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REVIEW ARTICLEARTIGO DE REVISÃO Síndrome de Escápula Crepitante 23Vol 19 I Nº 1 I Ano 18 (2010) I Revista da Sociedade Portuguesa de Medicina Física e de Reabilitação Introdução O Síndrome de Escápula Crepitante, é uma entidade nosológica pouco comum que, geralmente, ocorre no jovem adulto e que engloba uma crepitação audível e/ou palpável da omoplata com os movimentos no plano escapulo-torácico, estando muitas vezes associada a omalgia e/ou cervico-dorsalgia [1]. Este síndrome foi descrito pela primeira vez por Boinet em 1867 que relatou o caso de um jovem de 19 anos com desconforto aquando dos movimentos escapulares e “une crépitation rude qui rapelle assez bien celle de l’arthrite sèche” [2] (uma crepitação rude que se assemelha à da artrite seca). Ao longo do tempo, esta patologia foi assumindo diversas designações, como Escápula em Ressalto [3], sendo também conhecida como Síndrome Escapular Superior, Dor Retroescapular e Crepitação Escapulo-torácica [1]. Muitos outros autores se seguiram a Boinet no estudo Resumo O Síndrome de Escápula Crepitante é um síndrome raro que consiste essencialmente na crepitação audível e/ou palpável da escápula com os movimentos no plano escapulo-torácico. Esta crepitação está frequentemente associada a omalgia ou cervico-dorsalgia, sendo esta a razão principal pela qual os doentes procuram apoio médico. Este síndrome pode ter várias causas, tendo como substrato anatómico as várias estruturas envolvidas no movimento escapulo-torácico (ósseas, musculares, bursas…). O diagnóstico desta entidade é essencialmente clínico podendo os exames auxiliares de diagnóstico ser úteis no esclarecimento da etiologia. Geralmente a abordagem terapêutica do Síndrome de Escápula Crepitante é conservadora, englobando um programa de reabilitação que inclui medidas analgésicas com meios físicos e farmacológicos. A abordagem cirúrgica poderá apresentar resultados favoráveis nos casos refractários ao tratamento conservador, embora não seja consensual a sua execução. Os autores apresentam o caso clínico de um paciente com Síndrome de Escápula Crepitante, a sua abordagem diagnóstica e terapêutica e uma revisão da literatura acerca desta entidade nosológica. Palavras-chave: Escápula, Ombro Doloroso, Caso Clínico. Abstract Snapping Scapula Syndrome is a rare disorder that consists mainly in an audible and/or palpable crepitus of the scapula with movements on the scapulo-thoracic plane. This crepitus is often associated with shoulder or cervico- dorsal pain. Patients generally seek medical help for pain relief. This syndrome can have many causes, originating from the various anatomical structures involved in the scapulo- thoracic movement (bone, muscle, bursa…). The diagnosis is clinical, although imaging studies can be helpful in the identification of the underlying cause. Most patients with Snapping Scapula Syndrome are treated conservatively, with a rehabilitation program and analgesic medication. Surgical approach can be beneficial in patients that do not respond to the nonoperative treatment, although its execution is still not consensual. The authors present the case of a patient with Snapping Scapula Syndrome, its diagnostic and therapeutic approach and a revision of the literature on this pathological entity. Keywords: Scapula, Shoulder pain, Case Report. Síndrome de Escápula Crepitante Snapping Scapula Syndrome Sandra Morgado (1) I Filipe Antunes (2) (1) Interna de Formação Específica do 4º ano de Medicina Física e de Reabilitação, Serviço de Medicina Física e de Reabilitação do Hospital de Braga. (2) Assistente Hospitalar de Medicina Física e de Reabilitação, Serviço de Medicina Física e de Reabilitação do Hospital de Braga. E-mail: smorgado1981@gmail.com ARTIGO DE REVISÃO REVIEW ARTICLE 24 Síndrome de Escápula Crepitante Revista da Sociedade Portuguesa de Medicina Física e de Reabilitação I Vol 19 I Nº 1 I Ano 17 (2009) desta entidade procurando explicação para este fenómeno, focando a sua atenção na presença de exostoses, anomalias das costelas ou na protrusão fibrocartilaginosa do