar é desempenhada por um técnico de profissão pública burocratizada, especialista na administração da violência e responsável pela segurança militar do Estado. Um valor ou uma atitude só faz parte da ética profissional militar se for deduzido ou derivado da especialização, da responsabilidade e da organização peculiares da profissão militar. (HUNTINGTON, 1997, p. 79). 13 Assim, a cultura organizacional das forças armadas pode ser entendida a partir da análise das soluções encontradas pela organização para resolver seus problemas de adaptação interna e externa, ao longo de um processo histórico. Para alguns autores, toda tentativa de organização pode ser considerada como uma modalidade de defesa contra a ansiedade. Na concepção de Eugène Enriquez, além de uma modalidade de defesa contra a ansiedade, a estrutura organizacional é, “ao mesmo tempo, a forma pela qual a organização visa uma certa eficácia no trabalho (adaptação ao real) e favorece ou coloca no lugar um certo modelo de controle social”(1997, p. 28). Seguindo essa linha de raciocínio, podemos tentar dimensionar a intensidade que assume a estrutura defensiva em uma organização cuja finalidade de existência liga-se ao enfrentamento do perigo da morte. Uma organização3 militar impõe literalmente a seus membros o sacrifício da própria vida em prol de seus objetivos, compromisso que assumem publicamente em juramento diante da bandeira nacional, símbolo maior da Pátria, e cujo cumprimento, severamente regulado por dispositivos legais, precede a quaisquer interesses individuais, em nome da coletividade da Nação. Citando Clausewitz, Huntington afirma que “a guerra é a província da incerteza”, e ainda que “toda guerra pressupõe fraqueza humana e contra ela é dirigida”(1996, p. 81). Diante da incerteza que circunscreve sua atuação, diante de ameaças potenciais de diversas ordens (que não provêm apenas do inimigo, mas da imprevisibilidade das reações dos próprios aliados, em suas “fraquezas humanas”), as forças armadas buscam elementos estáveis nos quais possam se apoiar. Para Morris Janowitz, “a doutrina dogmática é uma típica reação reflexa organizacional a incertezas futuras. O que sucedeu no passado vem a ser um poderoso precedente para realizações futuras.”(1967, p. 28). Desta forma, o culto às tradições, a rigidez de fórmulas doutrinárias e a normalização minuciosa das condutas a serem adotadas por seus membros nas mais diversas situações surgem como mecanismos organizacionais para o controle da ansiedade, buscando a previsibilidade como forma de evitar a surpresa ameaçadora. Janowitz destaca a importância do companheirismo a esse respeito: “Os conceitos de honra e espírito marcial estão fundamentados em rituais de companheirismo. Esses rituais são apenas um dentre os meios de uma profissão que tem de controlar sua ansiedade decorrente de sua preocupação com a morte.”(1967, p. 195). Huntington também ilumina este aspecto, afirmando que: 3 Utilizamos aqui o termo “organização” em sentido amplo, seguindo a definição proposta por Scott (1996, p. 18): “estruturação de ações racionais, voltadas a determinados objetivos”. 14 o militar enfatiza a importância do grupo contra o indivíduo. O sucesso em qualquer atividade exige a subordinação da vontade individual à vontade do grupo. Tradição, esprit, unidade, comunidade – essas coisas têm alta conotação no sistema militar de valor. (1996, p. 82). Tillich contribui para a análise do tema, afirmando que “tem sido observado que a ansiedade da morte aumenta com o aumento da individualização e que os povos nas culturas coletivistas são menos dados a este tipo de ansiedade”(1976, p. 33). Portanto, a constituição da profissão militar como uma “corporação” ou “fraternidade”, que coloca os interesses da coletividade acima dos individuais e desenvolve elevado grau de homogeneidade e coesão entre seus membros, é em parte esclarecida como estratégia de defesa contra a ansiedade. Nessa direção, a disciplina, baseada no respeito às normas estabelecidas e no pronto cumprimento das ordens emanadas das autoridades hierárquicas, também se caracteriza como elemento que confere estabilidade à organização: A profissão militar existe para servir ao Estado. A fim de prestar o mais elevado serviço possível, todos os profissionais das armas e a força militar que comandam devem se constituir em um eficiente instrumento de política estatal. Como a direção política só vem da cúpula, isso significa que a profissão tem que se estruturar numa hierarquia de obediência. E para que a profissão desempenhe sua função, cada escalão dela deve ser capaz de merecer a obediência leal e instantânea dos subordinados. Sem esse relacionamento, o profissionalismo militar éimpossível. Em conseqüência, lealdade e obediência são as virtudes militares mais altas [...]