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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL CAMPUS DO PANTANAL DIEGO FRANCISCO DE MATOS A DIALÉTICA DE MARX COMO MÉTODO EM PSICOLOGIA: ALGUNS APONTAMENTOS CORUMBÁ MARÇO/2016 DIEGO FRANCISCO DE MATOS A DIALÉTICA DE MARX COMO MÉTODO EM PSICOLOGIA: ALGUNS APONTAMENTOS Trabalho de Conclusão de Curso, apresentado na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campus do Pantanal, sob orientação do Prof. Me. Ronny Machado de Moraes CORUMBÁ MARÇO/2016 DEDICATÓRIA Dedico este trabalho à classe trabalhadora. AGRADECIMENTOS Sob pena de esquecer ou ocupar espaço demasiado para tal fim gostaria de agradecer a todos aqueles que diretamente ou indiretamente, de forma deliberada ou não, contribuíram para a execução deste trabalho. RESUMO O presente trabalho, através de uma pesquisa bibliográfica procura traçar um breve histórico das tentativas de articulação entre a dialética de Marx e a psicologia, além de uma pequena análise crítica do pressuposto que fundamenta essas tentativas. Para tal objetivo foi necessária a elucidação de algumas questões referentes ao estudo de Marx e a questão do seu espólio, a questão da indiferenciação na parceria Marx & Engels. Apresenta-se um breve histórico do desenvolvimento do conceito dialética até chegarmos em Marx, onde aprofunda-se o que seria a dialética para o mesmo. Por fim chegamos as tentativas de articulação entre a dialética de Marx e a psicologia, dando uma pequena ênfase ao projeto de Vigotski, buscando compreender em que momento e o que representa o surgimento da psicologia, bem como uma pequena análise do pressuposto destas tentativas. Nas considerações finais aponta-se que tal empreendimento é passível de questionamento e também coloca-se outras possibilidades de estudo, a partir da dialética de Marx, de conceitos como subjetividade, individuação e personalidade a partir de Lukács e Gramsci. SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO.........................................................................................................5 2. O ESTUDO DE MARX E A QUESTÃO DO SEU ESPÓLIO...................................9 2.1. MARX E ENGELS; MARX & ENGELS?...................................................11 3. HISTÓRIA DA DIALÉTICA....................................................................................17 4. A DIALÉTICA EM MARX.......................................................................................30 5. A DIALÉTICA DE MARX COMO MÉTODO EM PSICOLOGIA............................45 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................56 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..........................................................................64 5 1. INTRODUÇÃO O presente trabalho é fruto do meu percurso acadêmico que se iniciou a partir de um curso de filosofia que freqüentei, o qual me influenciou desde o início no curso de psicologia despertando o meu interesse por metodologia, epistemologia, teoria do conhecimento e pela ontologia, bem como suas relações com a psicologia. No período em que este trabalho foi desenvolvido (minha graduação em psicologia UFMS/CPAN), o curso apresentava três possibilidades de recurso teórico- metodológico para a explicação do comportamento humano: a Psicanálise, a Análise do Comportamento e a Psicologia Sócio-Histórica. No caso da psicanálise, segundo Hermann (s/a) a metodologia é interpretativa, na Análise do Comportamento segundo Neto (2002) a metodologia seria a análise experimental e a interpretação vinculada à uma tradição indutiva. No que diz respeito à psicologia Sócio-Histórica, a mesma tem como método a dialética e seu principal representante foi o psicólogo bielo-russo Lev Semionovich Vigotski1 (1896-1934). Este desenvolveu a maior parte de sua produção em um período de dez anos, esse curto período de tempo é uma variável a ser considerada devido a sua morte prematura aos trinta e oito anos de idade. No Brasil a corrente conhecida como sócio-histórica2 é ainda muito incipiente na psicologia, haja vista que os escritos de Vigotski chegaram ao Brasil somente na década de 80 (BOCK; FURTADO; TEIXEIRA, 1999). Para Sirgado (2000) Vigotski elege as categorias do social e do cultural para erigir a sua psicologia e como método o materialismo histórico e dialético. Nas palavras de Vigotski (2003): O primeiro traço distintivo da nova psicologia é (...). A terceira característica é seu método dialético, que reconhece que os processos psíquicos se desenvolvem em uma vinculação indestrutível com todos os demais processos no organismo e que estão subordinados exatamente às mesmas leis de desenvolvimento que regem tudo o que existe na natureza. (VIGOTSKI, 2003, p. 40) Segundo Vigotski, a nova psicologia se distingue das outras por vários 1 A escolha pela tradução do russo para o português do nome Vigotski segue as orientações de Prestes (2010), mesmo que a literatura utilizada apresente variações. 2 A escolha pela nomenclatura sócio-histórica se deve ao fato dela ter sido disposta na minha grade curricular com essa denominação. 6 motivos, um deles consiste no método. Para ele o método adequado para compreender os processos psíquicos era a dialética. Nesse sentido, apresento algumas questões que nortearam este trabalho: O que é dialética? Essa dialética é a mesma de Marx? Como a dialética de Marx começou a se relacionar com a psicologia? Como Vigotski se apropria da dialética de Marx na psicologia? Nos próprios textos de Vigotski (1991, 2004) se percebe uma clara e explícita influência da dialética de Marx como, por exemplo, no artigo de K. Koffka: "A Introspecção e o método da psicologia. A título de introdução", que foi escrito em 1926, "O método instrumental em psicologia" conferência proferida em 1930, "A consciência como problema da psicologia do comportamento" escrito em 1925, "El significado histórico de la crisis de la psicología: Una investigación metodológica3" escrito em 1927, etc. Dentro desse contexto surge o seguinte problema: como a dialética de Marx começou a ser utilizada como método em psicologia? Para responder a esta questão foi realizada a presente investigação, o método de pesquisa bibliográfica (livros, artigos, etc.) para o levantamento de dados, que segundo Marconi e Lakatos (2003), consiste em um método onde após a coleta do material se realiza uma crítica ao mesmo, se elabora uma redação que no nosso caso se apresentará na forma de um Trabalho de Conclusão de Curso - TCC, segundo os padrões da ABNT. Para Marconi e Lakatos (2003) a pesquisa bibliográfica consiste: Num apanhado geral sobre os principais trabalhos já realizados, revestidos de importância, por serem capazes de fornecer dados atuais e relevantes relacionados com o tema. (MARCONI & LAKATOS, 2003, p. 158) Propõe-se então a realizar uma pesquisa bibliográfica acerca do tema e a partir dos dados obtidos com a pesquisa, fazer uma análise crítica do material através de um texto. Durante o curso de psicologia pude observar que determinados textos utilizados nas disciplinas de psicologia faziam citações de Georg Lukács e, duranteuma viagem para participar de um evento sobre Psicologia Histórico-Cultural em 2012 encontrei um DVD que continha uma palestra do Sérgio Lessa onde o mesmo falava sobre Lukács. 3 "O significado histórico da crise da psicologia: Uma investigação metodológica." Trad. minha. 7 A partir de então comecei a me interessar por Lukács pois através de sua produção eu começava a enxergar uma possível contribuição para a psicologia. Segundo Bottomore (2001), Lukács é situado dentro do campo do marxismo ocidental e salienta: "Os marxistas ocidentais fizeram uma releitura de Marx dando particular atenção às categorias de cultura, consciência de classe e subjetividade."(p. 250). Korsch (2008) também atenta para isso ao falar de uma filosofia que surgia em detrimento do marxismo soviético: "Esta filosofia (...) que se propagava para o Ocidente encontrava nos meus textos, nos de Lukács e de outros "comunistas ocidentais" uma tendência filosófica antagônica(...).(p. 96)" Segundo Netto (1983), Lukács nasceu em 1885 em Budapeste (capital da Hungria), filho de uma abastada família judia. Desde a infância e adolescência Lukács mostra-se desapontado com o modo de vida burguês, e a partir de 1902 (17 anos) irá encontrar na crítica teatral (artes e literatura) espaço para expressar-se. De acordo com o Instituto Lukács (2016), nesse mesmo ano ele: "ingressa no curso de Jurisprudência da Universidade de Budapeste, doutorando-se em Leis em 1906 e Filosofia em 1909." Em 1909 Lukács já tinha escrito "História da Evolução do Drama Moderno", e também como ele mesmo apresenta no prefácio (1967) de "História e consciência de classe: estudos para uma dialética marxista" (publicado em 1923/2003): "(...) já no colégio havia lido alguma coisa de Marx. (...) por volta de 1908 ocupei-me inclusive de O capital, a fim de encontrar um fundamento sociológico para minha monografia sobre o drama moderno. (p. 3)" Neste trabalho de conclusão de curso, as idéias de Lukács foram utilizadas para fazer um cotejamento com as idéias de Marx acerca da dialética por dois motivos: o primeiro se deve ao fato dele ter sido, por um bom tempo de sua vida, hegeliano (sabe-se que a dialética de Marx tem suas raízes na dialética hegeliana). O segundo motivo consiste no fato de que as questões metodológicas eram de primeira ordem para Lukács, conforme podemos notar em seu livro "História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista". Como destaca Goldman Apud Frederico (2016) em uma palestra: "(...) Lukács percorreu sozinho toda a filosofia clássica alemã, isto é, ele foi inicialmente kantiano (...), hegeliano e marxista (...)