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O Racionalismo 
Crítico na Política 
Coletânea de Ensaios 
Karl Popper 
E:JE:5 Editora Universidade de Brasrlia
UTOPIA E VIOLÊNCIA *
Karl Popper 
HÁ MUITA gente que odeia o recurso à violência e está convencida de que uma das 
nossas tarefas mais importantes e simultaneamente mais otimistas consiste em suprimir 
do mundo a agressão e a violência ou, pelo menos, em reprimir as suas formas piores. 
Confesso que faço parte destes adversários otimistas da violência. Não só porque a 
odeio, como também porque estou convencido de que o combate contra a violência e a 
agressão não é totalmente desesperado. Claro que reconheço que a tarefa é difícil. Sei 
também que aquilo que parecia em primeiro lugar um grande êxito na luta contra a 
violência levou mais tarde a uma derrota. Sei ainda que a nova era de violência, 
introduzida pelas duas guerras mundiais, ainda não acabou. O fascismo e o 
nacional-socialismo foram derrotados; mas isso não sigrúfica que a barbaridade e a 
brutalidade tivessem sido derrotadas, ao inverso: seria errado esquecer o fato de que 
estas detestáveis idéias, com a sua derrota, conseguiram uma vitória. Tenho de 
reconhecer que Hitler conseguiu reduzir ao mírúmo a caveira moral do ocidente e que 
o mundo hoje padece sob a ação da violência agressiva e da força brutal mais do que
na própria década após a Primeira Guerra Mundial. E temos que atentar para a
possibilidade de que a nossa civilização pode afinal vir a ser arúquilada exatamente por
meio das novas armas que a época de Hitler nos impôs, possivelmente até no espaço da
primeira década após a Segunda Guerra1 . Pois, sem dúvida, o.espírito da época de Hitler
conseguiu a sua maior vitória quando nós, após a sua derrota, utilizamos as armas para
cujo desenvolvimento nos preparou a ameaça do nacional-socialismo. Apesar de tudo
isto estou hoje tão otimista como outrora quanto a poder-se vencer a violência. É a
nossa única esperança, e longos capítulos, tanto da história do Ocidente como do
Oriente, atestam que não é necessariamente uma esperança vã, que a violência pode ser
dominada e controlada pela razão.
* Conferência realizada no Institut des Arts (Instituto das Artes) em Bruxelas, em junho de 1947;
impressa pela primeira vez em 1948 (Toe Hibbert Journal, vol. 46). Reimpressa no meu livro
Conjectures and Refutations (Conjeturas e refutações), cuja versão alemã está em preparação.
Versão autorizada 1975 por Karl R.Popper. Tradução revista e autorizada pelo autor, aos cuidados de
Frithjotf Spreer.
1 Esta conferência realizou-se em 1947. Hoje (1975) nesta passagem eu apenas substituiria a palavra 
"primeira" pela palavra "terceira". 
O RACIONALISMO CRÍTICO NA POLÍTICA 
Talvez seja esse o motivo pelo qual eu, como tantos outros, tenho fé na razão e 
pelo qual me classifico como racionalista. Sou racionalista porque vejo na ótica da 
razão a úrúca alternativa para vencer a violência. 
Quando duas pessoas não estão de acordo, fazem-no, ou porque têm opiniões 
diferentes, ou porque têm interesses diversos, ou por ambas as razões. Na vida social 
existem várias divergências de opiruão que têm de ser resolvidas de qualquer forma. Há 
perguntas que têm de ser esclarecidas pois a negligência em fazê-lo pode levar a novas 
dificuldades, cujo efeito cumulativo pode causar uma tensão insuportável; seria 
exemplo disso uma situação de preparativos permanentes e intensivos para a decisão 
definitiva (por exemplo, a febre de armamento). Portanto a decisão é inevitável. 
Como é que se pode chegar a uma decisão? Existem essencialmente duas vias 
possíveis: o argumento (por exemplo de uma arbitragem ou recurso a um tribunal 
internacional) ou a violência. Se são interesses opostos que se chocam, então as duas 
possibilidades essenciais são ou de um compromisso razoável ou de uma tentativa de 
rejeitar violentamente os interesses opostos. 
Um racionalista, no sentido em que uso aqui o termo, é uma pessoa que se esforça 
por chegar às decisões por meio de argumentos, em alguns casos, graças a um 
comprorrússo mas nunca através do recurso à violência. Um racionalista é uma pessoa 
que prefere não ser bem sucedida na sua tentativa de convencer alguém, a ser bem 
sucedida em dorrúnar esse alguém pela violência, pela intirrúdação ou pela ameaça, ou 
apenas pela arte de persuasa:o recorrendo à propaganda. 
Compreender-se-á melhor o que eu quero dizer com a expressão "atitude racional" 
(ou "posição racional") se se fizer uma distinção clara entre a tentativa de convencer 
alguém por meio de argumentos e a tentativa de persuadir esse alguém por meio da 
propaganda - A diferença não reside tanto no uso de argumentos: a propaganda também
freqüentemente utiliza argumentos. A diferença também não reside na nossa convicção
de que os nossos argumentos são concludentes e que têm de ser reconhecidos como tal
por qualquer pessoa sensata Baseia-se antes numa atitude de reciprocidade de dar e
receber (give and take), numa disposiçí!�de não procurar exclusivamente con;en�s
,O.lli!Q§. mas talvez até de ser convencido por eles. Aquilo que denorrúno atitude ou
posição racional pode ser caracterizado pela observação seguinte: "Estou perfeitamente
seguro de que tenho razão; mas posso enganar-me e podes ter razão tu. Em qualquer
dos casos, vamos conversar racionalmente, pois assim nos aproximaremos mais da
verdade, do que se cada um persistir no seu ponto de vista". Ver-se-á perfeitamente
que ª atitude que designo como �sata ou racional, pressu õe um cert2._grau de
modéstia intelectual É uma atitude de que só são cap� aqueles que reconheêem não
ter por vezes razão e que geralmente não esquecem os seus erros.
A atitude racional resulta do conhecimento de que não somos oniscientes e de que 
devemos em grande parte aos outros o nosso conhecimento. É uma atitude que 
transfere ambas as regras da conformidade com o parecer judicial para o campo do 
parecer em geral: que, em primeiro lugar, se devem ouvir sempre ambos os lados; em 
segundo lugar, que não se pode ser bom juiz num assunto em que se é parcial. 
UTOPIA E VIOLÊNCTA 5 
Creio que só poderemos evitar o recurso à violência se permanecermos também 
fiéis à atitude racional nas relações sociais. Qualquer outra atitude leva com facilidade 
ao recurso à violência - até mesmo uma atitude de, levando os outros à concordância 
graças a uma persuasão unilateral, conseguir ganhá-los por meio de argumentos e 
exemplos para o caminho das atitudes de que nos orgulhamos e de cuja verdade 
estamos convencidos. Todos nós sabemos quantas guerras .santas se travaram por uma 
religião de amor e de bondade; quantas pessoas foram queimadas vivas na boa intenção 
de livrar as suas almas do fogo eterno do inferno. Só quando abandonarmos a nossa 
posição autoritária no âmbito da opinião, só quando encontrarmos uma <!titude de 
reciprocidade de dar e receber, estaremos prontos a aprender com os outros, 
poderemos esperar vir a ser senhores das atividades violentas, que são inspiradas pela 
devoção e pelo sentido do dever. 
Há muitas dificuldades no caminho para a divulgação rápida de uma atitude 
racional Uma das dificuldades essenciais consiste em serem necessárias duas pessoas 
para uma discussão sensata Uma das partes tem de estar disposta a aprender com a 
outra. Não se pode ter uma discussão racional com quem prefere disparar a deixar-se 
convencer: a atitude racional tem, portanto, os seus limites. O mesmo se passa em 
relação à tolerância Não se deve abandonar incondicionalmente o princípio de tolerar 
também todos aqueles que são intolerantes. Pois de outra forma uma pessoa aniquila-se 
não apenas a si mesma, mas também suprime a tolerância. 
(Tudo issb se indica na minha observação de que a atitude racional tem de ser 
atitude de reciprocidade de dar e receber). Uma conseqüência importante é constituída 
pelo fato de não devermos admitir uma confusão na distinção entre ataque e defesa.Temos de insistir nesta distinção e apoiar e promover instituições sociais (tanto 
nacionais quanto internacionais), cuja tarefa seja distinguir entre agressão e reação o 
mais rigorosamente possível. 
Espero ter tornado claro o que quero dizer quando me classifico como racionalista. 
O meu racionalismo não é dogmático. Confesso abertamente ter escolhido o 
racionalismo por odiar a violência e não me iludo quanto ao fato deste ódio não ter 
uma base racional. Em outras palavras: o meu racionalismo não é autônomo mas 
baseia-se na crença irracional na atitude ràcional. 
Não vejo como sair daqui. Talvez se possa dizer que a minha crença irracional no 
mesmo direito mútuo de convencer os outros e de ser convencido por eles é uma 
crença na razão humana, ou mais simplesmente, de que eu acredito no homem 
Quando digo que acredito na pessoa humana, então quero dizer que acredito no 
homem tal como ele é: e naturalmente sei que ele não pode ser perfeitamente racional. 
Não acredito que uma pergunta como a de saber se o homem é mais racional do que 
emocional (ou o inverso) seja muito oportuna: o melhor é não se fazer tal pergunta. 
Não é, de fato, possível avaliar ou comparar coisas dessas. Inclino-me para protestar 
contra uma certa ênfase dada à irracionalidade do homem e da sociedade (resultante da 
vulgarização da psicanálise). Todavia conheço não só a força do lado emocional na vida 
humana mas também o seu valor. Nunca proporia que devesse constituir o objetivo 
dominante da nossa vida atingir uma posição racional. Gostaria apenas de afirmar que a 
Fabricio
Realce
6 O RACIONALISMO CRÍTICO NA POLfTICA 
atitude racional nunca deve estar completamente ausente nem sequer de relações que 
possam ser dominadas às custas de duras penas, como o amor2, por exemplo. 
A minha posição fundamental em relação ao problema de razão e violência já 
deveria agora estar clara; e espero partilhar esta posição com os meus leitores e com 
muitas outras pessoas. É sobre esta base que vou agora discutir o problema do 
utopismo. 
