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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS E ECONÔMICAS FACULDADE DE DIREITO A TERCEIRIZAÇÃO TRABALHISTA COMO FENÔMENO PRECARIZANTE EM FACE DO DIREITO DO TRABALHO NO BRASIL ADOLPHO MARINHO AGUIRRE BARBOZA JÚNIOR Rio de Janeiro 2015 / PRIMEIRO SEMESTRE ADOLPHO MARINHO AGUIRRE BARBOZA JÚNIOR A TERCEIRIZAÇÃO TRABALHISTA COMO FENÔMENO PRECARIZANTE EM FACE DO DIREITO DO TRABALHO NO BRASIL Monografia de final de curso, elaborada no âmbito da graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como pré-requisito para obtenção do grau de bacharel em Direito, sob a orientação da Professora Mestre em Direito pela PUC/Rio Daniele Gabrich Gueiros. Rio de Janeiro 2015 / PRIMEIRO SEMESTRE Júnior, Adolpho Marinho Aguirre Barboza, 1991-. A terceirização trabalhista como fenômeno precarizante em face do Direito do Trabalho no Brasil. Trabalhista/Aguirre, Adolpho Marinho. – 2015. 100 f. Orientadora: Daniele Gabrich Gueiros. Monografia (graduação em Direito) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas, Faculdade de Direito. Bibliografia: f. 94-100. 1. Terceirização Trabalhista. 2. Direito do Trabalho. 3. Precarização. I. Gabrich Gueiros, Daniele, orient. II. Título. ADOLPHO MARINHO AGUIRRE BARBOZA JÚNIOR A TERCEIRIZAÇÃO TRABALHISTA COMO FENÔMENO PRECARIZANTE EM FACE DO DIREITO DO TRABALHO NO BRASIL Monografia de final de curso, elaborada no âmbito da graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como pré-requisito para obtenção do grau de bacharel em Direito, sob a orientação da Professora Mestre em Direito pela PUC/Rio Daniele Gabrich Gueiros. Data da Aprovação: __/__/____. Banca Examinadora: _________________________________ Orientador _________________________________ Membro da Banca _________________________________ Membro da Banca _________________________________ Membro da Banca Rio de Janeiro 2015 / PRIMEIRO SEMESTRE À minha família, que em todos os momentos, nos mais difíceis e felizes, tem me dado ânimo para lutar e vencer os desafios da vida. À mamãe, Sônia. Ao papai, Adolpho. Aos meus irmãos, Carolina e Rodolpho. Ao meu cunhado, Carlos Eduardo. Esta é nossa vitória! Dedico-a a vocês! AGRADECIMENTOS Agradeço, primeiramente, a Deus. Nos mínimos detalhes, sei que sou assistido por Sua Divina Presença. Agradeço à minha orientadora, Daniele Gabrich, pela orientação e paciência comigo. Acima de tudo, sua orientação deu-se pelo exemplo de profissional, de mestra e de pessoa humanista sensível à luta do trabalhador. À minha mãe pela presença constante, terna e amorosa. Ao meu pai pelo apoio, a orientação e o cuidado. Ao meu irmão Rodolpho, simplesmente, o meu melhor amigo, o jovem mais inteligente e honesto que conheço. À minha irmã, por me amar e demonstrar esse amor nos momentos de “pouca claridade” que passamos. Ao meu cunhado Eduardo, um amigo tão chegado quanto um irmão. Agradeço à minha família. Meus avós, tias, tios, primos e primas. Destaque para a Tia Sandra, amor recíproco desde 1991. Aos meus amigos da Faculdade Nacional de Direito. Especialmente, Daniel Cobian, Pedro Piter e André “Rico”. Amizade que quero levar para toda vida. A Gabriela Dias, Gabi, por ter sido uma companhia doce em um momento especial da vida. A todos os amigos, que caminharam comigo durante etapas dessa longa jornada. Na igreja, nos escritórios, na Escola de Música Villa Lobos, enfim, todos os que compartilharam de seu tempo comigo. Aos alunos e professores do Pré-Vestibular Social (PVS), Macaé e, no momento, Campo Grande. Aprendo tanto com vocês quanto ensino. Aos funcionários da Xerox do Dudu (Fuser), que me ajudaram nesse momento de impressão da tão “suada” monografia. Por fim, agradeço a todos que contribuíram, direta ou indiretamente, para mais um êxito: Bacharel em Direito da NACIONAL!!! RESUMO AGUIRRE, A. M. B. Jr. A Terceirização Trabalhista como fenômeno precarizante do Direito do Trabalho no Brasil. 2015. 100 f. Monografia (Graduação em Direito) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015. O presente estudo pretende trazer luz à problemática referente aos efeitos precarizantes da terceirização na realidade justrabalhista brasileira. A referida análise será realizada ao longo de quatro capítulos que objetivam elucidar os pontos mais relevantes sobre a matéria. A primeira parte traz um exame sobre a figura do trabalhador, o valor do trabalho, a formação do Direito do Trabalho e a instituição da relação de emprego bilateral. Em um segundo momento, este estudo discutirá o conceito da terceirização, a relação triangular, e demonstrará sua origem e evolução no influxo da globalização, até o surgimento e desenvolvimento no Brasil. Em um terceiro momento, este estudo travará um exame mais detalhado da terceirização trabalhista no ordenamento jurídico brasileiro. Em um quarto momento, será realizada uma análise no ordenamento jurídico brasileiro. No quarto momento, serão apresentadas as consequências prejudiciais do fenômeno da terceirização em face do Direito do Trabalho e, por conseguinte, na vida do trabalhador brasileiro. Palavras-Chaves: Terceirização; Direito do Trabalho; Brasil; Atividade-Fim; Atividades- meio. ABSTRACT AGUIRRE, A. M. B. Jr. A Terceirização Trabalhista como fenômeno precarizante do Direito do Trabalho no Brasil. 2015. 100 f. Monografia (Graduação em Direito) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015. This study will undertake to bring light to the issue regarding the precarizantes effects of outsourcing in the Brazilian labour reality. This analysis will be made throughout four chapters which seek to elucidate the main subjects regarding the matter. The first part brings an examination of the worker's figure, the value of work, the formation of the Labour Law and the institution of bilateral employment relationship. In a second moment, this study will discuss the concept of outsourcing, the triangular relationship, and demonstrate their origin and evolution in the influx of the globalization, to the emergence and development in Brazil. In a third step, this study will catch a closer examination of labor outsourcing in the Brazilian legal system. In fourth time, an analysis will be conducted in the Brazilian legal system. On the fourth time, will expose the damaging consequences of the outsourcing phenomenon in the face of labor law will be presented and therefore the life of Brazilian workers. Key Words: Outsourcing; Labor Law; Brazil; Activity-End; Support activities. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................11 2 MUNDOS DO TRABALHO ..............................................................................................13 2.1 O Trabalhador ..................................................................................................................132.2 A relação trabalho e capital ............................................................................................15 2.3 O Direito do Trabalho .....................................................................................................18 2.3.1 O Empregado ..................................................................................................................22 2.3.2 O Empregador .................................................................................................................23 2.3.3 A bilateralidade da relação de emprego/ contrato de trabalho ........................................23 3 TERCEIRIZAÇÃO TRABALHISTA ..............................................................................25 3.1 Conceito .............................................................................................................................25 3.1.2 A relação trilateral/ triangular .........................................................................................26 3.2 Origem histórica ...............................................................................................................26 3.2.1 O surgimento da terceirização na ciência da administração ...........................................31 3.2.2 O efeito da globalização na flexibilização trabalhista .....................................................33 3.3 A implementação da terceirização no Brasil .................................................................36 4 A EVOLUÇÃO DA LEGISLAÇÃO E DA JURISPRUDÊNCIA SOBRE A TERCEIRIZAÇÃO NO BRASIL .........................................................................................41 4.1. Referências legais ............................................................................................................41 4.1.1 Decreto-Lei 200/67 .........................................................................................................41 4.1.2 Lei n. 5.645/70 ................................................................................................................43 4.1.3 Lei n. 6.019/74 ................................................................................................................45 4.1.4 Lei n. 7.102/83 ................................................................................................................46 4.2 Jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho (TST) ...........................................47 4.2.1 Súmula n. 256 do TST ....................................................................................................47 