. Quando o militar recebe uma ordem legal de um superior autorizado, ele não discute, não hesita nem altera sua própria opinião; obedece instantaneamente. Ele é julgado, não pelas políticas que implementa, mas sim pela presteza e eficiência com que as executa. (HUNTINGTON, 1996, p. 91, grifo nosso). A obediência é considerada por Huntington como “a essência da competência militar”, pois apenas a execução fiel das diretrizes estabelecidas em níveis políticos e estratégicos asseguraria o êxito das operações. Por meio dela, aliada a outros aspectos que asseguram a vinculação dos indivíduos à identidade grupal, busca-se garantir a conformação e a uniformidade no seio da organização. Entretanto, a ideologia da disciplina nas forças armadas norteamericanas passou por uma reconfiguração após a Segunda Guerra Mundial, retratada nos estudos de Janowitz. Este autor estabelece um contraste entre a disciplina militar característica do final do século XIX, baseada na dominação autoritária, e as concepções de disciplina que começaram a emergir no início do século XX, caracterizadas pela utilização de “manipulação, persuasão e consenso grupal”(JANOWITZ, 1967, p. 40). 15 O oficial tático já não corresponde mais à imagem do oficial de cavalaria de voz ríspida, bradando ordens para homens que ele supunha ignorantes. Ao invés disso, [...] é um “junior executive”, confrontado com a tarefa de coordenar especialistas e demonstrar pelo exemplo que é competente para dirigir uma batalha. Quando a disciplina militar se baseava na dominação, os oficiais tinham de demonstrar que eram diferentes dos homens a quem comandavam. Hoje, os líderes devem continuamente demonstrar sua competência e capacidade técnica, para que possam comandar sem recorrer a sanções arbitrárias e extremas. Antigamente, o lema nas forças armadas era “Faça continência às divisas, e não ao homem”, porquanto a autoridade era formal. Os papéis militares contemporâneos, porém, dependem das qualidades dos homens que ocupam posições profissionais. (JANOWITZ, 1967, p. 46-47). Para o autor, a necessidade de alteração das táticas de disciplinamento militar decorreu das mudanças operadas na estrutura social, no perfil da população e na tecnologia da guerra, entre outros fatores. A demanda popular de igualdade de tratamento cresce com a industrialização. À medida que aumenta o padrão de vida, diminui a tolerância aos desconfortos da vida militar. O ceticismo da vida urbana é levado para as forças armadas em grau maior que em gerações anteriores, de modo que os homens já não atuarão mais às cegas, mas exigirão alguma espécie de explicação de seus comandantes. Relações sociais, liderança pessoal, benefícios materiais, doutrinação ideológica e a justiça e o significado dos objetivos da guerra, tudo isso agora faz parte do moral militar. (Ibid., p. 41). Janowitz observa que a evolução da tecnologia da guerra representou um aumento do poder de fogo e a necessidade de maior especialização dos combatentes. Para fazer frente ao poder destrutivo dos novos armamentos, as tropas foram levadas à descentralização (a fim de reduzir a exposição ao perigo), o que gerou a necessidade de maior autonomia e iniciativa dos militares dispersos. A proficiência técnica passou a ser um fator de dependência mútua entre os militares, interferindo na estrutura disciplinar formal: A tecnologia da guerra é tão complexa que a mera disciplina autoritária não é garantia da coordenação de um complexo grupo de especialistas. Os membros de um grupo militar reconhecem que sua dependência mútua baseia-se mais na proficiência técnica de cada um de seus membros que na estrutura disciplinar formal. (Ibid., p. 43). Assim, os comandantes seriam levados cada vez mais a evidenciar sua qualificação técnica perante seus comandados, a fim de transmitir-lhes segurança e credibilidade em relação às ordens emitidas. 