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Aula 1 Carraher (1999)

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"56 aciedib ,n qte wjo com neus olb6, cbeiro com o n al rudlz,
pqo com minb6 ,rra<$ on F<xn tnn 4 ponJa de minln lhtAua",
dizem 6 adukos - m4s nAa A oddade. El6 aseditan ern mil coisasqE seus ohos nlAo ueem, nem o nariz chehL nem os ota)idaa ouuen,
nem as ,rtdos pegam.
M. Lob^to. O Picqmt Anaela.
PCIS EU MOBRIA DE
VTBGONHADE SER
UM CACHACEIRO,
AT€ QUE DESCOBRI
QJE,NAVERDADE, I
SOFrc DI ALCOOLSMO: )USAI{DO E ABUSANDO DOS CONCEITOS
Duas pessoas conversam sobre o assassinato de uma mulher por seu mari-
do traidor
Fhvia: Esse machismo tem que acabar! Quando € que os homens vao perce-
ber que a mulher nao € propriedade deles?
Lfcior Isso € machismo? Na minha tera, no interior de Minas, o macho e
aquele que mata o outro homem quando descobre que foi traido.
Aquele que mata a mulher 6 um covarde.
Nossas conversas diarias - na sala de jantar, no trabdho, na sala de aula -
sao caracteriz2das pelo uso natural e constante de conceitos, como na discus-
sao acima sobre machismo. E imposslvel discutir o que lemos no jornal de
hoje sem fazer referencia a termos como guerra, inflagio, diplomacia, movi-
mento estudantil, desenvolvimento econdmico e lideranEa - todos termos que
envolvem conceitos, Nao haveria nem discuss6es interessantes de futebol sem
os conceitos de lengol, folha-seca, falta, escanteio e goleada.
O mundo sem conceitos seria um mundo s€m linguagem, sem comunica-
Eao e sem explicaqoes dos fen6menos que nele ocorrem. Os conceitos seo
ingredientes indispens6veis para o pens:rmento reflexivo, para a ciOncia e para
todas as outras express6es da intelig€ncia humana, na ane, na cultura popular
e nas interaedes sociais. Eles servem como instrumentos ou ferramentas com
as quais o individuo representa e pensa sobre a realidade, organizando e clas-
sificando suas experi8ncias, estabelecendo relag6es, colocando observag6es
em p€rspectiva, planeiando, interpretando, fazendo distinEoes e qualificaq6es,
expressando novas id€ias. Embora os animais possam aprender conceitos rela-
99
tivamente simples, estio longe de poder assimilar conceitos da ordem cie
abstraqdo daqueles utilizados pelos homens. Como salientou o fil6sofo ller-
trand Russell, um cachorro pode ser muito inteligente, mas nAo pode ter a
id€ia de que seu pai era pobre mas honesto.
Mas, se todos n6s usamos conceitos em nossa comunicaeao diaria, qual a
vantagem de estudan'mos os conceitos? Nao e natural usar conceitos, como 6
natural respirar, comer ou dormir?
Oferecemos tr€s respostas a essa observaglo, as quais serao tratadas em
detalhe no presente capitulo. Primeiro, € natural usarmos conceitos e iusta-
mente essa naturalidade nos predispoe a nao refletirmos sobre nossas ideia.s e
as dos outros. Como veremos C facil sermos "ingenuamente realistas" com
relagao a nossas ideias. Segundo, muitos conceitos sao abstragdes "inventadas"
que precisam ser analisadas para ser devidamente compreendidas. E terceiro,
ao aplicarmos conceitos a casos particulares, estamos fazendo interpretae6es. A
consciencia desse fato serve para alenar-nos sobre os abusos na aplicaqao de
conceitos e sugerir modos alternativos de pensar sobre diversos assuntos. Por-
tanto, uma sensibilidade reladva aos usos e abusos de conceitos parece indis-
pensavel ao desenvolvimento do senso critico.
