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atividade sérica de enzimas hepáticas
As enzimas hepáticas são normalmente incluídas nos perfis bioquímicos e muitas vezes chamadas de testes de função hepática. Entretanto, a mensuração dessas enzimas, como a alanina aminotransferase, por exemplo, serve para a avaliação da integridade do hepatócito, e não uma função específica do fígado. Além disso, o fígado tem papel central no metabolismo e na desintoxicação do organismo. Doenças sistêmicas ou de outros órgãos podem ocasionar disfunção hepática secundária e elevação dessas enzimas no sangue. Os distúrbios extra-hepáticos que podem causar testes anormais são:
Anemia hemolítica
Diabetes mellitus
Doença inflamatória intestinal
Esplenite
Hemoparasitas
Hiperadrenocorticismo
Hiperlipidemia
Hipoadrenocorticismo
Hipotireoidismo
Infecções bacterianas
Insuficiência cardíaca
Má nutrição
Pancreatite
Sepse.
Além disso, é comum observar aumento de enzimas hepáticas em indivíduos assintomáticos. Uma série de fatores pode ser responsável por essa elevação: idade, medicações e até mesmo raça. Por exemplo, sabe-se que cães da raça Scottish terrier têm valores de fosfatase alcalina maiores do que cães de outras raças.1
Enzimas de extravasamento / Aminotransferases
A alanina aminotransferase (ALT; anteriormente chamada de transaminase glutâmico-pirúvica ou TGP) e a aspartato aminotransferase (AST; anteriormente chamada de transaminase glutâmico-oxaloacética ou TGO) são chamadas de enzimas de extravasamento, pois o aumento da atividade sérica dessas enzimas está associado ao aumento da permeabilidade ou à destruição da membrana celular do hepatócito. Por esse motivo, são consideradas enzimas marcadoras de necrose.
A ALT é uma enzima de meia-vida intermediária (2,5 dias), encontrada no citosol dos hepatócitos. O aumento da sua atividade sérica é um indício de necrose hepática. Os aumentos marcantes ocorrem nos quadros de hepatites agudas e neoplasias hepáticas primárias. Aumentos moderados são observados nos processos infecciosos e aumentos discretos, ou mesmos valores normais, podem estar associados a doenças hepáticas graves, como cirrose, devido à redução do número de hepatócitos viáveis para produção da enzima. Aumentos discretos também são observados em doenças vasculares (desvios portossistêmicos, doenças vacuolares ou degenerativas e congestão hepática).
A AST é uma enzima de meia-vida curta (12 h), encontrada nos hepatócitos, no citosol e também dentro de mitocôndrias. Portanto, o aumento da atividade sérica da AST pode estar associado à lesão hepática mais grave, pois sua liberação na circulação em quantidades apreciáveis é sugestiva de destruição de organelas intracelulares, não somente o aumento da permeabilidade da membrana do hepatócito. A AST está presente também no músculo esquelético estriado e miocárdio. Portanto, o aumento da atividade sérica da AST pode ocorrer em doenças musculares, especialmente o catabolismo proteico causado por doenças hepáticas como a lipidose hepática felina. Nesses casos, geralmente o aumento da atividade sérica AST é maior do que o aumento da ALT, proporcionalmente. Nos quadros de necrose hepática, o padrão esperado é que o aumento da ALT seja, proporcionalmente, superior ao aumento da AST. Na avaliação do paciente com suspeita de doença hepática, essas enzimas devem ser interpretadas em conjunto. A dosagem concomitante da creatinoquinase (CK), um indicador específico de catabolismo muscular, pode ser útil na interpretação da relação ALT-AST, principalmente em felinos.
Não há correlação entre a magnitude do aumento dessas enzimas e o prognóstico. A redução da atividade sérica dessas enzimas pode levar dias após a recuperação de uma lesão aguda. A redução, porém, não necessariamente implica recuperação: pode ocorrer nos quadros em que a destruição maciça do fígado não deixou hepatócitos viáveis para sua produção.
■Enzimas de indução
A fosfatase alcalina (FA) e a gamaglutamiltransferase (GGT) são chamadas de enzimas de indução, pois, diferentemente da ALT e da AST, seu aumento na circulação é induzido por alterações dos canalículos biliares (FA) ou dúctulos biliares (GGT). Por isso, essas enzimas são consideradas marcadores de colestase, pois o aumento de sua atividade sérica ocorre em distúrbios que causam acúmulo de bile em parênquima hepático.
Embora rotineiramente empregada, a FA não é uma enzima específica hepática, sendo encontrada em outros tecidos, como osso, intestino e rins. O cão ainda produz uma isoforma da FA induzida por corticoides (endógenos ou exógenos). Portanto, a mensuração da atividade sérica da FA representa a quantidade de FA total, ou seja, a FA hepática, a óssea e, no cão, a induzida por corticoides, que são as que têm a meia-vida mais prolongada e as mais importantes clinicamente. São chamadas “isoformas”, e não isoenzimas, pois são codificadas pelo mesmo gene. A determinação fracionada das diferentes isoformas da FA não é realizada na rotina clínica.
O aumento da atividade sérica da FA ocorre em quadros de colestase intra ou extra-hepática, inflamação das vias biliares e doenças infiltrativas do fígado (p. ex., neoplasia metastática). Nesses casos, a hiperbilirrubinemia deve estar associada. Nos gatos, aumento da atividade sérica da FA ocorre exclusivamente na lipidose hepática felina, segundo alguns autores. Nos felinos, a meia-vida da FA é bem menor (6 h) do que nos cães (3 dias), e parece não haver uma isoforma da FA induzida por corticoides.
Aumentos marcantes da FA podem ocorrer em doenças degenerativas do fígado (hepatopatias vacuolares), hipercortisolismo (hiperadrenocorticismo canino) e doenças ósseas (p. ex., osteossarcoma).2 Nesses casos, o aumento da atividade sérica da FA não está associado à hiperbilirrubinemia, característica dos processos colestáticos.
Há aumento da FA óssea no período de crescimento, portanto animais jovens têm um valor maior da FA até aproximadamente 1 ano de vida. Nesses animais, a FA óssea corresponde a aproximadamente 95% da FA total. Cães com fraturas ósseas também têm aumentos discretos (duas vezes o limite superior da normalidade), porém prolongados da FA. Cães com osteossarcoma e aumento de FA têm pior prognóstico: o aumento está associado à menor sobrevida e à ocorrência de metástase.
A GGT também é considerada um marcador de colestase. Embora produzida também em pâncreas, intestinos e rins, a isoforma hepática é a única com meia-vida longa suficiente para que aumentos sejam detectados no soro. Nos felinos, o aumento da atividade sérica de GGT, associada à hiperbilirrubinemia, geralmente é causado por colangite, aguda ou crônica, e quadros de obstrução extra-hepática. Recomenda-se, no paciente felino, a avaliação de GGT junto da FA. Nos cães, em decorrência da baixa sensibilidade, a dosagem concomitante da GGT não é útil na maior parte dos casos.
