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2�FXOWXUDO�GR�iQWKURSRV� H�DV�HVFRODV�DQWURSROyJLFDV 3URI�-DFL�5RFKD�*RQoDOYHV��'U� $QWURSRORJLD�&XOWXUDO 9ROXP H�� O cultural do ánthropos e as escolas antropológicas Seção 1– Escolas de antropologia: filhas de discussões abertas. Seção 2 – Métodos e técnicas sobre o cultural no ánthropos. Seção 3 – Desafios para a saúde cultural brasileira. Antropologia Cultural-2 Prof. Jaci Rocha Gonçalves, Dr. (Texto complementar para Unidade de Aprendizagem de Estudos Socioculturais) Cara/o estudante, Criar este subsídio complementar ao de seu estudo de Antropologia Cultural (AC) está significando vivenciar sentimentos de desafio e esperança. Desafio porque a AC é filha da Antropologia, a jovem ciência de menos de duzentos anos de idade. Nela, pela primeira vez, o humano acrescenta à reflexão, o momento científico da observação de si mesmo; e como cultural, assume o desafio de observar a cultura como constitutivo do humano. Na verdade, somos a única espécie a criar mil respostas diferentes para necessidades iguais. Assim, para saciar a fome, mil cardápios e economias; para conviver, criamos inúmeros sistemas políticos, para manter a sanidade, mil medicinas; para habitar e nos locomover, inúmeras formas de engenharias e tecnologias. A lista não acaba: criamos ritos variados para o nascer e o morrer. Mas em tudo, as diversidades culturais geram uma teia de coerência endocultural e ecossistêmica. Nisto nos temos descoberto como iguais: na capacidade de sermos diversos. Aí mora a esperança de deixarmos de confundir diferença, que é riqueza, com desigualdade que é fonte de desgraça e de sofrimentos. E já que fomos criados todos iguais na diferença, reside aí uma esperança para a cidadania. A Antropologia Cultural, como veremos, empreendeu com entusiasmo a tarefa de pesquisar a cultura como fenômeno humano e nos dar condições científicas de olhar o macro e o micro produzido pelo humano no seu real contexto de complexidade. Não há cultura ingênua, nem simplória. Quando remarmos pelos rios da cultura, vamos nos dar conta que para a AC todo detalhe conta. E o que nos provoca estranhamento nos ajuda a crescer porque nos observamos estranhos também para a alteridade. E o que julgávamos como inato e único, o descobrimos como cultural e nosso modo- de- ser como um jeito a mais entre outros jeitos possíveis de viver. Há, no entanto, uma preciosidade em cada jeito identitário: ele é irrepetível e tem fascínio próprio a ser oferecido – como pessoa e como povo. Você verá assim que a unidade e diversidade de cada cultura como objeto de análise da Antropologia Cultural, pode ser compreendida a partir de diversos enfoques. Inclusive este: as singularidades mostram este aspecto ontológico do humano que é ser diverso. Esse apoio didático tem ainda uma expectativa: de ser instrumento na sua formação como pessoa e profissional de olhar pluralista num momento ímpar de mundialidade. O distante é vizinho e no videogame nossos filhos brincam e interagem com meninos chineses,indianos, nas savanas africanas, indonésios, no nordeste,com um povo originário da Amazônia ou no Bexiga no centro da megalópole paulista. Assusta-nos, porém, imaginar um mundo de mesmice. Mas há muito o que fazer. Como veremos ao final deste LD, a primeira vez que nos reunimos para objetivamente tratarmos da questão do direito à diversidade cultural e diagnosticarmos situações crônicas de doenças culturais como xenofobia, preconceitos e fundamentalismos foi próximo ao 11 de setembro de 2001. Quem soube do grande encontro de Durban, na África do Sul, quando discutimos em foro internacional sobre diversidade pela primeira vez? Mas os remédios vão aparecendo nos movimentos de economias solidárias, jurisprudência de sabedorias até então desconhecidas; formas de lidar com o ecossistema onde é surpreendente a sintonia fina de povos originários. Neste contexto é que deixamos esta expectativa da AC cumprir sua missão científica de não deixar romper a união entre as ciências da vida, as ciências exatas e as ciências humanas. Mais do que a procura de origens, ela foca a história da convivência com o diferente. Um exercício que pode ajudar a humanidade a superar a belicosidade crônica das guerras e aprender a irenelogia, ciência da paz. Porque somos todos alunos do cultural. Somos todos professores tb. Daí sua interação através dos trabalhos de troca cultural ser indispensável; já que estamos no Brasil de muitos brasis e no mundo virtual onde as fronteiras postiças da geopolítica cedem a cada dia o espaço para a troca de identidades culturais. O texto quer ser didático e, ao mesmo tempo, inacabado como a dinâmica cultural. Nisto contará com você. Por isto, convidamos você a iniciar essa leitura procurando estabelecer relações com suas experiências culturais trocando sabedorias neste imenso espaço virtual. Bom estudo! Professor Jaci Rocha Gonçalves, Dr. O cultural do ánthropos e as escolas antropológicas Para início de estudo Vamos agora aprofundar os aspectos do cultural no ánthropos como um constitutivo próprio, só do humano. Essa percepção científica do cultural no ánthropos vai se delineando como o objeto específico da Antropologia Cultural. Seus pais fundadores por caminhos arriscados e exigentes vão amadurecendo processualmente esse objeto e um método sempre mais coerente e adequado possível. Seção 1 - Escolas de antropologia: filhas de discussões abertas O cultural no humano: Conceitos e filologia de cultura. Ser cultural é o natural do humano. Por isso o estudo das relações características consigo, o outro e o mundo, exige aqui o foco de nossos olhares para os conceitos do cultural no ánthropos “pois se há algo natural nessa espécie particular que é a espécie humana, é sua aptidão à variação cultural.” (LÉVI-STRAUSS apud LAPLANTINE, 2005, p. 9) Por isso, é preciso aprofundar o difícil conceito de cultura, difícil, por isso mesmo, essencial como explica Eagleton (2005, p. 9) “cultura é considerada uma das duas ou três palavras mais complexas de nossa língua”. Achar uma definição única é algo impossível, pois sua própria diversidade de interação, representação e interpretação, dificultam e pluralizam seu conceito. Mais uma vez, com apoio da filologia, (BOSI, 2015), podemos ver como a palavra cultura se formou em nossa língua. Vem do verbo latino colere conjugado no presente do indicativo colo (eu cultivo a terra) e no particípio passado cultus (aquilo que foi cultivado e tornado culto no rito religioso). Do particípio futuro culturus se extraem os adjetivos culturus, a, um (o que ainda vai ser cultivado). Três palavras que na língua latina amarram o presente, passado e futuro. Portanto, culturus tem raiz em colo (presente) e em cultus (passado). O alicerce do hoje e da prospecção para o amanhã é o ontem cultus = o que já fora plantado por gerações sucessivas de lavradores. Culto traz a idéia de cumulatividade, de trabalho sistemático, de qualidade adquirida. É sinal de que a sociedade que produziu o seu alimento já tem memória. Daí o espaço do culto religioso como culto dos mortos mostrar-se na primeira de religião porque trabalha essa lembrança, chamamento ou esconjuro dos que já partiram. O culto dos mortos surgiu antes do cultivo da terra. No mundo arcaico, tudo é fundamentalmente religião, vínculo do presente com o outrora-tornado-agora, laço da comunidade com as forças que a criaram em outro tempoe que sustentam a sua identidade. A. NIJK sociólogo clássico da secularização, afirma (in GAZZONI, 1994, p. 40): A cultura se originou no culto. O rito deve ser considerado como o núcleo estabilizador, no qual o material caótico de potências indiferenciadas é resumido seletivamente e estruturado, para depois desdobrar-se nos modelos ordenados de uma ordem sociocultural. O rito contém em gérmen uma cultura; graças ao rito, o coletivo se torna grupo, o rito cria gradualmente ‘um mundo’. Ser humano, ou melhor, tornar-se humano, quer dizer ser religioso. As relações, portanto, entre ética religiosa e cultura são inseparáveis, pois: “A religião é a substância da cultura, enquanto a cultura é a forma da religião”. (TILLICH in GAZZONI, 1994, p. 42). O Culto religioso reatualiza as origens e os ancestrais para prover a luta pelos meios materiais de vida. Muitos processos de colonização eram tidos como desígnios de Deus = as motivações dos colonizadores portugueses inspiravam-se no projeto de dilatar a Fé ao lado de dilatar o Império. Antropologia biológica: fruto das ciências naturais Começamos pelo nascimento científico da Antropologia Cultural a partir da Antropologia biológica ou física. A Antropologia nasce no contexto daquela recente mundialidade cujo comportamento no encontro com o diferente cultural oscilou entre o fascínio e a recusa. Essa mundialidade, em grande parte determinada pelas invenções da prensa e das novas tecnologias de navegação, compara-se à revolução provocada hoje pelo descobrimento das novas navegações da internet. 