7. O REALISMO INGENUO
Uma vez um colega meu contou uma experiencia sua com seres extrater-
resEes:
- Eu neo acleditava nesse neg6cio de vida em outros planetas Eu semprc
pensava que essas pessoas que falavam de discos voadores eram fanaticas
Mas eu mesmo vi um disco voador com meus pr6prios olhos. E tinha muita
gente ai que viu tamMm. Estava um pouco mais alto que uns coqueiros -
eu sei li,50 ou l0o metros acima dos p€s de coqueiro. Estava rodando em
circulos por cima da gente- Eu neo teria acreditado se nAo tivesse visto com
meus pr6prios olhos
O homem confia em seus scntidos. Elc acha que o que percebe atrav€s
dos sentidos 6 a realidadc. Ele imagina que o que ve 6 a realidade. Ele acha
que nao interpretou nada; ele viu.
A tendencia a tratar noss:ls iddias como "retratos da realidade" verifica-se
nitidamente na experiencia da compreensio do outro,
Para a experiencia ingenua, o fato de estar em "contato com outras pessoas' €
inteiramente direto e sem mediaeao de acontecimentos intervenientes Vive'
mos a comunicagao direta com outros: emoeeo em choque com emoseo,
deseio a encontrar deseio, pensamento a falar a pensamento. Muitas vezes, nao
hd virtualmente intenalo entre o acontecimento psicol(8ico numa pessoa e
sua apreenseo por outra. Podemos ate antecipar o pensamento e os sentimen-
loo
tos das pessoas que conhecemos; pode parecer que estamos ligados Eo dire-
tamenre aos outros quanto aos nossoti pr6prios processos psicol6gicos. parece
suficiente a presenga d:Ls aqoes e prop6sitos dos outros para que estes se tor-
nem visiveis e compreensiveis; o processo parece inteiramente translfcido.
Mas a facilidade e a naruralidade mesmas com que estabelecemos o contato
com as pessoas obscurecem o processo e os problemas bem diiiceis prop<ts,
tos por esse contatol.
O realista ing€nuo tende a tratar os assuntos cotidianos como se fossem
questoes de fato verificaveis atrav€s dos senridos. Quando ele discorda das
ideias de outrem, ele admira a dificuldade que o outro tem em perceber as
coisas. Nossa linguagem tende ar6 a reforgar esta tend€ncia. perguntamos se o
outro "esti percebendo", se "esta vendo" nossas id6ias. Colocamos "observa-
g6es" como se os olhos pudessem resolver as discussoes. Criricamos aqueles
que nao "enxergam a realidade". A pr6pria maneira de designar concepeoes
diferentes como "pontos de visa" e 'perspectivas" trata maneiras de pensar
como essencialmente quest6es de percepgio. Mas, por mais sensiveis que
seiam nossos olhos, nossa visao das id€ias nAo se torna mais clara e profunda.
Nossas idCias nao sao percepgdes. ld6ias podem ocorrer na ausencia de
objetos. Podemos pensar sobre a Justiea, a Matematica, eventos abstratos e do
passado. Portanro, as ideias sao mais afastadas da realidade fisica do que as per-
cepqoes.
O reallsrno ing€nuo2 leva o individuo a encarar os conceitos como se
fossem caracteristicas reais dos obietos e evenros. Por isso, ele tende a ignorar
a possibilidade de conceber os fenomenos de ouras maneiras e a partir de
outras perspecdvas. Essa rendencia restringe sua habilidade de analisar o
mundo de modo flexivel e inreligenre.
Naturalmente, ningu€m € realista ing€nuo declarado. O realismo ingenuo
nao € defendido explicitamente. E descobeno indiretamente em uma atitude
segundo a qual os problemas do conhecimenro seo demasiadamenre simplifi-
cados, Por exemplo, numa discussao sobre um acontecimento algu6m poderia
argumentari
Estou dizendo a verdade. li ou ruao e? Fsta cefto o\t eraclo?
Essa atitude 6 antitetica ao desenvolvimento do senso critico.
2. CONCEITOS SIMPLES E ABSTRATOS
Precisamos examinar os conceitos porque eles sdo tijolos com o:, quais
construimos nossas idCias, os elementos b:isicos com que elaboramos argu-
mentos, tiramos conclusoes, apresentamos os fruros de nosso pensamento aos
outros. Na verdade, a solidez de nossas id€ias depende dos conceitos que
escolhemos para or ganiza-l'd:;.