4.2.2 Súmula n. 331 do TST ....................................................................................................49 4.2.2.1 Atividade-fim e atividade-meio na Súmula n. 331 ......................................................52 4.3 Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) ..................................................54 4.3.1 A terceirização na Administração Pública ......................................................................54 4.3.1.1 A ADC n. 16 ................................................................................................................55 4.3.1.2 Tema 246 - Responsabilidade subsidiária da Administração Pública por inadimplemento da prestadora .................................................................................................57 4.3.2 Tema 725 – Fixação de parâmetros para identificação da atividade-fim ........................58 4.4 Projeto de Lei nº 4.330/04 (PLC nº 30) ...........................................................................62 5 A TERCEIRIZAÇÃO TRABALHISTA COMO FENÔMENO PRECARIZANTE EM FACE DO DIREITO DO TRABALHO NO BRASIL ........................................................66 5.1 Consequências deletérias ao trabalhador ......................................................................66 5.1.1 Discriminação contra os trabalhadores terceirizados ......................................................67 5.1.2 A relação da terceirização com o trabalho escravo .........................................................69 5.1.3 Insolvência das empresas terceirizadas ...........................................................................72 5.1.4 Saúde, segurança e mortes no trabalho ...........................................................................74 5.1.5 Riscos à organização sindical e à negociação coletiva ...................................................76 5.1.6 A perda da identidade com o trabalho ............................................................................77 5.2. A inconstitucionalidade da terceirização na atividade-fim .........................................80 6 CONCLUSÃO .....................................................................................................................92 7 REFERÊNCIAS ..................................................................................................................94 11 1 INTRODUÇÃO Partindo-se de uma análise histórica, observar-se-á no presente trabalho monográfico a origem do trabalho e sua evolução até os dias hodiernos, iniciando-se a análise sobre o conceito de trabalhador e de trabalho. A partir disso, serão estudadas as relações entre o trabalho e o capital, de modo a esclarecer na Histórica a lógica de exploração da força de trabalho humana no capitalismo industrial, a luta dos trabalhadores como forma de resistência e a conquista de direitos sociais até a formação do Direito do Trabalho no mundo e, especialmente, sua maturação no Brasil com a Consolidação das Leis do Trabalho de 1943 e a Constituição de 1988. Após essa análise, será compreendida a configuração dos laços jurídicos entre a figura do empregado e a do empregador na realidade justrabalhista brasileira, que se perfaz constitucionalmente na relação empregatícia bilateral. Em um segundo momento, será trabalhado o conceito de terceirização trabalhista, desdobrando-se na configuração trilateral da relação laboral entre o obreiro, a tomadora dos serviços e a empresa fornecedora de mão de obra. Aqui, lançar-se-á mão de conceitos da Administração, bem como de outras áreas das Ciências Humanas, como a Economia, a História e a Sociologia, com o objetivo de explicar a difusão do fenômeno terceirizante, como repercussão da flexibilização trabalhista promovida pela globalização. Nesse tópico, será apontado o momento a partir do qual a terceirização foi amplamente adotada no Brasil, bem como serão destacadas brevemente as leis que positivaram determinadas modalidades de terceirização, a jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho nesse sentido, os temas de repercussão geral do STF sobre terceirização, e, por fim, o projeto de Lei nº 4.330/2004 (PLC n. 30) que visa a regulamentar a terceirização no Brasil. Em seguida, com base em uma análise doutrinária, jurisprudencial e legislativa, serão examinados detalhadamente a evolução da legislação e da jurisprudência sobre a terceirização trabalhista no Brasil. Serão vistas as principais referências legais (Decreto-Lei 200/67, Lei n. 5.645/70, Lei n. 6.019/74 e Lei n. 7.102/83); a jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho (Súmula n. 256 à Súmula 331 do TST, com destaque neste enunciado para a conceituação de atividade-fim e atividade-meio); a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal – a consolidada na Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 16 cuja repercussão foi a edição da Súmula 331 do TST, e a consolidar nos Temas de repercussão geral n. 246 e 12 725) e o Projeto de Lei n. 4.330/04 (PLC nº 30), aprovado na Câmara e que aguarda apreciação do Senado Federal. Na última parte, serão apresentadas as consequências precarizantes da terceirização em face do Direito do Trabalho no Brasil. Serão vistasos efeitos deletérios aos trabalhadores terceirizados, como a discriminação por eles sofrida; a relação da terceirização com o trabalho escravo; a insolvência das empresas terceirizadas; as pífias condições de segurança e saúde na atividade de terceirização e as mortes consequentes; os riscos à organização sindical e à negociação coletiva e a perda da identidade do trabalhador terceirizado com o seu ofício. Finaliza-se com a visão sobre a inconstitucionalidade da terceirização na atividade-fim. A partir de uma leitura constitucional, será confrontado o instituto da terceirização na atividade- fim empresarial com os direitos fundamentais dos trabalhadores, o valor social da livre- iniciativa e a fundação social da empresa, bem como, na empresa estatal, a regra do concurso público. Concluir-se-á, portanto, com a opinião crítica acerca do âmbito da licitude e da ilicitude na terceirização trabalhista como sendo distinguíveis conforme seja a terceirização, respectivamente, na atividade-meio ou na atividade-fim da empresa, no âmbito da liberdade de contratar, e que, por essa razão, as hipóteses de terceirização devem ser restringidas e não ampliadas, como equivocadamente se pretende no PL nº 4.330/2004, atual PLC nº 30. 13 2 MUNDOS DO TRABALHO 2.1 O Trabalhador Segundo o filósofo alemão Max Horkheimer: “A história dos esforços humanos para subjugar a natureza é também a história da subjugação do homem pelo homem.1”. Compreende-se, a partir dessa frase antológica, que a história do trabalho confunde-se com a própria história do homem que trabalha para outrem, isto é, o trabalhador. De fato, o homem reconhece-se e se afirma no mundo enquanto dispende de sua energia, tempo, intelecto e vida para produzir algo de valor para a sociedade de que faz parte: “Pelo trabalho, o indivíduo se autoproduz: desenvolve habilidades e imaginação; aprende a conhecer a natureza para melhor fazer uso dela; conhece as próprias forças e limitações; convive com pessoas e experimenta os afetos de toda relação; impõe-se uma disciplina. Com o trabalho, o ser humano não permanece o mesmo, porque modifica a percepção do mundo e de si próprio.2” No entanto, cita-se por ser relevante para a cultura ocidental, no primeiro livro da Bíblia o trabalho surge na humanidade como uma maldição, consequência da expulsão do homem do paraíso. Isso quando o primeiro casal, ao terem desafiado Deus (aqui entendido como a deidade judaico-cristã), foram punidos com a condenação perpétua e hereditária de “viver com o suor do rosto”, condição mandamental para que o homem tenha algum meio para sobreviver na natureza. Assim sendo, compreendido que trabalhador é o homem que realiza trabalho, faz-se necessário compreender de forma plena, com abrangência e profundidade, o próprio conceito de trabalho. A definição enciclopédica de “trabalho” é assim entendida: “Trabalho é toda transformação que o homem imprime à natureza para disso tirar algum proveito. Pode ser feito diretamente com as mãos, com a ajuda de instrumentos, ferramentas e máquinas ou ainda com a colaboração de animais. O processo de trabalho voltado para a produção social inclui três elementos fundamentais: o objeto de trabalho, matéria que o homem transforma com sua 1 ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; Maria Helena Pires Martins. Filosofando: introdução à filosofia. 3 ed. revista. São Paulo: Moderna, 2003, p.37. 