." É importante ressaltar que segundo Lessa (2006), na década de 70 (Lukács estava mal visto pela ex-URSS), foram descobertos manuscritos de Lukács no seu escritório. Esses manuscritos tinham por título "Para uma Ontologia do Ser Social", e 8 de forma privada esses manuscritos foram retirados da Hungria para a Itália e a França. Na década de 60 alguns dos discípulos de Lukács (Agnes Heller a mais conhecida) irão escrever notas criticando as idéias dos manuscritos e vão acusar a ontologia de "metafísica estalinista" antes mesmo da mesma ser publicada, vale lembrar que Lukács tinha discutido o manuscrito com os próprios discípulos ainda em vida. "Para uma ontologia do ser social" será publicada em 1976 pela primeira vez na Itália e em 1984 será publicado os "Prolegômenos para uma ontologia do ser social" (uma espécie de introdução) e "Para uma ontologia do ser social" em alemão (língua original). Alguns pensadores marxistas europeus irão conhecer o texto da ontologia e irão confrontar o mesmo com as notas críticas dos discípulos de Lukács da década de 60 como mencionado acima. Esses pensadores marxistas que de certa forma irão resgatar o Lukács esquecido da tradição marxista serão: Nicolas Tertulian, Guildo Oldrini, Victória Franco, Preve, entre outros; será por volta dessa época, ao redor de 1983, 1984 que chegará no Brasil a obra "Para uma Ontologia do ser social" em italiano.4 A presente investigação foi iniciada no mês de março de 2015, e apresenta como hipótese a idéia de que a dialética de Marx como método em psicologia é um empreendimento passível de questionamento, a partir da compreensão do que é a dialética em Marx bem como a compreensão do que é a psicologia. Cabe dizer que existem vários tipos de dialética e várias compreensões sobre a mesma. Nesse sentido, é pertinente salientar que o conceito é polissêmico (tem mais de um significado), não só porque nasce na Grécia antiga tendo por esse motivo séculos de desenvolvimento, mas porque foi desenvolvido na Alemanha com Hegel e sabemos que uma palavra em alemão pode ter mais que três significados ao mesmo tempo (INWOOD, 1997). O presente trabalho tem por objetivos: apresentar a problemática da compreensão de Marx diante da questão do seu espólio (o que houve na sua relação com Engels), assim como apresentar ainda que sinteticamente, o percurso histórico do conceito de dialética dos pré-socráticos até Proudhon. Além disso, apresentar o conceito de dialética em Marx bem como algumas tentativas na história 4 As primeiras traduções de "Para uma ontologia do ser social" direto do alemão para o português serão parciais, através das contribuições de Carlos Nelson Coutinho, a partir de 1979. A primeira tradução completa de "Para uma ontologia do ser social" será realizada em um período de dois anos, em 2011 a primeira parte, e em 2012 a segunda parte, ambos pela editora Boitempo. 9 de articulação entre a dialética de Marx e a psicologia, analisando o pressuposto dessas tentativas. 2. O ESTUDO DE MARX E A QUESTÃO DO SEU ESPÓLIO Qualquer pessoa que na atualidade se disponha a estudar Karl Marx precisa necessariamente considerar alguns aspectos comuns a pensadores estrangeiros e que também viveram no séc. XIX. Um dos elementos que se pode assinalar diz respeito à questão do espólio de Karl Marx. Segundo Netto (2006), Marx nasceu na cidade de Trèves, no estado da Renânia (atual Alemanha) em 1818 e faleceu em Londres (Inglaterra) em 1883; sua formação até a juventude é, portanto, alemã. Uma conseqüência dessa formação consiste no fato de que a maioria de seus textos (rascunhos, cartas, jornais, revistas, manuscritos e livros) foram escritos no contexto histórico do idealismo alemão (alemão filosófico) tendo Kant (1724-1804), Fichte (1762-1814), Schelling (1775-1854) e Hegel (1770-1831) como expoentes (RANIERI, 2004). Sobre a escrita alemã, em específico o alemão filosófico do idealismo alemão plasmado em Hegel, Inwood (1997) escreve: As complexidades do alemão de Hegel são difíceis de deslindar para os que falam a língua alemã. Mas as dificuldades são multiplicadas para os que falam outras línguas. Certos termos alemães têm, com frequência, uma gama de significados e usos a que não corresponde exatamente uma única palavra de outra língua (...). (INWOOD, 1997, p. 28) Segundo Ranieri (2004) ao referir-se á alguns conceitos que Marx faz uso: (...) o verbo aufheben (...) significa, a um só tempo, o ato de erguer (algo do chão), o de guardar (um objeto, para que se conserve) e o de suspender (por exemplo, a vigência de um ato jurídico). (...). O problema é que o significado contido em aufheben e desdobramentos é muito maior, mais rico e variado, o que dificulta sobremaneira a versão para um termo adequado, que contenha ao mesmo tempo a unidade e a diversidade do original. (RANIERI, 2004, p. 17) Backes (2011)como tradutor em alemão de algumas obras de Marx salienta que: "(...) não existe nenhuma palavra capaz de reunir a multiplicidade de sentidos contidos na síntese dialética de Aufhebung." (p. 12) Inwood (1997) em seu dicionário Hegel também comenta: 10 Para muitas palavras alemãs significativas não existe um equivalente único estabelecido em nosso idioma. (...). Seria impossível em uma obra deste tipo registrar todas as traduções existentes de todos os vocábulos alemães mencionados no livro. (INWOOD, 1997, p. 11) Sabe-se que a produção textual de Marx estava intrinsecamente vinculada (principalmente a partir de 1842) ao movimento político de sua época, a saber, o movimento dos trabalhadores. A partir das reflexões de Coggiola (2010), é possível dizer que em 1842 o movimento dos trabalhadores já tinha completado mais de 100 anos de existência. Na década de 40 os trabalhadores já haviam passado por experiências como: associações, sindicatos, trade-unions, cooperativas, primeira central de trabalhadores, sociedades secretas, partidos, etc... Assinalamos movimentos importantes como a insurreição dos tecelões de Lyon na França em 1831 e a criação da primeira central de trabalhadores em 1830 na Inglaterra. A organização dos trabalhadores, portanto, nasce como movimento de protesto contra as péssimas condições de trabalho. O nome de Marx está vinculado dentre várias outras coisas ao movimento dos trabalhadores, ao socialismo real e ao comunismo. Segundo Netto (2002), nosso estudo de Marx na atualidade sofre uma influência de uma maneira ou de outra da chamada ―crise do socialismo real‖. O principal objetivo de Marx foi, segundo Netto (2002, 2006) o de compreender a sociedade burguesa a fim de instrumentalizar a classe trabalhadora para um processo revolucionário de transição para outra sociedade. Nesse processo de compreensão da sociedade burguesa, Marx fez incursões nas mais diversas áreas de conhecimento de sua época, tais como: economia, história, filosofia, direito, antropologia, psicologia, matemática, etc. Sabe-se que o livro considerado a opus magnum denominado de "O Capital" foi resultado de mais de 15 anos de pesquisa, coleta de dados, análises estatísticas, etc. participação na luta política, seja através das associações trabalhadores e outras organizações, a saber, o movimento comunista. Voltando à questão do espólio e tradução das obras de Marx. Segundo Netto (2006, p. 37): ―(...) muitos textos marxianos fundamentais permaneceram inéditos por longo tempo.‖ É importante destacar que após a morte de Marx, Engels (1820- 1895), seu amigo, provedor e co-autor em alguns textos, ficará responsável pela 11 publicação de alguns manuscritos de Marx, bem como dar direção ao seu espólio (organização, seleção, basicamente um trabalho editorial). Segundo Neto (2010): Após a morte de Engels, em 1895, o legado e a biblioteca de Karl Marx e Friedrich Engels deveriam ser transmitidos à social-democracia alemã; entretanto, uma vez que a legislação alemã não permitia a transmissão a instituições partidárias, eles foram transmitidos à filha mais nova de Marx, Eleanor Marx, e a duas grandes personagens da social-democracia alemã, August Bebel e Eduard Bernstein (que nos anos seguintes se transformaria no ―pai do revisionismo‖). Dessa maneira iniciava-se um segundo período da história da publicação do legado de Marx e Engels, que se prolongou até a vitória da Revolução Russa. (NETO, 2010, p. 54) Estes elementos já são suficientes para informar que alguns textos de Marx não foram publicados de forma original, e em alguns casos, foram publicados de forma incompleta, alguns foram publicados contra a vontade do próprio autor e em outros casos, alguns textos foram publicados e organizados com o objetivo de parecer textos acabados ou com formas definitivas. Os textos inéditos que Netto (2006) cita acima são comentados por Hobsbawn et al (1983) onde o mesmo afirma que, em específico ―Os Manuscritos de Paris‖ de 1844 (traduzidos e trabalhados por Lukács junto à Riazanov), bem como ―A Ideologia Alemã‖ só foram publicados em 1932 e o debate profundo sobre esses textos surgiu depois de 1945. Outro conjunto de manuscritos importantíssimos para a discussão de método em Marx e outros temas, conhecido como Grundrisse, será publicado entre 1939/41, porém os debates acerca do mesmo surgirão apenas em 1953. Nesse sentido Netto (2002) assinala que boa parte da tradição marxista (Rosa Luxemburgo, Lênin, Plekhanov e Gramsci) não conheceu esses textos fundantes do pensamento de Marx, os quais são importantes, principalmente do ponto de vista metodológico. Após a morte de Marx, os poucos textos que foram publicados vão ficar conhecidos como a tradição do materialismo histórico e dialético, o que será explicado abaixo. 