Prévia do material em texto
11 Capítulo 1 Cidadania e Direitos Humanos Cidadania como conquista de direitos Cláudio Damaceno Paz A vida em sociedade constitui um imperativo, pois as interações entre os humanos e com o meio em que estão inseridos não são escolha, mas necessárias para a potencialização das suas capacidades. Porém, pela divergência de interesses, essas relações tendem a se tornar conflituosas. Em decorrência, para viabilizar suas existências, os humanos têm desenvolvido mecanismos que viabilizem a resolução de conflitos. Diversos são os meios criados e utilizados para disciplinar as condutas na busca da harmonia social, entre eles podemos destacar o Direito. É o Direito que deve garantir os interesses de cada um e impedir que uns sejam prejudicados pelos outros. A pessoa que tem um direito violado está sofrendo uma perda de alguma espécie. E quando uma pessoa que teve um direito ofendido não reage, isso pode encorajar a ofensa de outros direitos seus, pois sua passividade leva à conclusão de que ela não pode ou não quer defender-se. (DALLARI, 1985). A caminho do trabalho, no dia 1º de dezembro de 1955, uma costureira negra, de 42 anos, Rosa Parks (1913-2005), moradora de Montgomery, capital do Alabama, nos EUA, tomou um ônibus, sentou-se numa poltrona situada ao meio para frente do veículo de transporte coletivo. Minutos depois, o motorista exigiu que ela e outros três trabalhadores negros cedessem seus lugares para passageiros brancos, os quais embarcaram no ponto seguinte. Rosa Parks negou-se a cumprir a ordem do motorista. Foi, então, retirada do ônibus, detida e levada para a prisão. Em decorrência do seu ato, Rosa Parks enfrentou ameaças de morte, humilhações e teve até de se mudar de estado por não conseguir arranjar emprego no Alabama. 12 Capítulo 1 No entanto, a atitude de resistência pacífica de Rosa Parks deflagrou uma série de protestos contra a discriminação racial nos EUA. Trabalhadores negros recusaram-se a embarcar em ônibus enquanto estivesse em vigor, no estado do Alabama, a lei discriminatória que impunha aos negros ocuparem os lugares do fundo dos transportes coletivos, enquanto aos brancos eram reservados os lugares dianteiros. Durante os protestos, era comum encontrar grupos de trabalhadores negros dirigindo-se a pé para o trabalho, acenando e cantando nas ruas, enquanto eram xingados pelos brancos. O exemplo emblemático de Rosa Parks e os avanços ocorridos nos EUA em relação aos direitos civis nas décadas subsequentes demonstram que os direitos nascem das lutas dos seres humanos contra as formas de opressão. No entanto, são conquistas gradativas que se configuram no processo histórico. Os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizados por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas. (BOBBIO, 1992, p.5). Compreender os direitos humanos como conquista e construção humana ao longo da história afirma o protagonismo das pessoas na luta pelos direitos a serem positivados como direitos fundamentais. Ressalta-se que as expressões “direitos humanos” e “direitos fundamentais” são frequentemente utilizadas como sinônimos. Segundo a sua origem e significado, poderíamos distingui-los da seguinte maneira: direitos do homem [humanos] são direitos válidos para todos os povos e em todos os tempos; [...] os direitos fundamentais seriam [são] os direitos objetivamente vigentes numa ordem jurídica concreta. (CANOTILHO, 1998). Partindo do pressuposto de que os direitos humanos resultam de conquistas que se materializam no processo histórico, pela ação humana, evidencia-se a importância das Revoluções Liberais (Inglesa, Americana e Francesa) para a emancipação dos indivíduos e das coletividades no contexto de construção da modernidade e da criação dos direitos. No processo da Revolução Inglesa, em 1689, o Parlamento inglês apresentou à monarquia uma declaração de direitos (Bill of Rights), que assegurava aos indivíduos os direitos de liberdade, de segurança e de propriedade, como garantia frente ao poder soberano – e arbitrário – do Estado absolutista. A Bill of Rights impunha limites ao poder real ao deslocar para o Parlamento as competências de legislar e criar tributos. Ao mesmo tempo, instituía a separação de poderes para evitar o autoritarismo do poder absolutista do monarca. 