O utopismo pode ser descrito como uma forma de racionalismo e eu vou tentar 
mostrar que esta forma de racionalismo é basicamente diferente daquela em que eu e 
muitas pessoas acreditamos. Vou, portanto, tentar mostrar que há pelo menos duas 
formas de racionalismo das quais considero uma como falsa e a outra como certa; e
�ainda que o racionalismo falso é um dos caminhos que levam ao utopismo. 
-
Tanto quanto vejo, o utopismo resulta duma forma de pensar, defendida por muita 
gente que ficaria espantada se ouvisse que esta forma aparentemente inevitável e 
autônoma leva a resultados utópicos . 
Pode-se dizer que uma atuação é racional quando faz o melhor uso possível de 
todos os meios disponíveis para atingir um determinado objetivo, admitindo que talvez 
não seja possível determinar racionalmente o objetivo. Também uma atuação só pode 
ser julgada como racional e descrita como razoável ou adequada, se assim o for em 
relação a um objetivo dado: �ó quandQ temos perante nós um objetivo e só em relação 
a esse objetivo é que po.demos dizer �_!igimos @.Ci_Qnaln_!ente. 
Vamos agora utilizar este argumento no domínio da política Toda a política se 
compõe de atuações; e uma atuação só será racional se satisfizer o objeti;o:-A 
finalidade da atuação política de uma pess�ser o acréscimo dÕseupÕde� da 
sua própria riqueza; ou então pode ser a correção das leis, ou a modificação da 
estrutura do estado ou da sociedade. 
No último caso, a atuação política só será racional se tivermos em primeiro lugar 
determinado os objetivos das alterações sociais que queremos levar a cabo: a atuação só 
será racional em relação a determinados ideais quanto às formas possíveis do Estado e da 
sociedade. Portanto parece ser um pressuposto de toda a atuação política racional a 
nossa compreensão dos fins políticos; por exemplo, em relação à estrutura do Estado 
ou da sociedade que consideramos como a melhor. E só quando compreendemos o 
objetivo podemos começar a refletir sobre os meios mais adequados à realização desse 
objetivo: ou pelo menos para nos irmos aproximando mais dele, na medida em que 
encaramos o objetivo político como o objetivo de um processo histórico que até certo 
ponto podemos influenciar ou orientar para o objetivo escolhido. 
v' É esta a orientação que denomino utopismo. Toda a atuação racional e 
politicamente desinteressada tem, de acordo com este conceito, de preceder uma 
2 O existencialista Jaspers escreve: "Por conseguinte o amor é cruel, brutal e só quando assim é, nele 
acreditam os verdadeiros amantes". Tanto quanto eu posso perceber, esta atitude revela mais a fran­
queza do que a força que desejaria revelar. Ela denuncia não tanto um barbarismo, com? muito mais
um esforço histérico de representar o homem forte (Comparar com a nota 89 nas pags. 402/403 
do 2° vol. da minha Offenen Gesellschaft) (Sociedade aberta). 
UTOPIA E VIOLÊNCIA 7 
deternúnação dos objetivos definitivos e não apenas dos o�j�vQS_intermédios ou 
parciais, que são apêiias passõs-nÕ caminho para o objetivo definitivo e que. por 
conseguinte, só devem ser considerados como um meio e não como um fim. A atuação 
política racional tem, portanto, de se fundamentar numa descrição mais ou menos 
detalhada ou num projeto do Estado ideal e ainda num plano ou esboço do caminho 
lústórico que conduz a esse objetivo. 
Considero este conceito, que denonúno utopismo, como uma teoria atraente, 
demais até; pois ela�anto a núm�rig� nocíva. Creio que ela se neutraliza a 
si própria; e leva ao recurso à violência. Que ela se neutralize a si própria liga-se 
estreitamente com o fato de ser impossível determinar cientificamente os objetivos. 
Não existe nenhum método cient!_!kQ_Jg_ra decidir entre dois objetivos. Talvez algumas 
pessoas venerem a violência e, para elas, uma vida sem violência· é insípida e sem 
conteúdo. Outras, entre as quais eu me incluo, odeiam a violência. Isto é uma Juta 
pelos objetivos, que não pode ser dedicida cientificamente. O que não significa que 
estamos desperdiçando o nosso tempo sempre que argumentamos contra a violência. 
Significa, apenas, que, às vezes, não é possível argumentar com um adnúrador da 
violência. Tem uma forma de responder a um argumento com uma bala, a não ser que 
seja detido com a ameaça de violência contra ele. Se ele estiver disposto a escutar 
arguruentos sem disparar, então, pelo menos está tocado pelo racionalismo e talvez 
possa ser convencido. Portanto, argumentar não é deperdiçar tempo, pelo menos no 
caso de alguém que esteja disposto a escutar. Mas não se pode obrigar ninguém a ouvir 
argumentos por meio de argumentos. E com a ajuda de argumentos não se pode 
converter aqueles para quem todos os argumentos são suspeitos e que preferem uma 
decisão brutal a uma decisão racional Não se lhes pode provar que não têm razão. 
Isto é só um caso particular, mas que se pode generalizar: g_or 1!!_eios [lUrame'!!!.. 
racionais ou científicos não se pode chegar a uma decisão sobre os objetivos. Mas, 
ápesar disso, os argumentos podem, por vezes, ajudar muito a que se chegue a uma 
decisão pacifica sobre objetivos. 
Se utilizarmos tudo isto em relação ao problema do utopismo, então, em primeiro 
lugar temos de compreender que o problema de projetar uma planta utópica não pode 
possivelmente ser resolvido apenas com a ajuda dos meios da ciência. Antes mesmo que 
o sociólogo possa começar a esboçar um projeto, os objetivos têm, ao menos, de lhe
ser patentes. Nas ciências naturais encontramos a mesma situação. Nenhum
conhecimento científico poderá dizer a um cientista que ele está agindo corretamente
quando constrói um arado, um avião ou uma bomba atômica. Ou ele tem de eleger os
objetivos, ou então eles têm de lhe ser dados; e tudo o que ele pode fazer como cientista é
apenas produzir os instrumentos com a ajuda dos quais se poderão realizaresses objetivos.
Se acentuo as dificuldades de decisão entre diversos ideais utópicos por meio de 
argumentos racionais, mesmo assim não gostaria de suscitar a impressão de que há um 
campo - por exemplo, o campo dos objetivos - que se encontra para além do poder 
da crítica racional (ainda que eu seguramente dissesse que o campo dos objetivos se 
encontra em grande parte além do poder dos argumentos científicos). Pois eu próprio 
procuro agora mesmo argumentar sobre este assunto: e se aponto as dificuldades de 
8 O RACIONALISMO CRÍTICO NA POLÍTICA 
decidir entre projetos utópicos concorrentes, então procuro argumentar racionalmente 
contra a exposição dos fins ideais. É idêntica a minha tentativa de mostrar que esta 
dificuldade pode facilmente levar ao recurso à violência, entendida como argumento 
raciona� ainda que se dirija apenas àqueles que odeiam a violência. 
Que o método utópico, que elege uma organização social ideal como objetivo que 
pode servir a todas as nossas atuações políticas, pode levar facilmente ao recurso à 
violência, pode mostrar-se da seguinte forma: corno não podemos determinar os fins da 
atuação política, então as divergências de opinião quanto à forma social que pareça 
ideal nem sempre se podem equilibrar pelo rn�odo da argumentação. Terão, pelo 
menos em parte, o caráter_ de-!![erentes religiffs3s. E entre as diferentes religiões 
utópicas não há lugar para a tolerânc�Pois os objetivos utópicos destinam-se a servir 
como base para a atuação política racional e para a discussão; e essa ação só parece 
possível quando se decidirem finalmente os objetivos. O utopista tem de procurar 
convencer os concorrentes que não compartilham dos seus próprios objetivos e que não 
se declaram partidários da sua própria religião utópica; se não o conseguir, têm de 
procurar submetê-los recorrendo à violência. Mas têm de fazer ainda mais. Têm de 
exterminar pela base todas as opiniões heréticas e concorrentes. Pois é longo o caminho 
para o objetivo utópico. Assim, a racionalidade da atuação política permite que se 
encontrem medidas para manter constante o objetivo ao longo de um período de 
tempo extenso. Mas isso só se pode conseguir não apenas reprimindo as religiões 
utópicas concorrentes, mas ainda sufocando, tanto quando possível, a lembrança delas. 
O recurso a métodos violentos para reprimir o estabelecimento de objetivos 
concorrentes tornar-se-á mesmo mais premente se considerarmos que o período de 
construção utópica é um tempo de revoluções sociais. Mas durante esse tempo as idéias 
também mudam. Aquilo que, na altura da decisão, aparecia como desejável para 
muitos, pode, posteriormente parecer muito menos desejável. Se assim acontecer, o 
empreendimento utópico pode fracassar. Pois se alterarmos os nossos fins políticos 
durante a tentativa para nos aproximarmos deles, então em breve acharemos que nos 
estamos movendo em círculo. Todo o método de estabelecer primeiramente um 
objetivo político e de em seguida se tentar aproximar dele torna-se ilusório se, durante 
o processo de realização, o objetivo se puder alterar. Pode facilmente acontecer que as
medidas tornadas até à altura, efetivamente, se afastem do fim desejado. E se se mudar
a orientação de acordo com os novos objetivos, corre-se o mesmo risco. Apesar de
todos os sacrifícios que se tivessem realizado para garantir a atuação racional,
/ poder-se-ia não chegar a lugar nenhum - ao "lugar nenhum", que é o que se entendepela palavra ']Itom_a". 
Novamente o recurso à violência parece ser o único meio de impedir essas 
alterações no estabelecimento de objetivos; e isso implica o uso da propaganda, a 
supressão da crítica e a abolição de toda a oposição. Esse recurso à violência vem 
aco11Jpanhado pela garantia pública da sabedoria e previsão dos planeadores utópicos, 
dos tecnólogos utópicos que apresentam e realizam projetos utópicos. Assim, o 
tecnólogo utópico se torna onisciente e onipotente. Torna-se Deus. Perto dele não deve 
haver mais nenhum Deus. 
UTOPIA E VIOLÊNCIA 9 
�-· f' 
O racionalismo utópico é portanto um racionalismo que se neutraliza a si próprio. Por 
mais benévolos que sejam os seus objetivos, ele não traz a felicidade mas apenas a 
desgraça tão conhecida de se ser condenado a uma vida sob um governo tirânico. 