2.1. MARX E ENGELS; MARX & ENGELS? Talvez o leitor não familiarizado com a presente questão se pergunte: Qual é a importância dessas questões para a discussão da dialética de Marx como método 12 em Psicologia? A resposta está de certa forma na própria apresentação. O que queremos ressaltar é que a compreensão do que seja a dialética como método em Marx está sujeita às questões acima. Historicamente falando como veremos abaixo, Marx e Engels são apresentados como parceiros de trabalho e de fato o foram, em um conjunto de textos, contudo nem todos. Porém, segundo Netto (2002) em um curso afirma que: "(...) nem toda contribuição de Engels é compatível com o modo de pensar de Marx, eles eram pensadores autônomos". O leitor familiarizado em contrapartida poderia também perguntar: Por que o nome de Engels, ou o termo ―materialismo dialético ou dialética materialista‖ não aparece no título desse trabalho? Pois bem, essa é também uma questão que remete às colocações acima. Como indicado por Jones, citado por Neto (2010): A difusão em escala mundial do marxismo com o caráter de socialismo sistemático e científico não se iniciou, realmente, nem com o Manifesto do Partido Comunista nem com O capital, e sim com a publicação do Anti- Dühring, de Engels. (JONES, citado por NETO 2010, p. 51). Netto (2006) na esteira de Lukács, afirma que além do Anti-Dühring, o manuscrito inacabado chamado ―Dialética da Natureza‖ escrito na década de 80 por Engels e publicado em 1925 na ex-URSS trazia uma concepção acerca das idéias de Marx como um ―sistema enciclopédico de explicação do mundo‖, além de estender a metodologia de Marx para a natureza. Outra informação importante diz respeito ao fato de que segundo Steinberg (1982) o Anti-Dühring: "representa a primeira exposição global e sistemática das teorias de Marx e de Engels." O autor também ressalta que essa obra foi responsável por algumas deformações no marxismo da Segunda Internacional. Segundo Bottomore (2001) e Hobsbawn et al (2001), é conferido ao russo Georg Plekhanov (1856-1918) a primazia da utilização da terminologia ―materialismo dialético‖ em sua interpretação da obra de Marx e Engels. Influenciado pelas duas obras já citadas de Engels, em um texto de 1891 chamado ―A concepção materialista da história‖. Nesse texto as idéias de Marx são apresentadas como ―toda uma visão do mundo‖. Bottomore (2001) e Hobsbawn et al (1983) também 13 afirmam a influência gigantesca das duas obras de Engels na compreensão das idéias de Marx, mais do que os próprios textos de Marx. Netto (2011) qualificará como ―deformação‖ o que houve no campo marxista, a partir da influência positivista de dois autores, Plekhanov e Kautsky, no seio da II Internacional (Associação Internacional dos Trabalhadores), fundada em 1889e que influenciou todo o contexto até 1914. Importante citarmos aqui a figura de Lênin (1870-1924), o qual segundo Bottomore, se intitulava discípulo de Plekhanov. Historicamente com a liderança do partido bolchevique por Lênin, e a vitória na revolução de 1917, a dialética sofrerá mais uma modificação através daquilo que ficou conhecido como marxismo- leninismo (uma das etapas do marxismo soviético). Segundo Netto (2011): Essas influências não foram superadas - antes se viram agravadas, inclusive com incidências neopositivistas - no desenvolvimento ideológico ulterior da Terceira Internacional (organização comunista que existiu entre 1919 e 1943), culminando na ideologia stalinista. Delas resultou uma representação simplista da obra marxiana: uma espécie de saber total, articulado sobre uma teoria geral do ser (o materialismo dialético) e sua especificação em face da sociedade (o materialismo histórico). (NETTO, 2011, p. 12) Basicamente as compreensões distorcidas da obra de Marx que começaram após sua morte atingiram seu ápice em Stálin na ex-URSS. E mesmo com a queda da URSS, essas compreensões ainda continuam no séc. XXI. Basicamente como podemos perceber com Neto (2010) as compreensões distorcidas de Marx tem o problema da tradução como variável, o processo revolucionário que foi derrotado na Alemanha no início da segunda década do séc. XX, o projeto MEGA (Marx Engels Gesamtausgabe5) iniciado por Riáznov na ex-URSS em 1921 que não se concretizou em detrimento do stalinismo e ascensão do nazismo. Com o fim da II guerra mundial, nos anos posteriores com experiências revolucionárias em outros países entramos no período da polarização do bloco capitalista (EUA) e "socialista" (URSS) e durante esse período haverá uma nova tentativa da publicação das obras completas de Marx e Engels conhecido como o projeto "Marx Engels Werk" que infelizmente teve muitos textos políticos censurados pela própria situação política da época. Nessa época haverá uma nova tentativa de 5 Obras Completas de Marx e Engels. 14 publicação só que apenas das obras do Marx, a partir de Maximilien Rubel, que se colocará contra a tradição que via Marx-Engels-Lênin como uma continuação, contudo não avançou. Em 1970 iniciou um novo projeto chamado MEGA 2 que segundo o autor era um projeto amplo e contava com o financiamento da URSS e RDA (República Democrática Alemã), com o fim da URSS o projeto paralisou. Em 1990 esse projeto retornou e está em andamento6. Nesse sentido cumpre destacar que a compreensão da obra de Marx no Brasil foi duramente influenciada pelo stalinismo, os problemas de tradução e a ditadura militar. Será a partir dos anos 80 que esse quadro começará a mudar através da introdução do pensamento de Lukács e Gramsci no Brasil. Dada a limitação do espaço, cabe encerrarmos esse capítulo expondo uma das vertentes que surgiram em oposição ao marxismo soviético. Essa vertente ficou conhecida como marxismo ocidental, e, longe de ser homogênea, possuía entre seus principais representantes, segundo Bottomore (2001, p. 250) ―Gramsci na Itália, Lukács e Korsch na Europa Central, e, a partir de 1930, a escola de Frankfurt (...).” É importante destacar que o marxismo ocidental mergulhou profundamente nos estudos de juventude de Marx, isso é relevante pois nesse período fica claro o desenvolvimento do método dialético (de 1843 em diante), não por coincidência, a maioria dos representantes do marxismo ocidental se formaram no idealismo alemão (Kant, Fichte, Schelling e Hegel) tal como o jovem Marx. O autor também comenta que: "Lukács foi o mais destacado, mas não o primeiro, crítico a acusar Engels de entender mal Marx: os hegelianos italianos (Croce e Gentile) e os socialistas franceses (Charles Andler e Georges Sorel) precederam-no nesse aspecto. (p. 251)" Outro elemento importante para nós aqui é o posicionamento do marxismo ocidental frente à contribuição de Engels e a questão da dialética da natureza. Sabe- se que nesse livro Engels (1979) diz: 6 O MEGA é literalmente uma empresa secular, e seu começo, seu fracasso e seu ressurgimento refletem paradigmaticamente as tragédias históricas do século XX. Se, como prevê o cronograma da edição, será concluído até 2025, terão sido quase exatamente cem anos necessários para descobrir fielmente o trabalho de Marx e Engels para o público leitor, isto é, sem censura ". A hora, 25 de fevereiro de 1999) trad. google tradutor. Texto extraído do site http://mega.bbaw.de/ último acesso em 31/10/2017 as 16:47min. 15 As leis da dialética são (...) extraídas da história da natureza, assim como da história da sociedade humana. (...). Reduzem-se (...) a três: 1) A lei da transformação da quantidade em qualidade e vice-versa; 2) A lei da interpenetração dos contrários; 3) A lei da negação da negação. (...) as leis dialéticas são leis reais de desenvolvimento da Natureza e, por conseguinte, válidas no que diz respeito à teoria das ciências naturais. (ENGELS, 1979, p. 35) O posicionamento do marxismo ocidental frente a essa questão consistia no que o fato de que aceitar essas colocações engelsianas (como o marxismo soviético o fez), implicava em um menosprezo a dois elementos importantíssimos desconhecidos na natureza: subjetividade e consciência. Elementos preciosos para nossa discussão aqui. Será justamente o crítico que mais se destacou (Lukács), o qual daremos ênfase em um momento posterior. Segundo Hobsbawn et al (1983, p. 378) ―No período revolucionário que se seguiu à Revolução Russa, Lukács e – em medida menor – Korsch introduziram a primeira fenda entre as idéias de Marx e as de Engels.