101
Os conceitos mais simples sao aqueles tipicamente discutidos por fil6so-
fos e cientistas que querem evitar discuss6es complicadas Os exemplos "triin-
gulo" e "solteirio" ilustnam bem este caso, Primeiro, ambos os termos admi-
iem definiqoes relativamente breves. Um triangulo pode ser definido como
uma figura geom6trica composu por trds lados retos que formam trCs veftices
num p'iano.-Um solteirdo € um homem que nunca foi casado Essas defini96es
podem ser tratadas como equivalentes ao conceito; isto 6, pode-se dizer que o
conceito 6 a mesma coisa que sua definiqao, sem que decorram dai grandes
problemas. Finalmente, as definig6es de conceitos simplej
- denotam, isto C,
ionr€m atributos criteriais ou essenciais que servem para delimitar o uso cor-
reto do termo. Deste modo, todas as figuras geom€tricas fechadas (atributo cri-
terial) que tem res hdos retos ligados em 3 vertices (outro atributo criterial)
sao triangulos. O termo denota figuras com essas caracteristicas E todos os
homens (atributo criterial) nao casados (outro atributo criterial) sao solteir6es
He uma correspondencia exata entre "ter os atributos criteriais" e "ser um
exemplo do conceito"3.
ionceitos relativamente simPles (riangulo, casa, rdgua) de!'em ser distin-
guidos dos conceitos mais abstratos (beleza' Matemetica' brincadeira' trabalho,
!tc.), distineio esta que se baseia em diferenqas nos niveis de abstragao'
Enquanto iangulo pode ser descrito e definido em termos de atributos facil'
mente especificdve is, figwa Seomefica teria que ser definida de uma maneira
teo geral que englobasse os conceitos mais simples de triangulo, circulo, poli-
gono, etc. e noqio de trabalho 6 mais complexa ainda, mesmo que se consi-
dere apenas um sentido do termo
Infelizmente - para as pessoas que gostam de suas ideias organiz das
como pratos empilhados no armerio da cozinha - e felizmente - para as pes-
soas que gostam-de constantes desafios a sua inteligencia - a realidade 6 com-
plexa.-E nossos conceitos refletem essa ctlmplexidade Por isso, exploraremos
por que e em que sentido os conceitos sAo abstratos.
3. POR QAE CERTOS CONCEITOS SAO
ABSTRATOS?
E fato evidente que muitos cllrs ternros utilizados comumente nas ciencias
sociais referem-se a conceitos abstrlttos. llasta mencionar algunsr crise de iden-
tidade, imagem perceptiva, esquema, trae() da personalidade - na Psicologia;
alienaeao, falsa consciencia, ideologia e classe - na Sociologia; rito de inicia-
qao, "corporate comunity", casta - na Antropologia; dialeto, competencia
comunicativa, universal e estrutural profunda - na Linguistica Todos estes ter-
mos sao abstratosi. Nao possuem atributos criteriais' nem correspondem dire-
Emente - isto 6. de maneira 6bvia - a obietos ou situaeoes concretas Conse-
qiientemente, e dificil dizer o que os termos denotam. Tyler expressa esta
ideia a seguir, numa consideraeeo sobre o conceito de pensamento:
102
Alguns objetos de nosso mundo sao aparentememe nao problemaricos -
mesas, cadeiras e coisas semelhantes - enquanlo outros, tais como pensanren-
tos, imagens, memdrias e dores, tem um sratus de objeto peculiar... Sua maior
peculiaridade € que, embora nao tenham nenhuma representaEao externa na
percepgao sensorial, falamos sobre eles como se nao diferissem em nada de
mesas e cadeiras que, como todo mundo sabe, podem ser percebidas pelos
sentidos. Pos$o dizer que "eu tenho um pensamento" do mesmo modo que
diria que "eu tenho duas pernas", como se os pensamentos e as pernas fos,
sem obietos da mesma natureza. O problema € que nossa linguagem parece
menlir a n6s mesmos, pois "rer pensamentos" neo pode ser uerificado ou des-
crrlo do mesmo modo que "ter pernas"; as pernas e os pensamenlos neo sao
obietos da mesma /ed lidade. Al\nquagem trata pensamentos e pernas como se
ambos tivessem exensao no espago, como se fossem amb<x substanciass.