2 ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. Idem. 14 atividade; os meios de trabalho, conjunto de instrumentos com os quais o homem transforma a matéria; e a atividade humana exercida sobre a matéria com a ajuda de instrumentos. O capital é uma acumulação de trabalho anterior, ou seja, é trabalho acumulado. O trabalho é o elemento mais importante da produção social, condição mesma de sua existência. É por ele que se obtém o produto. Todo trabalho exige o dispêndio de certa quantidade de energia física e psíquica. A essa energia despendida no processo de produção chama-se força de trabalho. O trabalho é, assim, o resultado mensurável da força de trabalho. Pode-se também falar da força de trabalho global em determinada sociedade. Nesse caso, trata-se da mão-de-obra total que a economia mobiliza ou pode mobilizar. O trabalho, nesse caso, é visto em função do trabalhador coletivo e supõe uma economia complexa, com avançada divisão do trabalho. Os elementos fundamentais do processo de trabalho – o objeto, meios e força de trabalho – combinam-se em proporções variáveis, que vão determinar o modo de produção de determinada economia.3” A definição de “trabalho” segundo o renomado jurista Maurício Godinho Delgado em sua obra clássica de Direito do Trabalho: “Trabalho é atividade inerente à pessoa humana, compondo o conteúdo físico e psíquico dos integrantes da humanidade. É, em síntese, o conjunto de atividades, produtivas ou criativas, que o homem exerce para atingir determinado fim.4” A definição de “trabalho” conforme o entendimento da pesquisadora Ingeborg Sell em sua relevante obra que visa contribuir para a melhoria das condições de trabalho na sociedade: “Por trabalho humano entende-se uma atividade prescrita ou voluntariamente selecionada, de caráter obrigatório, englobando o trabalho assalariado, o trabalho produtivo individual autônomo (artesão, agricultor, microempresário), o trabalho doméstico e o trabalho escolar em todos os níveis. Numa definição mais restrita, trabalho seria o que acrescenta valor e entra no circuito monetário. Nesse caso, a dona de casa e o agricultor, dono de sua terra, não trabalham. Na prática, as reflexões sobre o trabalho e a legislação trabalhista focalizam mais o trabalho assalariado, por afetar um maior número de pessoas, na maioria das sociedades. Numa definição mais operacional, entende-se por trabalho humano, genericamente, tudo o que a pessoa faz para manter e promover sua própria existência e/ou a existência da sociedade, dentro dos limites estabelecidos (valores, legislação) por essa sociedade.5” Portanto, em todas essas definições é possível perceber em comum o sentido de trabalho como atividade humana por excelência desenvolvida em determinada época e contexto social. Assim sendo, deter-se-á na relação do trabalho e capital, precisamente no trabalho assalariado a partir do capitalismo industrial, etapa histórica em que surge o 3 Vários colaboradores. Nova Enciclopédia Barsa. Obra em 18 v. (obra completa) – São Paulo: Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações, 2000, p. 146. 4 DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 12 ed. São Paulo. LTr, 2013, p. 278. 5 SELL, Ingeborg. Projeto do trabalho humano : melhorando as condições de trabalho. Florianópolis: Ed. Da UFSC, 2002. 15 capitalista, dono dos meios de produção, o qual compra o único bem do homem livre, isto é, sua força de trabalho6. 2.2 A relação trabalho e capital O capital pode ser entendido como o dinheiro “usado para adquirir mercadorias ou trabalho com a finalidade de vende-los novamente, com lucro.7”. Sua constituição, então, dá- se quando o dinheiro – primeira forma em que o capital aparece na história8 – é empregado num empreendimento ou transação que visa ao lucro. Dentre as funções econômicas do capital, em seu recente livro “O Capital no Século XXI”, o economista francês Thomas Piketty traz as seguintes considerações: “Em todas as civilizações, o capital desempenha duas grandes funções econômicas: permite que as pessoas tenham onde se abrigar (isto é, para prover “serviços de habitação”, cujo valor é medido pelo preço dos aluguéis – o valor do bem-estar gerado pelo ato de dormir e viver semestar exposto ao relento) e serve como fator de produção para confeccionar bens e serviços (cujo processo de produção pode necessitar de terras agrícolas, ferramentas, edificações, escritórios, máquinas, equipamentos, patentes etc.). Historicamente, as primeiras formas de acumulação capitalista parecem envolver tanto ferramentas (sílex etc.) como o aperfeiçoamento da terra (construção de cercas, irrigação, drenagens etc.), além de formas rudimentares de habitação (cavernas, tendas, cabanas etc.), antes de evoluir para outras acumulações mais sofisticadas de capital industrial e profissional, assim como para locais de moradia cada vez mais elaborados.9” Historicamente, no entanto, o capital é bem mais antigo que o capitalismo10. Nesse aspecto, o historiador Leo Huberman afirma que “antes da idade capitalista, o capital era acumulado através do comércio – termo elástico, significando não apenas a troca de mercadorias, mas incluindo também a conquista, pirataria, saque, exploração.11”. Sobre essa origem do capital, Karl Marx traz a seguinte explicação em sua obra homônima: 6 HUBERMAN, Leo. História da riqueza do homem; tradução: Waltenser Dutra. 15 ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979, p. 168. 7 HUBERMAN, Leo. Op.cit, p. 167. 8 MARX, Karl. O capital: crítica da economia política: livro I; tradução: Reginaldo Sant’Anna. 30 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012, p. 177. 9 PIKETTY, Thomas. O capital no século XXI; tradução: Monica Baumgarten de Bolle. I ed. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014, p. 209. 10 SINGER, Paul. Curso de introdução à economia política. 17 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000, p. 132. 11 HUBERMAN, Leo. Op. cit., p. 169. 16 “A circulação das mercadorias é o ponto de partida do capital. A produção de mercadorias e o comércio, forma desenvolvida da circulação de mercadorias, constituem as condições históricas que dão origem ao capital. O comércio e o mercado mundiais inauguram no século XVI a moderna história do capital.12” Ainda para Marx, a transformação do valor do dinheiro em capital não se dá no próprio dinheiro. O fator gerador e elemento central da criação do capital é a mercadoria que em seu valor-de uso tem a característica particular de ser fonte de valor, qual seja, a força de trabalho: “Para extrair valor do consumo de uma mercadoria, nosso possuidor de dinheiro deve ter a felicidade de descobrir, dentro da esfera da circulação, no mercado, uma mercadoria cujo valor-de-uso possua a propriedade peculiar de ser fonte de valor, de modo que consumi-la seja realmente encarnar trabalho, criar valor, portanto. E o possuidor de dinheiro encontra no mercado essa mercadoria especial: é a capacidade de trabalho ou a força de trabalho. Por força de trabalho ou capacidade de trabalho compreendemos o conjunto das faculdades físicas e mentais existentes no corpo e na personalidade viva de um ser humano, as quais ele põe em ação toda vez que produz valores-de-uso de qualquer espécia.13” (Grifos acrescidos) É na passagem do feudalismo para o capitalismo que ocorrem marcantes transformações na vida social e econômica na Europa, tais como o aperfeiçoamento das técnicas e a ampliação dos mercados. A acumulação do capital possibilita a compra de matérias-primas e de máquinas, o que obrigou muitas famílias, que exerciam o trabalho doméstico nas antigas corporações e manufaturas, a disporem de seus antigos instrumentos de trabalho e, para sobreviver, a venderem sua força de trabalho em troca de salário14. Destarte, a força de trabalho do operário é comprada pelo capitalista que a vende com lucro, por meio da venda lucrativa das mercadorias que o trabalho do operário transformou de matérias-primas em produtos acabados. Por essa razão, “o lucro vem do fato de receber o trabalhador um salário menor do que o valor da coisa produzida.15”. Essa lógica também é minudenciada pelo professor e pensador norte-americano Eugene Victor Schneider: “Lembraremos aqui que, idealmente, o operário, no nosso sistema, é uma peça no processo de produção; ele fornece um ingrediente necessário para a produção – a sua força de trabalho. Devido a esse fato, o operário estabelece relações sociais de um tipo especial com a gerência, que são as relações sociais determinadas pelo mercado – por uma certa quantidade e qualidade de força de 12 MARX, Karl. idem. 13 MARX, Karl. Op. cit., p. 197. 14 ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; Maria Helena Pires Martins. Op. cit., p. 38. 15 HUBERMAN, Leo. Op. cit., p. 169 17 trabalho fornecida à gerência, o operário recebe em troca uma quantidade especificada de dinheiro, que o possibilita a continuar vivendo. As relações sociais entre a gerência e o operário se definem por um nexo monetário.16” Na segunda metade do século XVIII, então, ocorre a Revolução Industrial, que representou uma mudança crucial tanto no aparato técnico produtivo, como, principalmente, nas estratégias de administração das empresas fabris, de modo a afirmar novas relações de poder hierárquicas e autoritárias17, na medida em que ao reunir os trabalhadores sob um mesmo texto, o empresário poder instituir ineditamente uma disciplina rígida num sistema de produção, forçando-os à dependência econômica completa, o que, por conseguinte, trouxe como resultado a garantia da quantidade, qualidade e uniformidade do trabalho18. Todavia, a exploração sem limites da força de trabalho no mundo capitalista também provocou a luta histórica de resistência dos trabalhadores, tendo se verificado movimentos de protestos e até mesmo rebeliões, com a destruição de máquinas19. “Com o advento da Revolução Industrial, a prestação massificada do trabalho assalariado, em condições de profunda exploração, fez eclodir a denominada ‘questão social’ como uma exigência de humanização das relações entre o capital e o trabalho.20” Nesse sentido, esse histórico embate dialético entre o movimento operário e a força de trabalho relaciona-se com os direitos humanos: “Ora, a principal relação entre a história dos movimentos operários, que são um fenômeno bastante recente do ponto de vista histórico, e os direitos humanos reside no fato de que os movimentos operários geralmente são compostos de pessoas que são “subprivilegiadas”, nas palavras de F. D. Roosevelt, e que se preocupam com seus problemas. Isto quer dizer que eles se preocupam com pessoas que, segundo as definições de suas épocas, não têm os mesmos direitos, ou têm menos direitos do que outras pessoas ou outros grupos. Ora, as pessoas raramente exigem direitos, lutam por eles ou se preocupam com eles, a não ser que não os desfrutem 16 SCHNEIDER, Eugene V. Sociologia Industrial – Relações Sociais entre a Indústria e a Comunidade; tradução: Ana Cristina Cruz César. Traduzido da segunda edição norte-americana, publicada em 1969 por MCGRAW-HILL BOOK, COMPANY, de Nova Iorque, Estados Unidos da América. 