‖ Por fim (1983): (...) em quanto do ponto de vista dos ortodoxos, a individualidade de Engels como pensador quase desaparece totalmente, com base na opinião convencional do Ocidente as suas credenciais de marxista são seriamente contestadas. (HOBSBAWN et al, 1983, p. 382) Lukács ao tratar dessa diferença entre Marx e Engels traz importantes conseqüências metodológicas como já foram assinaladas acima. Elas começam em "História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista" de Lukács (1923) e irão continuar ao longo de suas obras, principalmente em "Para uma ontologia do ser social" (1960). Cumpre também dizer que Lukács e Korsch, segundo Hobsbawn et al (1987), não eram: "(...) fiéis partidários de Lênin, na realidade, no sentido rigoroso da palavra, pelo menos em filosofia, isso não ocorreu."(p. 16) Cabe ressaltar que segundo Coutinho (2011): "(...) Lukács (...) toma distância da concepção da dialética em Engels e a diferencia daquela de Marx. Temos aqui um ponto de convergência entre Gramsci e Lukács (...).(p. 151)" Como o tema deste trabalho é sobre a questão da dialética em Marx, e necessariamente isso 16 envolve a questão da teoria do conhecimento, cumpre apontarmos aqui uma divergência entre os dois autores acima. Segundo Coutinho (2011), tanto Lukács quanto Gramsci apresentam na juventude muitos elementos idealistas, embora ambos tenham amadurecido ao longo do tempo, superando vários desses idealismos. No plano da teoria do reflexo temos a questão da presença de um certo materialismo vulgar entre os anos 1930- 1950 quando Lukács baseia-se em "Materialismo e Empirocriticismo" de Lênin, falaremos a seguir das problemáticas desse texto. Nesse sentido será somente após a década de 50 que Lukács irá superar esse materialismo vulgar da teoria do reflexo da juventude. Contudo, isto não impede quesejam levantadas algumas questões sobre os avanços, como por exemplo a idéia das características dos reflexos antromorfizadores (artístico) e desantropomorfizadores (científico). Nesse sentido como ficaria a questão do conhecimento na filosofia e ciências humanas e sociais? Quando o próprio objeto é o ser humano. Não há uma relação entre sujeito-objeto, uma unidade? Coutinho aponta que essa questão encontra resposta nos conceitos lukascianos de trabalho e interação, nesse sentido a diferenciação entre a ação para com a natureza (posição teleológica primária), e a ação para com outros seres humanos (posição teleológica secundária), que Lukács chama de forma evoluída de práxis social. Como diz Coutinho (2011): O trabalho (...) requer, sem dúvida, um reflexo desantromorfizador da realidade; também deve ser desantromorfizador o conhecimento preliminar dos móveis da ação dos outros homens ou grupos, sobre os quais quero exercer minha ação teleológica (...). (COUTINHO, 2011, p. 161) Mais sobre reflexões e críticas à Lukács citamos José Chasin (1937-1998) e seu livro "Marx: estatuto ontológico e resolução metodológica". Onde o mesmo cita que até mesmo Lukács permaneceu até o fim da vida utilizando o conceito "dialética materialista" (CHASIN, 2009). Realizadas essas observações sobre a teoria do reflexo em Lukács e seus desdobramentos e relações com Gramsci (que não esgotam a temática da relação 17 entre Gramsci e Lukács7), agora nos cabe apresentar uma síntese da história da dialética e a seguir a concepção de dialética em Marx. 3. HISTÓRIA DA DIALÉTICA Como foi dito acima, existem vários tipos de dialética e várias compreensões sobre a mesma. O conceito é polissêmico e possui uma história, de uma simples concepção de diálogo (Grécia clássica) a um método grandioso capaz de compreender toda a realidade, como Hegel (séc. XIX) tenta demonstrar. Para aprofundar a discussão referente ao método em Marx, cabe expor de forma sucinta a história (gênese e desenvolvimento) da dialética, tendo como contribuição o livro ―O que é a dialética‖ de Leandro Konder. Isso tem uma importância especial, pois Konder foi um dos primeiros a introduzir o pensamento de György Lukács no Brasil, juntamente com José Chasin, posteriormente por Carlos Nelson Coutinho e José Paulo Netto. Segundo Konder (2004), ao falar das origens da dialética, é necessário remeter à Grécia clássica. Nesse momento, a dialética era concebida como uma forma de diálogo, onde se demonstrava uma determinada tese, esta [tese] através do diálogo, seria contraposta por outra e desta tensão teríamos um novo conhecimento. Existem algumas discussões que parecem indicar Zênon de Eléa (490-430 a.C.) ou mesmo Sócrates (469-399 a. C.) como fundadores da dialética. Contudo um grande destaque deve ser dado a Heráclito de Éfeso (540-480 a.C.) e aos seus escritos pois indicam alguns elementos que no método de Marx ganharão um importante lugar, a saber, a unidade de todas as coisas, o movimento, a mudança e a transformação. Serão reproduzidos aqui, a partir de Bornheim (1998), aspectos fundamentais da doutrina de Heráclito de Éfeso: 1. A afirmação da unidade fundamental de todas as coisas: frags. 10, 50, 89, 103. 2. Todas as coisas estão em movimento: frags. 12, 49a, 88. 3. O movimento se processa através de contrários: frags. 8, 10, 23, 48, 51, 52, 53, 54, 62, 65, 67, 76, 80, 88, 126. (BORNHEIM, 1998, p. 35) 7 Sobre a relação entre Gramsci e Lukács ver: COUTINHO, C. N. Lukács e Gramsci: Apontamentos preliminares para uma análise comparativa. In: De Rousseau a Gramsci: ensaios de teoria política. São Paulo: Boitempo, 2011. 18 Em contrapartida, Konder (2004) aponta que na época de Heráclito, as características dos seus escritos traziam alguns questionamentos, uma vez que ele negava que houvesse alguma estabilidade no ―ser‖. É importante realizar uma pequena pausa para atentar a categoria ―ser‖. Segundo Abbagnano (2007), o termo refere-se ao: ―uso existencial‖ (p. 878), ou seja, quando é utilizado a categoria ―ser‖ há uma referência à tudo que possui existência, ou seja, que possui realidade, portanto toda a realidade. O principal opositor de Heráclito era Parmênides (530-460 a.C.). Este dizia que uma parte do ―ser‖ se movia (fenômeno) e outra era estática (essência), esta determinada compreensão do ―ser‖ consagrou-se na história da filosofia como metafísica. Essas duas categorias, (essência e fenômeno), serão importantes para a compreensão do método em Marx, ambos serão trabalhados posteriormente. Seguindo a exposição da história da dialética, segue a contribuição de Aristóteles (384-322 a.C.), o qual trouxe uma importante discussão acerca da idéia de movimento. Para ele existem vários tipos de movimento: o movimento mecânico, o aumento quantitativo de algo, entre outros. Outra contribuição são os conceitos de ato e potência, ou seja, o ―ser‖ é movimento potencial que se atualiza constantemente, é possibilidade que se efetiva, que se transforma. Segundo Konder (2004), o período medieval foi marcado pelo predomínio da metafísica, tradição filosófica que se encontrou com a teologia. Ambas ao postular a imutabilidade de certos aspectos da realidade, contribuíram para a manutenção estratificação social. Após o declínio do período medieval e conseqüentemente a reabertura de debates e discussões, o conhecimento científico foi se desenvolvendo. Temos o fenômeno da renascença, da revolução comercial, bem como as incríveis descobertas de Copérnico, Galileu e Descartes, ambos descobriram por outras maneiras que os corpos se moviam. Para avançar na temática faz-se necessário voltar para a discussão da metafísica. Seu grande expoente no período moderno será Kant (1724-1804). Ao tentar resolver a problemática levantada por duas tradições filosóficas na modernidade (o racionalismo e o empirismo), Kant irá discutir a questão do conhecimento. Para ele as correntes filosóficas partiam do princípio da possibilidade do conhecimento, seja através da empiria ou da razão. Dessa forma, para Kant 19 antes tentar conhecer algo, seria necessário discutir algo que (segundo ele) era anterior a própria tentativa de conhecimento. É importante expor que Kant também possuía uma concepção acerca da dialética. Embora segundo Gurvitch (1987), a concepção e postura de Kant em relação à tradição do conhecimento acerca da dialética fosse radicalmente negativa, ela suscitou questionamentos em Fichte e Hegel. Nas palavras do autor (p. 55): ―(...) ao invés de eliminar a dialética, incitou seus sucessores a ocuparem-se dela: Fichte, por um lado, e Hegel, por outro. Segundo o testemunho de Proudhon (1809-1865), foi a leitura de Kant que o conduziu à dialética.‖ Aqui notamos uma digressão importante a partir de Kant. Enquanto Hegel irá travar discussão com o mesmo (Kant), Proudhon se apropria do conhecimento kantiano. Marx estaria para Hegel, como Proudhon está para Kant. Marx irá travar discussão com Proudhon em dois livros: o primeiro escrito no final de 1844 chamado ―A sagrada família‖ e o outro escrito em 1847 chamado: ―A miséria da filosofia‖. Segundo Gurvitch (1987), para Kant a razão não possui condições de atingir o pleno conhecimento da realidade, ou seja, o que sempre possuímos é um conhecimento parcial. Após Kant, teremos uma tradição de pós-kantianos e nesse sentido Fichte se apresenta como um grande pensador que também trabalhará com a dialética. Segundo o autor acima, Fichte é o primeiro pensador a colocar a dialética como princípioderivativo da sociedade. Em relação a ela, a dialética fichteana enfatizará as idéias, mas também os fatos da sociedade. A revolução francesa foi um acontecimento decisivo para os rumos da dialética, isso se torna visível na elaboração da filosofia de Fichte e Hegel. Ela serviu de inspiração para Fichte no que diz respeito a observar a realidade dos acontecimentos sociais nesse período efervescente da história e verificar se existe alguma relação para com a dialética. Para Fichte o Eu é absoluto, esse eu é coletivo, somos ―nós‖. Dessa forma a dialética seria um método que estuda a ação do eu sobre a sociedade, em outras palavras, a efetivação histórica da sociedade. Segundo Gurvitch (1987), o elemento da incognoscibilidade do real como absoluto ficou em aberto na obra de Fichte. Isso foi utilizado de maneiras diferentes na dialética de Hegel e Proudhon. 