O conceito de cultura tamb6m e abstrato.
Cultura, como os conceitos das ciencias fisicas, e uma absragao convenienre.
NinguCm jamais viu a gravidade. O que se ve sao corpos caindo de maneiras
regulares. Ninguem jamais viu um campo eletromagnedco. Porem, alguns
acontecimentos que podem ser vistos recebem uma formulaqao chra e abstra-
ta ao pressupormos que existe um campo eletromagnetico. Pela mesma
nogeo, ningu€m jamais viu uma cultum6.
O autor esti ceno ao afirmar que nenhum exemplo de cultura, nem de
gravidade, foi ar€ hoie observado. Por6m, cenas diferenqas entre o caso de czrl-
tura e de grauidade merecem comentdrios. Primeiro, embora a gravidade nio
seja diretamente observ,vel, € calcul;ivel a partir de observaE6es sobre eventos
reais. Pode-se observar obietos caindo e medir sua velocidade em momentos
sucessivos. A mudanga de velocidade por unidade de tempo (que chamamos
aceleraqao) € calculada para qualquer intervalo de tempo, Se o obieto for sufi-
cientemente denso - para evitar resistencia do ar - essa mudanEa de veloci-
dade seri consrante: em cada segundo a velocidade aumentari em 9,8 metros
por segundo. Enim, a gravidade est6 diretamenre ligada a observagoes sobre a
realidade. Nd.o faz sentido perguntar se a gyauidade 6 real ou nAo, no sentido
d.e ocupar uma posiQAo fsica no eWQo, igual a urna cadeira ou urru, trAsa,en uista de que grauidade refere-se a relaQ6es entre a&ectos de realielade
fsica. Cultura tamb€m se refere, embora de maneira mais imprecisa, a mrihi-
plos apectos <Ja realidade: is tradiqdes, ane, costumes, 6tica, formas de expres-
seo, comunicaeao, organizaqeo e controle social, entre outros aspectos de um
grupo social. E um tcnlo extremamente rico e abrangente.
Conceitos, portanto, nlo sc referem neccssariamcnte a ()bjctos, evcntos ou
situae6es concreas. Podem refcrir se a aspcct()s, lr cstad()s, a relaq6es, de tal
modo que nao ha,a necessarianrcDte unra rclagio tle um J um entre o termo
conceitual e um objeto ou caractcristica isohvel uo ambientc, ou sela, entre o
conceito e um determinado tipo de obscrvacio.
ro3
Nao s6 e verdade que os conceitos abstratos podem ser 6teis, mas os
grarrdes irtsigbts nas ciencias sociais - quase sem excecao sdo formulados e
expressos com o auxilio de termos absratos. Examinemos, por exemplo, ils
reflex6es de Sigmund Freud sobre a dinAmica de culpa, na sua obta Mal-Estar
Na Ciuilimgdo:
Quanto mais virtuoso um homem 6, mais severo e desconfiado e o seu com-
ponamento, de maneira que, em tiltima anilise, sao precisamente as pessoas
que levaram mais longe a santidade (Heiligkeit) as que se censuram da pior
pecaminosidade... A mi sorte - islo e, a frustraeeo externa - acentua grande-
meote o poder da consciCncia no superego. Enquanto tudo corre bem com
um homem, a sua consciencia e lenitiva e permite que o ego faca todo tipo de
coisas; entretanto, quando o infontnio lhe sobrev€m, ele busca sua alma,
reconhece sua pecaminosidade, eleva as exigencias de sua consciencia impde'
-se abstinencia e se castiga com penilencias. Povos inteiros se comportamm
dessa maneira, e ainda se comportam. [sso, contudo, 6 facilmente explicado
pelo est:igio infantil original da consciencia, o qual, como vemos, neo e aban-
donado ap6s a introieqeo no superego, persistindo lado a lado e por trds dele-
O Destino e encarado como um substitulo do agente parental Se um homem
e desafofiunado, isso significa que neo e mais amado por esse poder supre-
mo, e ameagado p()r essa falta de amor mais uma vez se curva ao represen-
tante paterno em seu superego, representante que, em seus dias de boa sone,
estava pronto a desprezai.