13 Estudos Socioculturais No entanto, ao consentir em manter a imposição de uma religião oficial, a anglicana, – estabelecida pelo rei Henrique VIII – muitos ingleses, sem a liberdade de professar e manifestar sua crença religiosa, distinta da oficial, viram-se constrangidos a migrar para terras distantes, temerosos de perseguições. Para os puritanos (calvinistas ingleses), a América consistiu em alternativa para viver em liberdade, conforme suas crenças. Depois de estabelecidos na “nova Canaã”, como denominavam a América do Norte, os agora colonos americanos foram constrangidos, em 1765, pelas imposições fiscais da autoridade metropolitana – que contrariava o estabelecido na Bill of Rights – a recolher uma série de impostos para cobrir o déficit da Coroa que havia se envolvido na Guerra dos Sete Anos (1756-1763) contra a França. Em 1773, na cidade de Boston, ocorreu a The Boston Tea Party. Colonos que viviam do comércio, por se sentirem prejudicados com a Lei do Chá, disfarçaram- se de índios peles-vermelhas, assaltaram os navios da companhia de transporte, que estavam ancorados no porto de Boston, lançando o carregamento de chá no mar. A reação inglesa foi imediata e mesmo violenta. Em 1774, os rebelados criaram um exército comum entre as colônias, demonstrando a fragilidade das suas relações com a metrópole inglesa, fato que abriu caminho para a independência. Em 1776 foi elaborada a Declaração de Direitos do Bom Povo da Virgínia, afirmando que todos os seres humanos são livres e independentes, possuindo direitos inatos, tais como a vida, a liberdade, a propriedade, a felicidade e a segurança, registrando o início do nascimento dos direitos humanos na história. (COMPARATO, 2003). A referida Declaração de Direitos, que abriu caminho para a independência dos EUA, ocorrida em 4 de julho de 1776, proclamada na Filadélfia, positivada na Constituição da República dos Estados Unidos da América em 1787, afirmou que o governo tem de buscar a felicidade do povo, definiu a separação de poderes, estabeleceu o direito dos cidadãos à participação política, à liberdade de imprensa e a livre escolha da religião, conforme a consciência individual. No entanto, a pátria da liberdade manteve a mácula da escravidão que deixou a herança da segregação racial. A prática da escravidão foi abolida nos Estados Unidos da América em 1863, com a Declaração de Emancipação promulgada pelo presidente Abraham Lincoln, no contexto de uma guerra civil, a Guerra da Secessão. No entanto, a discriminação racial, mesmo com a abolição, assumiu na cultura estadunidense um caráter segregacionista, que deu origem a inúmeras ações afirmativas e reações violentas. 14 Capítulo 1 Em virtude das manifestações decorrentes do protesto pacífico de Rosa Parks, em 13 de novembro de 1956, a Suprema Corte aboliu a segregação racial nos transportes coletivos de Montgomery, tornando também ilegal essa discriminação racial em todo o território dos EUA. Em 21 de dezembro de 1956, o ativista negro Martin Luther King e o sacerdote branco Glen Smiley entraram juntos num ônibus e ocuparam lugares na primeira fila. Martin Luther King organizou e liderou marchas que reivindicavam para os negros o direito ao voto, o fim da segregação e das discriminações, bem como a conquista de outros direitos civis básicos. A maior parte desses direitosfoi, mais tarde, agregada à constituição estadunidense, com a aprovação da Lei de Direitos Civis (1964) e da Lei de Direitos Eleitorais (1965). Em 4 de abril de 1968 Martin Luther King foi assassinado em Memphis, no Tennessee. Em 20 de janeiro de 2009 Barack Obama tomou posse da presidência dos Estados Unidos como primeiro negro eleito para o comando executivo do mais influente Estado-nação do mundo: Neste dia, estamos reunidos porque escolhemos a esperança acima do medo, a unidade de objetivos acima do conflito e