É importante que esta crítica seja corretamente compreendida. Não critico os 
ideais políticos enquanto .tais; nem afirmo que eles não possam nunca ser realizados. 
Isso não seria urna crítica convincente. Levaram-se a cabo muitos ideais outrora 
considerados dogmáticos e irrealizáveis: por exemplo, o estabelecimento de instituições 
válidas e dementes para assegurar a paz interna entre os cidadãos, para lutar entre 
contra crimes dentro do Estado. E não vejo nenhum motivo para que um tribunal 
internacional e uma força policial internacional não devam ter êxito idêntico na luta 
contra crimes internacionais, contra a agressão nacional e o maus-tratos de min<?rias ou 
talvez mesmo de maiorias. Não tenho qualquer objeção a fazer contra a tentativa de 
levar a cabo tais idéias. 
Onde reside então a diferença entre aqueles benévolos projetos utópicos, contra os 
quais protesto, porque levam ao recurso à violência, e aquelas outras importantes 
reformas políticas de longo alcance que me inclino a aconselhar? 
Se eu tivesse de apresentar uma fórmula simplificada, uma receita para distinguir 
entre projetos admissíveis de reformas sociais e projetos utópicos inadmissíveis, então 
diria algo neste gênero:. 
Trabalho de preferência mais para remover inconvenientes 
concretos do que para realizar idéias abstratas 
Não procures tornar feliz a humanidade recorrendo a meios políticos. Em vez disso, 
luta pela eliminação de inconvenientes concretos. Ou, exprimindo duma forma mais 
prática: luta pela supressão da pobreza por meios diretos - por exemplo, através da 
garantia de um rendimento mínimo para cada pessoa. Ou luta contra as epidemias e as 
doenças por meio da construção de hospitais e estabelecimentos médicos de ensino. Luta 
contra a ignorância da mesma forma que lutas contra o crime. Mas faz tudo isso por meios 
diretos. Decide o que consideras como os piores males da sociedade em que vives e 
procura convencer pacientemente as pessoas que os podemos solucionar e como o 
podemos fazer. 
Mas não tentes realizar estes objetivos indiretamente através de planos e preparativos 
de um ideal distante, uma sociedade perfeita. Por mais obrigado que te possas sentir à 
visão inspiradora deste ideal, não creias ser teu dever cuidar da sua realização, ou que é a 
tua missão abrir os olhos aos outros para a sua beleza. Não autorizes os teus sop.bos d� um 
mundo maravilhosamente belo a afastarem-te das necessidades reais dos homens que 
sofrem hoje:-entre nós. Os nossos companheiros têm direito à nossa ajuda, nenhuma 
geração deve ser sacrificada em favor de gerações futuras, em favor de um ideal que talvez 
não seja atingido. Em resumo: a minha proposta é que o sofrimento que se puder evitar 
deve ser -considerado como o problema mais premente da política pública racional, 
enquanto que a promoção da felicidade não deve tornar-se um problema político: a busca 
da felicidade deve ser deixada à iniciativa privada. 
10 O RACIONALISMO CRÍTICO NA POLÍTICA 
É um fato, nem sequer muito digno de atenção, que não é assim tão difícil de, por 
meio da discussão, chegar a acordo quanto às reformas sociais mais urgentes. É muito mais 
fácil chegar a esse acordo do que a um acordo sobre a forma ideal da vida social. Pois os 
males encontramo-los no meio de nós aqui ,e agora. São freqüentemente visíveis, podem 
ser experimentados e são diariamente sentidos por muita gente, que está na desgraça 
devido à pobreza, desemprego, opressão nacional, guerra e doença. Quem não sofre tais 
necessidades encontra todos os dias gente que as pode descrever. Isso é o que torna a 
desgraçaconcreta. É esse o motivo pelo qual podemos chegar a algo se discutirmos o 
problema, pelo qual podemos tirar proveito da atitude racional. Podemos aprender na 
medida em que escutamos reivindicações concretas e procuramos ponderá-las paciente­
mente e tão justa e imparcialmente quanto possível; e podemos procurar os meios e as 
vias de satisfazer as exigências mais prementes sem causar com isso piores males. 
Em relação ao bem ideal, o caso é outro. Ele é abstrato: só o conhecemos pelos nossos 
sonhos ou através dos sonhos dos nossos po�tas e profetas. Esses ideais não podem ser 
discutidos mas sim anunciados em alta voz. Não exigem a atitude crítica e racional de um 
juíz imparcial, mas sim a atitude irracional do apóstolo apaixonado. 
A ati1.ude do utopismo é, portanto, oposta à atitude racional. O utopismo, quando 
E'arece sob um disfarce racional, não é mais do que pseudo-racionalismo . 
Entlfo, o que é que é falso na argumentação aparentemente racional esboçada por 
mim na apresentação do caso utópico? Concedo que só podemos julgar da racionalidade 
duma atuação relativamente a determinados objetivos ou finalidades. Mas isso não quer 
dizer que a racionalidade de uma atuação política só possa ser julgada com respeito a um 
fim positivo e histórico. E não significa, com certeza, que tenhamos de considerar 
qualquer situação social ou política só da ótica de um ideal histórico pré-concebido. Pelo 
contrário: se os nossos objetivos e finalidades se relacionarem com a felicidade e a dor 
humanas, então não devemos julgar as nossas ações quanto ao contributo que possam 
trazer para a felicidade ou desgraça dos homens, mas temos de as julgar, sim, a sua eficácia 
direta na época presente. 
Não deveríamos nunca ver numa situação social dada apenas um meio para atingir um 
fim, nem consolar-nos com o fato de que se trata duma situação histórica temporária; pois 
todas as situaç� são temporárias. Tampouco deveríamos argumentar que o sofrimento 
de uma geração pode ser considerado como um meio para o fim de garantir a felicidade 
duradoura de uma geração futura ( ou de gerações muito posteriores). Este argumento não 
pode ser corrigido nem pelo elevado grau de felicidade prometida, nem pelo grande 
número de futuras gerações felizes. Todas as gerações sã"o passageiras. Todos têm o mesmo 
direito a serem levados em conta. Mas os nossos deveres imediatos referem-se, sem dúvida, 
à atual geração e à próxima. Para além disso não devemos procurar aliviar a desgraça de 
uns à custa da felicidade de outros. 
Assim se dissolvem em nada os argumentos racionais do utopismo. A magia e encanto 
operados pelo futuro sobre o utopismo não têm relaçã"o nenhuma com a previsão racional. 
A esta luz, o recurso à violência, que o utopismo origina, parece antes o decurso duma 
história da filosofia evolucionista, um historicismo histérico, que se obstina a sacrificar o 
presente à magnificência do futuro; que é incompreensivo perante o fato de que este 
UTOPIA E VIOLÊNCIA 11 
princípio levaria a sacrificar cada futura época isolada à que viesse depois; e ainda que é 
incompreensivo perante a verdade trivial de que o futuro definitivo do homem - qualquer 
que seja o seu destino - não pode ser mais brilhante do que o seu desaparecimento 
definitivo. 
A força de atração do utopismo resulta da falta de compreensão quanto ao fato de 
não ser possível realizar o céu sobre a terra. O que, em minha opinião podemos fazer em 
vez disso é tornar a vida em cada geração um pouco menos penosa e um pouco menos 
injusta. Desta forma muito se pode conseguir, nos últimos cem anos muito se alcançou. E 
a nossa geração podr;ria fazer ainda mais. Há muitos problemas urgentes que poderiam ser 
resolvidos, pelo menos parcialmente; como ajudar fracos e doentes e os que sofrem 
injustiças e opressões; combater o desemprego; promover igualdade de oportunidades; 
evitar crimes internacionais, como a extorsão e a guerra urdidas por pessoas, semelhantes a 
Deus, dirigentes onipotentes e oniscientes. Tudo isso poderíamos conseguir se parássemos 
de sonhar com ideais distantes e se parássemos de lutar pelos nossos projetos utópicos de 
um mundo novo e de um homem novo. Aqueles de nós que acreditam no homem tal 
como ele é e que, por conseguinte, não enterraram a esperanç.a de vencer a violência e a 
ausência de razão, deveriam, em vez disso, proporcionar a cada pessoa o direito de 
organizar por si mesma a sua própria vida, na medida em que isso é compatível com 
direitos iguais dos outros. 
Podemos ver aqui que o problema do racionalismo verdadeiro e do falso é apenas 
uma parte dum problema maior. É, em última análise, o problema duma atitude racional e 
salutar quanto à própria existência e suas limitações - precisamente o problema, a que 
agora tanto ligam os chamados "existencialistas", os arautos d_!_µma...nova teologia sem 
Deus. Quanto a mim, ele introduz um elemento neurótico ou mesmo histérico nessa 
ênfase exagerada da solidão fundamental do homem num mundo sem Deus e da tensão 
que daí resulta entre o eu e o mundo. 
Não duvido que esta histeria esteja intimamente ligada com o romantismo utópico e 
também com a ética do culto dos heróis, com uma ética que procura compreender a vida 
através do imperativo alternativo "Sê senhor - ou sê servo". E não duvido que nesta 
lústeria resida o segredo da poderosa força de atração desta ética. 
Que o nosso problema é uma parte de um problema maior, se pode concluir do fato de 
se deixar traçar um paralelo nítido ao antagonismo entre racionalismo verdadeiro e 
racionalismo falso, até mesmo no campo da religião - um campo que, aparentemente, está 
muito distante do racionalismo. Os pensadores cristãos indicaram a relação entre o 
homem e Deus, pelo menos de duas formas completamente distintas. Pode exprimir-se da 
seguinte maneira um°':nterpretação salutar: "Não esqueças que os homens não são deuses; 
mas também não deves esquecer que habita neles uma centelha divina". A outra 
interpretação exagera a tensão entre o homem e Deus. Exagera a pequenez e 
desprezibilidade do homem assim como as alturas a que ele pode chegar. Transfere a ética 
do "Sê senhor ou sê servo" para a relação entre o homem e Deus. Não sei se na base desta 
posição se encontram sonhos conscientes ou inconscientes de semefüança com Deus e de 
onipotência. Mas não se pode deixar de ter presente que a ênfase excessiva dada a esta 
12 O RACIONALISMO CRÍTICO NA POLÍTICA 
tensão entre o homem e Deus resulta de uma atitude desequilibrada e imatura perante o 
problema do poder. 