2ª ed. Zahar Editores. Rio de Janeiro, 1980, p. 247-248. 17 DECA, Edgar Salvadori de. O nascimento das fábricas. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 30. 18 SCHNEIDER, Eugene V. Op. cit., p. 59. 19 SUSSEKIND, Arnaldo. Instituições de direito do trabalho, volume I / Arnaldo Sussekind ... [et al.]. – 22 ed. atual. por Arnaldo Sussekind e Arnaldo Lima Teixeira Filho. – São Paulo: LTr, 2005, p. 32. 20 DELGADO, Gabriela Neves; Helder Santos Amorim. Os limites constitucionais da terceirização. 1 ed. São Paulo: LTr, 2014, p. 32. 18 suficientemente ou de nenhuma forma, ou, caso desfrutem deles, a não ser que sintam que esses direitosnão estão seguros.21” 2.3 O Direito do Trabalho Nesse campo de batalha, surge o direito do trabalho para garantir melhores condições de vida aos trabalhadores. Historicamente, aparece somente com o advento do capitalismo, especialmente a partir da transição do capitalismo mercantilista para o capitalismo industrial22, e não apenas serviu à Revolução Industrial, no século XVIII, na Inglaterra, como fixou controles para esse sistema. No século XIX exsurge a denominada “questão social”, vista como a intensificação da exploração do proletariado e das condições subumanas das vida23. Decorre, então, a luta do proletariado para consolidar seus direitos, que encontrou eco no modelo de Estado Social ou o welfare-state (Estado de Bem-estar Social), que objetivava resolver a incongruência que havia entre a igualdade política e a desigualdade social, visto que o liberalismo não dava nenhuma solução às contradições sociais, ignorando a existência dos indivíduos “subprivilegiados”, conforme visto na fala de Hobsbawn. O Estado Social, segundo José Afonso da Silva, é assim entendido: Por tudo isso, a expressão Estado Social de Direito manifesta-se carregada de suspeição, ainda que se torne mais precisa quando se lhe adjunta a palavra democrático como fizeram as Constituições da República Federal da Alemanha e da Monarquia Espanhola para chamá-lo de Estado Social e Democrático de Direito. Mas aí, mantendo o qualificativo social ligado a Estado, engasta-se aquela tendência neocapitalista e a petrificação do Welfare State, com o conteúdo mencionado acima, delimitadora de qualquer passo à frente no sentido socialista. Talvez, para caracterizar um Estado não socialista preocupado, no entanto, com a realização dos direitos fundamentais de caráter social, fosse melhor manter a expressão Estado de Direito, que já tem uma conotação democratizante, mas, para retirar dele o sentido liberal burguês individualista, qualificar a palavra Direito com o social, com o que se definiria uma concepção jurídica mais progressista e aberta, e então, em lugar de Estado Social de Direito, diríamos Estado de Direito Social. [...]24” 21 HOBSBAWN, Eric J. Mundos do trabalho; tradução: Waldea Barcellos, Sandra Bedran. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000, p. 418. 22 SCHWARZ, Rodrigo Garcia. Trabalho Escravo : A abolição necessária : Uma Análise da Efetividade e da Eficácia das Políticas de Combate à Escravidão Contemporânea no Brasil. São Paulo: LTr, 2008, p. 82. 23 ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. Op. cit., p. 38-39. 24 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 29. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 116-117. 19 Por conseguinte, nesse ambiente é que pode ser consolidado os direitos sociais, como direitos básicos, como ensina Noberto Bobbio: “Os direitos sociais sob forma de instituição da instrução pública e de medidas a favor do trabalho para os ‘pobres válidos que não puderam consegui-lo’, fazem a sua primeira aparição no título I da Constituição Francesa de 1791 e são reafirmados solenemente nos artigos 21 e 22 da Declaração dos Direitos de junho de 1793. O direito ao trabalho se tornou um dos temas do debate acalorado, apesar de estéril, na Assembleia Constituinte francesa de 1848, deixando, todavia, um fraco vestígio no artigo VIII do Preâmbulo. Em sua dimensão mais ampla, os direitos sociais entraram na história do constitucionalismo moderno com a Constituição de Weimar. A mais fundamentada razão da sua aparente contradição, mas real complementaridade, com relação aos direitos de liberdade é a que vê nesses direitos uma integração dos direitos de liberdade, no sentido de que eles são a própria condição do seu exercício efetivo. Os direitos de liberdade só podem ser assegurados garantindo-se a cada um o mínimo de bem estar econômico que permite uma vida digna.25” Por essas razões históricas, esclarece Maurício Godinho a origem do Direito do Trabalho: “O Direito do Trabalho é, pois, produto cultural do século XIX e das transformações econômico-sociais e políticas ali vivenciadas. Transformações todas que colocam a relação de trabalho subordinado como núcleo motor do processo produtivo característico daquela sociedade. Em fins do século XVIII e durante todo o curso do século XIX é que se maturam, na Europa e Estados Unidos, todas as condições fundamentais de formação do trabalho livre mas subordinado e de concentração proletária, que propiciaram a emergência do Direito do Trabalho.26” Assim sendo, Arnaldo Sussekind com Segadas Viana trazem a seguinte definição de Direito do Trabalho na obra “Instituições de Direito do Trabalho”: “Realmente, o Direito do Trabalho não é apenas o conjunto de leis, mas de normas jurídicas, entre as quais os contratos coletivos, e não regula somente as relações entre empregados e empregadores num contrato de trabalho; ele vai desde sua preparação, com a aprendizagem, até as consequências complementares, como, por exemplo, a organização profissional. Se durante certo período a legislação sobre o trabalho teve um sentido policial e penal contra os trabalhadores (leis proibindo coalizões, a greve, a vida associativa), se, depois, passou a visar à proteção do trabalhador (leis sobre duração do trabalho, sobre idade mínima para trabalhar etc.), também é certo que em determinada época, especialmente na Alemanha, no final do século XIX, a legislação sobre o trabalho visou a interesses econômicos da nação, procurando criar um clima mais propício ao desenvolvimento das indústrias. Hoje em dia, porém, o Direito do Trabalho já não visa ao operário, como ente mais fraco na vida em sociedade, nem tem a finalidade econômica da legislação de Bismarck. Ele se situa em plano imensamente mais elevado, com o grande objetivo de solucionar o problema. A proteção e a tutela do trabalho não são 25 BOBBIO, Noberto. A era dos direitos; tradução de Carlos Nelson Coutinho. Nova ed. 7ª reimpressão. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, pág. 206-207. 26 DELGADO, Maurício Godinho. Op. cit., p. 83. 20 mais do que um conjunto de normas jurídicas que asseguram ao trabalhador uma posição, frente ao empregador, em que possa defender seus direitos e interesses num mesmo plano, sem complexos ou recalques; a legislação sindical, por seu lado, a nada mais visa senão a assegurar aos grupos econômicos ou profissionais os meios para, mediante entendimento, pôr termo a conflitos entre o capital e o trabalho. Valorizando o trabalho humano, seja aquele que realiza o empregado, seja o que faz o empregador, na gestão de sua empresa, o Direito do Trabalho persegue uma finalidade político-social que é a paz social, a harmonia social.27” Resumidamente, traz-se a seguinte sequência dos marcos históricos da evolução do Direito do Trabalho nos países capitalistas ocidentais, a começar pelo “Manifesto Comunista”, de Marx e Engels, em 1848. Num segundo momento é a Encíclica Católica Rerum Novarum, de 1891, em que se proclamou a necessidade da união entre as classes do capital e do trabalho28, tendo sido um documento, que inspirou a Constituição mexicana e a Constituição de Weimar, ao promover paz e integração entre os cidadãos dentro da sociedade, em prol da valorização de seus direitos sociais29. Como terceiro marco a Primeira Guerra Mundial e seus desdobramentos, como a formação da OIT – Organização Internacional do Trabalho (1919) e a promulgação da Constituição Alemã de Weimar (1919) e da Constituição Mexicana (1917), constituições essas que foram as primeiras no processo de constitucionalização do Direito do Trabalho30. No Brasil, destacam-se os anos 1930, década marcada pela industrializaçãodo país e, consequentemente, de seguidas greves mobilizações dos trabalhadores, fatos esses que contribuíram para a criação de um sistema de leis e instituições para pacificar e manter sob controle do Estado as tensões entre patrões e empregados31. Nesse contexto, no Estado Novo de Vargas, o principal marco é a Consolidação das Leis do Trabalho (Decreto-lei n. 5.452, de 1/05/1943). “A CLT, como se consagrou, reunia e sistematiza toda a legislação até então elaborada no campo do Direito do Trabalho, passando a ser nomeada como a ‘bíblia do trabalhador’”32. 