da discórdia. Neste dia, vimos proclamar o fim dos sentimentos mesquinhos e das falsas promessas, das recriminações e dos dogmas desgastados que por tanto tempo estrangularam nossa política. (OBAMA, 2009). A sociedade organizada com justiça é aquela em que os encargos e os benefícios são partilhados entre todos, pois os direitos, para além da sua criação histórica e positivação jurídica, precisam constituir-se em prática social. A Declaração de Direitos do Povo da Virgínia (1776) consistiu numa ação pioneira na luta pelos direitos humanos ao reivindicar direitos políticos e justiça social, porém, apresentava, na época, como referido, caráter seletivo. No entanto, foi a Declaração dos Direitos do Homem, aprovada pela Assembleia Nacional francesa, no contexto revolucionário, em 1789, que exerceu grande influência sobre os movimentos emancipacionistas e libertários na modernidade, pelo seu caráter de universalidade. A França quer ser exemplar, não para ensinar, mas porque é a história dela, é sua mensagem. Exemplar para as liberdades fundamentais: é a sua luta, é também sua honra. Esta é a razão pela qual a França vai continuar a realizar todas essas lutas: para a abolição da pena de morte, pelos direitos das mulheres à igualdade e dignidade, para a descriminalização universal da homossexualidade, que não deve ser reconhecida como um crime, mas, pelo contrário, reconhecida como uma orientação. 15 Estudos Socioculturais [...]. Todos os países membros [da ONU] têm a obrigação de garantir a segurança de seus cidadãos, e se um país adere a esta obrigação, então é imperativo que nós, nas Nações Unidas, facilitemos os meios necessários para fazer essa garantia. Estas são as questões que a França vai levar e defender nas Nações Unidas. Digo isso com seriedade. Quando há paralisia e inação, então a injustiça e a intolerância podem encontrar o seu lugar. (HOLLANDE, 2012). Os revolucionários franceses de 1789 iniciaram a Declaração de Direitos do Homem afirmando, no artigo primeiro, que “Os homens nascem e são livres e iguais em direitos”, e no artigo quarto enfatizam que A liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique o próximo. Assim, o exercício dos direitos naturais de cada homem não tem por limites senão aqueles que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo dos mesmos direitos. Estes limites apenas podem ser determinados pela lei. Outro aspecto relevante da Declaração de Direitos criada pelos franceses está explicitado no artigo dezesseis, nos seguintes termos: “A sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição.” (DALARI, 1985, p. 53-54). O século XX foi marcado por duas grandes guerras de proporções mundiais. Na origem dessas guerras está o choque entre interesses imperialistas das potências capitalistas e seus asseclas. A ambição pelo poder e pela riqueza, somada ao desprezo aos direitos humanos, explicam os horrores gerados pelos referidos conflitos, materializados em privações das liberdades e das garantias individuais e sociais, crises de desabastecimento, bombardeios, destruição, terror e mortes físicas e psicológicas. O trauma causado pelas referidas guerras impeliu as lideranças mundiais à criação e consolidação de uma organização (ONU) com o propósito de: assegurar, por meios pacíficos, a manutenção da paz internacional; lutar pela defesa dos direitos humanos; estabelecer relações amistosas entre as nações, com base no princípio de autodeterminação dos povos; gerar mecanismos de cooperação entre os países na busca de solução para os problemas internacionais de ordem econômica, social, cultural e humanitária; e constituir-se em centro de convergência das ações dos Estados-nação na luta por objetivos comuns. Para que fosse permanentemente relembrado o valor da pessoa humana e para estabelecer o mínimo necessário que todos os países e todas as pessoas devem respeitar, a ONU encarregou um grupo de pessoas muito respeitadas, entre as quais havia filósofos, juristas, cineastas, políticos, historiadores, de várias partes do mundo, para redigir uma nova Declaração de Direitos. 