Tanto a FA quanto a GGT podem ser induzidas por medicações, isto é, ocorre o aumento causado por indução, e não por lesão, de vias biliares ou do hepatócito. As medicações classicamente citadas são os anticonvulsivantes, como o fenobarbital. Com exceção da FA induzida por corticoide no cão, estudos mais recentes são sugestivos de que o aumento dessas enzimas por medicações é decorrente de lesão hepatocelular, e não de indução.
■Testes para avaliação da capacidade de síntese hepatocelular
Albumina 
O fígado produz praticamente toda a albumina do organismo. A diminuição da albumina plasmática pode ser decorrente de diminuição da síntese hepática, o que ocorre geralmente nas doenças hepáticas crônicas. Entretanto, a hipoalbuminemia ocorre em inúmeras outras doenças, de origem não hepática, portanto não é específica de doença hepática. A albumina deve ser interpretada sempre em conjunto das proteínas totais. Em geral, nas doenças hepáticas crônicas, há tendência das proteínas totais normais apesar da hipoalbuminemia, em decorrência da hipergamaglobulinemia. 
Glicose 
O fígado desempenha papel central no metabolismo da glicose. Durante os períodos de jejum, a glicemia é mantidadentro dos valores normais pela neoglicogênese hepática. Em cães com doenças hepáticas agudas, pode ocorrer hipoglicemia, que é considerada um fator de mau prognóstico em cães com hepatopatias crônicas. A mensuração da glicemia em pacientes hepatopatas deve ser realizada sempre antes da realização de tratamento com glicose parenteral. Felinos com lipidose hepática, por exemplo, muitas vezes estão hiperglicêmicos e a suplementação dos fluidos com glicose pode causar ou agravar outros distúrbios, como a hipopotassemia. Não é indicado assumir que todo paciente hepatopata tem hipoglicemia. 
Amônia e ureia plasmáticas
A principal indicação da dosagem de amônia é sustentar o diagnóstico de encefalopatia hepática. Embora a patogenia da encefalopatia hepática não esteja completamente elucidada, acredita-se que a amônia seja uma das principais neurotoxinas envolvidas. Entretanto, a dosagem de amônia não é rotineiramente realizada devido às dificuldades técnicas envolvidas na manipulação da amostra e na realização do exame: o plasma deve ser separado em centrífuga refrigerada e processado rapidamente, imediatamente após a obtenção da amostra. Embora a dosagem da ureia plasmática seja mais comumente empregada para avaliação do sistema renal, sua inclusão no perfil bioquímico de pacientes com hepatopatias é recomendada, principalmente se houver suspeita de encefalopatia hepática. A ureia é produzida no fígado, no ciclo da ureia, a partir da amônia. Em doenças hepáticas graves, como necrose hepática aguda e cirrose ou desvios portossistêmicos, a amônia não é transformada em ureia. Valores baixos de ureia podem, portanto, ser indícios de hiperamoninemia. Vários fatores influenciam os valores da ureia plasmática: função renal, aporte dietético de proteínas e hidratação do paciente. A mensuração da ureia não é um teste específico para hepatopatias. A identificação de cristais de biurato de amônio (Figura 122.1) no exame de urina também é uma evidência de hiperamoninemia, exceto em cães das raças Dálmata e Bulldog inglês, que podem apresentar esses cristais em decorrência de hiperuricemia. Obviamente, nesses casos, as manifestações clínicas de cães com hiperamoninemia (encefalopatia hepática) são diferentes das dos pacientes com aumento do ácido úrico, que geralmente causa o aparecimento de cálculos em vias urinárias. 
Fatores de coagulação
O fígado produz a maior parte dos fatores de coagulação. A capacidade de síntese desses fatores só é diminuída em quadros graves. Coagulopatias decorrentes da diminuição da produção desses fatores são mais comumente observadas em cães com cirrose.3 Entretanto, o clínico deve estar ciente de que outros fatores podem causar coagulopatias em cães e gatos com hepatopatias, principalmente deficiência de vitamina K em animais com distúrbios colestáticos. A vitamina K é lipossolúvel e sua absorção no intestino depende da emulsificação da gordura dietética pela bile. Os tempos de coagulação (tempo de protrombina e tempo de tromboplastina parcial ativada) não são testes sensíveis, e não é possível diferenciar a coagulopatia decorrente da diminuição da síntese de fatores daquela provocada por má absorção de vitamina K. A reavaliação dos tempos de coagulação após a suplementação com vitamina K pode ser o único meio de distinguir objetivamente o distúrbio predominante.
Testes que avaliam a excreção de pigmentos e ânions orgânicos ou corantes exógenos
Bilirrubinas
A determinação das bilirrubinas é frequentemente empregada na avaliação de pacientes com hepatopatias. Muitas vezes, o valor inicial da bilirrubina não é importante para o estabelecimento do diagnóstico, porém a comparação com dosagens subsequentes pode ser útil no monitoramento do curso da doença e no tratamento.
A bilirrubina é o produto da degradação do heme, o qual é resultado da degradação da hemoglobina, derivada, principalmente, de hemácias senescentes, mas também de hemoglobina livre e citocromos. Essa degradação ocorre nos órgãos do sistema mononuclear fagocitário, principalmente no baço. A hemoglobina é clivada em globina e heme, liberando também o ferro. A seguir, o heme é transformado em biliverdina, um composto atóxico e hidrossolúvel. Nos mamíferos, a biliverdina é transformada em bilirrubina. Essa bilirrubina não é hidrossolúvel. Para ser carreada através do sangue, tem que ser transportada pela albumina. Esse tipo de bilirrubina é chamado de bilirrubina não conjugada.
No fígado, a bilirrubina é liberada da albumina e captada pelos hepatócitos, onde será conjugada com o ácido glicurônico. Esse tipo de bilirrubina é hidrossolúvel e chamado de bilirrubina conjugada. A bilirrubina conjugada é excretada na bile, que ficará armazenada na vesícula biliar até sua contração. A contração da vesícula biliar libera a bile no intestino delgado.
No intestino, a bilirrubina conjugada existente na bile é transformada, por bactérias intestinais, em urobilinogênio, que é uma substância incolor e hidrossolúvel. O urobilinogênio é transformado em estercobilina, pigmento que dá a coloração amarronzada às fezes. Uma parte do urobilinogênio formado pode atravessar a parede intestinal e ganhar a circulação, sendo posteriormente excretado na urina.