400 anos de modernidade: por um ánthropos à imagem e semelhança do europeu Passados 400 anos desde aqueles inícios das navegações que determinaram a Idade Moderna, a atenção se concentra nas possíveis aplicações da descoberta científica da natureza. Ao mesmo tempo, o europeu é movido pelo entusiasmo, está iluminado com o sentimento de emancipação expresso no clássico slogan Cogito, ergo,sum! (Eu penso, então, existo!), retirado da obra o Discurso do Método (1637) do filósofo francês René Déscartes. Passa-se a viver um contexto de salto qualitativo: o humano revoluciona seu olhar sobre si mesmo como a percepção do ánthropos grego na Antiguidade. Ocorre nova experiência de possibilidade de superação da dependência das autoridades divinas (reis e sacerdotes) pela afirmação da racionalidade e da consciência autônoma cada vez mais ao alcance de todos. É a época conhecida como Iluminismo. No entanto, junto a essa perspectiva de emancipação histórica das autoridades, o homem europeu deve elaborar a visão do humano a partir da experiência do encontro/desencontro com mil povos, os mais diferentes, com os quais interage desde os inícios das grandes navegações. Os Iluministas pensam que os homens são homens sob quaisquer disfarces e contra qualquer pano de fundo, independente da moda, dos costumes locais, das diferenças ambientais. Mas como explicar essa uniformidade diante da constatação da enorme e ampla variedade de humanos com crenças e valores, costumes e instituições, tecnologias e medicinas, enfim, de saberes e fazeres? Tais diversidades ficam difíceis de serem explicadas sob o paradigma das ciências da natureza. A teoria da progressividade: a uniformidade progressiva do humano e a sua diversidade constitutiva De fato, a partir de Francis Bacon e da orientação de Isaac Newton, as ciências da natureza entendiam o humano como ser constituído por uma só peça. O humano partilhava de uma uniformidade geral em sua composição. Era natural, sob esse olhar do cidadão europeu, acreditar que todos os povos passariam obrigatoriamente pelas mesmas etapas de evolução e que existiria um único caminho “natural” a ser percorrido por todas as culturas. As diferenças culturais eram vistas, então, como consequência do atraso em que se encontravam os povos distantes da Europa. “Essa idéia defendia a existência de uma história universal para um homem universal” (MORTARI, 2002, p28). Essa visão ficou conhecida como teoria da progressividade. A ideia de cultura nasce, então, nesse contexto da necessidade de conhecimento e, de certa forma, nasce como uma interpretação que legitima uma postura de dominação política dos europeus. Sem o pensar (penso, logo, existo!) para os Iluminados, o humano não é humano. As dimensões locais e regionais que apresentavam diferenças consistiam em meros acréscimos, “até mesmo distorções, sobrepondo e obscurecendo o que é verdadeiramente humano – o constante, o geral, o universal – no humano”, como conclui Clifford Geertz, da recente Escola Antropológica Interpretativa (GEERTZ, 1989, p. 26). Foi precisamente a necessidade de se posicionar adequadamente diante de tal diversidade constitutiva do humano, ou seja, do cultural no ánthropos que se elabora o conceito de cultura num arco de tempo de cerca de 200 anos até o declínio da perspectiva iluminista, refém da visão de uniformidade progressiva do humano. Diante dessa ideia, desenvolve-se outro conceito, que busca maior coerência científica. Já no final do século XVIII começa a se constituir um saber científico (ou pretensamente científico), que toma o homem como objeto específico de conhecimento; ideia inspirada na visão das ciências da natureza nos centros de estudos europeus. Laplantine (2005) observa que, a partir deste século, começa-se a pensar em aplicar ao humano os métodos até então utilizados na área da biologia, usufruindo de um ambiente de interesse geral pela evolução, no contexto da revolução darwiniana. Esse parece ser, então, o ponto central de nosso estudo sobre o cultural do ánthropos. Escola Evolucionista Social: primeira reflexão científica sobre o cultural no ánthropos Assim, a Antropologia Cultural nasce como Antropologia Biológica ou Física estudando cientificamente o humano. A Escola Evolucionista Social, da Inglaterra, e a Escola Sociológica Francesa, na segunda metade do século XIX, sistematizam suas ideias diante da publicação de duas obras revolucionárias de Charles Darwin: A Origem das Espécies (1859) e A Descendência do Homem (1871). Influenciados ainda pela visão iluminista, esses primeiros antropólogos da Escola Evolucionista Social, como ficou conhecida, pensavam que a sociedade europeia se encontrasse no topo da escala da evolução social. Desta forma, os demais povos descobertos há 400 anos eram vistos como povos primitivos. Na linha teórica da progressividade, como visto, essas sociedades caminhariam para formas ditas mais complexas, como as da sociedade europeia e norte-americana. Laplantine (2005) mostra que, nesta primeira reflexão científica, a Antropologia se atribui um objeto empírico autônomo com dualidade radical entre o observado e o observador, como pedia o empirismo inglês, marcado pela distância geográfica. Essas sociedades ditas primitivas são vistas como sociedades longínquas, de dimensões restritas, de poucos contatos com os grupos vizinhos, com tecnologia pouco desenvolvida. São qualificadas de simples, no sentido de simplórias e avaliadas numa situação de laboratório pela organização complexa das sociedades euro-ocidentais. No quadro abaixo em que mais uma vez adaptamos do antropólogo Vagner Gonçalves da Silva, se resume alguns componentes deste primeiro laboratório da nascente ciência antropológica na Escola do Evolucionismo Social de matriz inglesa, berço das ciências da natureza. Escola/Paradigma Evolucionismo Social Período SéculoXIX Características Sistematização do conhecimento acumulado sobre os “povos primitivos”. Predomínio do trabalho de gabinete. Método comparativo das variações culturais. Método Comparativo ou Etnológico. Temas e Conceitos Unidade psíquica do homem. Evolução das sociedades das mais “primitivas” para as mais “civilizadas”. Busca das origens (Perspectiva diacrônica). Estudos de Parentesco /Religião /Organização Social. Direitos do Matriarcado. Substituição gradativa do conceito de raça pelo de cultura. Primeira definição e conceito de cultura. Alguns Representantes e obras de referência Maine (“Ancient Law” - 1861). Herbert Spencer (“Princípios de Biologia” - 1864). Edward Burnet Tylor (“A Cultura Primitiva” - 1871). Lewis Henry Morgan (“A Sociedade Antiga” - 1877). James Frazer (“O Ramo de Ouro” - 1890). Johann Jakob Bachofen (1815 – 1887). (“Mother Right: an investigation of the religious and juridical character of matriarchy in the Ancient World” - 1861) e Adolf Bastian (1826-1905) Controversen in der Ethnologie, 1893. Quadro 2.1- Escola do Evolucionismo Social Fonte: SILVA, Vagner Gonçalves da. A Antropologia acaba, portanto, de atribuir-se um objeto que lhe é próprio: o estudo das populações que não pertencem à civilização ocidental. A crítica posterior sobre esse primeiro estágio é sobre esta acentuação progressionista que eleva o modo de ser do povo europeu sobre as outras sociedades. Por outro lado, essa escola traz o valor científico da ideia de seleção adaptativa em vez da mudança unilinear. De fato, salienta Foley (1990), obras recentes sobre a história do darwinismo têm revelado que, ao mesmo tempo em que muitos dos seguidores de Darwin se mostravam ansiosos por encontrar um elemento de progresso, ele próprio estava consciente de não ser esse o caso, e que seus argumentos fortemente seletivistas prognosticavam a diversidade adaptativa em vez da mudança unilinear. Humanos: filhos da monogenia ou poligenia? Por não ter apresentado nenhum progresso, a maioria dos evolucionistas do final do século XIX e início do século XX abandonou a teoria da seleção, ao mesmo tempo em que manteve uma perspectiva evolucionista. No entanto, o conceito evolucionista - descendência com modificação - essencial em Darwin, fornecia de fato uma solução simples para um problema complexo: o da monogenia ou poligenia. A descoberta de diversos povos nas Américas e em outras partes do mundo levantara a questão, para os cientistas pré-darwinianos, de esses povos todos terem uma única origem ou criação ou serem o produto de vários atos diferentes de criação. A monogenia implicava uma unidade de todos os seres humanos, a poligenia abria a possibilidade de algumas formas humanas não fazerem realmente parte da criação especificamente humana ou da história bíblica. A fundamentação evolucionista, independente do mecanismo de mudança, significou que os antropólogos estavam capacitados a demonstrar que todos os seres humanos descendiam de um único ancestral comum, e de que todos eles pertenciam a uma única espécie. A interfertilidade de todos os seres humanos O trabalho biológico posterior demonstrou ao Evolucionismo biológico a interfertilidade de todos os seres humanos. Assim, as abordagens biológicas da Antropologia abriram caminho para a revisão de que a humanidade é unificada, unida por uma herança biológica, imensamente maior do que qualquer uma das diferenças, o que invalida inclusive a suposta diferença entre etnias, ou erroneamente, raças. Já que existe apenas uma raça humana. A aceitação da unidade da espécie humana é hoje um consenso fundamental, formando a base de muitas ideias que vão além do estritamente biológico. Esta unidade de herança biológica comum, porém, nada tem a ver com o conceito de uniformidade cultural como pensavam os iluministas, como observado acima nessa seção de nosso estudo. Isso prejudicou enormemente a verdade sobre nosso ser cuja unidade constitutiva é ser diverso. A