16 Capítulo 1 Esses estudiosos reuniram-se, pediram a opinião de muitas outras pessoas e prepararam um documento que proclama os Direitos Humanos, os quais devem ser considerados fundamentais. (DALLARI, 1985, p. 51 e 52). Os autores da Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em Paris, no dia 10 de dezembro de 1948, evitaram redigir uma mera carta de intenções. Nos artigos da referida declaração foram incluídas exigências que devem ser atendidas para que a dignidade humana seja respeitada. O artigo terceiro, por exemplo, lembra que “Todo homem tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”. Em decorrência, no artigo quarto está expressamente ordenado que “Ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas.” A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi assinada por países do mundo inteiro, inclusive pelo Brasil, valendo como um compromisso moral desses países. É necessário que o maior número possível de pessoas conheça a Declaração, para cobrar de seus governos o respeito ao compromisso assumido. (DALLARI, 1985, p. 52). Leia na íntegra os trinta artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos: http://www.dhnet.org.br/direitos/deconu/index.html#deconu A ênfase da referida Declaração está na internacionalização dos direitos humanos, fixando-o no contexto internacional dos direitos fundamentais, ensejando a prevalência desse no ordenamento jurídico dos Estados signatários do referido documento e daqueles que se integram à comunidade das nações unidas como filiados da ONU. O Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, criado em 2006, em substituição à Comissão das Nações Unidas sobre os Direitos Humanos, criticada pela tolerância com Estados cujas ações constituíam desrespeito aos direitos humanos, tem como objetivo combater as violações aos direitos humanos em todo o mundo. O Brasil, membro da ONU, signatário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, define na Constituição Federal, promulgada em 1988, os direitos fundamentais no título II, Dos Direitos e Garantias fundamentais. O capítulo I dos Direitos Individuais e Coletivos é constituído pelo artigo 5º, com 78 incisos, alinhados com o referido documento da ONU. No caput deste artigo lê-se: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, [...].” 17 Estudos Socioculturais A dificuldade da concretização dos direitos humanos, entre outros fatores, reside na adoção, pelos Estados-nação, de políticas seletivas, dando prioridade a alguns direitos e postergando a positivação de outros. Ressalta-se que os direitos humanos foram sendo positivados de maneira gradativa. Estudiosos do tema, para fins didáticos, sem desconsiderar o princípio estrutural de indivisibilidade, apontam para quatro gerações de direitos que foram sendo criados e incorporados às constituições dos Estados-naçãoao longo do processo histórico-social na modernidade. Na escala evolutiva dos direitos, legislados ao longo dos séculos XIX e XX, há quatro gerações sucessivas de direitos fundamentais: • Os direitos de primeira geração: Os direitos de liberdade foram os primeiros a constar dos instrumentos normativos constitucionais, a saber: os direitos civis e políticos. Os direitos de liberdade têm por titular o indivíduo. Os direitos de liberdade fazem ressaltar, na ordem dos valores políticos, a nítida separação entre a Sociedade e o Estado, e a submissão do segundo à primeira. Essa geração de direitos corresponde aos direitos diretamente ligados ao conceito de pessoa humana e de sua própria personalidade, como, por exemplo: vida, dignidade, honra, liberdade. Basicamente, a Constituição de 1988 os prevê no art. 5º, tão significativo para todos os brasileiros. • Os direitos de segunda geração: decorrem dos efeitos provocados pelas transformações econômicas e sociais gerados pela industrialização e urbanização. São os direitos sociais vinculados aos econômicos, bem como os direitos coletivos e os de coletividades. Nasceram em decorrência das lutas dos trabalhadores e estão articulados ao princípio da igualdade. A consciência