ângulo supero-medial da omoplata, conhecido com Tubérculo de Lushka [4]. Mais tarde, Milch e Burman descreveram a crepitação audível e/ou palpável como um fenómeno táctil- acústico secundário a uma anomalia entre a superfície anterior da omoplata e a parede torácica [1], podendo ter várias etiologias com sede nas estruturas envolvidas no movimento escapulo-torácico, nomeadamente ósseas, musculares ou bursais [1]. Compreender a anatomia da escápula e das estruturas neuro-vasculares circundantes é crucial para a realização de um diagnóstico diferencial adequado e orientação terapêutica correcta [3,5]. A face anterior da omoplata, sendo côncava, desliza suavemente sobre a grade costal. Esse movimento é facilitado pela inexistência de contacto directo das superfícies ósseas, pois além da presença dos músculos intercostais e do número variável de bolsas adventícias, a omoplata é envolta por um grupo muscular. Os músculos subescapular e serrátil anterior inserem-se na superfície anterior da escápula fornecendo, lateralmente, uma almofada entre a omoplata e a parede torácica. Na região medial, esta “almofada” praticamente não existe e é esta a região mais atingida nas anomalias do movimento escapulo-torácico [4]. Esta é, provavelmente, a razão pela qual alguns doentes referem dorsalgia neste quadro clínico. Para o diagnóstico desta entidade nosológica há que recorrer, em primeiro lugar, à história clínica que pode revelar uma história recente de actividades desportivas[6] ou braçais repetitivas acima do plano dos ombros ou um traumatismo desencadeante da clínica [7]. O exame físico geralmente revela a crepitação escapulo-torácica, sendo frequente a mesma ser o único sinal positivo neste quadro clínico [7]. Os exames complementares de diagnóstico podem auxiliar na identificação de um substrato anatómico para a clínica. As projecções radiográficas tangenciais permitem visualizar lesões ósseas (sequelas de fracturas costais ou escapulares, osteocondromas…), sendo por vezes necessário recorrer à TAC para identificar variações anatómicas mais subtis, como a proeminência do ângulo supero-medial da escápula. A Ressonância Magnética pode ser útil para a identificação de alterações dos tecidos moles, nomeadamente na identificação de bursite escapulo-torácica e na sua distinção de elastofibroma, sendo uma importante arma para a avaliação de “pseudotumores” desta região anatómica [5]. Na maioria dos casos, o tratamento conservador é eficaz e inclui um programa de cinesiterapia e fortalecimento dos músculos escapulares, complementado com terapêutica farmacológica analgésica (a literatura descreve o uso de anti- inflamatórios não esteróides nestes doentes). Mais especificamente, o programa de reabilitação vai integrar exercícios do tronco e membro superior, acompanhados de estiramentos musculares e progredindo para fortalecimento muscular em dinâmicos dos músculos do tronco e da cintura escapular, conseguindo assim, além de reforço muscular, uma correcção postural. Quando o tratamento conservador não é eficaz, a cirurgia poderá ter bons resultados [5]. Caso Clínico JAPO, sexo masculino, caucasiano 41 anos, electricista, sem antecedentes patológicos de relevo. Enviado pelo médico assistente para a Consulta de Dor Crónica por dorsalgia de predomínio direito com ano e meio de evolução. A dor era constante, mas agravada pelos movimentos da cintura escapular homolateral. O doente tinha já efectuado vários exames auxiliares de diagnóstico, nomeadamente estudo radiológico da coluna vertebral e ombro, ecografia e Ressonância Magnética do ombro direito, que não mostraram alterações específicas de registo. Também foi avaliado nas consultas de Ortopedia, Reumatologia e Neurocirurgia tendo alta das mesmas, após não terem sido encontradas alteraçõesde relevo. O doente iniciou terapêutica analgésica com tramadol 100mg bid e amitriptilina 10mg id que foi sendo ajustada ao longo do seguimento na consulta de Dor Crónica, obtendo apenas alívio parcial das queixas álgicas. Foi, depois, referenciado para a consulta externa de Medicina Física e de Reabilitação. Objectivamente (imagens 1, 2 e 