pouca utilidade do conceito de raça para a convivência do ánthropos É nessa percepção que chegaram os antropólogos biológicos desde o início do século XX: explicar as características de nossa diversidade biológica junto ao conceito de herança biológica comum. Num primeiro momento, aspectos como a diversidade de aparência dos seres humanos, particularmente a cor da pele e a forma do rosto, deram crédito à ideia de que as populações humanas podiam ser divididas em unidades distintas, representando ou exemplares geográficos isolados ou estágios de evolução. Esses aspectos embasaram a análise da variação humana em termos de raça. Assim, nos séculos XIX e início do século XX, o conceito de raça foi central no estudo da diversidade biológica humana. A maior parte dos antropólogos assumiu o ponto de vista de que as raças humanas apresentavam divisões antigas dentro da humanidade, que podiam ser encaradas também como estágios de desenvolvimento, e de que a raça biológica estava ligada a outras características sociais e culturais. As raças forneceram uma categorização dos seres humanos tanto horizontal (ou seja, geográfica) quanto vertical (ou seja, através do tempo). Até a Segunda Guerra Mundial, raça foi conceito capital no estudo da biologia humana, a partir de uma perspectiva antropológica evolucionista. Mais ainda, o conceito de raça foi usado também como explicação para as diferenças em termos de padrões de desenvolvimento. A antropologia biológica ou física conferiu um fundamento biológico a ideias mal difundidas a respeito de raça, e serviu de base à má aplicação das teorias da ciência da eugenia para sustentar políticas de criminalização, como o nazi-fascismo e a ideologia de raça superior ariana. O estrago foi imenso quando se contabilizam as violências desastrosas das guerras mundiais e dos 150 focos permanentes de guerra fria que persistem até o momento. No entanto, importa lembrar que as críticas de antropólogos biologistas e outros já existiam antes da Segunda Guerra Mundial. É o caso de biólogos como A.C. Haddon e Julian Huxley. Assim, na antropologia biológica recente, a ideia de raça foi completamente rejeitada como noção biológica e analítica de alguma utilidade. Parte do motivo foi, sem dúvida, uma reação ao modo como a biologia foi usada para justificar as ações políticas acima lembradas e outras. Igualmente importante foi o desenvolvimento do Neo-darwinismo, que demonstrou não ter base biológica para tratar as variações dentro de uma espécie como estágios evolutivos ou como categorias distintas. Além disso, o crescente estudo da genética, em lugar da variação física, revelou que a variação geográfica era contínua e extremamente complexa, demonstrando assim que aspectos seletivos, tais como a pigmentação, não forneciam critérios para se diferenciar os humanos. Como resultado, de todo o processo deste viés científico percorrido pelos antropólogos biologistas ou físicos, Foley (1990) lembra que trabalhos recentes de antropologia biológica têm mostrado que raça não é um conceito biológico útil. Os antropólogos biológicos voltaram-se, em vez disso, para o problema de elucidar a base funcional e adaptativa (doença, clima, ecologia) da variação humana. Evolução: da progressividade à fonte de diversidade Nesse percurso, é preciso lembrar ainda que o caminho da antropologia biológica ou física tem se beneficiado dos estudos da genética a partir, sobretudo, dos anos 50 do século XX como acenamos na primeira unidade. Nesse sentido, Foley (1990) salienta que o desenvolvimento da genéticamoderna tem revelado, acima de tudo, que a espécie humana é extremamente jovem. Que todos os seres humanos modernos têm um ancestral recente e comum e, portanto, que nenhum padrão geográfico que se possa encontrar significa uma divisão profunda entre eles, mas sim o produto recente e superficial de migração e de adaptação local. Os especialistas em evolução humana também têm documentado a antigüidade (mais de cinco milhões de anos) e a complexidade das diversas linhagens que levaram ao surgimento dos seres humanos modernos nos últimos 100 mil anos. A contribuição da antropologia às ideias do século XX, assim, retoma a sua preocupação original com a evolução, mas dentro de uma ênfase bastante diferente. A evolução não mostra uma escalada de progresso, mas uma fonte de diversidade. Por isso é que os antropólogos biológicos ou físicos vêm trabalhando cada vez mais com os problemas de doença e nutrição no Terceiro Mundo, por exemplo. Nessa perspectiva de trabalho, eles fornecem especialmente uma compreensão maior dos aspectos populacionais que revestem os problemas ecológicos com os quais se defrontam vastos setores da população humana. O recentíssimo mapeamento do genoma em 1999 veio como presente à humanidade na virada do milênio. Suas constatações sobre a unidade do humano nesse seu jeito próprio em ser diverso aparece como constitutivo do ánthropos, e assim, a partir de suas observações científicas, subsidiam novas reflexões. Observe como a Antropologia biológica, com o mapeamento do genoma humano, traz novas fissuras para a reflexão antropológica nas ponderações de Frei Betto e outros quando descrevem o percurso do humano pelos rios da antropologia em cujas águas estamos remando com bússola e astrolábio a bordo de nossa caravela da Modernidade. Você encontra esse texto no link http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/freibetto/betto_serhumano.html Edmund Tylor, a Escola Evolucionista e o conceito de cultura A Escola do Evolucionismo Social, além de ser o primeiro berço científico da Antropologia, é quem reflete sobre as etnografias anteriores e, sobretudo, aplica ao humano o método das ciências da natureza, como acenado acima. É nessa escola de pioneiros que Edward Burnet Tylor, em seu livro clássico “A Cultura Primitiva”, de 1871, faz uma primeira definição sobre cultura como [...] este fenômeno complexo, que inclui conhecimento, fé, arte, moral, lei, costume e outras capacidades e hábitos, adquiridos pelo homem enquanto membro de uma sociedade (TYLOR, 1871, vol. I, 1). A escola de Tylor já mostra aí duas características fundamentais no conceito de cultura, aceitas hoje com unanimidade e que foram quebrando a visão unilateral europeia da teoria da progressividade que era vigente em seu tempo: 1) por um lado, cultura inclui uma totalidade, um conjunto de elaborações, de respostas diferentes a necessidades humanas iguais e, 2) por outro lado, que há uma complexidade dinâmica em cada elaboração cultural, ou seja, não há culturas simplórias. De fato, há sempre uma demanda de inteligência articulando elementos complexos como a interação com o ecossistema sempre tão variado em cada realidade de tempos e de espaços. Escola Sociológica Francesa: reações aos evolucionistas Alguns conceitos diferentes dos de Tylor e que descrevemos acima na Escola Evolucionista de influência inglesa tiveram fortes reações da Escola Sociológica na vizinha França, cenário do Movimento Iluminista. Aí nascera a Sociologia como ciência que fotografa os constitutivos macros de uma sociedade, seus sistemas e organizações. Vejamos, a seguir, alguns dos autores mais importantes desta escola. Émile Durkheim: Antropologia Cultural, filha da Sociologia Émile Durkheim é um dos pais da Sociologia francesa e também do Brasil enquanto inspirador dos professores que na USP implantaram a Sociologia no Brasil. É em seu grupo francês de Sociologia que se produzem as maiores contribuições para o fortalecimento de um novo olhar científico sobre o cultural no humano: o olhar antropológico-cultural. Além das críticas à escola evolucionista, esses pensadores da Escola Sociológica francesa fazem outra crítica, desta vez aos próprios sociólogos. Eles apontam a necessidade de uma Antropologia sociocultural. Mas, se de um lado é a Escola Sociológica Francesa que reúne os primeiros críticos ao pensar evolucionista da Antropologia biológica ou física, de outro, eles se beneficiam da jovem ciência da sociologia, como bem o mostra este outro quadro que adaptamos do antropólogo Vagner Gonçalves da Silva. Quadro 2.2- Escola Sociológica Francesa Fonte: SILVA, Vagner Gonçalves da. Escola/Paradigma Escola Sociológica Francesa Período Século XIX Características Definição dos fenômenos sociais como objetos de investigação sócio-antropológica. Definição das regras do método sociológico. Método genealógico – desenvolve o estudo do parentesco e suas implicações sociais. Interesse e pesquisa de campo de sociedades distantes. Temas e conceitos Representações coletivas. Solidariedade orgânica e mecânica. Formas primitivas de classificação (totemismo) e teoria do conhecimento. Busca pelo fato social total (biológico + psicológico + sociológico). A troca e a reciprocidade como fundamento da vida social (dar, receber, retribuir). Trabalhar minúcias. Alguns representantes e obras de referência Émile Durkheim: “Regras do método sociológico”- 1895; “Algumas formas primitivas de classificação” - c/ Marcel Mauss - 1901; “As formas elementares da vida religiosa” - 1912. Marcel Mauss: “Esboço de uma teoria geral da magia” - c/ Henri Hubert - 1902-1903; “Ensaio sobre a dádiva” - 1923-1924; “Uma categoria do espírito humano: a noção de pessoa, a noção de eu”- 1938); “Manual de Etnografia” - 1930. Tradicionalmente, os antropólogos sociais concentram-se no estudo das sociedades não- ocidentais. Não