de um mundo partido entre nações desenvolvidas e subdesenvolvidas deu lugar a que se buscasse outra dimensão dos direitos fundamentais, aquela que se assenta sobre a fraternidade. Dotados de altíssimo teor de humanismo e universalidade. • Os direitos de terceira geração: tendem a cristalizar-se enquanto direitos que não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo ou determinada sociedade, pois seu destinatário primeiro é o gênero humano e sua existencialidade concreta. Emergiram da reflexão sobre temas referentes à autodeterminação dos povos, incluindo o direito ao desenvolvimento, à paz, à dignidade humana, o combate às diferentes formas de discriminação, bem como a necessidade de universalizar o acesso aos bens necessários para a vida digna, ao meio ambiente equilibrado, ao patrimônio comum da humanidade. 18 Capítulo 1 • Os direitos de quarta geração: constituem-se no direito à democracia, à informação, à defesa da vida, à proteção da intimidade, o direito à diferença e o respeito ao pluralismo num mundo multicultural. (Texto adaptado de palestra proferida por Paulo Bonavides, quando do aniversário de quinze anos da Constituição Federal do Brasil, promulgada em outubro de 1988.). Considerando este resumo, você, caro aluno(a), pode alargar sua compreensão sobre os Direitos Humanos e sua positivação na legislação brasileira. São muitas as possibilidades para aprofundar estudos nesta área. Selecionamos no EVA para vocês o texto do autor SARMENTO, Jorge. AS GERAÇÕES DOS DIREITOS HUMANOS E OS DESAFIOS DA EFETIVIDADE. Leia e destaque alguns avanços e possibilidades de efetividade dos Direitos Humanos na vida dos brasileiros. Apesar de inúmeras dificuldades produzidas historicamente, o Brasil tem buscado, em meio às desigualdades econômicas e sociais, promover ações destinadas à emancipação dos indivíduos na busca e efetivação dos direitos fundamentais. A discussão dos direitos humanos e as ações políticas e práticas empreendidas por meio de programas governamentais e iniciativas da sociedade civil tem criado condições objetivas para a promoção da cidadania e o respeito aos direitos humanos. No entanto, ainda existem brasileiros sem acesso aos meios que os assegurem usufruir dos direitos fundamentais. Direitos humanos como prática social 1 Valéria Rodineia Zanette Em tempos de pluralidade de valores, como é o caso da contemporaneidade, é bastante complexo estabelecer conteúdos gerais a que todos devem seguir, mesmo que esses conteúdos sejam os direitos humanos. Ocorre que tais direitos conseguem até se fazer presentes nos ordenamentos jurídicos de muitos Estados. Prova disso é o fato de um grande número deles terem assinado a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Mas a verdade é que, no cotidiano das pessoas, os direitos humanos, muitas vezes, estão ausentes ou inexistem. 1 Extraído de: ZANETTE, V.R. Schulze. Desafios da cidadania e dos direitos humanos na contemporaneidade. In: Ética, cidadania e direitos humanos. Livro digital, 5ª ed. Palhoça: UnisulVirtual, 2012. 19 Estudos Socioculturais É consenso, entre muitos autores que tratam do tema dos direitos humanos, que a democracia e o Estado de direito são elementos indispensáveis para a realização desses direitos. No entanto, como já deve ser de seu conhecimento, existe mais de um tipo de Estado de Direito, bem como mais de um tipo de democracia. Qual Estado e qual sistema democrático praticam melhor os direitos humanos? Aliás, algum desses pode realizar tais direitos? Como uma resposta à própria evolução histórica, podemos observar que muito se tem evoluído na garantia dos direitos humanos, no próprio entendimento do que eles são e de sua importância na sociedade mundial e brasileira. Tendo feito essa análise dos direitos humanos até o presente, cabe agora pensar: quais são os desafios dos direitos humanos, hoje? E amanhã? Mais ainda: pode- se afirmar que os direitos humanos são efetivamente garantidos no Brasil? E no mundo? A resposta mais rápida e fácil a ser dada é que, evidentemente, os direitos humanos não são garantidos