3), apresentava Figura 1 - Avaliação de amplitudes do movimento activo dos ombros (rotação externa). REVIEW ARTICLEARTIGO DE REVISÃO crepitação escapulo-torácica audível e palpável aquando da mobilização do ombro direito e dor á palpação dos músculos rombóides. Tinha amplitude articular dos movimentos do ombro direito preservadas, manobras de tendinopatia do ombro negativas (Palm-up, Jobe, Yocum e Lift-off) e exame neurológico normal. Pela clínica, exame físico e exames auxiliares de diagnóstico já realizados, foi, então, colocada a hipótese de Síndrome de Escápula Crepitante e foi prescrito um programa de cariz cinesiológico em meio aquático (hidrocinesiterapia), baseado em exercícios de deslizamento lateral da escápula (serrado anterior) e fortalecimento dos rotadores internos do ombro (subescapular). O doente apresentou melhoria das queixas álgicas, embora com dor residual local. Foi ajustada a terapêutica farmacológica e referenciado para a consulta externa de Ortopedia para eventual ponderação cirúrgica. Discussão O caso apresentado evidencia o quadro característico de um Síndrome de Escápula Crepitante, quer na apresentação clínica quer no seu percurso diagnóstico, na medida em que foi amplamente investigado até à identificação desta entidade nosológica. Os doentes com Síndrome de Escápula Crepitante podem apresentar uma história de omalgia e/ou dor cervico-dorsal que é acompanhada de sensação de ressalto/crepitação com o movimento escapulo- torácico. Um evento traumático inicial pode ou não estar presente, sendo que a duração dos sintomas e a idade de início é muito variável [1]. No exame objectivo identifica-se a crepitação com o movimento escapulo-torácico que pode ser diminuída directamente pela elevação da escápula da parede torácica ou indirectamente, pedindo ao doente para colocar a mão do lado envolvido no ombro contra- lateral. Pode estar presente atrofia dos músculos da cintura escapular [1], o que pode explicar a importância destes músculos na etiologia, particularmente do músculo subescapular. As radiografias antero-posterior e em perfil do ombro podem não revelar eventuais exostoses, pelo que uma incidência oblíqua deve ser solicitada no sentido de investigar osteocondroma, protrusão fibrocartilagínea (tubérculo de Lushka) e ângulos anómalos das costelas[1]. Historicamente, as causas do Síndrome de Escápula Crepitante foram classificadas como ósseas, musculares ou com origem nas bursas envolvidas no movimento escapulo-torácico. Todas estas etiologias levam a alterações neste movimento e, consequentemente a crepitação e, eventualmente, dor [1]. As causas ósseas relatadas são essencialmente exostoses e osteocondromas escapulares, a presença tubérculo de Lushka, angulação anterior do ângulo superior da escápula, sequelas de fracturas da escápula, angulação anómala ou tumores das costelas e anomalias esqueléticas das vértebras dorsais [1]. A patologia dos tecidos moles também podem ser outra causa deste síndrome, particularmente no caso da atrofia do músculo serrado anterior secundária a lesão do nervo torácico longo e a atrofia do músculo subescapular. As bursites escapulo-torácica e subescapular podem também ser a causa subjacente deste síndrome [1,5]. Síndrome de Escápula Crepitante 25Vol 19 I Nº 1 I Ano 18 (2010) I Revista da Sociedade Portuguesa de Medicina Física e de Reabilitação Figura 2 - Sem alterações de relevo anatómico. Figura 3 - Avaliação de amplitudes do movimento activo dos ombros (rotação interna). ARTIGO DE REVISÃO REVIEW ARTICLE 26 Síndrome de Escápula Crepitante Revista da Sociedade Portuguesa de Medicina Física e de Reabilitação I Vol 19 I Nº 1 I Ano 17 (2009) Na investigação diagnóstica, uma percentagem considerável dos doentes com sinais e sintomas clássicos desta entidade nosológica permanece sem uma etiologia identificada [1]. A maioria dos doentes com crepitação escapulo- torácica apresenta uma evolução favorável com o tratamento conservador. Este inclui um programa de reabilitação focado nas aspectos cinesiológicos, particularmente fortalecimento muscular e, idealmente em meio aquático, complementado com medicação