A concentração normal de bilirrubinas totais (bilirrubinas conjugada e não conjugada) no sangue dos animais é pequena (< 1 mg/dℓ). O aumento da bilirrubina no sangue e sua impregnação nos tecidos pode causar a coloração amarelada de pele, mucosas e esclera, o que caracteriza a icterícia (Figura 122.2). Em felinos, a icterícia é mais evidente na inspeção do palato mole (Figura 122.3). A icterícia é evidente quando as concentrações de bilirrubina são superiores a 3 mg/dℓ, porém sua detecção também depende da perfusão de sangue através dos tecidos. O aumento da concentração da bilirrubina no sangue pode ocorrer, basicamente, por:
• aumento da destruição de hemácias, decorrente, principalmente, de doenças hemolíticas. Nesse caso, a icterícia é chamada de pré-hepática e ocorre, predominantemente, o aumento da bilirrubina não conjugada
colestase intra-hepática, decorrente de doenças hepáticas. Nesse caso, a icterícia é chamada de hepática e ocorre, predominantemente, o aumento da bilirrubina conjugada
• obstrução do ducto biliar. Nesse caso, a icterícia é chamada de pós-hepática e ocorre, predominantemente, o aumento da bilirrubina conjugada.
Nos casos de icterícia pré-hepática, anemia hemolítica é suficiente para guiar a abordagem diagnóstica subsequente. Nos quadros hemolíticos não complicados, geralmente a concentração sérica de bilirrubinas totais não ultrapassa 5 mg/dℓ. Como a bilirrubina não conjugada não é hidrossolúvel, não deve haver bilirrubinúria em felinos com icterícia pré-hepática. Cães podem conjugar a bilirrubina nos rins, e o aparecimento de bilirrubinúria pode ocorrer até mesmo em cães sadios, principalmente se a urina estiver concentrada.
Nas doenças intra-hepáticas, a concentração de bilirrubina é maior, porém variável. Nos casos de obstrução extra-hepática, ocorrem grandes aumentos na concentração de bilirrubina. Em ambos os casos, a bilirrubinúria deve estar presente. Teoricamente, cães com icterícia pós-hepática não devem ter urobilinogênio na urina, em oposição a animais com icterícia hepática. Entretanto, o urobilinogênio é extremamente fotossensível e geralmente não é detectado em amostras de urina expostas à luz. A diferenciação desses dois últimos tipos normalmente requer a ultrassonografia como método diagnóstico auxiliar.
A determinação das bilirrubinas séricas em muitos laboratórios brasileiros ainda é realizada pelo método de van den Bergh, pelo qual a bilirrubina conjugada é mensurada pela reação com o ácido diazóxido sulfanílico. As bilirrubinas totais correspondem à quantidade de bilirrubina presente no soro que reage com o ácido diazóxido sulfanílico, após a adição de álcool à reação. A bilirrubina não conjugada não é mensurada, no entanto ser valor é estimado subtraindo-se o valor da bilirrubina conjugada das bilirrubinas totais. Daí os termosbilirrubina indireta, para designar a bilirrubina não conjugada, que não é mensurada, e direta, para designar a bilirrubina direta.
Métodos mais modernos dosam a bilirrubina não conjugada e a total, sendo, nesses métodos, a bilirrubina conjugada estimada pela subtração (ou seja, indiretamente). Como esses métodos tendem a substituir o método de van den Bergh, a terminologia “direta e indireta” deve ser abandonada, dando-se preferência para “não conjugada e conjugada” para evitar confusões.
Os novos métodos tornam possível a dosagem da bilirrubina-delta. A bilirrubina-delta corresponde a uma parte da bilirrubina conjugada que sofre uma ligação covalente e irreversível com a albumina. Essa fração é mensurada como bilirrubina conjugada pelo método de van den Bergh. O aumento da bilirrubina-delta ocorre nos casos de icterícia hepática ou pós-hepática crônica. A existência de bilirrubina-delta pode explicar porque alguns animais demoram mais para normalizarem as concentrações de bilirrubina, apesar da melhora clínica, pois ela só é eliminada após a degradação da albumina que a carreia. Ainda não existem estudos sobre a utilidade clínica da determinação da bilirrubina-delta.
As bilirrubinas são fotossensíveis, e as amostras de soro devem ser protegidas da luz enquanto aguardam o processamento no laboratório. Protegidas da luz, as bilirrubinas são estáveis por 7 dias a 4°C.
■Ácidos biliares
Os ácidos biliares são sintetizados a partir do colesterol e excretados na bile. A bile é armazenada temporariamente na vesícula biliar e eliminada no intestino delgado. Os ácidos biliares predominantes na bile dos mamíferos são os ácidos cólico e quenodesoxicólico. No intestino, sua principal função é emulsificar gorduras dietéticas para facilitar sua digestão pelas lipases e posterior absorção. Apenas 5 a 10% dos ácidos biliares são perdidos nas fezes. A maior parte dos ácidos biliares é reabsorvida pela circulação portal, captada pelo fígado e novamente secretada na bile. Esse processo de reciclagem dos ácidos biliares, chamado de “circulação êntero-hepática”, é extremamente eficiente, sendo pouca quantidade de ácidos biliares liberada para circulação sanguínea.
Qualquer distúrbio que comprometa a circulação êntero-hepática pode ocasionar a diminuição da remoção dos ácidos biliares e seu aumento no sangue. Os ácidos biliares estão aumentados em doenças hepáticas, causando diminuição de captação, metabolismo e excreção deles. Portanto, não é possível diferenciar os diversos tipos de doenças hepáticas pela determinação dos ácidos biliares. Além disso, a determinação dos ácidos biliares não é um indicador da massa funcional hepática.
A principal indicação da determinação de ácidos biliares é a suspeita de desvios portossistêmicos. Nesses casos, embora o fígado seja capaz de captar, sintetizar e excretar os ácidos biliares, a circulação êntero-hepática está alterada. O sangue que entra pela circulação portal é desviado para a veia cava e os ácidos biliares atingem a circulação sistêmica, sem passar pelo fígado, onde seriam removidos na primeira passagem. Isso causa aumento dos ácidos biliares no sangue, principalmente no período pós-prandial, quando a absorção intestinal é máxima. Muitas horas depois, os ácidos biliares terão circulado por todo o organismo, inclusive pelo fígado, onde serão removidos e novamente secretados na bile.
A partir dessa ideia, para o diagnóstico de desvio portossistêmico, recomenda-se dosar os ácidos biliares após jejum de 12 h e 2 h depois de uma refeição. Em jejum, a concentração de ácidos biliares deve estar próxima do normal e, na amostra pós-prandial, os valores deverão estar aumentados.
A dosagem de ácidos biliares é um método bastante sensível e também pode ser usada em casos de suspeita de doença hepática, cujos outros exames subsidiários foram inconclusivos, mas não é um teste utilizado para triagem de pacientes com suspeita de hepatopatias.