de maneira efetiva como um todo; e nem para todos, como podemos ver a seguir. No passado, o Brasil vivia em um Estado escravagista, em que o negro africano não merecia direitos porque não era visto como pessoa, mas sim como propriedade. Para ter direitos, tinha-se que preencher requisitos importantes como: o sexo, a cor da pele, a classe social, as relações de poder, a religião etc. O que vemos atualmente é um Brasil bastante evoluído, mas distante, muito distante, de ser chamado de um país alheio às discriminações. O que falar das inúmeras leis que tentam garantir um tratamento digno aos homossexuais, que, no fundo, ainda enfrentam, diariamente, situações discriminatórias? E, no caso da mulher que os relatórios estatísticos de violência revelam a grave desigualdade de gênero? E da diferença salarial entre homens e mulheres? E o nordestino que escuta diariamente piadinhas de sua origem? E, pior ainda, daqueles que, pelo simples fato de serem pobres, são taxados de marginais? Tais circunstâncias são corriqueiras e fazem parte do cotidiano de todos nós, de forma tão natural que nem parece uma verdadeira afronta aos direitos humanos. A conscientização de todos em relação a isso é um processo demorado. De qualquer forma, o Brasil tem trabalhado bastante na elaboração de um sistema normativo que prima pelos direitos fundamentais, assim como na ratificação e engajamento aos direitos humanos no plano internacional. Sendo assim, o que falta então? O problema está no cumprimento das normas jurídicas criadas, sejam elas de direitos humanos ou fundamentais. Bem como assevera Norberto Bobbio (1992, apud PIOVESAN, p. 110), o problema dos direitos humanos hoje: “não é mais o de fundamentá-los, e sim o de protegê-los”. 20 Capítulo 1 Uma constatação negativa é que ainda temos trabalho escravo em todas as regiões do país, como descreve Breton (2002, p. 25): Hoje em dia as coisas são um pouco mais sutis. Você não possui a pessoa, você apenas a usa por quanto tempo precisar dela. É a escravidão por dívida. Funciona assim: oferecem um emprego para o cara, dão um adiantamento, e ele começa a trabalhar. Quando chega o dia do pagamento, ele descobre que está endividado. Tem de descontar o adiantamento, o pagamento do transporte e o que deve na cantina – alimentos, ferramentas e remédios – a dívida não termina nunca. Com isso, as pessoas trabalham, horas a fio, no meio do nada, correndo risco de vida e, ao final,o que recebem é muito pouco. A boa notícia é que a Justiça Federal está condenando fazendeiros por terem submetido trabalhadores a condições semelhantes à escravidão: pessoas que vivem sem remuneração, presas a relações de dívidas forjadas e as mais variadas condições degradantes de trabalho, expostas a existência de alojamentos precários, instalações sanitárias em péssimo estado de conservação, não fornecimento de água potável, não fornecimento de equipamentos de proteção individual, entre outras. São muitas as situações sendo superadas pela ação dos órgãos que combatem o trabalho análogo a escravo. Outro exemplo são as ações afirmativas, como o sistema de cotas nas universidades. Esse sistema foi criado com o intuito de promover a igualdade material, já que as pessoas negras, constantemente, formam um número muito inferior nas universidades. Isso pode ser justificado como uma consequência das desigualdades econômicas, pois as pessoas negras não têm acesso a uma educação fundamental de qualidade, precisam trabalhar para seu próprio sustento e de sua família, ficando impossibilitadas de competir, em grau de igualdade, com os outros com melhores condições e preparo. Nesse contexto, [...] o Estado abandona sua tradicional posição de neutralidade e de mero espectador dos embates que se travam no campo da convivência entre os homens e passa a atuar ativamente na busca de concretização da igualdade positivada nos textos constitucionais. (GOMES, 2001, p. 20). Mesmo parecendo um caminho simples, muitos brasileiros, na verdade, são contra esse tipo de ação. Não conseguem entender que tudo isso faz parte de um círculo vicioso