16 A psicologia aplicada às relações humanas na organização militar teria conduzido a um modelo de chefia que busca equilibrar sanções negativas e estímulos positivos. Ou seja, embora se admita que a violência e a crise extrema, que caracterizam as situações de combate, justifiquem o direito ao exercício de sanções drásticas por parte da autoridade militar, este exercício não deve ser incompatível com a “ênfase em objetivos de grupo” e o “uso de técnicas indiretas de controle”. Desta forma, “„comando‟ dá lugar à „liderança‟ na linguagem das forças armadas”(JANOWITZ, 1967, p. 45). Um dos objetivos da disciplina seria, por exemplo, que o indivíduo internalizasse as normas sob um enfoque positivo, compreendendo que elas o protegem e o apóiam. Contudo, Janowitz ressalta que essa transição não é isenta de resistências no seio da organização: Todas as organizações mostram pressões inerentes para a inércia humana. Nas instituições militares, em particular, a inovação tecnológica marcha mais depressa e com maior eficiência que a transformação organizacional. [...] Talvez a maior tensão com que se confronta o “administrador” militar seja o caráter episódico do combate. O sentimento de urgência, a realidade do combate imediato, é um estímulo que torna a autoridade militar efetiva. Na guerra fria, removida a pressão imediata do combate, há uma tendência para o retrocesso a velhos padrões de disciplina autoritária, não mais efetiva. (Ibid., p. 48-49). O autor menciona ainda a dificuldade de aceitação dos novos padrões de disciplina por determinados segmentos, mais conservadores, da organização. Por exemplo, uma das mudanças nas forças armadas norteamericanas acarretou a restrição da liberdade de comandantes táticos na aplicação de punição “por companhia” ou “coletiva”, o que, além de alterar formas tradicionais de disciplina, foi percebido como uma perda de prerrogativas por parte dos oficiais. Isto é, fatos dessa natureza vieram a ser interpretados como um “enfraquecimento da autoridade” por parte de oficiais em nível companhia. Janowitz realiza uma leitura taxativa a esse respeito: “Esses oficiais demonstraram maior disposição para atribuir esse declínio de autoridade a mudanças em regulamentos formais do que para admitir que a tarefa do comandante tático se modificara e exigia qualificações administrativas mais complexas.” (Ibid., p. 52). Prosseguindo na análise de alguns traços da cultura organizacional militar, acrescentaríamos ainda, parodiando Clausewitz, que “a guerra é a província do não-ser”. A ameaça de aniquilação do ser em sua totalidade torna necessária a referência a uma ordem estabelecida, que proporcione um mínimo de organização diante do caos. Há um momento em que a auto-afirmação do homem comum se torna neurótica: quando mudanças da realidade, à qual está ajustado ameaçam a coragem fragmentária com a qual ele tem dominado os costumeiros objetos 17 de medo. [...] Os perigos relacionados com a mudança, o caráter desconhecido das coisas por vir, a escuridão do futuro fazem do homem comum um fanático defensor da ordem estabelecida. (TILLICH, 1976, p. 53). Em nome da causa nacional, os militares devem colocar em risco sua segurança pessoal. Contudo, embora a integridade física esteja em risco, o mesmo não pode ocorrer no campo psicológico, sob o ônus da perda da motivação para o combate. É importante ressaltar que rondam na guerra, real ou imaginada, ameaças abrangentes de finitude, de insignificância da existência, culpas e outros temores, tornando necessário infundir nos membros da organização a identificação com valores e crenças que apaziguem tais ansiedades e forneçam um sentido para a tarefa desempenhada. Para Enriquez, [...] esses grupos [o Exército e a Igreja] funcionamna crença, reforçam em cada um a ilusão da imortalidade ou da onipotência do narcisismo, desempenham um papel capital na canalização das pulsões sexuais, habituam as pessoas a exorcizarem a realidade da morte ao prometer-lhes uma vida heróica ou uma vida eterna plena de felicidade. (1997, p. 