20 Será Hegel (1770-1831) que irá questionar as postulações de Kant durante o desenvolvimento de uma concepção profundamente articulada que será marcante na história da filosofia, a dialética hegeliana. Konder (2004) aponta que para Hegel, quando eu digo o que uma coisa é, eu já estou partindo de um lugar. Kant ao indagar ―o que é o conhecimento?‖ já parte do pressuposto do próprio conhecimento, já há uma nomeação, qualificação, uma idéia do que ele mesmo questiona. Sob essa perspectiva, para Hegel é necessário partir de o próprio ―ser‖. Escamoteando essa questão, é necessário perguntar: o que vem antes do conhecimento? O que me permite fazer uma pergunta sobre algo já conceituado? Nesse sentido Kant não parte do nada ao questionar o conhecimento, parte de um pressuposto. Segundo Tonet (2013, p. 12): ―(...) partir do exame da razão (...) implica, a resposta à pergunta: o que é a realidade (...)?‖. Está implícita uma resposta à questão do ―ser‖. Nesse sentido, como atesta Tonet (2013), qualquer produção de conhecimento (consciente ou não) tem uma prévia concepção do que é a realidade, ou seja, o que é o ―ser‖. O apriorismo kantiano sustenta uma pergunta que parece estar fora do ―ser‖, ou seja, da realidade. Antes de perguntar-se o que é o conhecimento do ―ser‖, quem pergunta já faz parte do ―ser‖, portanto parte do ―ser‖. Como informa Kosik (1976): O conhecimento da realidade, o modo e a possibilidade de conhecer a realidade dependem, afinal, de uma concepção da realidade, explícita ou implícita. A questão: como se pode conhecer a realidade? É sempre precedida por uma questão mais fundamental: que é a realidade? (KOSIK, 1976, p. 43) Ou seja, o ser humano ao se deparar com a realidade não é uma "tabula rasa", vazia, conforme Locke (1999). Marx nos mostra nos Manuscritos de 1844, que o ser humano é um ser social por excelência, nesse sentido qualquer ser social, independente da cultura, parte do pressuposto de que é possível conhecer a realidade, criando assim uma explicação de como a realidade é, como o mundo funciona. Seja através do animismo (há mais de 10mil anos atrás), seja através do conhecimento científico hoje (Lessa, 2006). O questionamento do pressuposto da possibilidade de conhecer o real foi colocado milhares de anos depois do ser social 21 já ter elaborado, em seus diferentes grupos uma explicação do real. Marx, nas teses sobre Feuerbach (1846), coloca isso como um problema escolástico e ultrapassado. Uma vez que está sendo tratada especificamente a categoria ―ser‖, cabe dizer que segundo Tonet (2013), o estudo do ser é conhecido como ontologia. Faz-se necessário um movimento para compreender melhor esse conceito (ontologia), retornando ao conceito de metafísica que foi citado no começo deste capítulo. Segundo Abbagnano (2013, p. 661), a metafísica ―apresentou-se ao longo da história sob três formas fundamentais diferentes: 1ª como teologia; 2ª como ontologia; 3ª como gnosiologia.‖ Segundo o autor acima, a teologia e a metafísica caminharam juntas na história até se separarem no séc. XII. De forma geral a teologia consistiria no: "estudo, discurso ou pregação que trate de Deus ou das coisas divinas. (...). Em sentido mais especificamente histórico-filosófico, é possível distinguir: 1º T. metafísica; 2º T. natural; 3º T. revelada; 4º T. negativa." (p. 950) Essa idéia foi desenvolvida historicamente pelos filósofos cristãos como: Santo Agostinho, São Abelardo e São Tomás de Aquino. Segundo Tonet (2013) gnosiologia consiste no estudo do conhecimento, ou seja, o objeto de estudo consiste no problema do conhecimento (como conhecemos, fundamentos do conhecimento, etc..). No decorrer do texto apresentaremos com melhores detalhes a questão da ontologia. Nesse momento faz-se necessário expor os rumos que a dialética tomou nas mãos de Hegel, bem como sua relação com o ―ser‖ e com a ontologia. Apresenta-se neste momento o conjunto de categorias que foram citadas durante a história da filosofia e que foram desenvolvidas por Hegel: processo, transformação, efetividade, tese, contraposição, tensão, unidade de todas as coisas, movimento, mudança, contrários, ser, fenômeno, essência e ontologia. Para Hegel a realidade é uma totalidade que se move através de contradições e dentro dessas mudanças há uma identidade na mudança, em outras palavras, há características essenciais que permanecem durante o desenvolvimento dos fenômenos. Dada a importância da produção hegeliana acerca da dialética, cabe apresentar um pouco das condições históricas da época de Hegel. Como atesta Konder (1991, p. 1): "(...) Hegel nasceu em Stuttgart (Alemanha) no dia 27 de agosto de 1770. Naquela época a Alemanha encontrava-se atrasada do ponto de vista econômico e político: “estava dividida em mais de trezentas unidades políticas e 22 administrativas diferentes (reinos, ducados, principados, cidades livres e feudos independentes).‖ Hegel inicia os seus estudos de teologia na Universidade Regional de Tübingen, sobrevivendo com o que seria hoje equivalente à uma (1) bolsa de estudos. Essa bolsa foi conquistada graças ao seu bom desempenho nos estudos anteriores, bem como a influência de seu pai, que era secretário do Departamento de Finanças do governo do Ducado de Württemberg. Segundo Konder (1991) em 1789 Hegel contava com seus 19 anos e presenciava as grandes movimentações políticas expressadas pela revolução francesa. Um dado importante da formação de Hegel será, segundo Konder (1991), reproduzido aqui: O documento de aprovação que lhe deram, redigido em latim, declara que ele não era um grande orador, que não tinha negligenciado os estudos de teologia e que não era um ignorante em matéria de filologia, mas admite que possuía vastos conhecimentos de filosofia. (KONDER, 1991, p. 4) Contudo atesta Konder (1991), mesmo com esse vasto conhecimento de filosofia, Hegel opta por uma metodologia problemática de investigação dos fenômenos sociais de sua época. A saber, parte de concepções subjetivas para compreender a realidade objetiva. Isso aponta soluções limitadas, pois, embora produza um conhecimento acerca do ser (realidade subjetiva), não compreende como essa subjetividade se relaciona com a objetividade, dificultando ações coletivas, levando a ações individuais-isoladas. Ou seja, sua metodologia diz respeito diretamente à sua experiência pessoal (subjetivismo, exacerbação), o que trará conseqüências na sua concepção acerca da dialética. Embora seja colocado o ponto subjetivo como ponto de partida da dialética hegeliana, isso não cancela o fato de que Hegel pôs-se a estudar a realidade objetiva. Segundo Konder (1991), na virada do século XVIII para o XIX, Hegel passou a estudar economia política, autorescomo: James Stewart e Adam Smith. A questão do sistema de Hegel negar o futuro, e defender o status quo da época (capitalismo), segundo Frederico (2009) corresponde a questões metodológicas, e não por conservadorismo. Como sublinhado acima, embora o autor partisse de concepções subjetivas, o mesmo tinha pretensão de discutir a realidade objetiva. Atesta Konder (1991): 23 A razão — insistia Hegel — é universal, precisa valer para todo o mundo, não pode se limitar às motivações de sujeitos particulares; a filosofia, portanto, deve ir além da particularidade e deve, pela reflexão, elevar-se até o absoluto. (KONDER, 1991, p. 20) Hegel tinha a pretensão de um saber absoluto e objetivo, que estivesse acima do saber subjetivo, que fosse inquestionável. Contudo caiu no próprio erro ao partir do saber subjetivo para criar o saber objetivo. Preocupado com a transmissão de suas idéias, Hegel (Konder, 1991) queria trazer ao ―senso comum‖ uma novidade. Essa novidade questionava uma grande máxima produzida por Aristóteles, dentro da lógica formal criada por ele [Aristóteles]. A idéia era a seguinte: ―o que é, é; o que não é, não é‖. (KONDER, 1991, p. 44). Esta máxima historicamente ficou conhecida como princípio da identidade. Para Hegel, superar o senso comum (que produz através do princípio da identidade, um imobilismo) significava elaborar uma nova lógica, que superasse a lógica formal aristotélica. Cabe destacar que seu objetivo era também superar a lógica indutiva (criada por Francis Bacon). Aqui, mais uma vez nos deparamos com a dialética. Segundo Konder (1991), seria a elaboração de novos conceitos que possibilitariam a superação do senso comum e a compreensão do desenrolar da história. Contudo, quando Hegel estava se referindo a uma nova lógica, ele estava falando de ontologia: ―uma teoria do ser‖. (KONDER, 1991, p. 45) O questionamento do princípio da identidade permitia desenvolver uma nova teoria sobre o