e que, se não forem promovidas ações discriminatórias positivas em favor dos desprivilegiados, possivelmente o caminho ainda será mais longo para se alcançar a igualdade. O caso do acesso ao ensino superior ilustra, bem, isso. 21 Estudos Socioculturais Uma das principais argumentações contra o “sistema de cotas” era que, mesmo conseguindo entrar na universidade, os cotistas acabariam por desistir, ou mesmo que isso acabaria por prejudicar o próprio andamento do curso, já que esses não conseguiriam acompanhar os outros estudantes em decorrência do déficit no ensino médio. No entanto, pesquisas produzidas, por exemplo, Mandelli (2010), destacam o fato de que, mesmo vindo de um ensino médio defasado, o esforço dos cotistas é tamanho que apresentam bom desempenho acadêmico. As mulheres também são objeto desse tipo de ação, como é o caso de se destinar a elas um número de cadeiras no executivo. Essa ação afirmativa em benefício das mulheres também é uma forma de promover o tratamento igualitário entre homens e mulheres, possibilitando-se que ambos tenham acesso na administração do nosso país. Mas, certamente, há alguns passos importantes a serem dados nessa busca da igualdade entre homens e mulheres, já que, infelizmente, a mulher ainda recebe salários inferiores (mesmo exercendo a mesma função), ocupa menos cargos de chefia (mesmo quando apresenta alto grau de instrução), entre outras situações corriqueiras a serem conquistadas pelo gênero feminino. A violência doméstica e familiar contra a mulher é uma das evidências mais graves das desigualdades de gênero. Considerando isso e verificando a elevação dos índices de violência e a frágil segurança pública a que o povo brasileiro tem sido remetido, seu direito está longe de ter a proteção necessária. A vida e a boa convivência social são essenciais para a humanidade e compete a todos nós, sociedade e organizações do Estado, zelarmos pela sobrevivência saudável e sustentável, nossa e do meio ambiente. Outro elemento que contribui para o direito à vida saudável é o acesso à saúde. O Brasil conta com um sistema único de saúde (SUS) reconhecido internacionalmente pela sua cobertura e universalização do acesso, no entanto, ele não possibilita atendimento satisfatório. Além da falta de atendimento, os profissionais da saúde regularmente protestam por “melhores condições de trabalho”. No concernente ao saneamento básico, a realidade evidencia que metade dos domicílios brasileiros não possuem qualquer ligação com a rede coletora de esgoto, sendo que quanto mais pobre a região, maior o descaso. Também está entre os basilares dos direitos civis o direito de “não ter o lar violado”. Isso vai depender de uma série de circunstâncias para que realmente seja respeitado, tais como: o bairro em que mora, o tipo de policial que está em atividade e, até mesmo, o momento histórico. Tudo isso pode ser comprovado se nos lembrarmos das invasões que ocorrerem nas favelas dos grandes centros, em que absolutamente todos os “barracos” são invadidos, mesmo ali morando pessoas de bem. Essas acabaram pagando por estarem no lugar e no momento errado. 22 Capítulo 1 Muitas pessoas constroem suas moradas em áreas de risco, de preservação ambiental, em lugares que geram perigos à vida. A violação do direito à moradia/ habitação é constante. Acompanhamos diariamente despejos forçados sem cumprir as determinações internacionais de realojar essas pessoas, pois, na prática, elas são retiradas por meio de força policial (que nada mais é do que o braço do próprio Estado). Irresponsabilidades pessoais, privadas e do Estado gerando insegurança às famílias, regiões, cidades, pela falta de condições de um habitar seguro. Os direitos humanos são a melhor forma de se defender e garantir a liberdade pública, assim como de se proporcionarem as condições mínimas para uma existência digna. E, para isso, conta-se com os poderes executivo, legislativo e judiciário, voltados para o fortalecimento da democracia e da paz social. O poder judiciário é o último guardião dos direitos humanos, isso porque é a ele que o