27). Assim, práticas como o culto a vultos heróicos e diversos procedimentos cerimoniais e rituais contribuem para que o grupo se vincule a uma vívida instância mítica, que remete a um sentido transcendente para a existência e para a imolação em prol da causa comum. Enriquez destaca que: A organização não pode viver sem segregar um ou mais mitos unificadores, sem instituir ritos de iniciação, de passagem e de execução, sem formar os seus heróis tutelares (colhidos com frequência entre os fundadores reais ou os fundadores imaginários da organização), sem narrar ou inventar uma saga que viverá na memória coletiva: mitos, ritos, heróis, que têm por função sedimentar a ação dos membros da organização, de lhes servir de sistema de legitimação e de dar assim uma significação preestabelecida às suas práticas e à sua vida. Ela pode então se oferecer como objeto a interiorizar e a fazer viver. Ela formula as suas exigências, impõe a cada um ser movido pelo orgulho do trabalho a cumprir, verdadeira missão de vocação salvadora. (1997, p. 34). Ao analisar a constituição do oficialato como profissão, Huntington distingue como competência desta categoria a “administração da violência”: “A direção, a operação e o controle de uma organização humana cuja principal função consiste na aplicação da violência é a qualidade peculiar do oficial.” (1996, p. 29). Sobre o processo de socialização organizacional para o exercício deste papel profissional, Janowitz mencionou a importância das academias militares: 18 A educação numa academia militar é a primeira e a mais crucial experiência de um soldado profissional. As experiências educacionais de um cadete não obliteram seus antecedentes sociais, mas deixam impressões fundas e duradouras. Embora nem todos os generais e almirantes tenham frequentado academias militares, estas fixam os padrões de comportamento para toda a profissão militar. São elas a fonte da difundida “igualdade de sentimento” a respeito de honra militar e do sentido de fraternidade que prevalece entre os militares. (JANOWITZ, 1967, p. 129). Para o autor, o processo de socialização dos cadetes envolve valores, atitudes e normas, que devem ser internalizados para o desempenho de seu papel profissional: O oficial profissional ingressa numa carreira em que uma autoridade única regulamenta todas as oportunidades de sua existência. Com efeito, o aspirante verifica que todo o ciclo de sua vida diária está sob o controle desta autoridade única, pois a vida militar é uma vida institucional. Além das qualificações técnicas que ele adquire, as academias devem prepará-lo para o estilo de vida peculiar ao militar e doutriná-lo quanto à importância da liderança heróica. Devem procurar enfraquecer laços regionais e desenvolver um sentido de identidade nacional mais ampla. Admitido o oficial em potencial, e sobrevivendo este às provas de iniciação, a finalidade de uma academia militar consiste em transformá-lo num membro da “fraternidade” profissional. (Ibid., p. 130). Tais aspectos relacionados à formação de oficiais são aqui mencionados apenas para ilustrar a relação entre a socialização dos membros das forças armadas e a cultura da organização. Obviamente, há outros papéis profissionais exercidos no seio das organizações militares, por exemplo, por recrutas e praças, e mesmo em se tratando do oficialato existem especialidades distintas, que implicam processos de socialização relativamente diferenciados. Entretanto, a despeito dessa diversidade, os valores essenciais da organização necessitam ser transmitidos a todos os seus integrantes, no intuito de garantir sua coesão interna, sua produtividade e, em última análise, sua sobrevivência. 