ser, uma teoria que teria no seu escopo a concepção do princípio da não-identidade ou, em outras palavras, o princípio da contradição. Segundo Reale e Antiseri (2005), será no livro ―Ciência da Lógica‖ que Hegel irá sistematizar a teoria do ser. Parte-se do ser, depois da essência e depois do conceito. Para Hegel, ao dizer ―ser‖, alguma qualidade já está pressuposta, é a primeira determinação que Hegel cria para remeter-se ao ser-que-se-torna (Aristóteles já tinha trabalhado essa determinação), desenvolve-se, ou seja, é um processo interno de desenvolvimento e não uma qualidade externa que é impressa, enxertada no ser. Sem dúvida, quando falamos de conhecimento estamos partindo da questão mais elementar que é, dizer algo do ―nada‖ (desconhecido). Dizer que algo é "nada" ou mesmo "desconhecido" é uma qualidade-em-si. 24 Segundo Mondolfo (1982): La noción del ser es la primera y más vacía entre todas; pero su misma falta de contenido engendra un desarrollo progresivo de determinaciones, (...). El ser, vacío de todo contenido, es en efecto idéntico a la nada; (...) el ser- nada indeterminado se determina, y tenemos así el devenir, negación de la nada que era negación del ser. Del ser puro he-nos pasado al ser determinado o existencia (Dasein); se ha presentado así la determinación del ser o calidad, que, como determinación, es un límite o negación de lo otro ("toda determinación es negación", decía Spinoza) 8 . (MONDOLFO, 1982, p. 5) Hegel quer nos explicar que a existência é uma qualidade por excelência. Tudo é movimento, é qualidade, sempre existiu. Perguntar pela origem da existência, do movimento, da qualidade é uma pergunta abstrata, no sentido de ser irracional, não-ser, não-existência, não-qualidade, enfim, uma pergunta sem fundamento (Marx, 2004). Dessa forma compreendemos que "determinação" consiste em um conceito que expressa a qualidade do objeto, que através da linguagem utilizamos a negação como chave conceitual. Dessa forma a frase acima ficaria dessa maneira: ―o que é, pode não ser; o que não é, pode ser‖. Por isso a definição acima do filósofo B. Spinoza: ―toda determinação é negação‖. Segundo Bottomore (2001, p. 280): ―a negação é inseparável da positividade (...).‖ Tonet (2013) diz: (...) estabelecer a identidade significa, por um lado, capturar as determinações essenciais dele, as suas estruturas fundamentais. Por outro lado, significa estabelecer claramente as diferenças entre ele e os outros objetos. Aqui, cabe a precisa definição de Spinoza: Omnis determinatio est negatio. (Toda determinação é negação). Vale dizer, estabelecer a identidade de um objeto – determinação – é, ao mesmo tempo, negar a sua identificação com outros objetos. Se dizemos que essa planta é um coqueiro estamos, ao mesmo tempo, negando que ela seja uma laranjeira ou um cajueiro! (TONET, 2013, p. 122) O que é importante salientar aqui é que aquilo que permite identificar algo, ao mesmo tempo diferencia esse algo das demais coisas, ou seja, ao afirmar a qualidade de algo eu nego a qualidade das outras coisas. 8 "A noção de ser é a primeira e mais vazia entre todas; mas sua mesma falta de conteúdo engendra um desenvolvimento progressivo de determinações (...). O ser, vazio de todo conteúdo, é com efeito idêntico ao nada; (...) o ser-nada indeterminado se determina, e temos assim o devir, negação do nada que era negação do ser. Do ser puro passamos ao ser determinado ou existência (Dasein); temos portanto a apresentação do ser ou qualidade, que, como determinação, é um limite ou negação do outro ("toda determinação é negação", dizia Spinoza)." trad. minha. 25 Segundo Konder (1991), Hegel irá pensar outros conceitos da mesma maneira (pensando sua determinidade), ou seja, pensando a negação de todas elas. Isso imputa o movimento entre elas, o qual se chama ―determinação reflexiva‖. Nas palavras de Konder (1991): O uno e o múltiplo, o infinito e o finito, o absoluto e o relativo, o positivo e o negativo, a permanência e a mudança, o mais e o menos, todos são conceitos que se acham em determinação recíproca, ou, como diz Hegel, em determinação reflexiva. (KONDER, 1991, p. 46) Por fim, Konder (1991, p. 48) elucida: ―A Ciência da Lógica trata de esclarecer as relações entre os conceitos fundamentais com os quais a razão precisa trabalhar (...).‖ Até aqui se pode perceber uma relação intrínseca entre dialética, lógica e ontologia em Hegel; ou seja, a dialética é o modo como o ser se determina. Ou nas palavras de Chasin (1988, p. 9): ―(...) o melhor modo de dizer o que é dialética é dizer que dialética é a lógica do real.‖ Nesse momento já é possível trazermos uma definição do que é ontologia. Segundo Tonet (2013): (...) a ontologia é (...) a apreensão das determinações mais gerais e essenciais daquilo que existe. A ontologia pode ter um caráter geral, quando se refere a todo e qualquer existente ou um caráter particular, quando diz respeito a uma esfera determinada do ser, como, por exemplo, o ser natural ou o ser social. (TONET, 2013, p. 12) A partir do que foi colocado até agora e fazendo referência a citação acima acerca da relação entre Marx e Hegel, podemos definir a dialética como um conjunto apreendido de determinações gerais e específicas (lógica) do ser que são utilizadas para aprofundar o conhecimento acerca do mesmo [ser]. Ao redor de Hegel formam-se alunos, estudantes, discípulos, pessoas que passam a estudar seu pensamento. Desta situação teremos o conjuntos dos hegelianos que dividiramentre: hegelianos de direita e hegelianos de esquerda. Um autor importante que irá compor a esquerda hegeliana é Feuerbach (1804-1872), o qual influenciou diretamente as idéias de Marx. A primeira citação de Feuerbach encontra-se nos ―Cadernos de Marx sobre a filosofia epicurista‖ de 1839, nesse texto Marx cita a obra ―História da Filosofia moderna: de Bacon de Verulano a 26 Baruch de Espinosa (Geschichte der neuern Philosophie von Bacon von Verulan bis Benedikt Spinoza9), de Feuerbach. Vale destacar que Marx tentou se comunicar duas vezes com Feuerbach e o mesmo nunca o respondeu. A primeira vez corresponde à uma carta de 03 de outubro de 1843, Marx estava em Kreuznach na sua lua-de-mel. A segunda e última vez foi em 1844 quando Marx já estava em Paris, no dia 11 de agosto. Nessa última carta Marx (s/d) diz: (...) me es grato aprovechar la ocasión para expresarle la·alta·estimación y - si me permite la palabra - el amor que siento por usted. Su Filosofía del futuro y su Esencia de la fe son, desde luego, a pesar de su volumen reducido, obras de mayor peso que toda la literatura alemana actual junta. En estas obras ha dado usted - no sé si deliberadamente – una fundamentación filosófica al socialismo, y los comunistas han interpretado así estos trabajos desde el primer momento. 10 (MARX, s/d, p. 679) (...) sería de un valor inapreciable para mí el que previamente me hiciese usted conocer su opinión y, en general me haría feliz si se dignase usted hacerme llegar pronto unas letras suyas. 11 (MARX, s/d, p. 681) Essa situação nos mostra como Marx tinha interesse na opinião de Feuerbach, uma vez que Marx escreve nos "Manuscritos de 44" que Feuerbach tinha sido o primeiro a fazer uma crítica materialista a Hegel, e, nesse sentido, Marx encontrava um interlocutor para compartilhar e refletir sobre tais idéias. Para Frederico (2009) a divisão entre hegelianos de direita e esquerda possuía uma nítida expressão política. Enquanto que a direita hegeliana via o sistema de Hegel como algo efetivo e encerrado, defendiam a monarquia prussiana da época. Já a esquerda hegeliana considerava a negação como característica da idéia e portanto a monarquia prussiana era algo passageiro. Segundo Souza (2013), Feuerbach inicia seus estudos na área de teologia, porém acaba se enveredando para a filosofia. Foi aluno de Hegel e sua tese de doutorado apresenta clara influência hegeliana. Segundo Souza (2013), Feuerbach: 9 História da filosofia moderna de Bacon de Verulam a Bento Spinoza. trad. minha. 10 "(...) tenho o prazer de aproveitar a ocasião para expressar-lhe a alto estima e - se me permite a palavra - o amor que sinto pelo senhor. Sua Filosofia do futuro e sua Essência da fé são, desde já, apesar de seu volume reduzido, obras de maior peso que toda a literatura alemã atual junta. Nestas obras o senhor tem dado - não sei se deliberadamente - uma fundamentação filosófica ao socialismo, e os comunistas tem interpretado assim estes trabalhos desde o primeiro momento." trad. minha. 11 "(...) seria de um valor inestimável para mim que o senhor me permitisse conhecer sua opinião e, no geral me faria feliz se eu fosse digno de entrar em contato com suas cartas." trad. minha. 