,ds reflex6es de Freud constituem uma analise (apenas uma parte da qual
foi reproduzida aqui) extremamente penetrante sobre a culpa humana que
nao poderia ser feita sem a utilizaEao de conceitos abstratos, alguns dos quais
de um alto nivel de abstragio.
De fato, as ideias neo seo obsen'aedes, mas sim inferencias sobre observa-
g6es feitas por Freud e outros. Por mais simples que sejam, sao brilhantes.
Freud nao este meramente dizendo clue as pessoas ficam tristes quando t€m
azar, mas, sim, que as pessoas se culpanr, se ccnsuram, se punem - sem saber
- nesta.s condieoes. A cvidoncia para esta noeio oio € apresentada, mas basta
salientar o empenho com que muitos individuos recusam auxilio de outros
quando sofrem grandcs frustrag6es; esta resistencia sugere que o individuo
este motivado a se punir, a sofrer. Outras pessoas ate se autodesprezam
quando fracassam (no vestibular, no casamento, etc.).
A explicaeao mais eKensa oferecida por Freud para este fenomeno tam-
bem e extremamente reveladora. No estagio infantil do desenvolvimento
humano, as frustraq6es causadas pelos pais com
relag6o ) crianga levam-na a
sentir uma falta de amor e desenvolver recursos para lidar com este sent!
mento, entre os quais o esabelecimento de uma consci€ncia. Segundo Freud,
a mesma dinimica ou conflito de forqas continua operando, embora simbolica-
mente, quando a crianca cresce, com o Destino substituindo ou representando
t04
os pais: se o destino frustrar o individuo, elci reage como uma pessoa nao-
-amada e sem valor.
Alguns conceitos na ciaeao seo rcc,ricos na medida em que es6o intima-
mente associados a uma teoria e entrelaqados com outros termos te6ricos.
Consideremos o termo "superego", por exemplo. A utilizaeeo deste termo
necessariamente implica que seu usuario aceita certos pressupostos te6ricos -
neste caso, psicanaliticos - a respeito da estrutura psiquica, a origem da cons
cidncia e ideal do ego, bem como a natureza da modvagao e suas formas de
expressio, a existencia dos ins ntos, do ego e id, etc. Nao faz sentido usar o
termo "superego" fora da tradiqao psicanalitica em que foi desenvolvido e em
que ele constitui um conceito te6rico fundamental. Usar o conceito implica em
aceitar a teoria freudiana nos seus pontos fundamentais.
Outros conceitos ou termos abstratos na mesma ciaqao nao sao te6ricos,
podendo ser empregados sem implicar numa aceitaeao de ideias peculiares a
uma teoria ou escola de pensamento. Mencionamos os termos "virtuoso", "pe,
caminosidade", "amor", "boa sone" e "estrategia" como exemplos. € chro que
uma teoria poderia adotar definisdes especiais para esses termos; neste c2lso,
seria correto tratar os termos como sendo te6ricos. Porem, ate agora nenhum
deles 6 um termo consagrado dentro de uma tradigao te6rica e, poftanto, nao
deveria ser considerado como implicando na aceitagao de uma perspectiva ou
teoria abrangente.
4. DEFTNIQOES CONCETTaATS E OPERACTONATS
Evidentemente, nao se questiona o fato de um riangulo ter, na realidade,
tr€s lados retos, do mesmo modo que nao se questiona se um solteirio pode
ser casado. O significado destes conceitos simples € apenas uma questdo de
convenqao. Poftanto, nao he raz6es para questionar as definiq6es dos dois
termos.