indivíduo, provado de seu direito, vai buscar guarida. E, por isso, é tão importante que todos esses poderes estejam preparados para tamanha responsabilidade: a de garantir os direitos humanos fundamentais. A busca pela efetividade dos direitos humanos – principalmente dos direitos econômicos, sociais e culturais – passa pela efetivação de políticas públicas e pela responsabilidade de todas as instâncias e poderes. Muito ainda precisa ser feito, principalmente visando à busca da universalidade e indivisibilidade dos direitos humanos, porque o desrespeito aos direitos civis e políticos e a ausência dos direitos econômico-sociais remete a preconceitos, exclusão e desigualdades evidentes. Aqueles em situação de maior vulnerabilidade social são os mais atingidos. São aqueles que vivem em locais com precárias condições de vida, sem instrução, sem segurança, às margens da sociedade, os mais suscetíveis à violência da criminalidade comum, são vítimas de balas perdidas, de violência na escola, de doenças relacionadas à falta de saneamento básico, entre outras violações. Essas desigualdades ficam ainda mais evidentes quando relacionadas às minorias, porque, por mais que sejam promovidas leis com o intuito de promover a igualdade, ainda enfrentam grandes obstáculos, diariamente. Vejamos o caso das mulheres, das crianças e dos idosos. As mulheres, como já dito, ainda estão num processo intenso de busca de valorização. Profissionalmente, precisam provar que são tão capazes quanto os homens para merecerem respeito, quando em muitas circunstâncias são muito mais capacitadas. Em casa, nem todas mantêm relações de respeito e igualdade na divisão das responsabilidades. 23 Estudos Socioculturais As crianças ainda são as que mais sofrem as vicissitudes da miséria e da violência, já que, por si só, não possuem maturidade para lutarem pela sua própria subsistência e proteção. E, quando acontece de lutarem, a falta de estrutura sempre leva a caminhos bastante tortuosos, que o digam as crianças de rua nas cidades brasileiras, entreguesao abandono, aos vícios, aos abusos. Os idosos também têm sido objeto de legitimação, na tentativa de a sociedade ou os órgãos públicos promover-lhes certa qualidade de vida quando chegam à terceira idade. O fato é que a realidade ainda está distante de acompanhar as normas. Constatam-se abandonos, descasos, fragilidades, violências tanto por parte das famílias quanto por parte do Estado. Quanto aos direitos políticos, esses não são amplamente assegurados quando o povo não tem um mínimo de instrução para entender a importância de seus atos e de suas escolhas, quando prevalece nas práticas dos gestores públicos práticas de manobras conduzidas pelos interesses pessoais, políticos partidários, de grupos privilegiados acima dos interesses coletivos e da república. Podem ser citados muitos outros direitos que são violados diariamente em nosso país, os quais são resultados de muitos fatores, entre eles deve ser ressaltada a falta de informação e até de educação da população quanto aos seus direitos humanos. A importância de nos percebermos como sujeitos transformadores da vida, dos ambientes de convivência, do local onde moramos, da cidade, do país. A paz, a solidariedade, a sustentabilidade a democracia são pilares de uma sociedade que todos precisamos visualizar e ajudar a construir. Muito já avançamos, precisamos continuar nos colocando como protagonistas da vida e da história. Existem muitas iniciativas que evidenciam a responsabilidade do Estado e da sociedade com os Direitos Humanos, veja algumas iniciativas no site da Secretaria de Direitos Humanos: http://www.sdh.gov.br e no site da Secretaria de Políticas para Mulheres: http://www.spm.gov.br. Os links estão disponíveis no EVA. Assim, entendemos que: não basta a incorporação dos direitos humanos ao ordenamento jurídico brasileiro se esse não for do conhecimento de todos. Faz- se necessária a promoção da educação para os direitos humanos, a fim de que a população em geral possa conhecê-los para então buscá-los, respeitá-los e vivenciá-los. 24