27 SUSSEKIND, Arnaldo. Instituições de direito do trabalho, volume I / Arnaldo Sussekind ... [et al.]. – 22 ed. atual. por Arnaldo Sussekind e Arnaldo Lima Teixeira Filho. – São Paulo: LTr, 2005, p. 99-101. 28 SUSSEKIND, Arnaldo. Instituições de direito do trabalho, volume I / Arnaldo Sussekind ... [et al.]. – 22 ed. atual. por Arnaldo Sussekind e Arnaldo Lima Teixeira Filho. – São Paulo: LTr, 2005, p. 39. 29 MARTINS, Ives Gandra da Silva. Conheça a Constituição : comentários à Constituição Brasileira, volume 2. Barueri, SP: Manole, 2006, p. 22-23. 30 DELGADO, Maurício Godinho. Op. cit., p. 89. 31 BULLA, Beatriz. Justiça do Trabalho: 70 anos de direitos. São Paulo: Alameda, 2011.p. 28. 32 GOMES, Angela Maria de Castro. Cidadania e direitos do trabalho. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002, p. 39. 21 A democratização desses direitos aparece na Constituição de 5/10/1988, a alcunhada “Constituição-cidadã”, que consagrou um novo patamar para os direitos de cidadania no Brasil. Reconhecida como a mais significativa Carta de Direitos da história jurídico-política do país, a Constituição de 1988 garantiu uma grande dimensão de direitos individuais e sociotrabalhistas. Nessa nova ordem jurídica instituída, a República do Brasil constitui-se como Estado Democrático de Direito (art. 1º da CF/88), que, segundo definição no livro de Gilmar Mendes, Inocêncio Coelho e Paulo Gustavo Branco, caracteriza-se por ser uma espécie de Estado avançado, fusão dos modelos de Estado liberal e social: “Em que pesem pequenas variações semânticas em torno desse núcleo essencial, entende-se como Estado Democrático de Direito a organização política em que o poder emana do povo, que o exerce diretamente ou por meio de representantes, escolhidos em eleições livres e periódicas, mediante sufrágio universal e voto direto e secreto, para o exercício de mandatos periódicos, como proclama, entre outras a Constituição brasileira. Mas ainda, já agora no plano das relações concretas entre o Poder e o indivíduo, considera-se democrático aquele Estado de Direito que se empenha em assegurar aos seus cidadãos o exercício efetivo não somente dos direitos civis e políticos, mas também e sobretudo os direitos econômicos, sociais e culturais, sem os quais de nada valeria a solene proclamação daqueles direitos.33” A estrutura do Estado, conforme a Constituição de 1988, fundamenta-se, especialmente, na cidadania, na dignidade da pessoa humana e nos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (art. 1º, II, III e IV). Destarte, a importância central e fundamental do trabalho na sociedade, razão pela qual a Constituição Federal da República do Brasil de 1988 trouxe-o como direito social fundamental em seu art. 6º e como primado da ordem social em seu art. 193, verbis: “Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição34” (Grifos acrescidos) “Art. 193. A ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais.” (Grifos acrescidos) 33 MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional / Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho, Paulo Gustavo Gonet Branco. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 149. 34 BRASIL. Constituição (1988). Constituição Federal, de 5 de outubro de 1988. Vade Mecum OAB e concursos. 5. ed. atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 9-10. 22 E também ampliou garantias já existentes na ordem jurídica, elencando direitos de empregados urbanos e rurais, igualando-os de modo isonômico (art. 7º, caput, CF/88), estendendo a mesma conduta aos trabalhadores avulsos (art. 7º, XXXIV); além de trazer os direitos coletivos dos trabalhadores (art. 9º a 11), que são “aqueles que os trabalhadores exercem coletivamente ou no interesse de uma coletividade deles, e são os direitos de associação profissional ou sindical, o direitos de greve, o direito de substituição processual, o direito de participação e o direito de representação classista.35” Nessa linha histórica, percebe-se que o Brasil adotou um sistema de proteção social do trabalho legal e estatutário, de inspiração europeia, em que o Direito do Trabalho se fundamentou na figura do “emprego”, consubstanciada numa específica relação de trabalho, a relação de emprego, que se forma antes pelas condições fáticas da prestação do trabalho subordinado, pessoal e assalariado, do que pela declaração de vontade das partes, sendo portanto elemento fundamental do Direito do Trabalho36. Desenvolve-se o Direito do Trabalho, conforme doutrina de Plá Rodrigues (apud, Gabriela Delgado), com base no princípio da proteção, - do qual decorrem o princípio da imperatividade das normas laborais, o princípio da irrenunciabilidade de direitos, o princípio da continuidade da relação de emprego e o princípio da primazia da realidade - com a finalidade de compensar, com proteção jurídica, a inferioridade econômica do trabalhador37. 2.3.1 O Empregado A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), em seu art. 3º, trouxe o conceito de empregado como sendo “toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário38”. A “dependência” referida no texto legal corresponde à “subordinação jurídica”, que define o contrato de trabalho39. 35 SILVA, José Afonso da. Op. cit., p. 288. 36 DELGADO, Gabriela Neves; Helder Santos Amorim. Op. cit., p. 32. 37 DELGADO, Gabriela Neves; Helder Santos Amorim. Op. cit., p. 33. 38 BRASIL. Decreto-Lei n.º 5.452, de 1º de maio de 1943. CLT: Consolidação das leis do trabalho / organização Renato Saraiva, Aryanna Manfredini, Rafael Tonassi. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, out. 2014, p. 113. 39 SUSSEKIND, Arnaldo. Op. cit, p. 311. 23 Para Maurício Godinho, “empregado” é “toda pessoa natural que contrate, tácita ou expressamente, a prestação de seus serviços a um tomador, a este efetuados com pessoalidade onerosidade, não eventualidade e subordinação.40”. A doutrina interpreta como sendo esses os cinco elementos fático-jurídicos da relação de emprego, que reunidos constituem empregado o prestador de serviços41. 2.3.2 O Empregador O conceito de “empregador” consoante o texto consolidado é “a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço.42” A caraterização da figura do empregador dá-se a partir da configuração da relação de emprego, o que traz os seguintes efeitos: a sua despersonalização e sua assunção dos riscos do empreendimento e do próprio trabalho contratado. Para Godinho, a primeira consiste na “circunstância de autorizar a ordem justrabalhista a plena modificação do sujeito passivo da relação de emprego (o empregador), sem prejuízo da preservação completa do contrato empregatíciocom o novo titular”43. A segunda consiste na “circunstância de impor a ordem justrabalhista à exclusiva responsabilidade do empregador, em contraponto aos interesses obreiros oriundos do contrato pactuado, os ônus decorrentes de sua atividade empresarial ou até mesmo do contrato empregatício celebrado.44”. 2.3.3 A bilateralidade da relação de emprego/ contrato de trabalho A partir da consolidação da relação de emprego e do contrato de trabalho que ocorre o distanciamento do tradicional Direito Civil, afastando-se da clássica figura civilista da locação de serviço (locatio operarum), em que a relação de trabalho baseava-se na premissa liberal da plena autonomia da vontade das partes45. 40 DELGADO, Maurício Godinho. Op. cit. p. 354. 41 DELGADO, Maurício Godinho. Idem. 42 BRASIL. Decreto-Lei n.º 5.452, de 1º de maio de 1943. CLT: Consolidação das leis do trabalho / organização Renato Saraiva, Aryanna Manfredini, Rafael Tonassi. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, out. 2014, p. 113. 43 DELGADO, Maurício Godinho. Op. cit. 402. 44 DELGADO, Maurício Godinho. Op. cit. 403. 45 DELGADO, Gabriela Neves; Helder Santos Amorim. Op. cit., p. 33. 24 O art. 442 da CLT define contrato de trabalho como “o contrato individual de trabalho é o acordo tácito ou expresso, correspondente à relação de emprego”. Para Godinho, a definição de contrato empregatício é “o acordo de vontades, tácito ou expresso, pelo qual uma pessoa física coloca seus serviços à disposição de outrem, a serem prestados com pessoalidade, não eventualidade, onerosidade e subordinação ao tomador.46”. O Direito do Trabalho, nesse aspecto, com base em seus princípios protetivos basilares, construiu suas instituições jurídicas tais como o contrato contínuo e estável de trabalho de trabalho com conteúdo mínimo legalmente instituído, a relação bilateral de emprego faticamente determinada e o enquadramento sindical dos trabalhadores pela natureza da atividade do empregador. A CLT, por sua vez, também traz a cláusula de imperatividade das normas trabalhistas, em seu art. 9º, de modo a combater as fraudes nas relações de emprego, tais como, pela doutrina e jurisprudência verificadas, os (i) contratos civis utilizados para mascarar a relação de emprego; (ii) cooperativa intermediária de mão de obra; (iii) “pejotização” de empregados; (iv) a falsa “socialização” de empregados; (v) a descaracterização do contrato de estágio profissional; e (vi) a descaracterização do contrato de trabalho temporário”. 