Entretanto, muitos conceitos que o leigo ou iniciado nas ciCncias consi-
derariam simples conceitos da vida diaria representam grandes problemas con-
ceituais para pesquisadores na drea, como 6 o caso de clase ou classe social. O
conceito de classe e tao rico, teo absrato e te6rico, que nao seria definitiva-
mente descrito ou esclarecido apenas citando uma frase de diciondrio, como,
por exemplo, "grupo ou camada social que se organiza, em sociedades estrati,
ficadas, e para cuia firrmagio contribuem a divisao do trabalho, as diferenqas
de propriedade e dc rcnclas ou a distribuiqao de riquezas '3. O pr6prio Marx,
para quem a noeeo dc classc crx t'() fundamental, 6 criricado p<tr nlo ter escla,
recido suficientemente o t(jrmo ()u por tcr utilizado miltiplas c conflitantes
noq6es dele:
A verdade €que a ( rernrin()l( Eix ) de Nlxrx I tlescuidetla. Bnquanro o termo''classe l(rasse) emprega tanrbdn palavras crrnro stratunt e "estate" (Stand)
105
como se fossem inrercambiiiveis. Mais do que isso, aplica o vocebulo classe'
a vlri()s grupos que, em termos te6ricos, sao obviamente serores de cliuse",
para se falar corretamente. Assim fala dos intelectuais como a 'classe peri
gosa , dos banqueiros e prestamista.s como a "classe de parzrsitas", e assim por
diante. O que importa, ent.etanto, e at€ oDde esse relaxamento terminol6gico
esc()nde ambigiiidades ou confus6es conceituaise.
Digamos aqui que, embora a tarefa de definir "classe" em Sociologia
constitua um desafio conceitual de grandes propore6es, impossivel de ser
resolvida numa frase ou num artigo, o leigo nio vd dificuldade alguma em
utilizar o rermo em sua vida cotidiana.
Em estudos ciendficos, porem, o investigador precisare escolher meios
para avaliar a classe de individuos especificos. Para tal fim, renda familiar per
capita talvez seja criterio apropriado, porque h6 uma forte correspond€ncia
entre classe social e a renda das pessoas, Neste caso, a definiEao operacional
de classe social poderia ser feita por meio da renda familiar do individuo. Con-
ceitualmente, no entanto, "renda" nao pode ser tratada como um equivalente
de "'classe", pois e$e conceito nao tem o mesmo significado - e conceitual-
mente distinto de renda:
Como Marx deixa claro em sua discussao inacabada no fim do terceiro volume
de O Capital, a "classe" nao deve ser identificada com fonte de reoda na divi-
sio do trabalho: isso produziria uma pluralidade de clztsses quase intermine-
vel. Mais do que iiso, as classes nunca sao, no sentido de Marx, gruPos de
renda... € possivel que dois iodividuos tenham rendas identicas e, ainda assim,
perteneam a cLcses diferentesr tal pode acootecer, por exemplo, com dois
pedreiros, um dos quais tem o seu pr6prio neg6cio, enquanto o outro e
empregado de uma grande firmalo.
Em suma, hi dois tipos distintos de definiq6es. As d€finig6es concei-
tuais referem-se ao significado de termos enquanto representagoes dos con-
ceitos, e o processo pek; <1ual estas clefinicoes seo estabclecidas chama-se con-
ceituaeao ou teorizacao, Definie6es operacionais rcfcren-se aos procedi-
mentos adotados em detelnrinados estuckls ou Pesquists para avaliar e tesur
id6ias na rc"alklade. Num cstutlo quc investiga os efeitos da fome sobre a capa-
cidade de concentraqao nretttll, a ftrnte 1:xrcle ser definida operacionalmente -
ou seia, operacionalizada com t afirntacio do sujeito de que esd sentindo
fome" ou "o fato do indivicluo neo ter comido nas dltimas X horas". A concen-
traqao mental pode ser definida operacionalmente em termos do ntmero de
itens corretamente respondidos numa tarefa de discriminaqao perceptiva Na
quimica, o 6cido pode ser definido operack)nalmente como a substincia que,
colocada em contato com metais, os ataca produzindo Hr.