Esta atitude desequilibrada e imatura está obsecada pelo problema do poder, nã9 
apenas pelo problema do poder sobre as outras pessoas, mas também pelo problema do 
poder sobre a natureza, sobre o mundo que nos cerca Esta "falsa religião" (assim a devo 
chamar por analogia com o "falso racionalismo") está fascinada não sô pelo poder de 
Deus sobre os homens mas ainda pelo seu poder de criar um mundo. De forma idêntica se 
V encanta o falso racionalismo com a idéia de criar máquinas gigantescas e mundos sociaisutópicos. 
As frases "Saber é poder" de Bacon e "Domínio dos sábios" de ·Platão são apenas 
formas de expressão desta mesma atitude que baseia a sua exigência na força e posse de 
uma inteligência superior. Mas o verdadeiro racionalista estará sempre consciente do 
pouco que sabe. Também tem consciência do simples fato de que tudo o que possa 
possuir pela razão o deve à troca mútua de pensamentos com outras pessoas. Inclina-se, 
portanto, para considerar as pessoas como possuindo fundamentalmente os mesmos 
direitos e para considerar que a razão humana é um laço que une as pessoas. Para ele a 
razão é exatamente o oposto de um instrumento do poder e do recurso à violência: antes 
vê nela um meio de dominar a violência. 
ENTREVISTA COM KARL POPPER *
Die Presse: Prof. Popper, o senhor é atuahnente o filósofo contemporâneomais lido 
entre os políticos do mundo ocidental. Entretanto, o sr. é principalmente um teórico da 
Ciência ou crítico do conhecimento. Qual a relação entre isto e a sua filosofia política? 
Popper: O mais característico é exatamente a relação entre minha teoria do co­
nhecimento e minha filosofia da Ciência com minha filosofia polític�. Pode-se formular 
a principal tese de meu primeiro livro, A Lógica da Pesquisa ("Logik der Forschung") 
da� maneira: "Podemos aprender a partir de nossos eu.os". Não aprende­
mos juntando observações, nem retirando delas o essencial, mas sim ao enfrentarmos 
os problemas. Estes problemas são freqüentemente de ordem prática; às vezes são pro­
blemas teóricos, que surgem a partir das soluções propostas para os problemas práticos. 
Em ambos os casos, encontramos problemas e tentamos solucioná-los. Fazemos isto 
através da colocaçã"o experimental de teorias; e depois tentamos testar estas teorias. Em 
geral, aprendemos basicamente a partir de nossas teorias erradas: da correção de nossos 
erros. 
Uma das teses de minha Teoria da Oência é que algo especial é próprio à Ciência, 
a saber, a tentativa conscientemente crítica de refutarmos nossas teorias; isto é, de 
examinarmos nossas teorias da forma mais estrita possível e encontrarmos os erros nós 
mesmos. Se na vida cotidiana aprendemos através dos erros, não é por acaso que 
encontramos erros no domínio da Ciência; fazemos questão de sermos os primeiros a 
descobrir os erros, quando houver. É esta a postura especialmente crítica ou científica. 
A postura crítica toma-se, assim, um instrumento de pesquisa: a crítica é um 
instrumento de progresso; é a crítica que distingue a postura científica da experiência 
pré-científica, onde se fazem erros e se espera até que se esteja arruinado com seus 
próprios erros_ Conforme eu mesmo já formulei diversas vezes: a postura crítica 
permite-nos deixar morrer nossas teorias em nosso lugar, ao invés de sermos arruinados/ 
com elas. Quando se tem postura crítica, explora-se os erros de forma positivamente/ 
crítica, aprendendo-se conscientemente a partir deles. 
Algo característico de minha filosofia política (que é muito simples) é que se deve 
fazer o mesmo em política. O político procura geralmente provar que não comete erros; 
eu sugiro que ele tome claro para si mesmo que ele, como qualquer ser humano, comete e 
* Publicada em "Spectrum", suplemento semanal do jornal "Die Presse", Viena, 6/7 de setembro de 
197 5, Copyright 197 5, por Karl Popper.
52 O RACIONALISMO CRfTICO NA POLfTICA 
deve cometer erros. Portanto, ele deveria procurar descobrir os erros o mais cedo possível, 
a fim de poder evitar suas más conseqüências o mais rapidamente possível. Aliás, o 
presidente Tito proferiu um discurso recentemente, onde afirmou que o seu Governo não 
fizera muitos progressos neste sentido nos últimos trinta anos. Este é um primeiro passo, 
raro e importante, na direção certa. Do ponto de vista do Racionalismo Crítico, ele 
deveria ter ido além do que disse: deve-se procurar os próprios erros sistematicamente e 
apresentá-los. 
Die Presse: Qual a sua posição com relação ao Utopismo? 
Popper: A postura crítica em política leva, entre outras coisas à negação do 
Utopismo. O verdadeiro perigo do Utopismo é que ele é dogmático e não crítico. Ele nos 
coloca um objetivo demasiado alto; parte do pressuposto óbvio e intuitivamente 
convincente de que este objetivo é sempre certo, belo e bom, e, quanto mais o Utopismo 
se propõe este objetivo, menos ele está em condições de ver que talvez tal objetivo não 
possa ser realizado. Ou que as tentativas de realizá-lo possam conduzir a conseqüências 
indesejáveis. Frente a isso eu afirmo que devemos ser críticos; justamente porque nossas 
ações freqüentemente conduzem a conseqüências inusitadas, a erros imprevistos. Quando 
se está consciente disto, pode-se tentar antecipar estas conseqüências indesejáveis e prever 
o que acontecerá; e, desta forma, pode ser evitado o pior destas conseqüências.
Com isto, resumi bastante sucintamente minha teoria do conhecimento, minha 
filosofia da Ciência e minha filosofia política juntas. E acredito que elas sejam originais 
somente neste contexto. Ou seja, minha teoria não é despótica: ela não implica que 
minhas idéias em política não possam ter ocorrido a outros. Ela tem seus fundamentos 
objetivos justamente numa teoria racional do conhecimento e da Ciência. E numa teoria 
do conhecimento bastante simples, que todos podem compreender: a saber, na teoria do 
conhecimento através da busca crítica de erros, ou das consequências indesejáveis de 
nossas ações. 
Para ·essa teoria crítica do conhecimento e da ação política, fixou-se o nome 
"Racionalismo Crítico". Mas não estou muito satisfeito com este nome. Tal nome parece 
conter o perigo de um novo dogma tismo. Se eu me considerasse um racionalista crítico, 
isto poderia talvez levar a um novo dogma. O principal é justamente evitar o dogmático; é 
a postura sempre crítica, até mesmo perante ela própria. Mesmo a postura crítica tem suas 
limitações. Ela tem, por exemplo, suas limitações com relação à Ética. 
Farei -agora uma pequena digressão. Das posturas teórico-científica e teórico-congni­
tiva que descrevi, apreende-se que devemos partir sempre de pontos de vista e de teorias já 
existentes; mesmo que os utilizemos apenas como ponto de partida para nossa crítica, 
para depois ultrapassá-los e refutá-los de forma revolucionária. Mas isto significa que não 
há uma oposição entre tradição e crítica. A tradição (por exemplo, o sistema jurídico 
tradicional de um país) é certamente a condição para a crítica. Não se pode começar a 
crítica do nada; devem-se começar de algo que se critique. Começa-se, portanto, por uma 
tradição, mesmo quando esta tradição é o objeto da crítica. Está-se, portanto, sempre 
ligado à tradição. Freqüentemente ela é valiosa; algumas vezes, insubstituível. Mas mesmo 
quando uma tradição não é valiosa, estamos ligados a ela Pois somente através da crítica 
da tradição podemos chegar a refutá-la e continuar então a busca. 
ENTREVISTA COM KARL POPPER 53 
Ora, a mesma postura fundamental me parece ser importante com relação à Ética 
Sem nos atermos à tradição, precisamos partir de tradições na Ética. 
Neste sentido, não existe, portanto, nenhuma oposição entre o Tradicionalismo e a 
postura crítica Mas, naturalmente, existe também um Tradicionalismo dogmático, e, aí 
encontramos uma oposição. Esta oposição entre o Tradicionalismo dogmático e a postura 
crítica é grande. Mas também o pensador crítico deve dizer que não seria possível 
trabalhar sem a tradição. Oposição contra toda tradição é portanto um errofundamental. 
Conforme já formulei algumas vezes: se destruirmos todas as tradições e começarmos Vnovamente de Adão, não há nenhuma razão para acreditarmos que faríamos os mesmos 
progressos feitos por Adão. 
Die Presse: Portanto, o sr. defende o ponto de vista de que se deve partir ,da 
tradição. Isto significa que o sr. não apóia a revolução? 
Popper: Em geral eu sou contra a revolução. Mas isto não significa que eu seja 
contra a revolução em quaisquer condições. Acho que a rev>iução deve ser feita onde não 
houver estado de direito, mas arbítrio pessoal ao invés 0.: leis, onde houver opressão 
violenta e seqüestros arbitrários, onde o método crítico logicamente não possa funcionar. 
Mas somente aí. Revoltar-se contra uma sociedade apenas parcialmente aberta significa 
orovocar o perigo de que esta sociedade se transforme em uma ditadura, em uma 
so ;iedade fechada Consi_g.ero� idéi� de que se pode chegar, através da ditadura, a uma Vsi'hia,;20 melhor que numa democracia, completamente ilógica, e até mesmo pouco 
inte:ige- 1te. Pode-se ver isto pela História; mas, mesmo que a História não nos ensinasse 
isto, deYe-se reconhecer o perigo, que consiste no estabelecimento de um poder 
au tori tá rio.Entretanto, se sou contra a revolução política, sou a favor da revolução científica 
Pois na Ciência, a crítica é revolucionária: ela aniquila hipóteses, teorias; mas, felizmente, t/ 
nenhum ser humano. 
Die Presse: Em 1950 o sr. escreveu no prefácio à edição americana de "Sociedade 
Aberta": "pois apesar da conjuntura mundial atual estou tão otimista como nunca." O sr. 
ainda é hoje tão otimista como então? 