Alterações circulatórias
■Congestão passiva crônica
A congestão passiva crônica ocorre pelo comprometimento do fluxo venoso do fígado, particularmente comum em cães idosos e geralmente associada a insuficiência cardíaca direita ou obstrução e compressão da veia cava caudal. Macroscopicamente, há aumento do fígado, com os bordos hepáticos arredondados. Ao corte, o parênquima hepático apresenta padrão lobular proeminente devido ao acúmulo de sangue nos sinusoides centrolobulares (coloração avermelhada) e lipidose ou hiperplasia nos hepatócitos periportais (coloração amarelada), fornecendo o aspecto do fígado em “noz-moscada”. Na histologia, a congestão passiva é caracterizada por ingurgitamento e dilatação da veia e dos sinusoides centrolobulares. Com a cronicidade do processo, essas áreas sofrem atrofia, degeneração e necrose pela hipoxia persistente, resultando em deposição gradual de fibrose ao redor da veia centrolobular. Eventualmente, pode ocorrer a formação de pontes de colágeno entre as regiões centrolobulares, ocasionando a chamada cirrose cardíaca.1,2
■Desvios portossistêmicos congênitos
Os desvios portossistêmicos congênitos são canais vasculares anômalos que permitem o desvio do sangue do sistema portal diretamente para a circulação venosa sistêmica, sem passar pela detoxificação e pela metabolização hepática. Pode ter localização intra-hepática, comum em cães de raças grandes pela falha do fechamento do ducto venoso ao nascimento, ou extra-hepática, com acometimento preferencial em raças pequenas por anastomoses da veia porta. O fígado desses animais é geralmente menor e os aspectos histopatológicos são secundários ao desvio sanguíneo e refletem características de diversas alterações circulatórias. No entanto, se a localização do desvio for extra-hepática, outras alterações histológicas acontecerão e poderão auxiliar no diagnóstico, como a hipoplasia da veia portal e o aumento do número de arteríolas no espaço portal, além de atrofia hepatocelular, lipogranulomas e dilatação sinusoidal periporta. De maneira geral, os exames físicos e de imagens são suficientes para o diagnóstico dos desvios portossistêmicos, diferenciando-os da hipoplasia congênita da veia porta ou outras alterações circulatórias, reduzindo a necessidade de biopsia nesses pacientes.1,2
Anatomicamente, os desvios congênitos intra-hepáticos são classificados em esquerdo, direito e central. Os desvios extra-hepáticos mais comuns são o porto-caval, o gastresplênico e o porto-ázigos. Alguns autores, entretanto, sugerem que sejam classificados em esplênico-caval, gástrico direito-caval, esplênico-ázigos e gástrico direito-ázigos, uma vez demonstrado que, na verdade, eles se originam a partir da veia esplênica ou gástrica direita, próximo ao ponto de entrada na veia porta.3
Cães das raças Yorkshire terrier, Maltês e Pug são considerados predispostos, mas a ocorrência de desvios portossistêmicos já foi relatada em cães de inúmeras raças.4 O início dos sintomas normalmente ocorre nos primeiros 2 anos de vida, mas alguns animais podem ser diagnosticados tardiamente com mais de 5 anos de idade, em particular o Schnauzer miniatura.5 Os sintomas são relacionados, principalmente, com o sistema nervoso. Andar compulsivo, head-pressing, letargia, ataxia, torpor ou coma são os mais comuns e podem ser observados em 95% dos casos. Alguns animais podem apresentar êmese, diarreia, polidipsia, poliúria, além de hematúria devido à formação de cristais de biurato de amônio. Pode haver ou não associação com o tipo e o horário da alimentação. Animais com mais de 5 anos também podem apresentar outras alterações, como vestibulopatia, cegueira e tetraparesia com déficit de reação postural, que mimetizam outras doenças neurológicas.
A dosagem sérica de ácidos biliares (pré e pós-prandial) é um dos testes mais utilizados para triagem e diagnóstico do desvio portossistêmico, embora outras doenças hepáticas também possam causar alterações na concentração sérica dos ácidos biliares. Normalmente, as enzimas hepáticas alanina aminotransferase (ALT) e fosfatase alcalina (FA) não apresentamalterações marcantes e os aumentos, quando ocorrem, não ultrapassam 5 vezes o valor de referência. A hipoglicemia pode ocorrer, principalmente, nos casos de desvios portossistêmicos extra-hepáticos. Em alguns casos, pode ser observada redução das concentrações de albumina e ureia séricas.
A ultrassonografia com doppler é um método simples e barato para confirmar desvios portossistêmicos, determinar se é um vaso intra ou extra-hepático e sugerir sua localização anatômica para uma possível abordagem cirúrgica. A sensibilidade relatada varia de 80 a 92% em determinar a existência e a localização do desvio, porém é um exame que depende da experiência do ultrassonografista.6 Ele também pode ser útil em detectar urolitíase e sugerir outras causas de hepatopatias que causam encefalopatia hepática.3
A cintigrafia portal transretal com o radioisótopo tecnécio (99mTc) é um exame muito sensível e específico para confirmar uma APS e calcular a fração de sangue que é desviada do fígado. Uma fração menor que 15% é considerada normal; cães com desvios portossistêmicos têm fração maior que 60%. Entre as desvantagens, estão: isolar o paciente por 24 h devido à radiação, não detectar alterações vasculares microscópicas, como a microdisplasia vascular, e não fornecer informações quanto ao número e à localização dos desvios, necessitando ser complementado com algum outro exame de imagem. Uma alternativa seria a cintigrafia transesplênica, em que o contraste é colocado no baço, guiado por meio do ultrassom.7
O tratamento inicial dos desvios portossistêmicos é paliativo e voltado para diminuir a hiperamonemia e suas consequências. O tratamento paliativo é recomendado para melhorar a condição clínica dos pacientes enquanto são preparados para um possível tratamento cirúrgico. Nos casos em que a cirurgia não é possível, o tratamento clínico pode ser realizado indefinidamente, mas o proprietário deve ser informado de que a evolução clínica pode ser desfavorável, embora muitos melhorem inicialmente.8
O tratamento cirúrgico é considerado de eleição para os animais com APS congênita extra-hepática. Várias técnicas são descritas, como a ligadura parcial ou total do vaso anômalo com fio de seda, fita de celofane ou colocação de um anel constritor ou “ameroide” (Figura 123.1). O maior risco da correção do desvio portossistêmico é a hipertensão portal aguda decorrente da oclusão abrupta do vaso anômalo. As técnicas que proporcionam oclusão gradual são mais adequadas, pois promovem aumento gradual da circulação portal, permitindo a adaptação do fígado à nova pressão.9
A colocação do anel constritor é uma das técnicas mais usadas para a correção da APS extra-hepática.9 O ameroide é composto de um anel de caseína desidratada, envolta por um semicírculo metálico. Quando implantado, a caseína é reidratada pelos líquidos da cavidade abdominal e expande, ocluindo o vaso gradativamente, que se fecha totalmente, em um período que varia de 2 semanas a 3 meses (Figura 123.2).
Recomenda-se que o cirurgião tenha à disposição pelo menos três tamanhos de ameroides, antes do procedimento. Desse modo, pode-se escolher aquele que não oclua totalmente o vaso logo após a colocação, para evitar a hipertensão portal, ou um anel muito grande, que poderia promover apenas oclusão parcial. A ultrassonografia pode fornecer uma estimativa do diâmetro do vaso. A recomendação é escolher um ameroide que oclua menos de 25% do vaso durante sua colocação.9 O ameroide não é encontrado no mercado nacional, embora possa ser importado diretamente do fabricante (http://www.proaxis.com/cercadekpm/index.html).