Lembramos que definie6es nao sao conceitos, mas apenas descriqoes ripi-
das deles. Conceitos simples podem ser adequadamente definidos por meio
de verbetes num dicionerio, enquanto os conceitos complexos apenas sllo
lo6
vagamente descriros por meio de definie6es. Machismo pode ser definido
sucintamente, mas o conceito de macltismo vaj muito alem da definigao, exi,
gindo-se muita reflexdo, andlise e observagio cuidadosa.6 nesse espirito que
os cientisus sociais tendem a nao se prender demasiadamente a definie6es:
Dentro da menulidade medieval, a deliniqeo, seja bem feira ou neo ou at€
apenas verbal, era encarada como r) inicio e o fim de qualquer conhecimento
e sabedoria. Os estudiosos medievais quase sempre iniciaram suas obras com
a consideraqi() de definiqoes e freqtientemente as terminaram da mesma
maneira. Os seus livros textos eram, is vezes, nada mais que c()letaneas de
definiqOes. N() cn6nto, se quisermos saber se unt texto hoie em dia €
moderno, precisanos saber quantlLs definigoes ele contem e onde es&-i() locali-
zadas. Quanto mais loo{ie do inicio do livro e quano menos enl relaqao ao
tamanho do livro, tanto mais moderno o livro €lr.
,ds definiqoes sao Uteis para climinar ddvidas blsicas sobre rermos,
quando o usuario tem pouca nogto do seu significado. porem, os verdadeiros
problemas que surgent em discussdes e investigaq6es nas ci€ncias humanas
raramente podem ser resolvidos por n.leio de dici()niirk)s.
5, CONCEITOS E CONTEXTO
Como mencionamos, termos e expressoes freqr.ientemente denotam. Uma
cadeira, por exemplo, denota um m(tvel usado para uma pessoa sentar. Mas as
conotaE6es dos termos e conceitos pctdem ser tamb€m extremamente impor
tantes.
O termo prostituta" significa unta mulher que ganha dinheiro em troca
do sexo. Mas precisamos reconlrecer tamb6m as conotae6es dos rermos, ou
seia, aquilo que 6 rransmitido al€m das informaq6es presumivelmente ineren
tes r.lo significado literal. ,\s conotae(ies do tetmo prostiturd sao negativas ou
pejorativas, decorrendo
em parte dos estere6tipos asstriados ao termo. I,,lo
Brasil, € comum encarar a prostituta, por exempk:, como alguent de uma
camada de baixa renda, que tem intercambio com viciados em drogas, e rem
um baixo nivel de instrugao, enre outras coisas. Rotular algu6m de prostituta,
poftanto, confere propriedades que vao al6m da denotaqto.
Quando 6 sabicJo que uma mulher a quem o termo € aplicado ni() c unta
prostituta, o motivo (lo fltlante obviautente nao consiste em descrever sua prct
nssao, mas transmitir utna inrl)rcssan) ()u imagem cla ntullrer sobrc clucnt lila.
Para compreender 0 significado socill (la afirntativil, l)t.ccisamos c()nstatar oque o locutor esrd firzcnrkr ao clizi'kr:
- ele esti quercndo dizer (lue ellt a um llltu cirriitc!. ?- estd querend<t insultar o ln:lrid)7
r07
- insinuar ao medico que ela e promiscua e' com isso' que sua doenea €
ven€rea?
"gozar" o ouvinte para ver se ele ficare com raiva?
O termo em si tem certas conotae6es; porem, a interpretaqao da frase
"Maria 6 uma prostituta" depende de como o locutor esta empregando a
expressao no caso. Com um termo tao carregado qnatlo Fostituta, os usos e
nbuso, ,ra comunicaEao sao muito evidentes. os motivos do locutor sao mais
aparentes e 6 mais ficirl fazer uma analise pragm1tica da comunicaqao Por
outro lado, pode-se usar conotaEao de forma mais sutil:
- Voce nao esttr sendo razodvel. Voc€ realmente quer que a <iirctoria de nosso
clube permita que as baba6 das familias usem a piscina? vai ficar cheia de
matutas.