Popper: Sim, sou. Sei, naturalmente, que n� existem profecias em política Esta é, 
aliás, uma de minhas teses principais. Mas, contrariamente à moda dominante - e esta é 
uma que já domina há aproximadamente cem anos - sou de opinião de que é dever dos 
intelectuais não serem pessimistas. Ou melhor, nem otimistas nem pessimistas. Em todo o 
caso, deve-se tentar ver todos os sinais que indiquem um futuro melhor. E, portanto, sou 
inteiramente otimista 
Finalmente, parece ser fato que o sentimento de responsabilidade pelos aconteci­
mentos políticos nunca foi tão amplo na História humana como é hoje. Apesar disto, se 
os homens continuam a praticar muitas coisas irracionais, isto está muito ligado ao fato de
r/ 
,.,,,que eles têm um sentimento de que suas ações não podem influenciar o bem público. Eles 1�r
têm o sentimento de que não se pode fazer nada. 
Die Presse: Um de seus grandes objetivos é a preservação da democracia, o progresso 
da democracia. O sr. certa vez escreveu: " ... numa democracia possuímos a chave para o 
controle dos males; podemos dominá-los". Entretanto, observa-se nas democracias 
( 
Fabricio
Realce
54 O RACIONALISMO CRÍTICO NA POLÍTICA 
ocidentais, que cada vez mais decisões são tomadas fora do caminho formalmente 
democrático, principalmente fora do parlamento. Possuímos realmente a chave para o 
controle? 
Popper: Sim, ainda a temos. Veja, por exemplo, a guerra do Vietnã e o �aso 
Watergate: isto tudo foi muito mau. Mas pode-se ver os dois casos por um outro lado; 
desistiu-se da guerra do Vietnã devido a pressões populares. Sob pressão da oposição, o 
Governo americano resolveu sair da guerlc!. E o escândalo de Watergate não foi somente 
sensacionalisata, mas levou ao afastamento de Nixon. Estes são sucessos democráticos de 
grande monta, e, de certo modo, únicos. 
Die Presse: Em seu trabalho "Sociedade Aberta", escrito durante a Segunda Guerra 
Mundiat podem ser encontradas sugestões· bastante detalhadas e concretas para a 
segurança e o aperfeiçoamento da democracia; co.nsiderações, por exemplo, sobre a 
limitação dos custos de campanhas eleitorais. Estas sugestões ainda são suficientes, ou a 
atualidade já tem necessidade de novas? 
Popper: É claro que novas sugestões são sempre necessárias. Estou muito interessado 
na questão do aperfeiçoamento do controle democrático. Em minha opinião, o que há de 
melhor e de mais interessante nesse campo são os mais recentes trabalhos de meu colega 
Friedrich von Hayek Que eu saiba, seu último livro ainda não foi publicado em alemão. O 
título em inglês é "La� l.egislation-ª11.d Llberty". Esse livro parte do pensamento de que 
a idéia original do controle democrático, que remonta ao Iluminismo, principalmente a 
Montesquieu, não se manteve na prática conforme foi planejada. Por isso, Hayek sugere 
urna revisão das constituições democráticas, essencialmente uma limitação da soberania 
Uma limitação da idéia de que o povo, o parlamento, o presidente ou o primeiro-ministro 
tenham ou devam ter todo o poder; poder este que está baseado somente num consenso de 
maioria, em essência Ou a idéia de que a maioria como tal deva ter poder ilimitado. Ele 
considera certas todas estas idéias. E sua idéia básica é que todas as decisões, inclusive as 
de poder, devem ser tomadas dentro de u�a� Direito ou de uma consciência de 
Direito, e que esta idéia de Direito, por sua vez, se desenvolva ela mesma. De qualquer 
forma, o acordo sobre decisões com a idéia de Direito não pode ser controlado pelas 
mesmas pessoas que exercem o poder Executivo no Estado. Expressando mais exatamente 
esta idéia, Hayek sugeriu um sistema bi-cameral. Ambas as câmaras são escolhidas por 
métodos diferentes. A Câmara Alta zela para que a Câmara Baixa não faça mal uso de seu 
poder ou que se exceda com respeito àquilo que corresponda à consciência de Direito do 
povo no momento. Não se pode lesar o que corresponde à consciencia geral de Disjri.1.o...É 
muito interessante notar que o livro "Law, l.egislation and Llberty" tenha sido escrito 
antes do caso Watergate, e que, apesar disso, possa ser lido como um comentário para o 
caso. Mas o livro foi escrito totalmente à parte do escândalo. Se o sr. quiser ver o livro, 
leia o primeiro parágrafo do primeiro capítulo cuidadosamente. É bastante curto, tendo 
aproximadamente doze linhas, mas, em minha opinião, é realmente uma formulação 
clássica do problema moderno da democracia 
Die Presse: A técnica ad-hoc (piecemea1 social engineering), sempre recomendada 
pelo sr., está limitada a medidas democráticas dentro das correspondentes fronteiras es­
tatais. 
Fabricio
Realce
ENTREVISTA COM KARL POPPER 55 
Popper: Sim, quando escrevi a "Sociedade Aberta", deixei claro que democracia não é artigo de exportação. Eu sempre considerei as tentativas para exportar democracia com grandes restrições. Estas tentativas foram feitas. Mas não era de se esperar que tivessem sucesso. A democracia baseia-se essencialmente numa tradição, e sem tradição a<.../" democracia conduz à ditadura As tentativas em exportar a democracia são principal­mente iniciativas americanas. E eu acredito que os americanos tenham sido ingênuos a esse respeito. Na Europa Central parece que a idéia teve sucesso, mas, em minha opinião, foi algo bastante arriscado. Na África as iniciativas foram pior sucedidas. 
Die Presse: Ainda antes da fundação das Nações Unidas o sr. falava, bastante otimista, de uma organização mundial, que o sr. entendia como dotada de competências de poder de ordem. O que o sr. diz após trinta anos de Nações Unidas? 
Popper: A intenção dos fundadores das 'Nações Unidas foi a melhor possível. Mas não posso dizer o mesmo de suas previsões. De certo modo, a ONU é menos eficiente do que foi a Liga das Nações. Mas se se considerarem apenas os aspectos positivos, há muitas coisas boas realizadas pela ONU, sotiretudo no campo da ajuda Mas como organização intemaci•Jnal a ONU falhou, e parece, atualmente, que não há perspectiva de reformá-la. Isso poderia, quando muito, acontecer bastante lentamente. O sr. tem razão: o otimismo aqui está fora de lugar. Mas, por outro lado, existe a possibilidade mais realista de que a Europa se tome uma organização internacional. Posso dizer que fiquei muito satisfeito com o andamento da decisão popular britânica Naturalmente, votei pela Europa. 
Die Presse: O sr. critica os dogmáticos e utópicos. Tão eficientemente, que a revista "Spiegel" formulou o slogan "Popper ao invés de Mar)(' para a social-democracia alemã. É possível a existência de um partido sem resto sentimental de utopia? 
Popper: Não. Contra esse resto sentimental de utopia não tenho nada a dizer. Sou 1 contra, entretanto, à crença de que se possa realizar o céu aqui na terra e de que haja quem saiba como fazê-lo. Luto contra a idéia de que haja uma receita para isso, de que haja um meio político para fazê-lo. Thve-se lutar contra a ingênua crença em qualquer l fórmula geral, como, por exemplo, "Socialização" ou a "Nacionalização", ou fórmulas\ semelhantes; contra a idéia de que a socialização é boa e de que a não-socialização é má Devemos aprender a ver que determinadas idéias utópicas não estão certas. Por exemplo: todos nós já acreditamos, até mesmo eu, que não era utópico, que o crime desapareceria quando o homem não sofresse mais necessidades. A idéia de que o crime é uma função da necessidade foi uma idéia tão difundida, que não havia quase ninguém que não concordasse com ela E hoje sabemos que ela está errada. 
Die Presse: O marxismocientífico está morto. O seu senso de responsabilidade social e seu amor à liberdade devem sobreviver." Isto foi escrito pelo sr. O sr. vê princípios para esse sentimento de responsabilidade social, de liberdade, também no domínio do Cristianismo? 
Popper: Sim, vejo progressos. É claro que muito depende das personalidades. O Socialismo e o Cristianismo são bastante semelhantes. Em ambos os movimentos encontram-se homens sérios, que consideram as idéias mais que suas próprias pessoas. 
Die Presse: Em seus trabalhos, aparece freqüentemente o conceito de seriedade intelectual 
56 O RACIONALISMO CRÍTICO NA POLfTICA 
Popper: Sim Isto não é nada mais que a colocação que admite que cometemos 
erros: é a disposição de vermos e admitirmos nossos erros e de não impormos nada a 
ninguém, nem a nós mesmos. O que acho especialmente negativo em filos�-ª.g-3. 
Tantos filósofos dizem-se médicos, mágicos ou gurus. Eles sabem tudo. Sua sabedoria é 
tão profunda, que é difícil explicar-lhes o que seja uma pessoa não-sábia. Essa colocação 
dos filosófos é, em minha opinião, uma verdadeira traição ao intelecto. É o pecado contra 
o Espírito Santo. Não devemos esquecer Sócrates, que ensinava que a sabedoria consiste
em saber que nada sabemos.
Die Presse: Em sua opinião, em que medida a política cristã se propôs utopias? 
Popper: Pode-se dizer que a idéia de que não se pode ter o céu na terra é uma idéia 
essencialmente cristã. Apesar disso, sempre houve movimentos cristãos utópicos que 
tentaram realizar o céu aqui na terra. Mas o pensaIJJento de que isso não é possível é 
basicamente uma idéia cristã. Apenas, está ligada a algo com o que eu não concordo: à 
idéia do pecado original. Pode-se dizer que a única coisa certa e verdadeira na idéia do 
pecado original é que não se pode realizar o reino dos céus na terra. 
Die Presse: Humanismo social-liberal"; esse é um conceito que aparece em seus 
trabalhos. O sr. vê uma nítida convergência entre os partidos social-democratas e 
cristão-sociais? 
Popper: Sim, certamente há uma nítida convergência. Na Inglaterra, por exemplo, o 
socialismo nunca foi anti-religioso, ao passo que, no continente, foi de orientação 
fortemente religiosa. Há muitos socialistas religiosos, alguns na Áustria. Não sei se o nome 
"O pequeno Otto Bauer" lhe diz algo. Nos anos trinta ele foi o líder dos socialistas 
religiosos de Viena. Chama-se realmente Otto Bauer, e vive atualmente em New York. 