anti-inflamatória/analgésica e eventual tratamento local com anestésico local (infiltração) [5,8]. O objectivo do Programa de Reabilitação nestes doentes é a analgesia bem como o fortalecimento muscular da cintura escapular e do tronco, com correcção de alterações posturais [8]. Neste último caso, alguns exercícios específicos de correcção postural (RPG) poderão ser outra opção a levar em linha de conta. Ciullo relatou excelentes resultados no tratamento de 62 de 72 doentes tratados com diatermia, ultra-sons e iontoforese combinados com fortalecimento dos músculos da coifa dos rotadores e peri-escapulares [9], embora não tenha ficado completamente esclarecido qual das modalidades terá sido responsável pelos resultados. O tratamento cirúrgico pode ser considerado nos doentes que apresentam nenhuma melhoria ou apenas alívio parcial da sintomatologia com o tratamento conservador [5,10]. A primeira vez que foi relatado foi em 1950. O procedimento foi efectuado sob anestesia local, tendo sido solicitado ao doente que movesse o ombro durante a cirurgia de modo a identificar a área da escápula responsável pelos sintomas. Essa área foi depois ressecada. Estudos subsequentes mostram bons resultados com ressecção parcial da escápula, principalmente no tratamento de anomalias ósseas identificadas como causa do síndrome [5]. Na maioria das vezes é ressecada uma porção do ângulo supero-medial da bursa. Grande parte dos autores recomenda um período de 4 semanas de imobilização com sling após a cirurgia, de modo a permitir a cicatrização adequada dos músculos ao osso, seguida por um programa de reabilitação visando a restauração da amplitude de movimentos do ombro e o fortalecimento dos músculos periescapulares[5]. Mais recentemente, têm surgido relatos de tratamento do Síndrome de Escápula Crepitante através da abordagem artroscópica [11], realizando na mesma ressecção óssea, mas minimizando a dissecção e preservando as inserções musculares. Embora sendo uma abordagem tecnicamente mais difícil, minimiza o tempo de imobilidade e de reabilitação que o doente necessita, apresentando também um melhor resultado estético [5]. As anomalias esqueléticas têm sido aquelas com maior sucesso na abordagem cirúrgica. Conclusão O Síndrome de Escápula Crepitante é reconhecido como uma patologia há mais de um século, no entanto, trata-se de uma entidade, provavelmente, subdiagnosticada. O facto de o seu diagnóstico ser essencialmente baseado na história clínica e exame físico, sendo os exames auxiliares de diagnóstico frequentemente negativos, poderá justificar em grande parte essa subvalorização. O doente apresentado, como a maioria dos descritos na literatura, foi extensivamente estudado antes do diagnóstico ser estabelecido, não sendo identificado o substrato anatómico para a crepitação escapulo- torácica. A maioria dos autores é consensual na defesa da abordagem conservadora como terapêutica inicial, englobando um programa de cariz cinesiológico e terapêutica farmacológica analgésica. A abordagem cirúrgica tem-se mostrado válida para os casos renitentes ao tratamento conservador. Há que referir, no entanto, que a literatura referente ao Síndrome de Escápula Crepitante aborda, na maioria dos casos, pequenas amostragens de doentes, sendo assim difícil determinar qual a terapêutica mais adequada para este síndrome. Referências/ References: 1. Carlson HL, Haig AJ, Stewart D. Snapping Scapula Syndrome: Three case reports and an analysis of the literature. Arch Phys Med Rehabil. 1997; 78:506-511 2. Parsons TA. The snapping scapula and scapular exostoses. J Bone Surg. 1973; 55(2): 345-349 3. Ferreira AA, Zoppi A, Olivi R, Ferreira Neto A, Benegas E, Osório EG. Tratamento cirúrgico da crepitação escapulotorácica. Ver Bras Ortop. 1994; 29(9): 635-637 4. Morelli R, Morelli IH, Orsolini CM, Julião L. Aspectos etiológicos e tratamento cirúrgico da escápula em ressalto. Ver Bras Ortop. 1994; 29(9):623-626 5. Lazar MA, Kwon YW, Rokito AS. Snapping Scapula Síndrome. J Bone Joint Surg Am. 2009; 91:2251-2262 6. Manske RC, Reiman MP, Stovak ML. 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