se fixam no gabinete e no laboratório. Viajam em busca do humano não-europeu, do ánthropos geograficamente distante. Apesar de certo interesse pela aplicação de seus métodos e conceitos às sociedades européias, o que sempre se considerou entre eles é que a experiência social humana é permeada por uma série de variações. O antropólogo Claude Lévi-Strauss (1993) costumava destacar que foi Émile Durkheim, no final do século XIX, o primeiro a introduzir nas ciências do homem a exigência de especificidades, que permitiriam uma renovação na produção de estudos sociais; o que, mais tarde, passaria a ser assumido pelos seguidores de Durkheim. Assim, para toda forma de pensamento e atividade humana, não se pode questionar a natureza e a origem dos fenômenos sem antes tê-los identificado e analisado, e também descoberto em que medida as relações que os unem bastam para explicá-los. Lévi-Strauss, mais tarde, diz que “é impossível discutir sobre um objeto, reconstruir a história que lhe deu origem, sem antes saber o que ele é; resumindo: sem ter esgotado o inventário de suas determinações internas” (LÉVI-STRAUSS,1993, p. 14). Desta forma, a Antropologia se diferencia da Sociologia, pois: Em sua ótica específica, à Antropologia importa focar o minucioso, valorizar o micro. À Sociologia, interessa o macrossocial. Para esses pesquisadores socioculturais e seus seguidores, cada população teria sua própria lógica cultural, a ser percebida a partir da pesquisa etnográfica, minuciosa. Marcel Mauss, discípulo e sobrinho de Durkheim: a importância do minucioso Dentre os estudiosos inspirados pela Escola Sociológica Francesa sob a liderançade Durkheim, Paul Mercier (2000, p. 84) aponta o exemplo de Marcel Mauss, discípulo e sobrinho de Émile Durkheim, como o principal inspirador da atual antropologia de campo com sua obra publicada na década de 1930, o Manual de Etnografia. Mauss recusava sistematizações e sua obra teve grande influência entre sociólogos, psicólogos e historiadores. Ele precavia-se de construções sintéticas muito ambiciosas e contra qualquer teoria muito rígida que deixasse escapar o essencial da realidade social e cultural. Mauss procurou rejeitar também as interpretações generalistas em sua etnologia, aquele segundo passo do método antropológico (etnografia, etnologia e antropologia cultural) explicado por Lévi-Strauss que você estudou no vol. I, lembra-se? Outra preocupação concreta de Marcel Mauss é com a abordagem pluralista, que insistia sobre a importância das especificidades das culturas e das sociedades, ao mesmo tempo em que se preocupava em definir realidades socioculturais como conjuntos profundamente integrados, estudando as relações entre todos os elementos que compõem cada um desses conjuntos. Sempre foi muito cauteloso quando fazia a etnologia, ou seja, a dedução de lei na etapa final de pesquisa, conforme Mercier (2000). Aprofundando essa visão socioculturalista das escolas francesas filhas dos seguidores de Durkheim, Mauss e, mais recentemente, do estruturalismo com Lévi-Strauss, Foley (1995) confirma esse acento na ótica etnográfica, cujo método inclui o inventário das especificidades de cada povo. Confirma, ainda, que, para Mauss, é possível observar e anotar de forma sistemática o repertório de respostas de cada povo na elaboração de suas respostas diferentes a necessidades iguais entre os humanos. Foley (1995) lembra o exemplo das sociedades originárias australianas dado por Marcel Mauss como caso das sociedades não europeias que, apesar de economicamente simples, possuíam alguns dos sistemas de parentesco e cosmologias mais complexos de que se tem conhecimento entre os seres humanos. Por sua vez, Marcos Lanna afirma, ao analisar a obra Ensaio sobre a dádiva (1923- 1924), de Marcel Mauss, que o autor aprofunda uma postura crítica em relação à Filosofia, adotando a etnografia e abrindo-se para as sociedades não-ocidentais, assumindo cada vez mais a comparação como um método de análise. Para Lanna, Mauss interessava-se pelas manifestações dos fenômenos humanos em qualquer tempo ou espaço do planeta, e sua obra aborda uma “variedade vertiginosa de temas” (LANNA, 2000). Mauss demonstra, no Ensaio sobre a dádiva, que “toda representação é relação – isto é, funda-se sobre a união de uma dualidade de contrários” (LANNA, 2000, p. 175). O argumento central desta obra é de que a dádiva produz alianças, tanto matrimoniais como políticas (trocas entre chefes ou diferentes camadas sociais), religiosas (como nos sacrifícios, entendidos como um modo de relacionamento com os deuses), econômicas, jurídicas e diplomáticas (incluindo-se aqui as relações pessoais de hospitalidade). Exemplo brasileiro semelhante é o cunhadismo, apontado pelo antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro (1995). O cunhadismo, semelhante ao fenômeno observado por Mauss, é a instituição social do milenar uso indígena de incorporar estranhos à sua comunidade ameríndia e no Brasil pré-cabraliano. Consistia em lhes dar uma moça (kunhá) indígena como esposa. Assim que ele a assumisse, estabelecia, automaticamente, mil laços que o aparentavam com todos os membros do grupo. Isso se alcançava graças ao sistema de parentesco classificatório dos indígenas, que relaciona, uns com os outros, todos os membros de um povo. Assim é que, aceitando a moça (kunhá), o estranho passava a ter nela sua temericó e, em todos os seus parentes da geração dos pais, outros tantos pais ou sogros. O mesmo ocorria em sua própria geração, em que todos passavam a ser seus irmãos ou cunhados. Na geração inferior eram todos seus filhos ou genros. Nesse caso, esses termos de consangüinidade ou de afinidade, passavam a classificar todo o grupo como pessoas incestuosas. Ao substituir os conceitos evolucionistas por conceitos funcionais, ficou claro que as sociedades não-européias não eram tentativas primitivas de organização econômica e estrutura social, mas funcionavam muito bem como sistemas integrados em formações sociais e ambientais particulares. Embora muitos dogmas do darwinismo tenham sido abandonados entre os antropólogos das escolas francesas foi-se fortalecendo a ideia de que a variedade da organização social e econômica humana deveria ser encarada em termos de circunstâncias ecológicas e tradições culturais específicas, assim como reações alternativas a condições singulares. Essa noção de diversidade de organizações coerentes, de variedade organizada, inteligente, torna-se uma descoberta sempre mais clara. Ainda nas escolas francesas: os olhares do sociológico macro e do antropológico-cultural É um fato que o olhar antropológico-cultural passa a ser um marco para constituir um aspecto peculiar de nossa ciência em relação ao olhar sociológico. Além de desenhar esse específico da antropologia, essa ideia conduziu ao abandono das noções de hierarquia evolucionista entre as sociedades humanas. Em seu lugar, passou a existir uma sensibilidade maior para tradições culturais independentes e com suas estratégias sociais alternativas, originais. Isso teve consequências práticas nas atitudes a respeito do desenvolvimento, resultando em menos disposição para se impor a mudança só pela mudança. Um exemplo de resultado estrutural foi a atenção para com os perigos da mudança econômica quando independente de considerações sobre os contextos culturais. A mesma ideia revolucionou outros campos essenciais na vida dos povos como as opiniões a respeito da estética e da arte, o que se tornou patente no intercâmbio de ícones entre a arte ocidental e outras formas artísticas. Assim, os antropólogos socioculturais que se foram firmando na Escola Sociológica Francesa tinham clareza que a sociedade ocidental não representava um padrão comparativo pelo qual outras culturas devessem ser avaliadas. Eles já consideravam como fundamento, no fenômeno social, o componente das variações culturais. Desta forma, eles também fornecem um quadro nitidamente comparativo para os antropólogos biologistas evoluírem em sua concepção. Os antropólogos socioculturais têm a seu favor já neste momento outro importante componente crítico: o surgimento de críticas feministas. Essas críticas exigiam precaução e rejeição com o uso da palavra homem para designar a espécie humana como um todo - termo esse usado pelos evolucionistas. É como se fosse exigida aquela visão filológica sobre o conceito de ánthropos que já estudamos, diferenciando o específico do feminino e masculino e realçando constitutivos comuns de seres que se desenvolvem, crescem, geram interações, reagem a atrofias, etc. Apesar de ser possível encarar a palavra homem como uma referência abrangente da espécie humana como um todo, isso serve para lembrar que a maior parte da reconstrução da evolução e da diversidade dos seres humanos vem sendo historicamente encarada a partir de uma perspectiva predominantemente masculina. Como perspectiva de fundo, há uma demanda que se impõe à antropologia cultural mesmo diante da sociologia, das ciências humanas e ciências da natureza. Afinal, o que existe de ímpar ou predominante nas investigações dessas ciências e que pertencia como objeto próprio, peculiar da nossa ciência antropológico-cultural nascente? Para esses cientistas primeiros antropólogos,o aspecto sociológico constitui todos os seres vivos, mas o cultural é percebido como exclusivo do ánthropos. À nossa ciência cabe se