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Celso Furtado – Prefácio à Nova Economia Política – Introdução – 1976 Um quarto de século tateando os labirintos das teorias econômicas e esforçando-me para descobrir relações entre os ensinamentos que daí se derivam e os problemas práticos de nossa época, convenceu-me sobejamente da insuficiência do quadro conceitual com que trabalhamos nessa ciência. Um prolongado esforço para compreender os processos históricos de desenvolvimento e subdesenvolvimento, apoiado nos instrumentos da análise econômica, levou-me à convicção de que a elaboração de uma “dinâmica econômica” que seja algo mais do que uma série de exercícios engenhosos para distração de professores universitários, é objetivo inalcançável dentro do quadro de referência em que trabalhamos. Essa visão pessimista da ciência econômica pode parecer surpreendente, em vista dos extraordinários avanços realizados a partir dos anos 30. Com efeito: nos começos desse decênio Ragnar Frisch fundava a econometria em bases sólidas, abrindo uma fase de rápidos aperfeiçoamentos nos instrumentos e nas técnicas de trabalho do economista. Pela mesma época se iniciam os esforços de Kuznets no sentido de ampliar as fontes de material empírico em que se alimenta a análise econômica. Não menos importante terá sido o impulso dado à macro- economia pelo sistema de hipóteses que formula Keynes ainda nos anos 30. Em 1944, a construção de uma nova matemática, concebida por Von Neumann para ser aplicada ao comportamento dos agentes econômicos (a teoria dos jogos), vinha coroar essa fase de grandes inovações. A economia parecia haver descoberto o seu caminho real à semelhança do que ocorrera com a física quando encontrou na matemática de Newton y Leibniz as asas de que necessitava para voar. Se a econometria demonstrou ser um poderoso instrumento auxiliar do economista, as esperanças postas na economia matemática em grande parte frustraram-se, sendo modestos os resultados obtidos, se se tem em conta o considerável esforço realizado, esforço que seguramente absorveu as melhores inteligências atraídas pelos estudos de economia. Que lições tiram os economistas dessa experiência? Muitos não aceitam este diagnóstico, convencidos que estão de que os avanços realizados foram tão importantes que seria erro não continuar os esforços na mesma direção. Outros se limitam a introduzir um matiz nesta opinião otimista; reconhecem que são crescentes os obstáculos ao avanço do trabalho teórico, mas atribuem as dificuldades à insuficiência dos instrumentos que utiliza o economista. Uma mudança qualitativa somente poderia resultar de avanços autônomos em ciências auxiliares da economia, ou seja, nas ciências que suprem o economista de instrumentos de trabalho, como são a estatística e a matemática. Enquanto a imaginação dos matemáticos não põe à nossa disposição instrumentos mais poderosos, tratemos de fazer o melhor uso possível da panóplia que já conhecemos. Creio que existe uma outra forma de abordar o problema. Convém não perder de vista que a economia é uma ciência social. Na medida em que trata de problemas de curto prazo (a chamada estática econômica e ainda a estática comparativa) a economia, como ciência especial, pode progredir independentemente de avanços no conhe- cimento da sociedade em seu conjunto, ou seja, independentemente de avanços numa ciência social global. Devemos ter em conta que uma “disciplina” como a economia é simplesmente o estudo de um conjunto de problemas afins, que podem ser tratados num campo teórico mais ou menos unificado. Não existe uma realidade social cujo estudo seja da competência da economia. A matéria de estudo desta é certa classe de problemas sociais. Ocorre que se esses problemas são de curto prazo a sua abordagem pode apoiar-se em um conhecimento superficial do comportamento global da sociedade. Desta forma, existe um campo de teorização para o economista (a estática econômica) que prescinde da existência de uma teoria social global. Assim uma proposição do tipo “a escassez de um produto perecível tende a acarretar, numa economia de mercado, a brusca elevação de seu preço”, possui um certo valor explicativo mesmo se formulada sem maiores cautelas. O mesmo não podemos afirmar com respeito a uma proposição mais complexa, em que está envolvido o elemento tempo, como a seguinte: “a concorrência leva à concentração do poder econômico”. As cautelas que necessitamos introduzir para dar algum valor explicativo a esta última proposição, pressupõem um quadro teórico mais amplo do que o que correntemente utiliza o economista. A matéria com que se preocupa o economista são determinados problemas sociais que foram simplificados expressamente para poderem ser tratados com certos métodos. Esse processo de simplificação assume, via de regra, a forma de eliminação do fator tempo. O erro metodológico da chamada “dinâmica econômica” consiste exatamente em pretender reintroduzir o fator tempo mantendo os problemas com o mesmo grau de simplificação, como se o tempo existisse em si mesmo, independentemente de qualquer conteúdo. Dinamizar significa, ne- cessariamente, tornar os problemas mais espessos, mais complexos, portanto desbordar os limites do “econômico”, O avanço na direção de uma dinâmica econômica passa por uma compreensão dos processos sociais globais ou seja, pela construção de um quadro teórico que permita abordar o estudo do conjunto dos processos sociais. A despeito de sua vaguidade, o método histórico tem ocasionalmente contribuído para suprir a ausência desse enfoque global dos processos sociais. Ocorre, entretanto, que a sofisticação dos métodos de que se utiliza o economista fez-se no sentido de a-historicidade, abrindo-se assim um fosso entre a visão global derivada da história e a percepção particular dos problemas sobre os quais a análise econômica projeta alguma luz.
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