Die Presse: Sobre o efeito do prefácio escrito recentemente por Helmut Schmidt 
para o livro "Racionalismo Crítico e Social-Democracia" ("Kritischer Rationalismus und 
Socialdemokratie"), há o seguinte comentário: "Com isso, o chanceler alemão inicia uma 
nova.fase da social-democracia. 
Popper: Foi surpreendente para mim a publicação desse livro. Eu nunca esperei que 
minha crítica a Marx pudesse ser levada a sério pelos social-democratas. Já durante o 
entre guerras, quando eu era social-democrata, era antimarxista. Mas evitei a palavra 
social-democracia." 
Die Presse: Para não ganhar amigos errados? 
Popper: Sim, certo. Naquela época eu já era de opinião de que o marxismo levaria a 
social-democracia austríaca a um beco sem saída, e, além disso, a uma situação onde os 
problemas reais seriam deslocados por outros. Nessa situação, não se poderia ver que a 
luta contra o fascismo é totalmente independente da questão se o socialismo dominará 
no futuro ou não. Não se trata disso. Trata-se somente de defender a liberdade 
conquistada. Na verdade, nós a perdemos, justamente por não termos sabido prezá-la 
como liberdade e defendê-la. Esta é uma longa história. Na época do entre guerras eu já 
era contra a teoria marxista da social-democracia, e, mais tarde, após a publicação de 
"Sociedade Aberta", em 1945, separei-me completamente dessa teoria. E, por isso, 
surpreendeu-me que esse novo livro tenha sido publi_cado. Sua idéia é argumentar contra 
ENTREVISTA COM KARL POPPER 57 
os marxistas com a filosofia do racionalismo Crítico. Se isso vai ter algum resultado ou 
não, não posso dizer. Fiquei naturalmente muito impressionado e sat isfeito. 
Die Presse: Uma opinião bastante difundida considera-o adepto do "Círculo de 
Viena" de positivistas. 
Popper: Sim, o sr. sabe que eu não fui membro do Círcukl_ de Vie!W, mas critiquei-o. 
E minha crítica foi levada a sério pelo Círculo de Viena, ou por alguns de seus membros. 
Essa abertura diz muito a favor do Círculo. Eu tinha amizade com muitos de seus 
membros, principalmente com Herbert Feigl e "..iktor Kr9-fl, que faleceu em janeiro deste 
ano aos noventa e cinco anos de idade, e que foi o mais significativo representante do 
Círculo de Viena no pós-guerra. 
Die Presse: Quando o sr. publicou a "Lógica da Pesquisa", em 1934, o livro era 
apenas uma parte de um trabalho muito mais abrangente, que até hoje não foi publicado 
completamente. 
Popper: O primeiro livro chamava-se "Os dois problemas básicos da teoria do 
conhecimento" ("Die beiden Grundprobleme der Erkenntnistheorie"). Esses dois 
problemas eram o problema da indução ou a questão sobre a validade de princípios gerais 
sobre a realidade, sobre as leis da natureza, teorias, etc. - sobre a questão de validade da 
teoria. E o segundo problema era o dos limites; é esse o problema da "Científicidade", se 
podemos dizer assim Quando pode uma teoria ou um procedimento ser chamado 
científico? E quando deve ser chamado pseudo-ciêntífico? Esse livro foi escrito 
essencialmente como uma crítica ao "Círculo de Viena". Sobretudo como crítica a v 
Wittgenstein, mas também em parte como crítica a Carnap e a Schlick. � ..__.,,.--,_ 
Wittgenstein criou uma teoria do absurdo; embora, se quisermos, possamos também 
chamá-la de teoria do sentido. Mas existia aí uma separação entre o lógico e o absurdo. 
Ele procurou um limite e disse: o que estiver além desse limite é sem sentido. E essa 
colocação de limite foi, ao mesmo tempo, uma oposição entre o científico e o 
não-científico. Portanto, todo o científico era dotado de sentido lógico, todo o 
não-científico, absurdo; para Wittgenstein, a colocação de limite entre a Ciência e a 
Não-Ciência coincidia com a oposição entre o lógico e o absurdo. Isto eu critiquei nos dois 
problemas básicos. Procurei mostrar que Wittgenstein confrontava-se aí com um problema 
muito importante, que chamo de problema de limite: o problema do limite entre o 
científico e o não-científico. 
Mas também procurei mostrar que a fronteira entre o científico e o não-científico 
não corresponde de modo algum à fronteira entre linguagem lógica e absurdo. Admito, 
naturalmente, que a Ciência tenha sentido lógico, mas considero fundamentalmente&/" 
errado pensar que tudo o que não é científico seja absurdo. E sugeri, em lugar do assim 
chamado critério do sentido, a refutabilidade como critério de lin)Jte, e, mais tarde, a 
criticabilidade. Em minha opinião, o característico da Ciência é a postura crítica, e não o 
sentido lógico. A postura exige que� também o não-científico deva ter sentido, pois ela 
exige o posicionamento tradicional e não-crítico como pré-condição. É claro que o lógico 
não pode ter o absurdo como pré-condição. Mas a postura crítica pode ter a postura 
não-crítica como pré-condição. A crítica a Schlick estava em estreita relação com isso. 
Schlick sugeriu, juntamente com Wittgenstein e Fritz Waissmann, a verificabilidade como 
58 O RACIONALISMO CRÍTICO NA POLÍTICA 
critério de sentido lógico: tem sentido somente o que é verificável; portanto, tudo o que 
não é verificável não tem sentido. Contra isso, procurei mostrar que a verificabilidade leva 
a uma limitação totalmente errada da Ciência; isso porque até mesmo as leis das Ciências 
Naturais não são verificáveis. Desta maneira, portanto, a parte mais importante das 
Ciências Naturais é eliminada como sem sentido pelo critério da verificabilidade; 
contrariamente ao programa origianal,segundo o qual a Ciência deve ser idêntica ao 
sentido lógico, e o não-científico ao absurdo - programa esse que eu considero 
igualmente errado. 
Sugeri, portanto, que não se fale nem de sentido lógico nem de absurdo, mas que se 
fale tão simples e claramente quanto possível. O que chamei de "falsificabilidade" não era 
algo oposto ao critério do sentido da verificabilidade, mas sim uma conseqüência do 
método crítico da procura do erro. A _postura científica é a postura crítica. É a postura da 
procura do erro, que difere bastante da postura que busca verificações. A esse respeito, 
alguns membros do "Círculo de Viena" me compreenderam mal, conceitualmente 
falando. Disseram eles: falsificabilidade ao invés de verificabilidade - aí não há grande 
diferença Mas a grande diferença não está aí, e sim entre a postura crítica e a dogmática; 
ou entre o aprendizado através de nossos erros e o aprendizado através do acúmulo de 
observações. 
O "Círculo de Viena" tinha adotado o segundo método: al'rendemos através do 
acúmulo de observações; cada observação é uma verificação; e o acúmulo dessas 
observações verificadas significa nosso saber. A soma total do nosso saber consiste em 
todas as observações verificadas. Isto eu sempre considerei errado. Em oposição ao 
método de observação, afirmo que continuamente trabalhamos com teorias. Trabalhamos 
continuamente com teorias que ultrapassam em muito nossas observações; e estas teorias 
estão freqüentemente erradas. Mas podemos aprender quase tanto das teorias erradas 
quanto das verdadeiras, e, em, alguns casos, até mais, pois, de forma geral, aprendemos de 
observações. Além disso, quando estas observaçces refutam uma teoria, são extremamente 
, importantes; então, aprendemos muitíssimo das observações. 
Die Presse: Como o sr. vê Freud? 
Popper: Sou muito crítico com relação a Freud. Ele foi um pensador muito 
importante, um brilhante estilista, e, claramente, um caso freudiano, ele próprio; assim 
como Adler foi um caso adleriano. Mas eu considero pré-científica tanto a teoria 
freudiana como a adleriana. As três teorias que me levaram a meu critério de 
falsificabilidade foram as teorias de Freud, Adler e Marx, As três não são falsificáveis, e, 
portanto, não podem ser descritas como empírico-científicas. É interessante notar que se 
pode sempre esclarecer tudo com essas teorias não-falsificáveis. Nada que aconteça ou que 
possa acontecer pode ser refutado por semelhante teoria ou ser usado como crítica a tal 
teoria Em "Conhecimento Objetivo" ("Objetive Erkenntnis"), na pág. 50, escrevo que 
nenhuma descrição logicamente possível do comportamento humano é jamais incom­
patível com as teorias psicanalíticas de Freud, Adler e Jung. Se uma pessoa afoga uma 
criança ou mergulha na água arriscando sua vida para salvá-la, sua ação é psicanalitica­
mente sempre explicável. Estas teorias explicam tudo, e, portanto, nada. 
ENTREVISTA COM KARL POPPER 59 
Todavia, adnúto com prazer que Freud tenha visto deternúnadas coisas que não 
tenham sido vistas anteriormente. Tenho certeza de que existe algo como o complexo de 
Édipo. Mas também estou certo de que ele não desempenha o papel universal que Freud 
lhe atribui. 
Die Presse: Após a guerra, o sr., assim como alguns membros do "Círculo de Viena", 
foi convidado a trabalhar em Alpbach. Qual era, então, a função da "Universidade 
Austríaca"? 
Popper: Devo explicar primeiramente que Alpbach foi fundada em 1945 por alguns 
tiroleses e vienenses; e mesmo por membros do movimento de resistência a Hitler. Isto me 
motivou bastante quando fui convidado a trabalhar lá em 1947. Em Alpbach ensinei, na 
teoria e na prática, o método crítico, o método da revisão crítica de nossa tradição; um 
método que valoriza muito a tradição, mas nunca a dogmatiza. 
Do ponto de vista desse método, os círculos de trabalho, que desempenharam um 
papel essencial em Alpbach, foram muito importantes. O essencial num círculo de 
trabalho é começar criticamente, e, principalmente, levar os próprios alunos à crítica E 
para esse método, a atmosfera de Alpbach era excelente. Os estudantes vinham dos mais 
diferentes países e áreas, e erar.i totalmente abertos. Discutia-se com eles dia e noite, 
durante as refeições, e a canúnho de conferências, senúnários e círculos de trabalho. Era 
cansativo, mas entusiasmante. 