interessar pelo cultural como específico do humano. A Escola Funcionalista: visão de totalidade e o funcionamento por sistemas observados Voltamos agora ao outro lado do Canal da Mancha, na Inglaterra, berço das ciências da natureza nos tempos do Empirismo. Os pensadores ingleses acentuam outra visão que se contrapõe ao olhar francês, embora mantendo o acento no macrossocial. É o antropólogo polonês, naturalizado inglês, Bronislaw Malinowski (1884-1942) quem vai se sobressair nessa ótica britânica do estudo da organização dos sistemas sociais, que vem a receber o nome de Escola Funcionalista. Ela vai manter o método de etnografia clássica de estudo sistemático, a monografia, e vai afirmar a importância e ênfase do trabalho de campo com a observação participante na pesquisa antropológico- cultural. De um lado, os antropólogos desta escola valorizam a sistematização do conhecimento acumulado sobre uma cultura; de outro, fortalecem o perfil do estudioso que vai a campo. Emerge assim o método funcionalista, que desenvolve o estudo das culturas a partir de sua funcionalidade dentro de um universo cultural mais amplo. Assim, esses cientistas do ánthropos se desalojam: enfrentam os mares e vão residir e conviver com povos distantes. Junto desses povos, não querem olhar por atacado, pelo macrossocial, próprio da sociologia Durkheimiana. É o ver britânico contribuindo com nossa ciência antropológica que engatinha e tenta firmar seus pés. Os estudiosos do método funcionalista insistem sobre a indispensável presença local do antropólogo. Em todos os escritos clássicos dessa escola você pode adquirir chaves para atuação em campo dialogando com antropólogos que souberam ser pacientes e corajosamente etnógrafos e etnólogos em suas verdadeiras aventuras na convivência com o ánthropos distante do território europeu. Escola/Paradigma Escola Funcionalista Período Século XX - anos 20 Características Modelo de etnografia clássica (Monografia). Ênfase no trabalho de campo (Observação participante). Sistematização do conhecimento acumulado sobre uma cultura. Método Funcionalista – desenvolve o estudo das culturas a partir de sua funcionalidade dentro de um universo cultural mais amplo. Temas e conceitos Cultura como totalidade. Interesse pelas Instituições e suas Funções para a manutenção da totalidade cultural. Ênfase na Sincronia x Diacronia. Síntese integrada. Unidade na diversidade. Alguns representantes e obras de referência Bronislaw Malinowski (“Argonautas do Pacífico Ocidental” - 1922). Radcliffe Brown (“Estrutura e função na sociedade primitiva” - 1952; e “Sistemas Políticos Africanos de Parentesco e Casamento”, org. c/ Daryll Forde - 1950). Evans-Pritchard (“Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande” - 1937; “Os Nuer” - 1940). Raymond Firth (“Nós, os Tikopia” - 1936; “Elementos de organização social - 1951). Max Glukman (“Ordem e rebelião na África tribal”- 1963). Victor Turner (“Ruptura e continuidade em uma sociedade africana” - 1957; “O processo ritual” - 1969). Edmund Leach - (“Sistemas políticos da Alta Birmânia” - 1954). Quadro 2.3- Escola Funcionalista Fonte: SILVA, Vagner Gonçalves da. Malinowski (1884-1942) dominou incontestavelmente a cena antropológica de 1922, ano de publicação de sua primeira obra, Os Argonautas do Pacífico Ocidental, até sua morte, em 1942. Se não foi o primeiro a conduzir cientificamente uma experiência etnográfica, isto é, em primeiro lugar, a viver com as populações que estudava e recolher materiais de seus idiomas, radicalizou essa compreensão por dentro, e para isso, procurou romper ao máximo os contatos com o mundo europeu. Segundo Laplantine (2005, p. 79), ninguém antes dele tinha se esforçado em penetrar tanto por esse viés de compreensão do outro, a partir da mentalidade do outro, como ele fez no decorrer de duas estadias sucessivas nas ilhas Trobriand, no Pacífico Ocidental. Malinoviski representa, pois, essa postura cientificamente rigorosa em arriscar-se a compreender de dentro, por uma verdadeira busca de despersonalização, o que sentem os homens e as mulheres que pertencem a uma cultura que não é nossa. O outro pai da ciência antropológica é Franz Boas, como veremos adiante, que precedeu Malinoviski nas viagens. Boas seguia outro método procurando estabelecer repertórios exaustivos. Muitos de seus seguidores nos Estados Unidos (como Kroeber e Murdock) procuraram também definir correlações entre o maior número possível de variáveis colhidas in loco. Malinowski considera esse trabalho um despropósito. Convém, pelo contrário, segundo ele, mostrar que a partir de um único costume, ou mesmo de um único objeto (por exemplo, a canoa trobriandesa) aparentemente muito simples, ser possível perceber o perfil do conjunto de uma sociedade. Malinowski e os difusionistas Nesse contexto de escolas que se multiplicam, ganha certa importância a Escola Difusionista, que é marcada pela interpretação histórica, ou seja, reconstituição especulativa dos estágios de evolução interna de cada cultura e pela geografia correspondente. Essas posições iremos aprofundar mais adiante. Aqui é preciso lembrar apenas que a teoria difusionista tende a ocupar o lugar do evolucionismo pela ideia da existência de centros de difusão da cultura, a qual se transmite por empréstimos. Malinowski questiona o historicismo dos difusionistas e considera que uma sociedade deve ser estudada enquanto uma totalidade, tal como funciona no momento mesmo onde a observamos. Exemplo dessa posição pode-se constatar em seu livro Os Argonautas do Pacífico Ocidental, prefaciado pelo difusionista James Frazer, seu mestre. Na obra, Malinowski adota uma abordagem rigorosamente inversa de Frazer: analisar de uma forma intensiva e contínua uma microssociedade sem referir-se à sua história. Aqui o cientista polonês se distingue do olhar de seu mestre enquanto muda a pergunta da pesquisa. Se se pergunta a James Frazer por que ele próprio não ia observar as sociedades a partir das quais tinha construído sua obra, respondia: ”Deus me livre!”. Assim, enquanto Frazer procurava responder à pergunta: “Como nossa sociedade chegou a se tornar o que é?” e respondia escrevendo sua obra Ramo de Ouro, Malinowski se pergunta: “o que é uma sociedade dada em si mesma e o que a torna visível para os que a ela pertencem?”; e opta por observar-lhe no presente através da interação dos aspectos que a constituem. Malinowski e sua Escola Funcionalista: a Antropologia como ciência da alteridade Nessa forma de agir de Malinowski e de sua Escola Funcionalista, a Antropologia dá um salto qualitativo porque se afirma como uma “ciência” da alteridade. Ela ultrapassa a visão dos evolucionistas focados na reconstituição das origens da civilização, e se dedica ao estudo das lógicas particulares características de cada cultura. O que o leitor aprende ao ler a obra Argonautas do Pacífico Ocidental (1922) é que os costumes dos Trobriandeses, tão profundamente diferentes dos nossos, têm uma significação e uma coerência. Não são fantasias infantis que testemunham sobre alguns vestígios de uma humanidade arcaica e, sim, mostram-se como sistemas lógicos perfeitamente elaborados. Hoje, todos os etnólogos estão convencidos de que as sociedades diferentes da nossa são sociedades humanas tanto quanto a nossa. Os homens e mulheres que nelas vivem são adultos que se comportam de forma apenas diferente da nossa; não são "primitivos”,autômatos e atrasados (em todos os sentidos do termo) que pararam em uma época distante e vivem presos a tradições “estúpidas”. Mas pensar assim nos anos 20 era uma postura revolucionária adotada por Malinowski! Optando por observar e analisar essa coerência interna em cada sociedade, Malinowki elabora, então, uma teoria (o funcionalismo) que tira seu modelo das ciências da natureza. Segundo ela, o indivíduo sente um certo número de necessidades, e cada cultura tem precisamente como função a de satisfazer, à sua maneira, essas necessidades fundamentais. Cada cultura realiza essa função elaborando instituições (religiosas, econômicas, políticas, jurídicas, educativas, medicinais), fornecendo respostas coletivas organizadas, que constituem, cada uma a seu modo, soluções originais que permitem atender a essas necessidades. A necessidade do estudo dessas sociedades era justificada pelo avanço do imperialismo europeu sobre os povos ditos primitivos. As comparações feitas entre essas sociedades e a sociedade da qual fazia parte o pesquisador tem agora a preocupação em não mais situá-las mecanicamente em uma escala evolutiva. Os povos estudados passam a ser focalizados em situação, ou seja, o seu processo de autoconstrução passa a ser avaliado a partir da contextualização dos fenômenos culturais. Lauri José Wollmann (2012) mostra que Malinowski, junto à postura reativa à dita superioridade da civilização européia, está positivamente imbuído do objetivo de apreender o ponto de vista do nativo, sua relação com a vida e sua visão de mundo. Desta forma, Malinowski percebe que as necessidades biológicas (primárias) determinavam a existência de outras necessidades: as necessidades culturais (secundárias). Malinowski: padrões culturais como estatuto Em Malinowski, a cultura passa a ser observada como o aparato instrumental que inicialmente estaria ligado à satisfação das necessidades biológicas, e à medida que houvesse o desenvolvimento, o crescimento