No exemplo, o termo rctzoduel e utilizado para persuadir o ouvinte a
mudar de posigao. O locutor emprega o conceito "razodvel" nio com a inten-
eeo de descreuer, de maneira objetiva, a posieao do outro, mas com a inteneao
de prescret)er como o outro deveria pensar. Nota-se tamb€m o uso do termo
-otut^,o conotaeoes depreciativas. O argumento psicol6gico tem forqa na
medida em que esses termos avaliativos pressionam o ouvinte a modificar sua
posieao.' Do mesmo modo que a escolha de termos pode servir para criticar' pode
tamb6m promover a aceitaeao de certas posiqoes Na seguinte entrevista' nota-
-o, .orno o entrevi$ado utiliza termos que favorecem sua imagem diante dos
Ieitores da rcvista Der Spiegel O entrevistado 6 o diretor da organizaeao Flash'
que providencia beb€s de familias pobres do terceiro mundo para casais euro-
peus:
Spiegel: Senhor llordijk' Flash" Atua como organizaeao particular de cambio
de beb€s oa Holanda, a 4 km da fronteira com a Alemanha Se o
senhor fossc para a Alenenha, as atividadcs de sua organiza{;o
seriam imediataillcnle interditdclas
Hordijk: Na Alemanha, precisa-se cle uma au()rizaqeo oficial para trabalhar
como agerlci.l de ad<4:io N4!s aqLli na Ilolanda qualquer um pode
trabalhar assim N(is fxzemos isso por idealismo
Spiegell O que sigttifica idectlLsmo?
ri"tJijt, Noi acreditamos que frcqiientemente a adoeao 6 a iltima esperanEa
de sobrevivCncia para muitas crianeas Suas maes sao solt-eiras e mui
to Pobresl2
o conceito de idealismo pode at€ descrever os motivos de um ou outro
membro da organizagao em certos momentos Porem o diretor deixa de men-
.ionar a lucratividade de sua atividade: conforme a reponagem, alguns beb€s
sao vendidos pelo valor de dez mil d6lares. O conceito de idealismo sugere
108
que o diretor da otganizagdo trabalha em condiq6es adversas, qua.ndo, na reali-
dade, a ag€ncia de adoeao tem fins "bastante lucrativos". O "idealismo" \Ao e
mencionado para descrever de forma precisa os motivos da organizagao, mas
proteger sua imagem. Ser idealista no sentido de sacrificar-se pelo bem-estar
de outros sem interesses pessoais e uma razAo para alto prestigio e aceitaeao.
O pensador critico, ao ler a reportagem, tende a notar como as ideias promo-
vem interesses. Ele reconhece a incoerencia entre o uso normal dos conceitos
e o uso neste contexo, onde cenos motivos levam o entrevistado a distorcer as
id€ias ao apresentiJas.
&rercicios - Capitulo 5:
Usando e Abusando dos Conceltos
1. A seguir, apresentamos alguns conceitos que vocC conhece. Ordene-os
em ordem crescente de abstraQao. (1 = mais concreto; 5: mais abstrato)
- Classe social- Autom6vel- Campo magnetico- Ego, superego, id- Dor
2. Analise o seguinte debate e explique a causa da divergencia:
JoSo: A gravidade ndo 6 real, pois nao posso pegiJa ou leva-la ao
microsc6pio.
Sandra: A gravidade 6 real! Se vocd soltar um objeto no ar, ele cairA ao
solo, e a taxa de variagao da velocidade seri de 9,8 metros por
segundo quadrado.
Quem tem razao, na sua opiniao?
3. "Nao adianta se um fil6sofo tenta descobrir as leis da natureza, mesmo se
esforeando muito; nenhum fil6sofo pode faz€-lo pela simples razao de
que, se dver sucesso, as pessoas o chamariam 'cientista'."
J. Kemeny. A Pbilosopber Ipob at Science. Nova York Van Nostrand, 1959, p. ix.
Que conceito de fil6sofo e usado na citaqeo?
" 4. Que aspectos sao basicos A noqeo de ave? lsto e, que aributo caracteriza
todas as aves? O termo denota que caracteris cas?
(a) Ter 2 asas.
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