Die Presse: Atualmente, têm surgido futurólogos em Alpbach. O sr. pode 
desenvolver sua crítica à utopia em uma crítica à futurologia? 
Popper: Eu não teria nada contra os futurólogos, se eles não continuassem a 
exanúnar possíveis desenvolvimentos com relação a suas possfreis conseqüências e 
possíveis perigos. Mas os futurólogos procuraram, na verdade, prever o desenvolvimento 
futuro, o que não se pode fazer. Procurei mostrar que não se pode fazer isso em meu livro 
"O Sofrimento do Historicismo" {"Das Elend des Historicismus"). E não somente que 
não se pode fazer isso, mas também que isso pode tra:zer grandes perigos; o perigo de que 
se fique cego para tudo o que acontecer diferentemente do previsto, e de que não se veja 
o que resultar diferente. Perigo de que nos tornemos dogmáticos e não-críticos, enquanto
deveríamos estar continuamente alertas para observar tudo o que acontecer diferente­
mente do que se espera Nesse sentido, segundo o que conheço dos futurólogos, eles são
totalmente acríticoo, e, portanto, não tenho boa impressão da futurologia.
Die Presse: Em "Sociedade Aberta", há trinta anos, o sr. apontou falhas 
metodológicas, bem como instrumental insuficiente como falhas da futurologia. Não se 
podia criar modelos do mundo. Houve algum progresso metodológico desde então? 
Popper: Não. Acredito que não. Pelo contrário: acredito que tenha havido uma 
regressão metodológica Acredito que o método crítico não foi desenvolvido, mas que, ao 
invés disso, tenha-se procedido de forma dogmático-utópica Infelizmente é verdade que 
uma utopia pode tomar-se sempre bastante convincente. Para dar um exemplo típico: ao 
final da Segunda Guerra Mundial, eu tinha alunos socialistas que diziam que não há nada mais 
simples que manter o racionamento e abolir o dinheiro. Então teríamos uma sociedade 
ideal, onde todos obteriam o de que precisam e onde o.dinheiro seria desnecessário. Estas 
soluções simplistas, que sempre estão disponíveis, seriam pontos de partida bastante 
60 O RACIONALISMO CR(TICO NA POL(TICA 
apropriados para uma crítica. Quando se quer aprender, pode-se começar com algo 
semelhante, e, a partir daí, aprender as soluções não são tão simples. Mas estas mesmas 
coisas não têm valor, se colocadas de forma dogmática 
Die Presse: Em que o sr. está trabalhando no momento? 
Popper: No momento estou trabalhando com um filósofo dinamarquês, Troeis 
Eggers Hansen. Ele coleciorrou os diferentes manuscritos e fragmentos de meu primeiro 
livro ("Os dois problemas básicos da teoria do conhecimento") e vai publicar uma edição 
documentada deste livro. Devo escrever um prefácio para ele. U'.:II outro trabalho a que 
estou me dedicando no momento é o seguin.te: estou escrevendo um livro sobre o 
problema_c_oi:po/�juntamente com Sir John Eccles, neurologista e Prêmio Nobel. O 
título do livro planejado é "The Self and lts Brain". Nem eu nem Eccles acreditamos que 
o problema corpo/alma seja solucionável. Mas ambos acreditamos que se possam fazer
detenninados progressos nesse campo. O principal problema, no livro, são questões como
o problema das vias fisiológicas da memória. Uma série de pontos são divergências críticas
entre nós. Somos amigos íntimos, o que naturalmente não nos impede de sermos
freqüentemente de opiniões diferentes. Justamente essas oposições vêm à tona neste livro.
Por exemplo, não temos a mesma opinião sobre a memória e sobre o fundamento
fisiológico da memória Além destes dois livros, tenho ainda várias obras em andamento.
Die Presse: Qual o papel que o sr. deseja para o filósofonuma sociedade 
democrática? 
Popper: Vejo o papel da Filosofia muito criticamente. Isto é, acho que a Filosofia 
causou muitas coisas graves. O nacionalismo, por exemplo, é parciahnente um produto 
filosófico que parece atualmente por toda parte, não somente no mundo democrático, 
mas principalmente no Terceiro Mundo. Ele tem naturahnente sua base instintiva, mas 
remonta essencialmente a teorias filosóficas, como mostrei em "Sociedade Aberta". Algo 
semelhante aconteceu com a teoria da soberania: é uma teoria filosófica, e bastante 
perigosa Em minha opinião, acontece o seguinte: como a maioria dos homens é 
fortemente influenciada por proposições filosóficas acríticas, precisamos de alguns 
filósofos que critiquem essas proposições. Em poucas palavras: a Filosofia tem uma função 
crítica, porque a filosofia acrítica desempenha um grande e perigoso papel na vida social 
humana Esta é a razão pela qual é necessária uma filosofia crítica. 
RAaONAllSMO CRITICO - UMA ENTREVISTA COM KARL PO PPER •
BryanMagee 
NASCIDO EM Viena em 1902, Karl Popper viveu nesta cidade por mais de trinta anos. 
Nunca foi membro da Escola de Viena, visto que apesar de compartilhar dos seus 
interesses não admitia a sua interpretação filosbfica Pode-se até dizer'Clo seu primeiro 
livro Logik der Forschung (Lógica da Pesquisa) que foi escrito contra a Escola de Viena 
infelizmente o livro, apesar de publicado no outono de 1934, sb apareceu, na versão 
inglesa um quarto de século mais tarde sob o título The Logic of Scientiftc Discovery. 
Não consigo libertar-me do sentimento de que, possivelmente, a filosofia de toda uma 
geração, na Inglaterra, se apresentaria bem diferente se este livro tivesse sido traduzido há 
ma is tempo. 
Popper deixou Viena em 1937, passando a viver, durante a guerra, na Nova Zelândia 
Ali escreveu, em inglês, a obra em dois volumes que primeiramente o tornou famoso no 
mundo de expressão inglesa, Die offene Gesellschaft und ihre Feind (A Sociedade Aberta e 
os Seus Inimigos). fuma forte tomada de posição, fundamentada em sblidos argumentos a 
favor da democracia e contra o totalitarismo - e também os principais inimigos 
füosbficos da democracia, sobretudo Platão e Marx. 
A o mesmo tempo que era publicada A sociedade aberta e os seus inimigos, foi 
publicado um pequeno livro Das Elend des Historizismus (A Miséria do Historicismo), 
anteriormente uma série de artigos, que trata dos métodos da sociologia téorica e que 
pode ser considerado como um complemento àquela obra. Como se pode considerar, 
também, complemento da sua primeira obra, especialmente política, Lógica da Pesquisa o 
seu livro recentemente publicado Conjectures and Refutations (Conjeturas e Refutações). 
Popper é cidadão britânico desde 1945 e pertence também desde essa época ao corpo 
docente da London SchooLof Economics, na qual se desligou há pouco do cargo de pro­
fessor de lógica e metodologia científica. 
• - Tirado de Bryan Magee, Modem British Phi/osophy, Londres, 1971, tradução autorizada pelo autor
através de Thilo Sarrazin. Reservados todos os direitos Bryan Magee.
1 - Nota do tradutor: depois desta entrevista radiofônica, apareceu, em 1972, o livro Objective
Knowledge (Conhecimento objetivo) que foi publicado em alemão em 1973, sob o título Objektive
Erkenntl"is (Hamburgo, Hoffmann e Campc).
2 - P.A.Schilpp (Hg): The Philosophy of Karl Popper - (A filosofia de Karl Popper) - The Library of
Living Philosophcrs, La Salle, Illinois, 1974 (2 volumes).
62 O RACIONALISMO CRÍTICO NA POLÍTICA 
Magee - Pelas nossas conversas anteriores, sei que o senhor acredita que ser filósofo é 
algo que necessita de justificação. Por que, afinal? 
Popper - Acredito, sim Não posso, porém, dizer que me sinto orgulhoso de ser 
designado como filósofo. 
Magee - Não será isso um tanto ou quanto estranho? Por que pensa assim? 
Popper - Na longa história da filosofia há mais controvérsias filosóficas de que me 
envergonho, do que as de que posso me orgulhar. 
Magee - Mas o senhor acredita evidentemente que vale a pena ser filósofo, ainda que 
não haja motivo para se orgulhar disso? 
Popper - Creio que po�so apresentar uma justificação, que é mais ou menos uma 
apologia à existência da filosofia ou uma motiyação para a necessidade de racioéinar sobre 
a filosofia 
Magee - E qual será essa motivação? 
Popper - Acontece que cada um tem sua filosofia, como o senhor, eu ou qualquer 
outra pessoa Estejamos ou não conscientes disto, cada um de nós parte de determinadas 
�osi_� e estas c_onsiderações não críticas são, por vezes, de caráter filosófico. Às vezes 
estas filosofias são verdadeiras, mas na maioria das vezes não o são. Se são verdadeiras ou 
falsas só descobriremos através de um exame crítico dessas filosofias, que foram o nosso 
ponto de partida não crítico. A tarefa da filosofia e a justificação da sua existência 
consistem, julgo eu, em fazer este exame crítico. 
Magee - Poderá indicar um exemplo atual de um credo filosófico não crítico que 
careça de demonstração crítica? 
Popper - Constitui uma opinião filosófica muito influente deste gênero a seguinte: 
quando acontece na sociedade algo de "mau", algo de que não gostamos, como guerra, 
pobreza, desemprego, isto é o resultado de um propósito perverso, de uma má vontade, de 
um golpe criminoso, alguém o fez propositadamente e naturalmente todos tiram proveito. 
Esta opinião filosófica caracteriza a teoria de conspir�ão da sociedade. Esta teoria pode 
ser crifü;ada e, em minha opinião, prova-se queêfalsa: em todas as sociedades acontecem 
várias coisas indesejáveis que são conseqüências, não premeditadas nem previstas, da nossa 
própria atuação. 
A teoria da conspiração da sociedade faz parte das várias concepções filosóficas não 
críticas que tornam necessária uma investigação crítica A existência destas concepções 
constitui a justificação de ser filósofo. Estas falsas filosofias são muito influentes e é 
importante que alguém as discuta e as submeta à crítica 
Magee - Poderá o senhor indicar-nos outros exemplos? 