da população e a diferenciação estrutural, a cultura passaria a constituir-se como um meio próprio. Os padrões culturais determinariam o surgimento do estatuto, que é o liame entre as intuições. Neste processo de análise da realidade, Malinowski vê como fundamentais três procedimentos metodológicos: 1) a observação de todos os costumes dos nativos; 2) a apreensão das narrativas orais; e 3) a utilização do método estatístico. Para Malinowski, através da observação do comportamento dos nativos seriam captados os imponderáveis da vida real, ou seja, os elementos não abarcados pela análise estatística e que, na verdade, são a carne e o sangue da arquitetura teórica de toda pesquisa científica. Para aprofundar seu conhecimento sobre esse conceito, você pode ler a obra “Argonautas do Pacífico Ocidental” (1977), indicada no Saiba Mais desta unidade. Por isso escreve: Conhecer bem a teoria científica e estar a par de suas últimas descobertas não significa estar sobrecarregado de ideias preconcebidas. Se um homem parte numa expedição decidido a provar certas hipóteses e é incapaz de mudar seus pontos de vista constantemente, abandonando-os sem hesitar ante a pressão da evidência, sem dúvida seu trabalho será inútil. (MALINOWSKI, 1977, pp. 17ss). Com essa percepção dos imponderáveis da vida real, a antropologia de Malinowski dava maior visibilidade aos sujeitos integrantes da cultura em estudo como forma de garantir a legitimidade científica da pesquisa. O abandono de pré-noções é, para ele, fundamental. É indispensável o mergulho na cultura do distante. Radcliffe-Brown: conceitos de oposição, estrutura e forma estrutural Nessa mesma Escola Funcionalista vamos encontrar Alfred Reginald Radcliffe-Brown (1881-1955), antropólogo britânico. Encabeça a lista dos que souberam ir a campo para pesquisa etnográfica com os povos distantes das ilhas Indonésias de Andáman (que sofreram a tsunami de dezembro de 2004), e esteve na Austrália, Polinésia e África. Sua análise sobre as relações de parentesco nas sociedades arcaicas, as quais aparecem em estreita relação com a organização social, o transformaram num precursor do estruturalismo. Suas obras de maior destaque confirmam essas acentuações teóricas: A organização social das tribos australianas (1931) e Estrutura e função nas sociedades primitivas (1952). Centrado no conceito de função, ele a entende como um conceito muito mais ligado à função sociológica do que ao funcionalismo biológico de Malinowski. As diferentes visões desses dois antropólogos numa mesma escola ilustram o contexto de liberdade de discussão crítica da época, como se percebe nesse vaivém das marés agitadas dos primeiros sistematizadores da nossa ciência. Desta forma, a Antropologia parece usufruir dos frutos da humildade e zelo científico desses estudiosos. Se a valorização etnográfica alcança qualificação em Malinowski no contraponto com os evolucionistas, agora é Radcliffe-Brown quem dá as notas, também na Escola Funcionalista, quando propõe unir o método etnográfico de pesquisa de campo ao de trabalho de gabinete, predominantemente etnológico, reflexivo, comparativo. Ele apontava a necessidade de estudos comparativos sistemáticos para que a Antropologia não se tornasse mera etnografia. O método indutivo, proposto também por ele, possibilitaria o estabelecimento de regularidades e leis gerais. O conceito de oposição em Radcliffe-Brown Radcliffe-Brown enfatiza, pois, o aspecto funcional de costumes como, por exemplo, o rapto da noiva, hostilidade inter-grupal, entre outros. Esses exemplos embasam a ideia de oposição, que seria a responsável pelas sociedades divididas em metades exogâmicas. Até mesmo o funcionamento das relações e estruturas sociais como fenômenos coletivos são explicadas a partir da ideia-motor da oposição. Dessa forma, ele articulou também o método histórico e comparativo (aliás, uma articulação que ele propunha aos estudos antropológicos em geral); considerando, entretanto, que o método histórico seria específico da Etnologia e o método comparativo mais afeito a uma Antropologia Social ou Cultural. Radcliffe-Brown: a pesquisa de campo, forma estrutural e totalidade Radcliffe-Brown, que também considerava de suma importância a pesquisa de campo, rejeitava o uso do conceito de cultura em sua análise, pois considerava-o desprovido do caráter empírico necessário à análise social. A abstração que o termo sugere seria substituída pela realidade empírica das estruturas sociais, que eram o seu objeto de estudo. Para ele, o indivíduo adquire relevância analítica quando inserido nessa rede de relações, desempenhando os seus diversos papéis. Aliado a esse conjunto de relações que se dão entre os indivíduos, está o conceito de forma estrutural. Para Radcliffe-Brown, a forma estrutural seria o padrão das relações que ocorrem na estrutura, tendo como maior característica a constância desse padrão. Ele não nega mudanças na forma estrutural; porém, admite que elas ocorrem de uma maneira mais lenta. A totalidade fica, assim, melhor explicada na teoria de Radcliffe-Brown, pois possibilita a visualização da mesma através dos conceitos de estrutura e forma estrutural. Com a ideia de coerência funcional, ele exprime a necessidade de que os elementos estejam interligados por uma mutualidade de relações que, se não forem observadas, levam ao surgimento de conflitos. Os funcionalistas: postura flexível, sem dogmatismos Percebe-se que a percepção da Escola Funcionalista acentuando o funcionalismo nas culturas, possibilitou o diálogo entre pesquisador e pesquisado. Configura-se aadoção de uma postura flexível e menos dogmática perante o objeto de estudo do antropólogo. Nota-se, porém, que a utilização em excesso do relativismo como princípio orientador nas relações proporcionava certo distanciamento. O pesquisador, ao abordar o nativo de uma determinada cultura, estabelece aos poucos uma relação na qual o entrevistado realiza o papel de mero informante, sem que haja uma troca de experiências visando ao conhecimento e questionamento culturais mútuos. Esse procedimento decorre do fato de que, para os relativistas, as culturas são válidas em si mesmas; consequentemente, não há porque questionar as normas e valores nela imbricados. A postura do pesquisador que se utiliza do relativismo se torna a de um mero coletor de informações. A partir da sua proposta de validade das práticas inerentes às várias culturas, o relativismo não dá margem a uma interação subjetiva efetiva entre os envolvidos na relação, não possibilitando a disseminação de valores universais, como a liberdade e a igualdade. Seção 2 – Métodos e técnicas sobre o cultural no ánthropos Vamos aproveitar esse momento da viagem que tivemos a bordo de nossa caravela pelas escolas antropológicas para remar nas águas da importante discussão sobre os métodos que emergiram de tantas discussões e estão sendo utilizados por nossa ciência. Esses métodos nos ajudam a construir um perfil pluralista como pessoas e profissionais no diálogo com a alteridade, ou seja, o Outro diferente cultural. Ao mesmo tempo, vamos discernir sobre o uso de algumas técnicas úteis, sempre de olho, é claro, em nosso foco: o cultural do ánthropos como constitutivo específico dos humanos. Método comparativo: primeiro caminho e componentes Você certamente já sabe que a palavra método, em grego, significa caminho, via, seta indicativa. Pode constatar também que o primeiro caminho dos estudiosos nas escolas iniciais de Antropologia foi marcadamente um trabalho de gabinete, etnológico, com a limitação de ser distante do campo e das realidades, pois analisa o que outros viram. No entanto, seria injusto tirar os méritos desses primeiros articuladores na consolidação da Antropologia Cultural como ciência. É o que pondera o nosso etno-psiquiatra, o antropólogo francês Laplantine (2005, pp. 46-47) no texto “Um caminho filho de descaminhos: o método antropológico-cultural”, indicado no Saiba Mais desta unidade. Como sublinha Laplantine, esses primeiros estudiosos das escolas que vimos até aqui, utilizaram-se do Método Comparativo para perceber as variações socioculturais. Em resumo, podemos descrever o Método Comparativo ou Etnológico como o modo de fazer comparações entre padrões, costumes, modos de vida de culturas do passado e do presente; sobretudo, procurando compreender os grupos estudados a partir das diferenças e semelhanças. Do biológico ao comportamental e cultural: por uma perspectiva global de compreensão do humano Tanto os estudiosos da Antropologia biológica quanto os que adotam uma perspectiva mais comportamental e cultural se inspiram no método comparativo das ciências da natureza aplicadas ao biológico do humano feito pelos antropólogos biologistas, como vimos na Escola Evolucionista, de matriz inglesa. Ambos os grupos aparecem com a mesma preocupação do mapeamento da criação humana. Existe também em ambos a tentativa de explicar, interpretar e compreender os padrões de maneira que não façam qualquer pressuposição injustificada. Importa, segundo os seguidores desse método comparativo, que não se façam reducionismos sobre as direções de desenvolvimento cultural ou não se fixem apenas na singularidade do ser humano, mas que se garanta a perspectiva da visão de totalidade do ánthropos. Busca-se inferir leis que movem o desenvolvimento das culturas. Um exemplo é no campo da antropologia