Uma alternativa ao uso do ameroide é a técnica da fita de celofane. Três camadas de fitas de celofane, de cerca de 3 ou 4 mm, são colocadas em volta do vaso anômalo e amarradas, juntamente de um pino de metal de diâmetro conhecido. A função desse pino, que é posteriormente retirado, é servir de referência do quanto o caso está sendo ocluído, para evitar hipertensão portal durante sua colocação.10
Uma parte dos animais (5 a 15%) pode apresentar alterações neurológicas 24 a 72 h após a cirurgia, caracterizadas por ataxia, convulsões e status epilepticus. Não se sabe exatamente quais mecanismos estão envolvidos, uma vez que podem ocorrer em pacientes submetidos à oclusão gradual com ameroide ou fita de celofane, mas não parecem estar associados a hipoglicemia ou hiperamonemia. Independentemente disso, em algumas situações o status epilepticus pode ser refratário ao tratamento anticonvulsivante com benzodiazepínicos e fenobarbital. Nesses casos, recomenda-se associar o fenobarbital (2 a 5 mg/kg IM ou IV, a cada 12 h) com propofol em bolus (2 a 6 mg/kg IV, em dose única) e, posteriormente, manter com propofol em infusão contínua (0,1 a 0,5 mg/kg/min IV) até a estabilização do quadro, que pode durar alguns dias ou ser fatal.10
Vários estudos tentam identificar ou correlacionar fatores de prognóstico. As alterações laboratoriais mais importantes talvez sejam a hipoproteinemia e a hipoalbuminemia, pois são consideradas indicadores de hipofunção hepática, aumentam o risco da anestesia e predispõem a complicações pós-operatórias, como ascite e retardo de cicatrização. A determinação da atividade sérica de enzimas hepáticas e da concentração sérica de ureia sérica não são fatores consistentes de prognóstico. A presença ou a formação de desvios adquiridos múltiplos, a hipoplasia da veia porta e a dificuldade de acesso cirúrgico nos casos de desvio portossistêmico intra-hepático contribuem para aumentar o risco de complicações e insucesso da cirurgia.9,10
Outras alterações vasculares primárias menos frequentes são hipoplasia de veia porta, fístulas arteriovenosas intra-hepáticas e microdisplasia vascular.
Alterações das vias biliares e vesícula
■Colestase intra e extra-hepática
A colestase é resultante de comprometimento do fluxo biliar e consequente acúmulo de pigmentos biliares no tecido hepático, conferindo-lhe uma coloração esverdeada. Morfologicamente, é possível observar plugs biliares no interior dos canalículos ou fagocitados por células de Kupffer e macrófagos ou, ainda, como grânulos de bile no citoplasma dos hepatócitos. A colestase pode ser intra-hepática, comum em diversas doenças primárias do fígado, ou extra-hepática, associada às obstruções ou às compressões dos ductos biliares. No estágio agudo da colestase extra-hepática, observa-se aumento dos espaços portais, com infiltrado portal neutrofílico e discreta proliferação do epitélio ductular. Com a cronicidade do processo obstrutivo/compressivo, ocorre aumento dos espaços portais, com intensa fibrose ao redor dos ductos biliares, além de intensa proliferação ductular e infiltrado inflamatório mononuclear (Figura 123.3 A). Eventualmente, pode haver formação de pontes de colágeno entre os espaços portais, formando nódulos irregulares característicos da cirrose biliar (Figura 123.3 B).
■Mucocele
A mucocele da vesícula biliar é caracterizada por hiperplasia do epitélio e aumento na produção de muco, sendo considerada atualmente uma das principais causas de doença biliar extra-hepática em cães (Figura 123.4). Eventualmente, sua expansão progressiva causa necrose isquêmica, ruptura, peritonite biliar e infecções oportunistas da vesícula biliar.11
Cães de raças pequenas são comumente acometidos, os quais apresentam dilatação da vesícula biliar pelo intenso acúmulo de muco, podendo ocasionar seu rompimento. A etiologia permanece desconhecida. A mucocele ocorre mais comumente em animais com mais de 6 anos de idade. Não há predisposição sexual e aparentemente há incidência maior em Shetland Sheepdogs, Cocker Spaniels e Schnauzers miniaturas.12 Demonstrou-se também maior predisposição em animais com hiperadrenocorticismo e hipotireoidismo.13
Os sintomas iniciais são inespecíficos e incluem anorexia, êmese, poliúria e polidipsia. No exame físico, a maioria apresenta dor ou distensão abdominal, principalmente se houver ruptura da vesícula biliar. A icterícia é comum, mas pode não estar presente. Aproximadamente25% dos animais com mucocele podem ser assintomáticos. Nos exames laboratoriais, podem-se observar leucocitose por neutrofilia e aumento da atividade sérica das enzimas hepáticas, principalmente de fosfatase alcalina e gama-glutamiltransferase.14,15 O diagnóstico é feito por ultrassonografia, e o clínico deve estar atento para não confundir “lama biliar” com mucocele na interpretação do laudo do exame.
A lama biliar é o espessamento da bile devido ao excesso de absorção de água ou secreção de mucina por ela mesma e pode ser observada, à ultrassonografia, como acúmulo de material isoecogênico ou hiperecogênico dentro da vesícula biliar. Em humanos, essa alteração pode estar relacionada com colestase, colelitíase, colecistite, jejum prolongado ou nutrição parenteral. Em cães, é considerado um achado incidental, relacionado com a idade, e sem significado clínico. Em cerca de metade dos cães pode ser observada a lama biliar, independentemente se são saudáveis, têm alguma hepatopatia ou outra doença.16
Por outro lado, na mucocele a vesícula biliar pode aparecer com uma bile ecogênica no centro e hipoecogênica em volta, adquirindo um formato estrelado, que lhe confere um aspecto semelhante ao da fruta kiwi cortada ao meio ou “roda de carroça” (Figura 123.5). A ausência de movimento do conteúdo durante o exame, quando o paciente é mudado de posição, é característica e ajuda a diferenciar da lama biliar. Alterações na parede da vesícula biliar são variáveis e inespecíficas, mas sua descontinuidade pode indicar ou sugerir sua ruptura.17
A cultura da bile é recomendada, embora só deva ser realizada nos casos submetidos a laparotomia. Em caso de sintomas compatíveis, a dosagem de colesterol sérico e testes para diagnóstico de hiperadrenocorticismo ou hipotireoidismo podem ajudar a pesquisar um possível fator predisponente.