27 Envia sua tese a Hegel com uma carta em anexo, na qual demonstra, ao mesmo tempo, devoção e intuições críticas ao seu mestre, ou ao seu "segundo pai". Ao que se sabe, Hegel nunca respondeu à tal carta (o que não deixa de soar minimamente curioso). Nos anos posteriores, mais precisamente de 1829 a 1832, ministra aulas na Universidade de Erlangen, mas a publicação (anônima) da obra Pensamentos sobre a morte e a imortalidade (obra na qual Feuerbach nega a existência da imortalidade da alma) condena-o (sua autoria foi descoberta e a obra confiscada policialmente) a um ostracismo intelectual que perdurou (ou perdura?) anos. Tentou inúmeras vezes voltar a lecionar. (SOUZA, 2013, p. 20) Segundo Souza (2013), a principal diferença entre Hegel e Feuerbach é a ruptura com um modelo explicativo da realidade que tenha na idéia ou no pensamento (caso de Hegel) sua autonomia e princípio derivativo. Nas palavras do autor: Feuerbach posiciona-se de maneira radical contra qualquer doutrina que admita um princípio abstrato ou somente pensado ou imaginado e que produza o pensamento retirando-o do seu oposto: da matéria, da essência, dos sentidos. Numa palavra, Feuerbach opõe-se à substância de Espinosa, ao Eu de Kant e Fichte, à identidade absoluta de Schelling e ao postulado hegeliano segundo o qual tudo provém do Absoluto, inclusive o homem. (SOUZA, 2013, p. 39) Nesse sentido Feuerbach faz uma inversão do ponto de partida de Hegel, buscando o princípio, a essência das coisas na materialidade, a saber, numa determinada concepção de natureza. Poderíamos dizer ainda, segundo Marcuse apud Moura (2003, p. 18): ―A filosofia deve começar com o ser, não com o ser-como-tal abstrato, de Hegel, mas com o ser em concreto, isto é, com a natureza‖. Segundo Reale e Antiseri (2005) foi David Strauss quem pela primeira vez classificou as duas correntes de discípulos de Hegel de direita e esquerda hegeliana, e como já vimos existem discordâncias em relação a questões sobre ontologia e método, bem como as questões políticas e religiosas. Segundo Reale e Antiseri (2005), a direita hegeliana era formada por: Karl Friedrich Goschel (1781-1861), Kasimir Conradi (1784-1849), Georg Andreas Gabler (1786-1853), Johann Eduard Erdmann (1805-1892) e Kuno Fischer (1824-1907). O grande biógrafo de Hegel, Friedrich Rosenkranz (1805-1879), foi considerado por Strauss como tendo uma posição central entre a direita e esquerda hegeliana. Do outro lado, a esquerda hegeliana era formada: David Strauss (1808-1874), Bruno 28 Bauer (1809-1882), Max Stirner (1806-1856), Arnold Ruge (1802-1880), Ludwig Feuerbach (1804-1872) e Karl Marx (1808-1883). Embora Proudhon não seja citado como um pensador que compôs a esquerda hegeliana, Proudhon foi considerado hegeliano durante um tempo de sua vida, principalmente quando escreveu: ―Das Contradictions économiques (1846)‖ (GURVITCH, 1987). Segundo Gurvitch (1987), Proudhon não lia alemão. O autor diz que: “(...) Proudhon declarou muitas vezes, e já a partir de La création de L’Ordre (1843), que chegou a seu método sem qualquer contato com a filosofia de Hegel.‖ (p. 97) Contudo Proudhon fez uma série de críticas à Hegel através da leitura em francês de segunda mão. No que diz respeito à dialética hegeliana, Gurvitch (1987, p. 98) diz que Proudhon: ―(...) opõe uma dialética antinômica, antiteológica, antiestatal, anticonformista, revolucionária.‖ A dialética de Proudhon baseia-se em termos antinômicos que - diferente da contradição hegeliana que se resolve numa síntese fundindo-se e gerando o novo num terceiro momento - equilibra-se numa ação recíproca que produz o novo. Além dos pensadores citados que são situados como esquerda hegeliana, temos outro pensador que também fez parte da esquerda hegeliana, seu nome é Mikhail Bakunin12 (1814-1876). Segundo Abrunhosa (2013), Bakunin fez parte da esquerda hegeliana, e inclusive publicou artigos nos Anais Franco-Alemães, jornal esse onde vários outros pensadores escreveram, inclusive Marx. Bakunin traduziu obras de Hegel para o russo e estudou filosofia em Berlim em 1840. Nesse ponto poder-se-ia perguntar: de acordo com a definição acima qual é a diferença da dialética de Hegel e a dialética de Marx? O que Marx quer dizer quando expõe que seu método ―em seus fundamentos, não é apenas diferente dométodo hegeliano, mas exatamente seu oposto.‖ E o que Marx quer dizer quando aponta (2013): Para Hegel, o processo de pensamento, que ele, sob o nome de ideia, chega mesmo a transformar num sujeito autônomo, é o demiurgo do processo efetivo, o qual constitui apenas a manifestação externa do primeiro. Para mim, ao contrário, o ideal não é mais do que o material, transposto e traduzido na cabeça do homem. (MARX, 2013, p. 129). 12 Para mais informações sobre a participação de Bakunin na esquerda hegeliana veja Marx & Ruge em Los anales franco-alemanes, 1970. 29 Aqui Marx acentua a primazia do ser (natureza, materialidade) sobre o processo de pensamento, e não ao contrário como se mostrou a filosofia de Hegel, embora travestida de materialidade. Ou ainda, ―(...) lo que es racional en el método que descubrió Hegel, pero que al mismo tiempo está envuelto en misticismo...(...).13 (MARX, 1978, p. 129)? As palavras de Marx são claras e também como já foi citado por Konder (2011), pode- se dizer que toda a produção hegeliana possui um pressuposto, um ponto de partida: a idéia, o processo de pensamento, ou em outras palavras a subjetividade. Embora Hegel critique Kant por conta de seu subjetivismo, de uma outra forma Hegel acaba incorrendo ao mesmo erro. Podemos aqui reproduzir o próprio Marx (2006): Partindo do idealismo, o qual, dito de passagem, comparei e enriqueci com o idealismo de Kant 14 e o de Fichte, cheguei ao ponto, então, de investigar a ideia, na realidade mesma. Se os Deuses haviam, anteriormente, habitado a terra, tornavam-se, agora, o centro da mesma. Havia lido fragmentos da Filosofia de Hegel, cuja melodia rochosa grotesca não agradou. (...). Durante minha doença, conheci Hegel do início ao fim, juntamente com a maioria de seus discípulos. (MARX, 2006, s/p.) Nesta passagem Marx nos relata um pouco de sua trajetória intelectual, a saber, tal como comentamos na introdução com Lukács, também foi com Marx, ambos refizeram a trajetória do idealismo alemão: Kant, Fichte, Schelling e Hegel. Nesse momento faz-se necessário discutirmos a questão da idéia em Hegel, bem como conceitos como idealismo e o materialismo atribuído à Karl Marx. Infelizmente não temos acesso ao material produzido por Marx depois dessa carta ao pai em 1837, apenas biografias, mas que não revelam exatamente quais foram os principais conflitos de Marx com a tradição filosófica antecedente, bem como os conflitos com a teologia e a religião. O que temos em 1841 é sua tese de doutorado que se chama: ―As filosofias da natureza em Demócrito e Epicuro‖ (MARX, 1972). O único elemento mais próximo que temos é Marx (2013) assinalando sua necessidade ―de investigar a idéia, na realidade mesma‖. Ao que tudo indica a idéia para Hegel ―chega mesmo a transformar num sujeito autônomo, é o demiurgo do processo efetivo, o qual constitui apenas a manifestação externa do primeiro.‖ 13 "(...) o que é racional no método que Hegel descobriu, mas que ao mesmo tempo está envolto em misticismo..." trad. minha. 14 Grifo meu. 30 Segundo Moura (2003) para Hegel tanto a religião, quando a filosofia tinha um mesmo objeto de estudo: o absoluto. E, embora Hegel tenha submetido a religião à crítica pela filosofia, sua filosofia apresenta certo misticismo, embora também haja racionalidade, conforme Marx atesta. É importante que os conceitos materialismo e idealismo não sejam utilizados de maneira rígida ao falar de Hegel e Marx. Moura (2003) assinala que a questão da relação entre filosofia e religião presente na obra de Hegel foi basicamente o motivo da divisão entre hegelianos de direita (conciliação entre filosofia e religião) e os de esquerda (crítica à religião). Esta concepção difere da de Frederico (2009). Conforme informamos acima Marx fará parte da esquerda hegeliana. 4. A DIALÉTICA EM MARX Acompanhando o itinerário histórico da discussão acerca da dialética, nesse momento cabe expor os rumos que a dialética toma na produção teórica de Marx. A discussão acerca do método científico na produção do conhecimento possui suas raízes na Grécia clássica, atravessando o período medieval, moderno e continua sendo uma importante discussão. Segundo Tonet (2013) o método científico tornou-se sinônimo de método científico ―moderno‖, ou seja, a partir das contribuições de Bacon, Galileu, Copérnico, Kepler, Newton, Descartes e Kant. Assim, todo conhecimento científico que é produzido que não se ancora nesses autores ou nesses fundamentos epistemológicos, não é considerado ciência, e em alguns momentos considerado mera ideologia. A expressão política do método científico moderno é a afirmação do capitalismo como última etapa da sociabilidade humana. Nesse sentido a concepção de método em Marx vai em um sentido diferente, tanto porque incorpora as contribuições dos autores citados, de Hegel, como porque sua expressão política é a negação do capitalismo como última etapa da sociabilidade humana. Faz-se necessário expor, nas palavras de Marx (2013) seu próprio método: 31 Meu método dialético, em seus fundamentos, não é apenas diferente do método hegeliano, mas exatamente seu oposto. Para Hegel, o processo de pensamento, que ele, sob o nome de ideia, chega mesmo a transformar num sujeito autônomo, é o demiurgo do processo efetivo, o qual constitui apenas a manifestação externa do primeiro. Para mim, ao contrário, o ideal não é mais do que o material, transposto e traduzido na cabeça do homem. (MARX, 2013, p. 129) Continuando Marx (1978): En el metodo del tratamiento, el hecho de que por puro accidente volviese a hojear la Logica de Hegel, me ha sido de gran utilidad (Freiligrath encontró algunos volúmenes de Hegel que pertenecieron a Bakunin y me los envió de regalo). Si alguna vez llegara a haber tiempo para un trabajo tal, me gustaría muchísimo hacer accesible a la inteligencia humana común, en dos o tres pliegos de imprenta, lo que es racional en el método que descubrió Hegel, pero que al mismo tiempo está envuelto en misticismo...