psicológica, que busca perceber a relação entre cultura e personalidade. Primeiramente, se rejeitam as simplificações próprias de um evolucionismo que parece dar muita importância à noção de desenvolvimento cultural independente. Por outro lado, há uma tendência ao uso de um método comparativo generalizado, que nos impede de perceber esse desenvolvimento cultural como um conjunto vivo de realizações de cada grupo humano. O projeto antropológico influenciado pelo método comparativo vai assim se solidificando, em última análise, por essas perspectivas globais de compreensão do humano. Assim, podemos concluir que todo esse árduo trabalho dos primeiros antropólogos resultou, por um lado, nestes quadros comparativos e; por outro, nesta perspectiva globalizante. Foi assim que esses primeiros sistematizadores de nossa ciência consolidaram as bases para o impacto da antropologia sobre o pensamento do século XX e XXI. Franz Boas: crítico do Método Comparativo ou Etnológico Contra as tendências ao reducionismo é que o físico, geógrafo e historiador Franz Boas propõe que ao método comparativo puro e simples se acrescente uma dose do que chamou de relativização, mencionada acima. O relativismo inclui que os resultados obtidos na etnografia passem pelo crivo dos estudos históricos das culturas, das condições psicológicas e dos ambientes onde se desenvolvem estas culturas. Por essa relativização, Franz Boas abre os olhos para os perigos de falsas interpretações das teorias deterministas do fenômeno cultural, predominantes no comportamento dos pesquisadores de sua época, influenciados pela antropologia biológica de acento evolucionista. Fruto das críticas de Franz Boas e de sua escola a esse possível comportamento reducionista de generalização foi o contraponto da necessidade de analisar os elementos culturais em seu contexto de conjunto, já que o vício comum era inferir-se uma totalidade a partir de uma parcela mínima da cultura. Boas acreditava que a comparação deveria ser restrita a um pequeno território. Desta forma, passou a ser um importante crítico do evolucionismo e do funcionalismo por causa do excesso de uso do Método Comparativo para dedução de indícios culturais. Ele observa, também, que os evolucionistas são ambiciosos porque querem descobrir leis gerais e histórias evolutivas. E mais ainda, supõem erroneamente uma evolução uniforme. Boas, ao invés, alertava para o fato de que fenômenos iguais podem ter causas e sentidos diferentes: “cada máscara é única”. Por isso a comparação só seria válida entre fenômenos que se devam às mesmas causas. Depois que Franz Boas convidou os antropólogos americanos formados em sua Escola Culturalista a observar cada fenômeno como resultante de acontecimentos históricos, estes estudiosos passaram a “elaborar conceitos definidos para o estudo dos fatos da difusão cultural, sem deixarem, no entanto, de continuar a acumular uma massa impressionante de dados” (MERCIER, 2000, p. 56). Como as escolas anteriores, evolucionista e funcionalista, Boas valoriza, na Antropologia Cultural, o seu modo característico de olhar o microssociológico. Para ele tudo deve ser anotado com descrição minuciosa e se deve colher todas as versões. Cada cultura é uma unidade autônoma e um costume só tem significado frente ao contexto no qual se insere. A influência de Boas chegou ao Brasil na obra de Gilberto Freyre quando esse declara que foi o estudo de antropologia de Boas que primeiro lhe revelou o negro e o mulato no seu justo valor - separados dos traços de raça os efeitos do ambiente. Aprendeu com Boas a considerar fundamental a diferença entre raça e cultura. O estruturalismo de Lévi-Strauss: clareando os métodos e técnicas Em nossas remadas pelaságuas revoltas das escolas antropológicas em busca do mais adequado método para nossa ciência, vamos desembarcar no porto da Escola Estruturalista. Já observamos a trajetória dos métodos inerentes a cada escola, concluindo com a visão oportuna e diferenciada de Radcliffe-Brown, que uniu etnografia e etnologia, ida a campo e laboratório, quando elaborou os conceitos de oposição, estrutura e forma estrutural. É na escola funcionalista que estudou Claude Lévi-Strauss, o mentor do Estruturalismo. Nasceu em Bruxelas em 1908 e morreu aos 100 anos em Paris em 2009. Com sua mulher, Dina Dreifruss, deixou marcas profundas na fundação da disciplina de Antropologia Cultural no Brasil enquanto participante do grupo de docentes franceses criador da USP (Universidade de São Paulo). É a Escola Estruturalista quem traz a visão da busca das regras estruturantes das culturas presentes na mente humana. A rigor, a escola de Lévi-Strauss parece reunir a síntese de muitas contribuições de outras escolas anteriores visando dar autonomia à nossa ciência, como podemos perceber no quadro a seguir: Escola/Paradigma Escola do Estruturalismo Período Século XX - anos 40 Características Busca das regras estruturantes das culturas presentes na mente humana. Teoria do parentesco/Lógica do mito/Classificação primitiva. Distinção natureza x cultura. Temas e Conceitos Princípios de organização da mente humana: pares de oposição e códigos binários. Reciprocidade. Alguns Representantes e obras de referência Claude Lévi-Strauss: “As estruturas elementares do parentesco” - 1949. “Tristes Trópicos”- 1955. “Antropologia estrutural” – 1958. “Pensamento selvagem” - 1962. “O cru e o cozido” – 1964 – “O homem nu” – 1971 - Saudades do Brasil. “Antropologia estrutural dois” – 1973. Lévi-Bruhl, Marcel Griaule, Dieux d’Eau, Germaine Dieterlen e Le Renard Pâle. Quadro 2.4- Escola Estruturalista Fonte: SILVA, Vagner Gonçalves da. Alguns consideram essa escola uma “super teoria”, mas também sofreu críticas e questionamentos principalmente em relação à utilização dos modelos, pois ao observar as relações sociais se utiliza de modelos que possam explicar todos os fatos observados. Por isso, o estruturalismo pode ser considerado tanto como uma linha de análise antropológica quanto um método de análise. Marconi (1992, p. 277) cita esses pontos importantes do estruturalismo: 1. Visão sincrônica e sistêmica da cultura. 2. Visão globalizante do fenômeno cultural (o conhecimento do todo leva à compreensão das partes). 3. Adoção das noções de estrutura social e relações sociais. 4. Utilização de modelos na análise cultural. 5. Unidade de análise: estruturas mentais inconscientes. 6. Compreensão ampla da realidade cultural. Os trabalhos de Lévi-Strauss são caracterizados pela subjetividade, o que demonstra uma preocupação central em estudar a mente humana. Lévi-Strauss entende as culturas como sistemas de signos partilhados e estruturados por princípios que estabelecem o funcionamento do intelecto. Podemos retomar o resumo do método antropológico-cultural gestado ao longo da construção histórica de nossa disciplina na sábia elaboração de Lévi-Strauss, citada por Laplantine (2005, p. 25): Método antropológico cultural desdobra-se em três etapas: 1 – ETNOGRAFIA É a coleta direta, e o mais minuciosa possível, dos fenômenos que observamos, por uma impregnação duradoura e contínua e um processo que se realiza por aproximações sucessivas. Esses fenômenos podem ser recolhidos tomando-se notas, mas também por gravação sonora, fotográfica ou cinematográfica. 2 – ETNOLOGIA Consiste no primeiro nível de abstração: através da analise dos materiais colhidos, fazer aparecer a lógica específica da sociedade que se estuda. 3 – ANTROPOLOGIA Consiste num segundo nível de abstração: construir modelos que permitam comparar as sociedades entre si. O objetivo do trabalho antropológico, segundo Lévi-Strauss, é: “Alcançar, além da imagem consciente e sempre diferente que os homens formam de seu devir, um inventário das possibilidades inconscientes, que não existem em número ilimitado” (LÉVI-STRAUSS apud LAPLANTINE 2005, p. 25). Etnografia: primeira etapa do método antropológico cultural A primeira etapa do método antropológico cultural de Levi-Strauss é a Etnografia, também sinônimo de método etnográfico. Malinowski (1922) corrobora com Lévi- Strauss mostrando que a etnografia inclui a observação participante na revelação dos aspectos das culturas, como concepções, costumes, hábitos, o que pensavam e como pensavam cada um dos povos estudados. Podemos dispor de muitas técnicas utilizadas para atingir detalhes por meio de uma prática que estabelece relações, seleciona informantes, transcreve textos, levanta genealogias, mapeia campos, registra dados em um diário. (MALINOWSKI, 1922, p. 32). Sob outra ótica, Clifford Geertz, da Escola antropológica interpretativa, que nos apoiará mais tarde, lembra o trabalho complexo reservado à etnografia quando diz que significa tentar ler um “manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas suspeitas e comentários tendenciosos, escrito não com os sinais convencionais do som, mas com exemplos transitórios de comportamento modelado” (GEERTZ, 1989, p. 7). Lembra, no entanto, que esse procedimento técnico-científico não reduz o empreendimento antropológico, pois a “interpretação”, segundo Geertz, é um “esforço intelectual” que resulta em uma “descrição densa”. Esse trabalho de levantamento de dados e envolvimento com o objeto de observação faz com que o etnógrafo enfrente uma “multiplicidade de estruturas conceptuais complexas, muitas delas sobrepostas ou amarradas umas às outras, que são simultaneamente