46 DELGADO, Maurício Godinho. Op. cit. 504. 25 3 TERCEIRIZAÇÃO TRABALHISTA 3.1 Conceito A expressão terceirização, segundo Maurício Godinho Delgado, é um neologismo da palavra terceiro, compreendido como intermediário, interveniente, terminologia essa oriunda da área de administração de empresas, fora da cultura do Direito, visando enfatizar a descentralização empresarial de atividade para outrem, um terceiro à empresa47. A terceirização para o Direito do Trabalho, conforme Godinho, é assim entendida: “Para o Direito do Trabalho terceirização é o fenômeno pelo qual se dissocia a relação econômica de trabalho da relação justrabalhista que lhe seria correspondente. Por tal fenômeno insere-se o trabalhador no processo produtivo do tomador de serviços sem que se estendam a este os laços justrabalhistas, que se preservam fixados com uma entidade interveniente. A terceirização provoca uma relação trilateral em face da contratação de força de trabalho no mercado capitalista: o obreiro, prestador de serviços, que realiza suas atividades materiais e intelectuais junto à empresa tomadora de serviços; a empresa terceirizante, que contrata este obreiro, firmando com ele os vínculos jurídicos trabalhistas pertinentes; a empresa tomadora de serviços, que recebe a prestação de labor, mas não assume a posição clássica de empregadora desse trabalhador envolvido.48” Na ótica de Sérgio Pinto Martins, sob o ponto de vista da gestão empresarial, a terceirização é um fenômeno mundial que acompanha a tendência de especialização em todas as áreas, gerando novos empregos e novas empresas, desverticalizando-as, a fim de que exerçam tão somente a atividade em que se aprimoram, delegando a terceiros a execução dos serviços que não são do âmbito de sua especialidade49. Em uma visão mais crítica, Rodrigo Carelli conceitua a terceirização do seguinte modo: “A terceirização pode ser entendida como o processo de repasse para a realização de complexo de atividades por empresa especializada, sendo que estas atividades poderiam ser desenvolvidas pela própria empresa.50” 47 DELGADO, Maurício Godinho. Op. cit. p. 436. 48 DELGADO, Maurício Godinho. idem. 49 MARTINS, Sergio Pinto. A terceirização e o direito do trabalho. 13 ed. rev. e ampl. São Paulo.Atlas, 2014, p. 1. 50 CARELLI, Rodrigo de Lacerda. Terceirização e intermediação de mão de obra: ruptura do sistema trabalhista, precarização do trabalho e exclusão social. Net, Rio de Janeiro, 2014. Disponibilizado pelo próprio autor em: <http://papyruseditor.com/web/17301/Terceiriza%C3%A7%C3%A3o- como-Intermedia%C3%A7%C3%A3o-de-M%C3%A3o-de-Obra>. Acesso em: 10 nov. 2014, p. 58-59. 26 Percebe-se, portanto, que a terceirização é um processo triangular, isto é, em que figuram três elementos: o empregado, a empresa prestadora de serviços e a empresa tomadora. 3.1.2 A relação trilateral/ triangular A terceirização constitui uma relação triangular, entre trabalhador, prestador de serviços e tomador de serviços. No entanto, o contrato de trabalho é bilateral, estabelecido apenas entre empregado e empregador51, ou seja, entre o trabalhador e a empresa prestadora de serviços. No entanto, para grande parte da doutrina, a terceirização é um modelo excetivo da forma tradicional de contratação bilateral. Os efeitos dessa modalidade excetiva no contrato de trabalho individual são objeto de crítica por grande parte da doutrina brasileira, a exemplo do posicionamento de Maurício Godinho: “O claro direcionamento da ordem jurídica internacional estipulada pela OIT e da ordem jurídica nacional estabelecida pela Constituição da República de 1988 e pelas leis trabalhistas do país, no sentido da fixação de incentivos e proteções ao trabalho protegido, especialmente a relação de emprego, tornam excetivas as diversas formas de contratação do trabalho humano fora desses marcos civilizatórios. São sábias a ordem jurídica nacional e a internacional ratificada, uma vez que essas modalidade excetivas de contratação trabalhista, inclusive a terceirização, tendem ao rebaixamento protetivo da força de trabalho e à precarização do valor trabalho, ensejando desproporcional, injusta e antissocial prevalência do poder econômico empresarial sobre os seres humanos que vivem do trabalho.52” (Grifos nossos) 3.2 Origem histórica Quanto a sua origem histórica, a terceirização é usada como técnica instrumental de produção no sistema capitalista desde a Revolução Industrial, como esclarece Carelli em artigo publicado na revista do Tribunal Superior do Trabalho: 51 MARTINS, Sergio Pinto. Op. cit., p. 12. 52 DELGADO, Gabriela Neves; Helder Santos Amorim. Os limites constitucionais da terceirização. 1 ed. São Paulo: LTr, 2014, p. 30. 27 “Vende-se como novo algo que não é tão inédito assim. Em verdade, não há nenhum ineditismo. De fato, a técnica da terceirização não advém da recente reestruturação produtiva conhecida comotoyotismo. Trata-se, em verdade, de uma recauchutagem de instrumento que data do início da própria Revolução Industrial, em fins do século XVIII e início do século XIX. É historicamente conhecida sob o nome de putting- out system a exploração de trabalhadores para realizar parte da produção dos capitalistas em seus próprios domicílios, o que transformou artesãos independentes em trabalhadores empobrecidos e limitados. Esse tipo de “terceirização”, com a entrega de parte da produção para ser realizada externamente e de forma complementar ao realizado dentro dos muros da fábrica, aconteceu principalmente nos setores da confecção e da indústria bélica na Inglaterra.53” Porém, como prática empresarial amplamente reconhecida e copiada no mundo, a terceirização tem seu berço no Japão, como afirma a socióloga Maria da Graça Druck, em sua destacada tese de doutorado escrita nos anos 90: “Como visto anteriormente, um dos componentes do modelo japonês é a forma como se estruturam as relações interempresas no Japão: as redes de subcontratação ou terceirização. É parte da estrutura produtiva da economia japonesa, uma relação de complementaridade entre as grandes empresas e as micro, pequenas e médias empresas. Estas últimas são indispensáveis para o sucesso do modelo. (...) Estas várias empresas fornecem os mais variados tipos de insumos, intermediários, produtos, embalagens e até mão-de-obra temporária. No caso das empreiteiras de mão-de-obra temporária, estabelece-se uma relação de fidelidade e subordinação hierárquica às grandes empresas. Já no caso de fornecedoras de componentes, eventualmente ocorrem programas de cooperação tecnológica promovidos pela empresa-cliente. Ainda no caso das subcontratadas, estas são de menor porte e de menores recursos, além de apresentarem um padrão de salários e de benefícios inferiores aos da empresa-mãe.54” O sociólogo norte-americano Berveley J. Silver, atualmente uma das maiores autoridades mundiais em Sociologia do trabalho, explica mais detalhadamente a origem histórica do modelo de produção japonês: “O Japão testemunhou um enorme aumento de militância trabalhista no final da Segunda Guerra Mundial (isto é, às vésperas da decolagem de sua indústria automobilística). Para lidar com as restrições impostas por essa onda de militância operária, as montadoras escolheram um caminho bastante distinto do estilo fordista de produção em massa. Ao descartar as primeiras tentativas de integração de integração vertical, os fabricantes de automóveis japoneses criaram um sistema de 53 CARELLI, Rodrigo de Lacerda. A Terceirização no século XXI. Rev. TST, Brasília, vol. 79, nº 4, out/dez 2013. Disponibilizado em: http://aplicacao.tst.jus.br/dspace/bitstream/handle/1939/55996/012_carelli.pdf?sequence=1 . Acesso em: 04 jun. 2015. 54 DRUCK, Maria da Graça. Terceirização: (des)fordizando a fábrica. Um estudo do complexo petroquímico da Bahia. 1995. 275 f. Monografia (Doutoramento em Ciências Sociais – Universidade Estadual de Campinas, São Paulo, 1995, p. 119. 