5. Considerações finais Intentamos ao longo do presente artigo introduzir uma perspectiva psicossociológica voltada ao estudo das forças armadas, com foco na análise da cultura organizacional e, como desdobramento, dos processos de socialização de seus integrantes. Para tanto, revisamos antecedentes antropológicos do estudo acerca do fenômeno cultural, para em seguida detalharmos possibilidades de análise da cultura organizacional sob um enfoque psicossociológico, com destaque para a abordagem clínica desenvolvida por Schein (1992). Finalmente, procuramos 19 interpretar alguns traços distintivos da cultura das forças armadas, no intuito de ilustrar a aplicação da perspectiva proposta a este campo de pesquisa. A partir das tendências teóricas revisadas, podemos vislumbrar alguns desafios para projetos de pesquisa e intervenção relacionados às forças armadas, como objeto multi e interdisciplinar. Primeiramente, constatamos que as práticas perceptíveis por um observador externo, em seus primeiros contatos com a organização, correspondem a aspectos superficiais da cultura, cujo significado para a coletividade militar só poderá ser perscrutado mediante um contato mais prolongado, que permita desvendar os valores implícitos em tais manifestações. Os símbolos, ritos, heróis, mitos, estruturas arquitetônicas, indumentárias, gestos, cerimônias, jargões, entre outros artefatos que se verificam em profusão nas organizações militares, possuem funções que extrapolam o simples ornamento, relacionando-se a pressupostos básicos da cultura em pauta. Nesse contexto, apresenta-se um desafio ao pesquisador: como ultrapassar os níveis mais superficiais de percepção da cultura organizacional militar e acessar seus pressupostos básicos, compreendendo efetivamente o que dá sentido às práticas compartilhadas? Prosseguindo, constatamos que “cultura implica um nível de estabilidade estrutural no grupo. Quando nós dizemos que algo é „cultural‟, nós implicamos que isto não é apenas compartilhado, mas profundo e estável”(SCHEIN, 1992, p.10, tradução nossa). Portanto, a cultura tende à resistência à mudança, principalmente em seus pressupostos básicos. Vimos também que a cultura militar inclina-se a ser especialmente rígida, dadas as características da tarefa à qual se relaciona e às ansiedades que necessita administrar. Em decorrência, entendendo o processo de socialização como o ensino- aprendizagem da cultura, pode-se verificar que há uma tendência à reprodução dos aspectos que conferem estabilidade estrutural e identidade ao grupo nos cursos de formação dos quadros militares. Assim, quaisquer propostas de mudança em processos organizacionais necessitam considerar os elementos fundamentais da cultura implicados, pois do contrário não atravessarão o nível superficial, sendo posteriormente reinterpretados e ressignificados segundo os pressupostos arraigados. Eis mais um desafio: como fazer frente às resistências e desencadear efetivas mudanças na cultura organizacional militar? Outra implicação que merece destaque relaciona-se ao caráter heterogêneo da cultura. A cultura de grandes organizações costuma abrigar em seu interior subculturas diversas, oriundas, por exemplo, de subgrupos ocupacionais. Tal diversidade pode acarretar inclusive pontos de vista antagônicos e dificuldades de integração de determinados segmentos da organização. No caso das forças armadas, há comumente uma miríade de diferenciações que podem converter-se em subculturas, tais como: círculos hierárquicos, cursos realizados, especializações, formas de ingresso na carreira, estabilidade no serviço, experiência profissional, etc. Por 20 conseguinte, emerge mais uma questão a ser colocada: de que maneira as diferentes subculturas articulam-see determinam a dinâmica das forças armadas? E mais: em que medida seria coerente buscar mapear a identidade do militar integrante de uma força armada, considerando-o como membro de uma cultura monolítica e olvidando as diferentes identidades construídas no contexto das organizações militares? Muitas outras questões e desafios apresentam-se ainda diante da complexidade do objeto de investigação proposto. O objetivo maior deste trabalho foi ressaltar a importância da cultura, como conjunto de práticas e significados compartilhados no seio de uma coletividade, para a definição da identidade de uma organização e para a mediação de suas relações internas e externas. Em consequência, uma abordagem das forças armadas segundo essa perspectiva implica reconhecer que seus valores, crenças, normas e práticas diversas estão imbricados a soluções construídas historicamente por seus integrantes para lidar com os desafios decorrentes de sua tarefa comum, as quais são transmitidas às novas gerações em sua socialização. Que estão relacionados a