O tratamento da mucocele geralmente é cirúrgico, mas pode ser clínico, dependendo da condição do paciente, dos resultados dos exames laboratoriais, das alterações ultrassonográficas e da presença ou não de ruptura e peritonite.14,18
De maneira geral, pacientes com sintomas clínicos brandos e alterações laboratoriais de pouca magnitude podem ser tratados com coleréticos, antibióticos, nutracêuticos e dieta, desde que sejam monitorados por ultrassonografia para persistência do aumento da vesícula biliar e peritonite. Nos demais casos, recomenda-se a colecistectomia devido ao risco de ruptura da vesícula biliar e peritonite. Essa técnica pode ser mais recomendada do que a colecistotomia ou a colecistoduodenotomia devido à alta porcentagem de necrose da parede da vesícula biliar.
O prognóstico é variável e a ruptura da vesícula biliar não parece influenciar na recuperação do paciente, mas cães com peritonite biliar, leucocitose e grande aumento da bilirrubina e das enzimas hepáticas aparentemente apresentam risco maior de óbito.
Doenças do parênquima hepático
■Doenças metabólicas e de acúmulo
A hepatopatia vacuolar é um distúrbio hepático comum tipicamente associado ao hipercortisolismo. Em um estudo retrospectivo de 336 casos, 45% dos cães com hepatopatia vacuolar moderada a grave não haviam recebido glicocorticoides ou sofriam de hiperadrenocorticismo endógeno.19 Entretanto, esses pacientes apresentavam evidência de hipercortisolismo (resposta exagerada à estimulação com hormônio adrenocorticotrófico, aumento do cortisol urinário ou da fosfatase alcalina induzida por corticosteroides). Não existe um tratamento específico para hepatopatia vacuolar. Nos casos decorrentes de hipercortisolismo, o tratamento do hiperadrenocorticismo endógeno ou a descontinuação do tratamento com corticosteroides, quando possível, é a terapia específica. Nos pacientes com outras doenças, o tratamento deve ser dirigido para a doença primária.
A glicose é normalmente armazenada nos hepatócitos na forma de glicogênio, porém seu acúmulo excessivo pode ocorrer em alterações metabólicas ou genéticas, como no diabetes mellitus e nas glicogenólises IA e III, respectivamente. A hepatopatia induzida por esteroides também é caracterizada pelo acúmulo excessivo de glicogênio nos hepatócitos, tornando-os inchados, com citoplasma claro e núcleo central (Figura 123.6 A). Essa alteração é geralmente ocasionada por quantidades excessivas de glicocorticoides endógenos ou exógenos. O acúmulo excessivo de vacúolos lipídicos nos hepatócitos é denominado esteatose, secundário a diversas alterações no metabolismo de lipídios. Os cães normalmente desenvolvem o padrão de esteatose microvesicular, com diversos vacúolos pequenos e uniformes no interior dos hepatócitos, associados ao diabetes mellitus, ou na hipoglicemia juvenil de raças pequenas.
A amiloidose hepática ocorre pela deposição de material hialínico eosinofílico no espaço de Disse (Figura 123.6 B), ocasionando dilatação dos sinusoides e atrofia hepatocelular. O fígado dos animais acometidos apresenta-se aumentado, pálido, friável, com hematomas, hemorragias e dilaceração capsular. A amiloidose é geralmente reativa ou secundária a infecções ou inflamações crônicas, neoplasias ou distúrbios imunológicos, e cães da raça Shar-pei apresentam predisposição familiar.20
■Hepatites agudas
Diversas etiologias são responsáveis pelo desenvolvimento de hepatites agudas em cães, como agentes infecciosos (bactérias, vírus ou protozoários) ou químicos (medicamentos, plantas ou toxinas). As hepatites agudas são caracterizadas por inflamação, necrose e apoptose hepatocelular e, geralmente, apresentam distribuição difusa pelo fígado. Os tipos celulares presentes nos infiltrados inflamatórios variam de acordo com a etiologia, a resposta do paciente, a fase e a duração da lesão. Nas hepatites agudas causadas por infecções bacterianas e protozoárias, os focos de necrose lítica são infiltrados por neutrófilos, em resposta a estímulos quimiotáticos. Por outro lado, as hepatites de origem viral caracterizam-se pela distribuição aleatória de focos de necrose e apoptose, com mínima quantidade de linfócitos infiltrados.2
Figura 123.6 Alterações metabólicas e de acúmulo. A. Hepatopatia induzida por esteroides, demonstrando hepatócitos aumentados pelo acúmulo excessivo de glicogênio, com citoplasma grande e núcleo central (setas). H&E. B. Amiloidose hepática ocasionada pela deposição de material amiloide nos espaços de Disse (seta), promovendo dilatação dos sinusoides e atrofia dos hepatócitos (cabeças de seta). H&E.
A hepatite infecciosa canina, causada pelo adenovírus canino tipo 1 (CAV-1), é caracterizada por necrose e inflamação agudas.21 O fígado apresenta-se aumentado e friável, com padrão lobular evidente devido a necrose hepática centrolobular, com ou sem inflamação. Geralmente são observadas grandes inclusões intranucleares basofílicas em hepatócitos e células endoteliais.
A infecção por bactérias do gênero Leptospira pode causar lesões isquêmicas no fígado, em decorrência da anemia hemolítica intravascular.2 Mas, as lesões características são representadas por hepatócitos dissociados e separados das trabéculas hepáticas, com muitas figuras de mitoses ou células binucleadas. Infecções pelo protozoário Toxoplasma gondii podem ocasionar área de inflamação e necrose focal a confluente no fígado, com presença de traquizoítos livres ou cistos contendo bradizoítos ou ambos.21
As hepatites agudas tóxicas podem ser causadas por diferentes fontes, como medicamentos, plantas tóxicas, algas e aflatoxinas. Histologicamente, a necrose centrolobular é o padrão mais comum de lesão hepática, pois os hepatócitos dessa zona apresentam altas concentrações da enzima citocromo P-450, responsável pela metabolização de agentes químicos e sua biotransformação em metabólitos potencialmente tóxicos. Entre os principais agentes tóxicos envolvidos, destacam-se carprofeno, cetoconazol, ibuprofeno, halotano, mebendazol, trimetoprima-sulfa, tetraciclina, algas azul-esverdeadas (cianobactérias), plantas tóxicas, aflatoxinas e cogumelos (Amanitum spp.).2,21
■Hepatites crônicas
A doença hepática crônica écaracterizada como uma lesão persistente, de natureza inflamatória, associada a aumento da atividade sérica de aminotransferases (ALT e aspartato aminotransferase [AST]) por 4 meses ou mais. De maneira geral, não apresenta predileção sexual e acomete animais entre 4 e 7 anos de idade. Diversas etiologias foram descritas nas hepatites crônicas em cães, incluindo microrganismos, toxinas e fármacos, reações imunomediadas e alterações metabólicas associadas a determinadas raças.22 Mas, de maneira geral, o entendimento da etiologia das hepatites crônicas evoluiu muito pouco nos últimos anos. Sendo assim, a maioria dos casos permanece idiopática, sem tratamento específico e com prognóstico impreciso.