estranhas, irregulares e inexplícitas, e que ele tem que, de alguma forma, primeiro apreender, depois apresentar” (GEERTZ, 1989, p. 7). Técnicas de pesquisa: auxiliares do método antropológico-cultural. O método de nossa ciência nessa primeira etapa etnográfica, especialmente, deve contar com algumas técnicas de pesquisa frutos da interdisciplinaridade. A técnica de pesquisa trata-se, sinteticamente, de um modo de conseguir os dados sem nenhuma intermediação de outros registros, sejam eles os dos historiadores, viajantes, missionários, médicos, assistentes sociais ou funcionários do governo que estiveram antes na região ou grupo em pesquisa. Nossa ciência tem usufruído da interdisciplinaridade pelo estreitamento entre campos complementares como sociologia e história, por exemplo. Faz bem para construir posturas científicas e usar técnicas apropriadas intercambiáveis. Nenhuma, porém, dispensa a da Observação Participante pelo profissional responsável. Observe no quadro que segue algumas técnicas de vários métodos de ciências afins do estudo sobre o humano e com as quais podemos interagir: Método Histórico – procura investigar acontecimentos passados a fim de compreender aspectos ou modos de vida do presente. Para isso usa coleta de documentos materiais e imateriais; Método Monográfico ou Estudo de Caso – desenvolve estudo aprofundado de determinado caso ou grupo humano em todos os seus aspectos; Método Funcionalista: desenvolve o estudo das culturas a partir de sua funcionalidade dentro de um universo cultural mais amplo. Técnica Estatística – os dados coletados são transformados em termos quantitativos e dispostos em tabelas, quadros e gráficos para uma análise posterior; Técnica da Genealogia – desenvolve o estudo do parentesco e suas implicaçõessociais. Técnica da Observação: sistemática e participante. Técnica da Entrevista: dirigida e livre. Quadro 2.5- Métodos e Técnicas com interface para a ciência da Antropologia Cultural. Fonte: adaptação do Autor, 2011. Pesquisa de campo: um exemplo brasileiro Valem aqui as considerações do antropólogo brasileiro Roberto DaMatta sobre o método da antropologia na instância da Pesquisa de Campo. Ele o considera como um deslocamento em que o estudioso “mergulha” na cultura do outro. Esse trabalho constitui-se também como um ritual de passagem, semelhante ao que ocorre entre os índios do Alto Xingú. Nesse grupo indígena, quando as jovens meninas entram na puberdade, ficam reclusas por até um ano, afastadas de todo contato social. Somente mães, tias e avós mantêm alguma espécie de relação com elas. Nesse período, elas têm seus tornozelos amarrados com faixas e seus cabelos não podem ser cortados. Além disso, sua pele é constantemente escarnificada com dentes de peixes ou cascas de coco. Após todo esse tempo, elas retornam ao convívio social para contrair casamento. Tal ritual de passagem pode ser interpretado como um momento de preparação, iniciação, acordos entre as famílias dos noivos, mas também como uma forma de proteger as jovens de abusos sexuais. Nesse espaço e tempo, elas aprendem a descobrir o valor de certas regras sociais, canções, gestos, arte, fabricação de peças e instrumentos para o trabalho. Os laços com o grupo social são estreitados mesmo estando distanciadas dos outros indivíduos da tribo. Com efeito, tudo que as jovens devem saber para que possam ter o sentimento de pertencer exclusivamente a uma dada sociedade e dela participarem. Também os jovens meninos, no Alto Xingú, iniciam sua vida adulta quando os mais velhos perfuram suas orelhas. Em algumas tribos, os meninos devem escalar árvores nús e, com as mãos, derrubar colméias de insetos. Essas breves descrições de rituais se aproximam da iniciação do trabalho de campo do antropólogo, posto que o movimento de deslocamento é marcado também como uma passagem. Os dois exemplos, no Alto Xingú e na saída de campo do antropólogo, são situações em que ocorre um deslocamento, ainda que temporário, pois ambos são retirados de sua sociedade, realizando uma viagem para os limites do seu mundo diário e em pleno isolamento, num universo marginal e perigoso. Em outras palavras, ficam individualizados, contando muitas vezes com seus próprios recursos diários. Numa experiência de campo assim, continua a reflexão de DaMatta mostrando que antropólogos e jovens iniciantes retornam à sua aldeia com uma nova visão de mundo, dos novos laços sociais tecidos na distância e no afastamento de uma vida com restrições, sacrifícios, desafios e criatividade. Ao viverem fora da sociedade por algum tempo, acabaram por ter o direito de nela entrar de modo mais profundo. Isolados de suas relações substantivas e individualizadas, jovens índios e antropólogos ficam predispostos a ser socialmente moldados, antes do seu renascimento social. Em ambos os casos, eles aprendem novos fatos e adquirem um conhecimento mais aberto permeado pela amizade e pelo companheirismo e autonomia. Tal procedimento implica ampliar a visão do homem e da sociedade no movimento que nos leva para fora do nosso próprio mundo, mas que acaba por nos trazer de volta e para dentro dele. Contudo, precisamos ainda ressaltar a importância das possíveis lições apreendidas do relacionamento com os chamados “informantes”, nesse caso, os grupos de iniciantes do rito de passagem, no processo de um trabalho antropológico. Claro que essa situação torna-se paradoxal na medida em que a intensidade dos laços entre o observador e o informante pode se estreitar a tal ponto que dificulte o estudo. Todavia, a intensidade do contato, em Antropologia, é uma questão fundamental, pois permite “ver” o outro dentro das suas relações sociais complexas. Em muitos casos, essa relação torna o pesquisador médico, contador de histórias, mediador de conflitos familiares, entre outros. Ao entrar em contato com o grupo, o pesquisador estará sujeito a todos os humores humanos, fobias, manias e mais uma série de interferências que constituem e devem ser levadas em consideração na análise. Neste sentido, o antropólogo brasileiro Roberto DaMatta acredita que o etnólogo deve aprender as seguintes fórmulas: a - Transformar o exótico no familiar; e b - Transformar o familiar em exótico. Para ele, é necessária a presença dos dois termos (que representam dois universos de significação) e, mais basicamente, uma vivência dos dois domínios por um mesmo sujeito disposto a situá-los e apanhá-los. Assim é que a primeira – transformação do exótico em familiar – corresponde ao movimento original da antropologia quando os etnólogos conjugaram o seu esforço “na busca deliberada dos enigmas sociais situados em universos de significação sabidamente incompreendidos pelos meios sociais do seu tempo” (DAMATTA, 2000, p. 156). Também dentro dessa questão, DaMatta afirma que a segunda transformação parece corresponder ao momento presente, quando a disciplina se volta para a nossa sociedade, num movimento semelhante a um auto-exorcismo, pois já não se trata mais de depositar no “selvagem africano ou melanésio o mundo de práticas primitivas que se deseja objetivar e inventariar, mas de descobri-las em nós, nas nossas instituições, na nossa prática política e religiosa” (DAMATTA, 2000, p. 157). Talvez, em razão dessa nova dimensão do campo e dos objetos de estudo da Antropologia Cultural, cada vez mais surgem estudos sobre “nós mesmos”. Podemos citar alguns temas, recentemente investigados na área de Antropologia, que corroboram nossa hipótese: os impactos da atividade turística em comunidades pesqueiras, o processo de higienização em áreas urbanas, carnaval, política institucional, racismo e questões étnicas, movimentos sociais, questões de gênero, globalização/regionalização, xenofobia, imigração, doenças, entre outros. Ainda que tais objetos de análise façam “parte” de nossa realidade contemporânea, constituinte de nossa diversidade social, torna-se fundamental para a Antropologia estranhar aquilo que nos parece familiar, para assim descobrir o exótico que está congelado dentro de nós pela reificação, ou seja, a redução a coisa natural do que, na verdade, é cultural bem como pelos mecanismos de legitimação. O familiar pode ser definido a partir da ideia de fatos, pessoas, categorias, classes, segmentos sociais, aldeias, podendo fazer parte do universo conhecido do observador ou não. Por sua vez, o exótico diria respeito exatamente ao inverso, ou seja, um elemento que estaria fora do mundo diário e conhecido do observador. Conhecido significaria, nesse sentido, aquilo que englobaria o que está próximo e é íntimo de alguma forma. Essa relação é bastante abrangente e, ao mesmo tempo, problemática, pois nem tudo que está próximo é conhecido, e nem tudo que nos parece exótico e distante é totalmente desconhecido. Para compreendermos melhor essa questão, podemos apoiar nossa reflexão a partir daquilo que DaMatta afirma: (....) em toda a sociedade, isto é, em toda totalidade, existem coisas que me são familiares no sentido de serem elementos do sistema de classificação e coisas que são estranhas a este sistema. Tais coisas podem ser vistas de trinta em trinta anos, como os cometas, mas nem assim deixam de ser familiares. Fantasmas e deuses também são familiares para nós, muito embora sejam imateriais, morem no espaço astral no Olimpo e só apareçam para umas poucas pessoas.
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