28 subcontratação com múltiplos estratos, os que lhes permitia simultaneamente garantir o emprego de uma força de trabalho principal, manter com ela relações cooperativas e obter materiais a baixo custo e flexibilidade da parte dos estratos inferiores da rede de fornecedores. Tal combinação não só permitiu ao Japão escapar do tipo de agitação operária que houve na maioria dos outros países produtores, mas também permitiu às corporações japonesas introduzir uma série de medidas de corte de custos nos anos 1970 (a chamada ‘produção enxuta’) e, com isso, triunfar na competição global dos anos 1980.55” Nesse ponto, há a necessidade de se contextualizar o germinal da terceirização nas políticas neoliberais adotadas no fim da década de 70, em que se critica o Wellfare State, por meio da superação do “grande Estado” por um “Estado mínimo”, adotando-se o que ficou conhecido como flexibilização. Retira-se essa explicação histórica do livro “Mutações do Trabalho” de Francisco Carlos Teixeira da Silva, Professor de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS/UFRJ): “Couberam a Margareth Thatcher, na Inglaterra (a partir de 1979), e Ronald Regan, nos Estados Unidos (a partir de 1981), a organização e o exercício de políticas de desmonte do Estado de Bem-Estar Social. A argumentação de ambos os governantes baseava-se nas ideias de economistas liberais (como Milton Friedman e Frederich Rajek), que postulavam uma imediata diminuição dos impostos. O grande volume de impostos existentes, necessários para financiar o Estado do Bem-Estar Social (saúde, educação, seguro-desemprego etc.), seria a origem da depressão econômica, então vigente, e do desemprego. Quanto menos impostos, maiores seriam os investimentos produtivos e, assim, gerar-se-iam mais empregos, raciocinavam políticos e economistas liberais. Obviamente, os anteparos sociais existentes, segurança e garantias do trabalho, deveriam ser anulados, retirando dos empresários o ônus dos diversos impostos decorrentes das estruturas de amparo do Estado-providência. Alguns organismo econômicos e financeiros mundiais, como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional – FMI, passaram a adotar tal receituário como tendo valor igual para todos, fosse o México, a Rússia ou a Indonésia. Assim, passou-se a utilizar uma palavra mágica, que explicaria tudo: flexibilização – flexibilização da seguridade social, flexibilização dos direitos e garantias trabalhistas, flexibilização no processo de trabalho – que garantiria a redução dos custos sociais do trabalho para empresários (seriam menos impostos a pagar). Surge, assim, o conceito de produção enxuta, uma nova forma de regulação do trabalho, em substituição à produção em massa, típica da época da predominância do fordismo-keynesianismo.56” Essa “nova forma de regulação do trabalho”, que sobrepujou o fordismo, começa a delinear um novo arquétipo dos mercados de trabalho, como observa Francisco Carlos: 55 SILVER, Beverly J. Forças do trabalho : movimentos trabalhistas e globalização desde 1870; tradução: Fabrizio Rigout. São Paulo : Boitempo, 2005, p. 54. 56 SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Mutações do trabalho. Rio de Janeiro: Senac Nacional, 1999, p. 74-75. 29 “Quanto à organização industrial, as empresas que, sob o fordismo, estruturavam-se em grandes unidades de produção passam agora a organizar uma rede de subcontratação em torno da unidade produtiva principal – a montadora de automóveis, por exemplo. A partir daí estão criadas as pré-condições para a segmentação dos mercados de trabalho, conforme um desenho ainda em formação: 1. Um núcleo de assalariados multiespecializados, polivalentes e flexíveis, com garantias de emprego, seguridade social e trabalhistas; 2. Trabalhadores das empresas terceirizadas ou subcontratadas, que recebem salários mais baixos cujos empregos não têm a mesma garantia do grupo anterior, vinculando-se às demandas existentes; 3. Formas de assalariamento precário, como nos contratos por tempo determinados; 4. Novas formas de trabalho doméstico, em que trabalhadores entram formalmente na categoria de prestadores de serviços como trabalhadores autônomos. Tal perfil de um novo mercado de trabalho, bastante segmentado, acarreta uma diminuição da folha salarial das empresas e, ao mesmo tempo, evita a incidência de inúmeras imposições fiscais. Os primeiros atingidos são os contramestres, pequenos gerentes, pessoal de escritório, vendedores, representantes, a força de trabalho não-qualificada e não essencial ao processo produtivo e, na extensão da diminuição do Estado e deseus serviços (as privatizações), os funcionários públicos.57” Posteriormente, é possível claramente notar as consequências gravosas desse “progresso tecnológico” de gerenciamento da produção em face da classe trabalhadora. A professora Maria José Pires Barros Cardozo, da Universidade do Maranhão, destaca tais efeitos prejudiciais ao trabalhador: “Nesse contexto, a transição, a natureza, e a composição e as formas de organização da classe trabalhadora vêm sofrendo uma progressiva heterogeneidade. De um lado, a adoção de contratos de trabalhos flexíveis (trabalho em tempo parcial, temporário, terceirizado, familiar, subcontratado) vem provocando um crescimento dos empregos precários. De outro, as multinacionais promovem deslocalizações dos setores industriais de uma região para outra, inclusive dentro de um mesmo país – exemplo do setor têxtil e da eletrônica são o mais frequente -, a fim de se aproveitarem de uma força de trabalho barata e sem tradição de luta. Essas empresas, para reduzirem os custos, aumentarem os lucros e competirem internacionalmente, estão distribuindo suas operações numa vasta cadeia de formas terceirizadas e de trabalho em domicílio. Por intermédio da externalização da produção, elas transferem e espaço e utilizam uma força de trabalho sem o ônus da legislação trabalhista e dos encargos sociais. Essas novas formas de organização da produção fragmentam as relações de trabalho e solapam a organização sindical da classe que vive da venda da força de trabalho e transformam as bases objetivas da luta de classes. Os sindicatos que antes, 57 SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Op. cit., p. 80-81. 30 aliados aos movimentos sociais, lutavam pelo controle social da produção, hoje aderem às formas de negociação dentro da ordem do capital e do mercado.58” Por outro lado, esse fenômeno da externalização da produção, tratada pela professora, trouxe mais poder ao grande capitalista que, com o incremento dos recursos informáticos e microeletrônicos, detém novos modos de exercer os poderes de controle e exploração sobre a força de trabalho, como analisa o Doutor em Ciências Sociais Zéu Palmeira em seu livro “Terceirização e Reestruturação Produtiva”: O grande capitalista, com o emprego dos novos recurso tecnológicos e do outsorcing, passou a ter um maior poder para combinar as formas de exploração modernas e atrasadas, formatar as cadeias produtivas globais e controla-las. Tal poder é estrategicamente dissimulado em face da competição intercapitalista, notadamente quando se torna conveniente ao detentor do capital apropriar-se da farsa do discurso nacionalista e da empresa nacional. A Chrysler Corporation, empresa automobilística com matriz sediada nos EUA, empreendeu campanha publicitária convocando a população norte-americana a valorizar o automóvel nacional e, em consequência, estimular a relação de emprego havida com o trabalhador local, ao invés de entrar no modismo de adquirir os carros japoneses. Tempos depois, técnicos da empresa revelaram que os componentes do automóvel da Chrysler eram em grande parte importados e que a referida corporação era uma das donas da Mitsubishi Motors (REICH, 1994), do mesmo modo que a Ford é uma das proprietárias da Mazda e da Kia Motors (com matriz sul-coreana). Quanto a este aspecto, vale ressaltar algo curioso: a Mazda produziu o carro Ford em sua fábrica no Michigan e exportou tais veículos para serem comercializados no Japão com a marca Ford. Em suma, a teia corporativa mundial, embora continue a apresentar um alto grau de articulação do capitalismo mundializado, apropria-se do discurso da defesa e do emprego e da indústria nacionais para fazer tudo, menos aquilo que ela anuncia defender: o emprego.59” Esse “grau de articulação do capitalismo mundializado” tem mostrado sua face mais perversa principalmente em países asiáticos. No ano passado, a rede britânica de televisão BBC exibiu um documentário com o objetivo de denunciar as condições subumanas de trabalhadores terceirizados na China e na Indonésia, envolvidos no processo de fabricação de iPhones e iPads da empresa norteamerciana Apple. Na película, são mostrados operários exaustos numa fábrica de montagem de iPhones e iPads na China, após uma jornada diária de mais de 16 horas. Em 2010, ocorreu o suicídio de 14 empregados em outra fábrica que produz iPhones na China. Enquanto na Indonésia, foram encontradas crianças cavando minério de estanho com a mão em condições extremamente perigosas60. 58 CARDOZO, Maria José Pires (Org.). Trabalho, capital mundial e formação dos trabalhadores. Fortaleza: Editora Senac Ceará, Edições UFC, 2008, p. 168-169. 59 PALMEIRA SOBRINHO, Zéu. Terceirização e reestruturação produtiva. São Paulo. LTr, 2008, p. 93. 60 BILTON, Richard. Apple 'failing to protect Chinese factory workers'. Net, BBC Panorama, 18 dez. 2014. Disponível em: <http://www.bbc.com/news/business-30532463>. Acesso em: 01 jul. 2015. 