(...). 15 (MARX, 1978, p. 129) Nesse sentido fica evidente o quanto há uma influência de Hegel na concepção dialética de Marx. Questão importante pois uma das características do revisionismo (movimento citado acima) era e continua sendo eliminar tudo que tiver relação com Hegel, inclusive a dialética. Como pudemos observar até aqui, há uma relação intrínseca entre dialética, lógica e ontologia. A ontologia foi trabalhada com os filósofos pré-socráticos, tem o seu apogeu com Aristóteles, e depois reaparecerá de maneira vigorosa na história da filosofia com Hegel. Poderíamos nos perguntar: como se articula em Marx a questão do método dialético, a lógica e a ontologia? Para responder a essa questão precisamos dizer em que momento de seu desenvolvimento a obra de Marx cria uma unidade, um novo padrão de conhecimento (Tonet, 2013). Muito embora algumas pessoas associem o marxismo à pessoa de Marx, segundo Netto (2006) há marxismos e não um marxismo. Segundo Hobsbawn (1983) o conceito marxismo nasce entre os adversários de Marx na década de 60 (séc. XIX), para depois ser utilizado positivamente por Kautsky e por alguns russos, tendo o aval de Engels após os anos 80 (séc. XIX). 15 "No método de tratamento, o fato de que por puro acidente eu tenha voltado a folhear a Lógica de Hegel, tem sido de grande utilidade pra mim (...). Se alguma vez eu tiver tempo paratal trabalho, eu gostaria muito de tornar acessível a inteligência humana comum, em duas ou três folhas de impressão, o que é racional do método que Hegel descobriu, mas que ao mesmo tempo está envolto em misticismo..." trad. minha. 32 Marx inclusive se colocava contra essa nomenclatura pois a entendia como conotativa, dando idéia de seita ou dogma. Inclusive Engels (1982) em uma carta reproduz uma frase de Marx "Tudo que eu sei é que eu não sou marxista". Esses primeiros movimentos intitulados marxismos (escola marxista, marxismo, marxismo russo) por volta de 1890, tinham um característica em comum: a idéia da indiferenciação entre Marx e Engels. O marxismo soviético já no séc. XX adotará mais uma característica o marxismo-leninismo. Lukács na década de 20 reivindicará para si o marxismo ortodoxo ou renascimento do marxismo, junto com Korsch, Rosenberg e Gramsci. Ambos farão críticas ao movimento que eles chamarão de marxismo vulgar, mecanicista, evolucionista e positivista no seio da II internacional. Netto (2002) em um curso, aponta para a distinção das obras de Marx (aquilo que foi escrito por Marx) da tradição marxista (interpretações de certos textos de Marx), tradição que: "(...) amplia, recupera, desenvolve, atualiza, mas ao mesmo tempo, unilateraliza, aleija, deforma a fonte originária. A essa tradição pertence os vários marxismos (...)". Retomando a questão do momento em que a obra de Marx cria uma unidade, um novo padrão de conhecimento, segundo Vaisman e Alves (2009) é: Um equívoco - entre a multiplicidade daqueles cometidos em torno dos modos em que a obra de Marx foi recebida ao longo do século XX - é partir dos Manuscritos parisienses, ignorando completamente a trajetória anterior, e tomá-los de pronto como "projeto filosófico". (VAISMAN e ALVES, 2009, p. 17) Nesse sentido cabe expor a tese através de análise imanente realizada por Chasin (2009), de que o ano decisivo onde Marx torna-se marxista (no sentido de que inicia aquilo que poderíamos chamar de uma nova concepção filosófica, unidade ou padrão de conhecimento, que permanece até os últimos escritos segundo Tonet) é o ano de 1843. Nesse sentido não é com os Manuscritos Parisienses de 1844 e nem com a Ideologia Alemã escrita no final de 1845 e concluída em 1846 como defende o francês Louis Althusser, acerca do corte epistemológico efetuado nesse ano. Como aponta Chasin (2009): 33 (...) em meados de 1843, ao principiar a formulação de seu próprio pensamento, Marx não tem apenas diante de si a "ontologia universalmente explicitada" por Hegel, mas também a explícita negação desta por Feuerbach. Poderia ter dado as costas ao fato, isto é, em especial as "Teses provisórias" e aos Princípios, ou tê-los acolhido de forma mais moderada e especifica, sob o filtro de um ou outro aspecto mais diretamente humanista, como reagira em face de A essência do cristianismo (1841), mas não foi o que aconteceu. (CHASIN, 2009, p. 45) Chasin nos desafia a investigar quatro textos em específico, que seguem a seguinte ordem cronológica, a partir de 1843: ―Manuscritos de Kreuznach (conhecidos como Crítica da filosofia do direito de Hegel), que começou a ser redigida em junho‖; ―A questão judaica‖, que começou a ser redigida em outubro; ―Introdução” – Crítica da filosofia do direito de Hegel que começou a ser redigida em dezembro; e para finalizar os ―Manuscritos Parisienses (conhecidos como Manuscritos econômico-filosóficos) que começaram a ser redigidos em abril de 1844‖. A partir dos mesmos é possível indicar três críticas ontológicas. Segundo Chasin (2009): (...) as três críticas instauradoras dão contorno nascente a uma visão global de mundo, uma vez que tem por objetos a prática, a filosofia e a ciência, respectivamente nas formas da política, da especulação hegeliana e da economia política clássica, admitidas como expressões de ponta da elaboração teórica de toda uma época, por isso mesmo enfrentadas como os circuitos esgotados de um patamar de atividade e racionalidade que cabe superar. (CHASIN, 2009, p. 78) Aqui Chasin aponta três críticas de cunho ontológico que são possível de ser observadas em Marx entre 1843 e 1844 permitindo compreender o desenvolvimento posterior de Marx. A primeira corresponde ao aspecto negativo da política, em segundo lugar ao aspecto metodológico e porfim em relação a descoberta do trabalho enquanto categoria fundante do ser social. O movimento de buscar a explicação das coisas na própria realidade, expressão na carta ao pai em 1837, bem como a concordância com Feuerbach de partir do ser concreto, ou seja, da natureza, de um ponto de vista ―histórico‖ atinge seu ápice nos meados de 43/44. Segue assim a confirmação da ―natureza ontológica do pensamento marxiano‖. 34 Pontuando a natureza ontológica do pensamento marxiano, cabe explicitarmos a natureza ontológica do método de Marx. Nesse ponto pode-se situar a ontologia como fundamento do método (LESSA, 2000). Como vimos acima o ponto de partida de Marx será o ser e não uma lógica a priori, ou mesmo um conjunto de categorias a priori para o tratamento do ser, mas captar a lógica do ser. É somente nesse sentido que podemos situar em Marx alguma lógica dialética, ou mesmo método dialético; operando assim uma distinção radical com a maneira hegeliana de conceber a lógica dialética. Contudo, é importante salientar que Marx não rejeita a tradição filosófica precedente, ou seja, continuará utilizando determinadas categorias, porém numa perspectiva radicalmente nova, a saber, a perspectiva ontológica-histórica. Isso também para assinalar uma diferenciação entre a ontologia hegeliana e a ontologia marxiana. Como foi visto acima, o ―ser‖ em Hegel trilha um caminho de desenvolvimento histórico já traçado por uma lógica dialética criada a priori, e que, portanto torna esse desenvolvimento histórico falso, assim, portanto uma falsa ontologia. Conforme sinaliza Lukács (2012) ao apontar pela primeira vez o caráter ontológico da obra de Marx. Em suas palavras: Apesar da importância da intercorrência de pontos de vista gnosiológicos na lógica ontológica de Hegel, as antinomias decisivas nascem, todavia, quando os fatos ontológicos são deformados em sua essência ao serem enquadrados à força em formas lógicas. (LUKÁCS, 2012, p. 150) Mais adiante: Mas se, como ocorre em Hegel, a lógica for entendida como fundamento teórico da ontologia, é inevitável que as deduções lógicas sejam vistas como as próprias formas da gênese ontológica. Com isso, a hierarquia lógica sistemática passa a constituir a base do método, mediante o qual se percorre obrigatoriamente o caminho – ontológico – para a autorrealização da identidade de sujeito e objeto, para a transformação da substância em sujeito. p. 156 Constata-se que a citação esclarece que toda resolução ou questão metodológica está subordinada à uma questão ontológica. É somente nesse sentido que pode-se compreender as palavras de Marx ao referir ao seu método como 35 dialético. Uma vez que segundo Marx nossa postura diante do objeto deve ser de subordinação, ou seja, de captação da lógica do objeto, sem apriorismos. A contribuição de Lukács acima nos aponta a postura de Marx em relação ao objeto. Parte-se de uma postura ontológica, e a partir desta vai-se captando a lógica geral e específica do objeto estudado. Essa lógica consiste na elaboração de um arsenal categorial que possui concretude ontológica, ou seja, que corresponde ao movimento do objeto. Avançando na apresentação da dialética de Marx, precisamos, pois apresentar algumas questões de caráter
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