O parâmetro básico para avaliação e classificação das hepatites crônicas baseia-se em seus aspectos anatomopatológicos. Desse modo, a biopsia hepática ainda é considerada o padrão-ouro no diagnóstico, assim como na avaliação prognóstica e no monitoramento terapêutico das hepatites crônicas (Figura 123.7 A). O achado histológico mais importante no fígado é o infiltrado inflamatório, composto, principalmente, de linfócitos e quantidade variável de histiócitos e plasmócitos. A inflamação pode estar restrita aos espaços portais ou, como ocorre nas hepatites crônicas ativas, as células inflamatórias podem atacar os hepatócitos presentes na placa limitante. Essa atividade é conhecida como hepatite de interface e ocasiona a morte celular desses hepatócitos, também chamada de necrose em saca-bocado (piece meal necrosis) (Figura 123.7 B). Ainda, podem ocorrer focos inflamatórios dispersos no parênquima hepático. Juntamente com a inflamação, são observadas lesões parenquimatosas como tumefação e apoptose de hepatócitos, formando necroses focais ou em ponte.
A hepatite crônica, associada a distúrbios metabólicos no metabolismo do cobre em cães, é uma das causas mais estudadas nas últimas décadas. Em cães da raça Bedlington terrier, essa hepatite é bem descrita e está associada à deleção do exon 2 do gene COMMD1 (antigamente conhecido como MURR1), responsável pelo transporte do cobre. No fígado normal, a concentração hepática de cobre é de cerca de 500 μg/g de peso seco. Já os animais com hepatite crônica associada ao cobre apresentam concentrações superiores a 2.000 μg/g de peso seco.20 Nesses animais, o acúmulo de cobre inicia-se nos hepatócitos da região centrolobular, ocasionando necrose, inflamação e, finalmente, fibrose e cirrose hepática. Outras raças caninas podem ser acometidas pelo acúmulo anormal de cobre, por exemplo, Dálmata, Dobermann Pinscher, Labrador Retriever, Skye terrier e West Highland White terrier. No entanto, não existe comprovação do envolvimento genético nessas raças.23
Em Labradores Retrievers, a hepatite crônica associada ao cobre acomete cães de meia-idade a idosos (5 a 9 anos, com variação relatada de 2,5 a 14 anos).24–26 Não foi demonstrada predisposição sexual. Os sintomas mais comuns são anorexia e vômito. A doença evolui para insuficiência hepática. O aumento da atividade sérica das enzimas hepáticas é o achado laboratorial mais comum, principalmente ALT e FA (10 e 4 vezes o limite superior dos valores de referência, respectivamente). A hipoalbuminemia e a hiperbilirrubinemia ocorrem em uma parcela menor dos casos. O tratamento com imunossupressores e D-penicilamina é comumente empregado em cães Labradores Retrievers com hepatite crônica associada ao cobre, porém nenhum estudo controlado foi publicado.
Figura 123.7 Avaliação da hepatite crônica. A. Biopsia hepática por agulha grossa, demonstrando a qualidade e a representatividade da amostra. De maneira geral, recomenda-se que o cilindro hepático tenha entre 1 e 4 cm de comprimento e não esteja fragmentado. H&E. B. Aspectos histológicos da hepatite crônica, com intenso infiltrado inflamatório mononuclear na região periporta. As células inflamatórias podem atacar os hepatócitos presentes na placa limitante, conhecida como hepatite de interface (cabeças de seta), ocasionando a morte dos hepatócitos ou necrose em saca-bocado (setas). H&E.
A hepatite lobular dissecante ocorre em cães neonatos ou adultos jovens, com idade média de 11 meses, e os da raça Poodle standard apresentam maior risco. Macroscopicamente, o fígado desses animais apresenta-se de tamanho normal e com superfície relativamente lisa. Histologicamente, a deposição de colágeno ocorre preferencialmente nos espaços de Disse, circundando hepatócitos individuais ou pequenos grupos, caracterizando a fibrose pericelular ou perissinusoidal. Ainda, os animais apresentam inflamação, necrose e apoptose hepatocelular discreta a moderada.2
■Cirrose
A cirrose é considerada a manifestação mais comum entre as doenças inflamatórias crônicas no fígado de cães, apresentando maior taxa de mortalidade e pior prognóstico. Relata-se que 15% das enfermidades hepáticas sejam atribuídas a essa enfermidade.27 A etiologia da cirrose refere-se aos processos agressivos e contínuos de diversas naturezas, promovendo inflamação, necrose hepatocelular e reação de cicatrização crônica. Macroscopicamente, o fígado geralmente apresenta-se reduzido de tamanho, com padrão lobular proeminente e textura grosseira e nodular (Figura 123.8 A). Modificações na arquitetura histológica hepática caracterizam o processo patológico da cirrose, com formação de nódulos regenerativos circundados por extensas faixas de tecido conjuntivo (Figura 123.8 B). De maneira geral, qualquer doença hepática crônica pode originar a cirrose ou a doença terminal do fígado.
As mudanças na arquitetura hepática são acompanhadas de anormalidades na vascularização, resultando em desvios vasculares (ou anastomoses portossistêmicas) e redução na disponibilidade de nutrientes para as células hepáticas. As células endoteliais dos sinusoides hepáticos apresentam fenestrações que possibilitam a passagem direta de nutrientes e oxigênio para os hepatócitos. Durante o desenvolvimento da doença crônica, ocorre deposição de colágeno no espaço de Disse, o que promove a capilarização dos vasos sinusoidais, aumentando a resistência ao fluxo sanguíneo e reduzindo a disponibilidade de oxigenação celular, induzindo a hipoxia local e angiogênese subsequente.28
Figura 123.8 Cirrose hepática. A. Aspectos macroscópicos do fígado cirrótico, com padrão nodular proeminente e textura grosseira. B. Microscopicamente, o fígado cirrótico apresenta modificações em sua arquitetura tecidual pela formação de nódulos regenerativos (*) circundados por extensas faixas de colágeno (setas). Coloração de Picrosírius.
Todo esse processo de remodelação da arquitetura vascular, com capilarização dos sinusoides e desvios intra-hepáticos, pode ocasionar hipertensão portal e falência hepática. A hipertensão portal é resultante do aumento anormal e persistente da pressão no interior da veia porta por distúrbios do fluxo sanguíneo. Geralmente está associada à formação de desvios portossistêmicos adquiridos, os quais se conectam às veias mesentéricas e à veia cava caudal via múltiplos vasos finos e tortuosos (Figura 123.9 A). Esse desvio ocasiona o aumento da circulação sistêmica de fármacos, toxinas e bactérias, contribuindo para encefalopatia hepática e sepse.