Popper - Sim, vários. Há um conceito filosófico muito desacreditado, que se pode 
resumir nas seguintes palavras: as opiniões de uma pessoa são sempre condicionadas pelos 
seus interesses econômicos ou políticos. Muitas vezes isto só é usado contra o adversário e 
11 apenas da seguinte maneira: sempre que você não tem a mesma opinião que eu, está condicionado por- motivos econômicos premeditados. Uma filosofia deste tipo não terá 
nenhum crédito pelo fato de impossibilitar debates sérios. Leva-nos à quebra do interesse 
em descobrir a verdade sobre as coisas. Pois em vez da pergunta "qual é a verdade a 
RAOONALISMO CRÍTICO - UMA ENTREVISTA CO!'{ KARL POPPER 63 
respeito destes assuntos?", aparece outra - "Quais são os seus motivos? ". Questão que 
é, evidentemente, de pouca importância. 
Outra concepção semelhante, também desacreditada mas, no momento atual, 
extraordinariamente influente, pode ser formulada assim: a discussão racional só é 
possível entre pessoas que são da mesma opinião no que diz respeito aos conceitos básicos 
mais importantes. Quem perfilha esta opinião terá também que aceitar a impossibilidade 
da discussão racional dos problemas fundamentais. Defende-se por vezes esta filosofia, 
com a seguinte alegação: só se estabelecermos desde o início um âmbito lato de conceitos 
básicos é que poderemos esperar chegar a um acordo, numa discussão racional. Esta 
opinião, que parece muito esclarecedora e sensata, tem conseqüências terríveis. Destrói, 
especialmente, o sentimento de humanidade em grupos - círculos culturais - entre os 
quais já não é possível uma conversa, mas apenas luta Esta filosofia não é só maléfica, em 
minha opinião, é também falsa; uma filosofia que pode ser refutada embora eu não o 
possa fazer em poucos minutos. Mas a sua pior influência constitui, quanto a mim, uma 
justificação paraser filósofo. 
Magee - A sua tese é, portanto, a seguinte: todos nós somos filósofos na medida em 
que temos teorias filosóficas e agimos motivados pelos seus fundamentos. Mas 
habitualmente não percebemos que, ao agir, aceitamos de uma forma não crítica a 
verdade de uma teoria 
Popper - Exatamente. 
Magee - Ademais, o senhor diz que destas teorias algumas são verdadeiras, enquanto 
outras não somente são falsas como até nocivas. O senhor alega que a tarefa própria da
// 
filosofia consiste em examinar criticamente as nossas opiniões filosóficas infundadas e, 
muitas vezes, inconscientes, e corrigi-las quando necessário. 
Popper - Correto. Acrescente-se a isto que eu sou de opinião que a necessidade de 
retificar as opiniões dos filósofos profissionais não constitui desculpa suficiente para a 
existência da filosofia 
Magee - Esta opinião é exatamente oposta à de Moore, quando disse uma vez que o 
próprio mundo não se lhe apresentava com _problemas que lhe dessem o desejo de 
filosofar, e que só tinha se tornado filósofo por causa das afirmações inacreditáveis de 
outros filósofos. 
Popper - Penso que isto levaria a uma forma de intercultura filosófica Tornaria a 
filosofia uma matéria especializada segundo os padrões da ciência moderna. Mas, quanto a 
mim, esta especialização, tão em voga nas ciências, está malograda e os argumentos contra 
a especialização na filosofia têm ainda mais peso. 
Magee - O senhor menciona a ciência moderna Tem alguma prática neste campo, 
não é verdade? 
Popper - Tenho, sim. Comecei os meus estudos nos campos da Matemática e da 
Física, e a minha primeira atividade docente foi como professor ginasial destas matérias. 
Mas nunca fui um especialista Trabalhei sempre nos domínios que mais me interessavam. 
Na Física, fui apenas um amador, nunca um perito. Um trabalho que escrevi para a minha 
habilitação como professor de Matemática tratava dos axiomas da Geometria;mais tarde 
trabalhei sobre a axiomática da teoria das probabilidades. 
64 O RACIONALISMO CRÍTICO NA POLÍTICA 
Magee - E isto estaria no centro da sua investigação? 
Popper - É difícil de dizer. Talvez se possa afirmar que as minhas investigações se 
concentravam nos métodos da ciência, principalmente da física moderna, ou, para 
empregar uma expressão mais em voga, na teoria científica. Mas houve sempre outras 
coisas que me interessaram 
Magee - Quais eram as idéias centrais do seu primeiro livro, Lógica da Pesquisa? 
J 
Popper - A idéia central era a seguinte: em face da nova teoria da gravitação de 
Einstein, todas as exposições anteriores quanto aos métodos de trabalho da ciência e 
caráter do conhecimento científico eram incorretas. 
Magee - Até que ponto? 
Popper - A opinião comum era que a ciência, ou o conhecimento científico, 
representava uma forma de conhecimento especialmente assegurado ou, pelo menos, mais 
certo que o tipo de conhecimento resultante da observação e ex!)eriência. Segundo esta 
opinião, a observação e a experiência nos levariam a delinear uma hipótese, a qual seria 
examinada, de novo confirmada e finalmente aceita como uma teoria cientificamente 
demonstrada Esta era, em resumo, a opinião geralmente reconhecida. Vi que já não se 
podia sustentar esta opinião, precisamente devido ao desafio de Einstein à teoria de 
Newton, a teoria mais importante e de maior êxito que já fora proposta e aceita. 
Magee - Por que razão o senhor dá à teoria de Newton este status único? 
Popper - Newton foi quem nos deu pela primeira vez a compreensão do mundo em 
que vivemos. E pela primeira vez tínhamos bons motivos para crer que possuíamos uma 
teoria verdadeira A teoria de Newton possibilitava prognósticos detalhados de efeitos que 
acabavam de aparecer, tais como o afrouxamento das leis de Kepler; e estes prognósticos 
saíram vitoriosos dos exames mais profundos. O grande êxito dessa teoria foi a descoberta 
do planeta Netuno. Esta descoberta transformou uma derrota ameaçadora em vitória. 
Magee - Pode desenvolver esta idéia um pouco melhor? 
Popper - A observação do planeta Urano mostrou alguns pequenos afrouxamentos 
dos prognósticos deduzidos da teoria de Newton. Então, Adams, na Inglaterra, e 
Leverrier, na França, mostraram que estes afrouxamentos podiam ser esclarecidos pela 
hipótese de ainda haver um planeta por descobrir. Ambos calculavam a posição desse 
planeta desconhecido que acabou por ser rapidamente descoberto (por Galle, em Berlim). 
Este foi o maior e mais convincente êxito alcançado pela capacidade intelectual humana; 
deve todaV'la confessar-se que, desde então, não são raras as previsões igualmente bem 
sucedidas. De qualquer forma, depois deste grande êxito, muito poucos põem em dúvida a 
verdade da teoria de Newton. A opinião corrente era de que se chegava a esta teoria pela 
observação e comprovava-se à mesma pela indução. Apareceu então Einstein com a sua 
teoria concorrente. As opiniões sobre a utilidade desta nova teoria divergiram muito e 
ainda hoje divergem: por motivos diversos, ainda hoje, alguns físicos se agarram à 
teoria de Newton. 
Magee - Qual a teoria que o senhor prefere? 
Popper - Sou de opinião que a teoria de Einstein repensa a de Newton; mas isto não 
constitui o ponto mais importante. 
Magee - Qual será este ... ? 
7;1·
RACIONALISMO CRÍTICO - UMA ENTREVISTA COM KARL POPPER 65 
-l' / 
Popper - O ponto mais importante é o seguinte: todo o material colhldo pela 
observação é examinado e dele se pode dizer que apóia a teoria de Newton e, 
simultaneamente, aproveita-se para apoiar a teoria, completamente diferente, de Einstein. 
Isto mostra inequivocamente ser falso afirmar que se pode dizer que a teoria de Newton 
se fundamenta em material empírico examinado ou provado por indução. Demonstrou-se, 
ainda, que não se pode nunca afirmar de uma teoria que ela se baseia em métodos '.-
�tivos. Uma vez que não pode existir maior concordância entre teoria e material 
examinado conseguido pela observação do que no caso da teoria de Newton, se esta não se 
pudesse fundamentar indutivamente pelo menos uma vez, então, evidentemente, nunca o 
seria 
Magee - É este o motivo pelo qual o senhor recusa a teoria da indução? 
Popper - Sim. Em princípio, a situação lógica é extremamente simples. Não é o fato 
de se verem muitos cisnes brancos que fundamenta a teoria de que_ todos os cisnes são 
brancos: mas a primeira observação de um cisne negro vem rebatê-la A teoria de Newton, 
devido a medições muito sutis, que se previam com a maior precisão através da teoria, 
estava convincentemente apoiada Mas o primeiro afrouxamento real pôde contradizê-la. 
Magee - E naturalmente deu-se o tal afrouxamento - se não me engano, tinha qual­
quer relação com o planeta Mercúrio. 
Popper - Exato, mas este afrouxamento foi extremamente reduzido e pode, 
possivelmente, ser explicado (como Dicke o demonstrou) dentro da própria teoria de 
Newton. A mim não• parece que a teoria de Newton tenha, de fato, sido desvirtuada ou 
que tenha sido ultrapassada pela teoria de Einstein, mas sim que, desde a proposta de 
Einstein de uma teoria concorrente, nós sabemos que nunca o grande sucesso previsto 
pôde fundamentar indutivamente uma_ teopa. Isto significa, porém, uma reviravolta 
importante na nossa concepção de ciência-; isto significa que laborávanns em erro quanto 
ao caráter do conhecimento científico, que as teorias científicas permanecem invariavel­
��s, que a própria teoria científica melhor fundamentada pode sempre ser. 
desalojada por outra ainda melhor. O que podemos dizer é que cada teoria deve 
apresentar uma predecessora bem sucedida e devidamente comprovada, como uma 
aproximação. Assim seria também explicada a razão do êxito da teoria precedente. 
Magee - Poderia agora resumir-nos à nova concepção de ciência, que o senhor 
também perfilha? 
Popper - Em p!:_imeiro lugar, nenhuma teoria científica pode

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