31 3.2.1 O surgimento da terceirização na ciência da administração Michel Foucault, em seu livro “Vigiar e punir”, destrincha o processo de operacionalização do trabalho, a partir do sistema fabril surgido no século XVIII, demonstrando a divisão do processo de produção, que adestra os corpos dos trabalhadores: “Nas fábricas que aparecem no fim do século XVIII, o princípio do quadriculamento individualizante se complica. Importa distribuir os indivíduos num espaço onde se possa isolá-los e localizá-los; mas também articular essa distribuição sobre um aparelho de produção que tem suas exigências próprias. (...) Percorrendo-se o corredor central da oficina, é possível realizar uma vigilância ao mesmo tempo geral e individual; constatar a presença, a aplicação do operário, a qualidade do seu trabalho; comparar os operários entre si, classificá-los segundo a sua habilidade e rapidez; acompanhar os sucessivos estágios de fabricação. Todas essas seriações formam um quadriculado permanente: as confusões se desfazem; a produção se divide e o processo de trabalho se articula por um lado segundo suas fases, estágios ou operações elementares, e por outro, segundo os indivíduos que o efetuam, os corpos singulares que a ele são aplicados: cada variável dessa força – vigor, rapidez, habilidade, constância – pode ser observada, portanto caracterizada, apreciada, contabilizada e transmitida a quem é o agente particular dela. Assim afixada de maneira perfeitamente legível a toda série dos corpos singulares, a força de trabalho pode ser analisada em unidades individuais. Sob a divisão do processo de produção, ao mesmo tempo que ela, encontramos, no nascimento da grande indústria, a decomposição individualizante da força de trabalho; as repartições do espaço disciplinar muitas vezes efetuaram uma e outra.61” (Grifos acrescidos) Essa logística aperfeiçoou-se ao longo do tempo nas técnicas da Ciência da Administração. No Final do século XIX, o norte-americano Frederick Taylor (1856-1915), no livro Princípios de administração científica, traz os parâmetros do método científico da racionalização da produção. Esse método ficou conhecido como taylorismo, pelo que objetiva o aumento de produtividade com economia de tempo, supressão de gestos desnecessários no interior do processo produtivo e utilização máxima da máquina62. “Taylorismo”, segundo Druck, é assim compreendido: “O ‘taylorismo’ ou ‘administração científica do trabalho’ surge como uma nova cultura do trabalho na passagem do século XIX para o século XX nos Estados Unidos, nação que começava a despontar como potência mundial no que, efetivamente, se transformaria no pós-guerra. Período em que se consolida em padrãode acumulação capitalista sustentado no ‘industrialismo’ e na atuação monopolista dos capitais. Período em que o conhecimento científico se torna cada vez mais decisivo para desenvolver as diversa áreas da produção industrial (elétrica, química, telecomunicações, metalurgia, construção naval e outras). 61 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão; tradução: Raquel Ramalhete. 41 ed. Petrópolis, RJ : Vozes, 2013, p. 139-140. 62 ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; Maria Helena Pires Martins. Op. cit., p. 39. 32 Esse é o tempo em que os homens que vivem do trabalho precisam ser transformados ‘cientificamente’, a fim de que possam cumprir um papel-chave na base técnica e mecânica da produção industrial. Para alguns estudiosos, o taylorismo representa um tipo de mecanização sem a introdução da maquinaria; ou seja, trata-se de ‘subsumir o trabalho ao capital’, através da expropriação do conhecimento dos trabalhadores, o que pode ser viabilizado através do controle efetivo do capital sobre o trabalho, realizado na forma da ‘gerência científica’ e que tem como um dos fundamentos centrais a separação entre o trabalho manual e o trabalho intelectual. Na verdade, o taylorismo – enquanto prática gerencial do capital - é necessário para complementar, no plano da subjetividade, o papel desempenhado pela maquinaria, isto é, torna-se fundamental para consolidar a subsunção real do trabalho ao capital.63” Com Henry Ford (1863-1947), a divisão do trabalho foi intensificada, ao introduzir a linha de montagem na indústria automobilística, o que ficou conhecido como fordismo64. Para Druck, o fordismo pode ser assim entendido: “Assim, o fordismo – enquanto novo padrão de gestão do trabalho e da sociedade (ou do Estado) – sintetiza as novas condições históricas, constituídas pelas mudanças tecnológicas pelo novo modelo de industrialização caracterizado pela produção em massa, pelo consumo de massa (o que coloca a necessidade de um novo padrão de renda para garantir a ampliação do mercado), pela ‘integração’ e ‘inclusão’ dos trabalhadores. Tal inclusão, por sua vez, era obtida através da neutralização das resistências (e até mesmo da eliminação de uma parte da classe trabalhadora – os trabalhadores de ofício) e da ‘persuasão’, sustentada essencialmente na nova forma de remuneração e de benefícios.65” A partir das décadas de 1970 e 1980, com o avanço tecnológico, na esteira da automação avançada, da robótica, microeletrônica, aparecem novos padrões de produtividade. Passa-se a quebrar com a rigidez do fordismo, caracterizado pela linha de montagem e produção em série, e do taylorismo, centrado na produção em massa. Tal mudança começa a ser destacadamente implementada na fábrica de automóveis da Toyota, no Japão, ao ser criado novo método de gerenciamento conhecido como toyotismo66. Sobre a crise do modelo fordista e soerguimento do modelo japonês, Druck traz as seguintes considerações: “As diversas abordagens sobre o ‘modelo japonês’, ‘automação flexível’, ‘produção flexível’, ‘toyotização’, ‘just-in-time’ e outras denominações, embora apresentem conclusões e definições bastante diferentes, têm como elemento comum que, para discutir o modelo japonês, tem-se, necessariamente, que discutir a crise do fordismo, seu estágio, seu significado e implicações, em termos de rupturas e ou de continuidades.67” 63 DRUCK, Maria da Graça. Op. cit., p. 36. 64 ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; Maria Helena Pires Martins. Op. cit., p. 39. 65 DRUCK, Maria da Graça. Op. cit., p. 45. 66 ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; Maria Helena Pires Martins. Op. cit., p. 40. 67 DRUCK, Maria da Graça. Op. cit., p. 68. 33 Consolidada no mundo capitalista, a terceirização constituiu-se para a Administração de Empresas como importante fonte de estratégia, de organização e métodos da atividade empresarial, visto que se trata de um processo de gestão de uma técnica de organização empresarial.68 3.2.2 O efeito da globalização na flexibilização trabalhista A terceirização é incontestavelmente uma prática empresarial decorrente da globalização. As empresas buscam sua reestruturação para assimilarem os impactos da tecnologia e dos mercados mundiais. Essa onda de flexibilização deu-se, sobretudo, a partir da década de 70, como explica a professora portuguesa Maria do Rosário Palma Ramalho: “Na década de setenta do século passado e por razões ligadas à alteração dos sectores dominantes da Economia, às tendências de especialização das empresas e, ao mesmo tempo, de globalização das trocas econômicas, bem como por força dos avanços tecnológicos, este quadro empresarial de referência das normas laborais vai alterar-se. Efectivamente, a partir desta época, surgem, ao lado das grandes unidades produtivas do sector secundário, empresas com um perfil muito diverso, do sector terciário e, logo depois e por força da evolução tecnológica, empresas do já chamado sector quartenário da economia (o setor da informática). Por imperativos de competividade, estas empresas são mais pequenas e ágeis, concentram-se no core do seu negócio, recorrendo a serviços externos para as funções auxiliares (é a disseminação do out sourcing), e adoptam formas de organização interna mais flexíveis e menos verticalizadas.69” (Grifos nossos) Sobre a flexibilização da produção, as professoras de Filosofia Maria Lúcia de Arruda Aranha e Maria Helena Pires Martins, desvendam com objetividade e precisão a lógica que dita o processo de terceirização no sistema capitalista, in verbis: “Apesar da atuação mais participativa do trabalhador e da exigência de sua melhor qualificação - o que pressupõe a maior intelectualização do trabalho -, o sistema capitalista depende de uma imponderável ‘lógica do mercado’ para as decisões fundamentais sobre “o que fazer, quanto e quando fazer”, fatores que ainda cerceiam a autonomia do trabalhador. Além disso, como a flexibilização depende da demanda flutuante, algumas tarefas são encomendadas a empresas ‘terceiras’ 68 MARTINS, Sergio Pinto. Op. cit., p. 32. 69 RAMALHO, Maria do Rosário Palma. Tratado de Direito do Trabalho – Parte I – Dogmática Geral. Coimbra: Almedina, 2012, p. 66-67. 34 subcontratadas. Essa terceirização atomiza os empregados, antes unidos nos sindicatos, o que provocou seu enfraquecimento no final da década de 1980, repercutindo negativamente na capacidade de reivindicação de novos direitos e manutenção das conquistas realizadas. Os temores mais frequentes dessas nova geração de trabalhadores da era da automação são o desemprego e o excesso de trabalho decorrente do ‘enxugamento’ realizado pelas empresas em processo de ‘racionalização’ de atribuição das tarefas.70” (Grifos acrescidos) Maria da Graça Druck traz a seguinte ponderação sobre o fenômeno da globalização em seus múltiplos aspectos observados até então, especialmente a prática terceirizante: “Nas diversas abordagens sobre a globalização, encontra-se alguns aspectos comuns que podem ser considerados como elementos constitutivos do sistema capitalista, já apontados como tendência, por Marx, desde o século XIX. Em primeiro lugar, neste final de século, constata-se uma radicalização dos processos de concentração e centralização de capitais, o crescimento dos oligopólios; cada vez mais se intensificam as fusões e incorporações de empresas, assim como, simultaneamente, se difundem micro, pequenas e médias empresas, com a formação de redes de subcontratação e a terceirização – exemplos claros da dispersão de capitais.71” No início
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