A hipertensão portal é considerada a complicação clínica mais importante da cirrose, sendo diretamente responsável pelo desenvolvimento de ascite e desvios do sangue portal na circulação sistêmica (Figura 123.9 B).27
■Alterações proliferativas e neoplásicas
■Hiperplasia nodular
A hiperplasia nodular refere-se à lesão hepática que comumente acomete cães idosos, e não é considerada uma lesão pré-neoplásica. Sua incidência aumenta com a idade, sem distinção por raça ou sexo, e quase todos os cães com mais de 10 anos de idade apresentam múltiplos nódulos,29 com diâmetros que variam entre 0,2 e 3 cm. Macroscopicamente, os nódulos hiperplásicos são bem delimitados, porém não encapsulados.2 Histologicamente, são formandos por placas duplas de hepatócitos bem diferenciados, com acúmulo focal a difuso de glicogênio ou gordura,discreta compressão do parênquima adjacente e possível ocorrência de espaços portas.1 É importante diferenciar a hiperplasia nodular dos nódulos regenerativos, os quais ocorrem na cirrose em resposta à lesão hepática e estão acompanhados de intensa fibrose tecidual e outros marcadores histológicos das hepatites crônicas. A etiologia da hiperplasia nodular ainda permanece desconhecida.2
■Neoplasias hepatocelulares
As neoplasias hepatocelulares em cães são classificadas como adenomas ou carcinomas hepatocelulares (CHC).29 A etiologia dessas neoplasias ainda não está precisamente estabelecida, porém causas potenciais, como aflatoxinas, nitrosaminas e componentes radioativos, já foram relatadas em estudos experimentais e achados espontâneos. Ao contrário do relatado na medicina humana, não existe associação entre incidência de tumores hepatocelulares e infecções virais em cães. Além disso, fígados cirróticos não tendem a desenvolver carcinoma hepatocelular.
O adenoma hepatocelular é uma neoplasia benigna que afeta cães idosos, sem predileção por sexo ou raça, sendo descrito geralmente como massas solitárias não encapsuladas, de crescimento expansivo e com compressão do parênquima adjacente.29 Os adenomas são formados por cordões uniformes de hepatócitos bem diferenciados, com duas ou três células de espessura, com raras metástases e nucléolos evidentes. Normalmente, o número de espaços portais está reduzido e as veias centrolobulares estão ausentes.1,2
Os CHC são neoplasias malignas que acometem cães idosos, porém a predileção sexual ainda é controversa. Na macroscopia, o CHC apresenta-se como massivo, difuso ou nodular, podendo acometer um ou mais lobos hepáticos.2 Histologicamente, esses tumores apresentam características variáveis de acordo com o grau de malignidade. Os tumores trabeculares são os mais comuns em cães, nos quais predominam cordões de hepatócitos com 5 a 10 células de espessura (Figura 123.10 A). Os tumores acinares são caracterizados pela presença de pseudoácinos com produção de material proteináceo e não devem ser confundidos com colangiocarcinomas, principalmente pela ausência de muco e pequena quantidade de estroma tumoral. Por fim, os tumores sólidos são constituídos por feixes de hepatócitos pleomórficos e pouco diferenciados.29 Metástases podem ocorrer no próprio fígado (intra-hepáticas) e nos linfonodos regionais, além de focos nos pulmões e na cavidade peritoneal.1,2
■Neoplasias colangiocelulares
Os adenomas colangiocelulares ou colangiomas ou adenomas biliares acometem cães idosos, mas são extremamente raros e apresentam-se como massas solitárias, bem delimitadas e com crescimento expansivo.1 Histologicamente, são formados por estruturas glandulares com epitélio cuboide e moderada reação estromal. Muitas vezes, esses tumores apresentam áreas císticas, com projeções papilares e epitélio cuboide simples e achatado devido a compressão do fluido, sendo então denominados cistadenomas biliares.29 Nesses casos, é importante diferenciar os cistadenomas dos cistos biliares, os quais geralmente são únicos e com pouca reação estromal.2
Figura 123.9 Complicações clínicas da cirrose hepática. A. Desvios portossistêmicos adquiridos, os quais se conectam às veias mesentéricas e à veia cava caudal via múltiplos vasos finos e tortuosos (setas e cabeças de seta). B. Ascite (*).
Os carcinomas colangiocelulares ou colangiocarcinomas são neoplasias malignas que também acometem animais idosos e representam menos de 1% das neoplasias caninas. No entanto, sua incidência ainda é controversa. A maioria dos cães com colangiocarcinoma tem mais de 10 anos de idade e as fêmeas castradas têm maior risco do que as inteiras ou os machos.29 Os colangiocarcinomas são originados, preferencialmente, nos ductos biliares intra-hepáticos e geralmente apresentam-se como tumores únicos e irregulares.1 Macroscopicamente, os colangiocarcinomas são firmes, umbilicados, branco-acinzentados ou marrom-amarelados, devido à grande quantidade de tecido conjuntivo que é característico desses tumores.29 Histologicamente, os colangiocarcinomas bem diferenciados formam estruturas acinares ou tubulares, revestidas por epitélio que lembram o epitélio biliar e preenchidas por material mucinoso (Figura 123.10 B). Nos tumores menos diferenciados, algumas estruturas acinares podem ser observadas em meio a um manto sólido de células neoplásicas entremeado por abundante estroma de tecido conjuntivo fibroso. As metástases ocorrem em 60 a 88% dos casos. Os locais mais frequentes incluem os linfonodos, os pulmões e a cavidade peritoneal, ocorrendo em vias linfática e sanguínea e por implantação, respectivamente.29
■Neoplasias de diversas origens
Neoplasias mesenquimais, vasculares ou hematopoéticas também já foram descritas em cães, por exemplo, leiomiossarcoma, hemangiossarcoma e linfomas. Alguns tumores emergem do fígado com menos frequência e são vistos mais comumente de forma multicêntrica, como o hemangiossarcoma e o linfoma (Figura 123.11). Mais raramente, a mastocitose sistêmica pode afetar o fígado.29
Figura 123.10 Principais neoplasias hepáticas em cães. A. Carcinoma hepatocelular ou hepatocarcinoma, padrão trabecular. Observar as trabéculas ou os cordões hepáticos (*) compostos de diversos hepatócitos. H&E. B. Carcinoma colangiocelular ou colangiocarcinoma. Observar as estruturas tubulares (setas), revestidas por epitélio que lembram o epitélio biliar e entremeadas por grande quantidade de matriz extracelular. H&E.
Figura 123.11 Neoplasias hepáticas de histogênese vascular ou hematopoética. A. Hemangiossarcoma. H&E. B. Linfoma. H&E.
■Metástases hepáticas
Neoplasias hepáticas metastáticas são aproximadamente três vezes mais comuns do que as neoplasias hepáticas primárias e originam-se de uma enorme variedade de células. A distinção entre as neoplasias primárias ou metastáticas é essencial para que seja aplicado o procedimento terapêutico mais adequado, assim como a determinação do prognóstico de cada paciente. Frequentemente, as metástases hepáticas relatadas são provenientes de neoplasias de glândula mamária, baço, adrenal, pâncreas, ossos e pulmões.29

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