pressupostos inconscientes, os quais conferem sentido e relativa estabilidade ao empreendimento organizacional e tendem a ser intensamente defendidos pelo grupo diante de tentativas de mudança. Ademais, interpretar uma cultura organizacional edificada, muitas vezes ao longo de séculos, em torno das ansiedades humanas despertadas pelo risco da morte em combate, é tarefa que exige persistência e sensibilidade do observador, dada a rigidez da estrutura defensiva em questão. Mais ainda, se o que se pretende é desvendar fragilidades e limitações e propor transformações, visando à adaptação das estruturas cristalizadas para a atuação em novos cenários. Referências AKTOUF, O. O simbolismo e a cultura de empresa: dos abusos conceituais às lições empíricas. In: CHANLAT, J.F. (Coord.) O indivíduo na organização: dimensões esquecidas. São Paulo: Atlas, 1996. v. 2. ALVESSON, M. Cultural perspectives on organizations. Wiltshire: Cambridge University Press, 1993. BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 22. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1985. CALATAYUD, D.P.; LERÍN, F.G.; PLANES, V.C. Estudio longitudinal cruzado del desajuste de expectativas y las respuestas proactivas de adaptación laboral. Anales de psicología, Murcia, España, v. 16, n. 2, p. 177-188, 2000. Disponível em: <http://www.um.es/facpsi/analesps/v16/v16_2/07-16_2.pdf>. Acesso em: ago. 2005. 21 DE VOS, A.; BUYENS, D. Information seeking about the psychological contract: the impact on newcomers‟ evaluations of their employment relationship. Vlerick Leuven Gent Working Paper Series, 2004/01. Disponível em: <http://www.vlerick.be/research/workingpapers/vlgms-wp-2004- 01.pdf>. Acesso em: ago. 2005. ENRIQUEZ, E. A organização em análise. Petrópolis-RJ: Vozes, 1997. GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1989. HOFSTEDE, G. Culturas e organizações: compreender a nossa programação mental. Lisboa: Sílabo, 1997. HUNTINGTON, S. P. O soldado e o estado: teoria e política das relações entre civis e militares. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1996. IRVING, P.G.; CAWSEY, T.F.; CRUIKSHANK, R. Organizational commitment profiles: implications for turnover intentions and psychological contracts. ASAC 2002, Winnipeg, Manitoba, Canada. Disponível em: <http://attila.acadiau.ca/library/ASAC/v23/230503.pdf>. Acesso em: 02 nov. 2005. JANOWITZ, M. O soldado profissional: um estudo social e político. Rio de Janeiro: Edições GRD, 1967. JODELET, D. (org.) As representações sociais. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2001. KIM, T.Y.; CABLE, D.M.; KIM, S.P. Socialization tactics, employee proactivity, and person-organization fit. Journal of Applied Psychology, v. 90(2), p. 232-41, mar. 2005. SCHEIN, H. E. Organizational Culture and Leadership. 2nd ed. San Francisco: Jossey-Bass Publisher, 1992. SCOTT, W. R. Institutions and organizations. Thousand Oaks: Sage, 1996. THOMAS, H. C.; ANDERSON, N. Newcomer adjustment: the relationship between organizational socialization tactics, information acquisition and attitudes. Journal of Occupational and Organizational Psychology, 75, p. 423-437, Dec 2002. __________. Organizational socialization: a field study into socialization success and rate. International Journal Of Selection And Assessment, v. 13, n. 2, p. 116-129, June 2005. TILLICH, P. A coragem de ser. 6.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. VAN MAANEN, J. Processando as pessoas – estratégias de socialização organizacional. In: FLEURY, M.T.L.; FISCHER, R.M. (Coord.) Cultura e poder nas organizações. São Paulo: Atlas, 1989. 22 VIEIRA, M. A. S. D. Relações entre valores organizacionais e individuais no processo de socialização organizacional. Goiânia, abril, 2002. Universidade Católica de Goiás. Dissertação de Mestrado. WORTMEYER, D.S. Desafios da internalização de valores no processo de socialização organizacional: um estudo da formação de oficiais do Exército. Rio de Janeiro, junho, 2007. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado. * O presente artigo encontra-se publicado no livro: SVARTMAN, E.; D´ARAÚJO, M.C.; SOARES, S.A. (Orgs.) Defesa, Segurança Internacional e Forças Armadas. Campinas-SP: Mercado de Letras, 2009.
Compartilhar