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Resumo FAORO: Capítulo VI - Traços gerais da organização administrativa, social, economica e financeira da colonia

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CAPÍTULO VI TRAÇOS GERAIS DA ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA, SOCIAL, ECONÔMICA E FINANCEIRA DA COLÔNIA 
1. A administração e o cargo público 
2. O espectro político e administrativo da metrópole e da colônia 
3. As classes: transformações e conflitos 
4. A apropriação de rendas: o pacto colonial, monopólios, privilégios e tributos 
O funcionário é o outro eu do rei, um outro eu muitas vezes extraviado da fonte de seu poder. A luz do absolutismo infundia ao mando caráter despótico, seja na área dos funcionários de carreira, oriundos da corte, não raro filhos de suas intrigas, ou nos delegados locais, investidos de funções públicas, num momento em que o súdito deveria, como obrigação primeira, obedecer às ordens e incumbências do rei. A objetividade, a impessoalidade das relações entre súdito e autoridade, com os vínculos racionais de competências limitadas e controles hierárquicos, será obra do futuro; do distante e incerto futuro. Os ordenados dos funcionários pouco crescem no curso dos anos numa despesa global fixa, apesar do número crescente de pessoal, com o aumento das tenças e dos juros nas despesas públicas, o que sugere a expansão da nobreza e do comércio, controlada a burocracia numa rede de governo, que gravita em torno do rei e de sua aristocracia. Os vícios que a colônia revela nos funcionários portugueses se escondem na contradição entre os regimentos, leis e provisões e a conduta jurídica, com o torcimento e as evasivas do texto em favor do apetite e da avareza. O golpe contra a burocracia, ao tempo que fere a corrupção, vibra a corda nacionalista, do embrionário nacionalismo do Brasil. O protesto terá fundamento na repulsa da burguesia comercial, à qual Vieira estava ligado, e nos interesses brasileiros, já conscientes da exploração metropolitana. Em todos os botes a denúncia quer mostrar o domínio do funcionário, sombra do rei, infiel aos fins ideais do soberano, mas coerente com o patrimonialismo que este encarna e dirige. O burocrata, já desenvolvido do embrião estamental do cortesão, furta e drena o suor do povo porque a seu cargo estão presos os interesses materiais da colônia e do reino. O súdito não é apenas o contribuinte, mas a vítima do empresário que arrenda os tributos, a vítima dos monopólios e das atividades da metrópole. Ao contrário do mundo holandês e inglês, a rede, a teia de controles, concessões e vínculos avilta a burguesia e a reduz à função subsidiária e dependente do Estado. O funcionário, de seu lado, acostado ao fidalgo, desdenha o comerciante no seu parasitismo e no seu aproveitamento do trabalho alheio para enriquecer. Vilhena, no começo do século XIX, sabia melhor do que os historiadores futuros que, mesmo os paulistas — membros da categoria dos conquistadores —, apesar da fama de "facínoras, rebeldes ao soberano, e insubordinados às leis", são "todos vassalos da Coroa portuguesa os que nesta dilatadíssima região têm dado as mais evidentes provas de fidelidade, zelo, e obediência ao seu Soberano, quem mais tem exposto as vidas em benefício da pátria, em utilidade da capital, e da nação". A força integradora, que arrasta, na cauda, todas as energias e todas as rebeldias, será a camada dos fiéis agentes do rei e dos funcionários. Não tardaria muito e a venda dos empregos elevaria aos cimos da nobreza a burguesia enriquecida, para indignação e pasmo das velhas linhagens. em presença do chefe, encostar podem Os queixos nos bastões da fina cana. O quadro metropolitano da administração como que se extravia e se perde, delira e vaga no mundo caótico, geograficamente caótico, da extensão misteriosa da América. Os juristas e burocratas portugueses, pobres de inspiração criadora — ao contrário dos escolásticos espanhóis, enredados na subtileza de especulações pouco práticas, e dos colonizadores ingleses, desvinculados da teoria rígida — transplantam mais do que adaptam, exportam mais do que constroem. Na cúpula da organização política e administrativa situa-se o rei, com os poderes supremos de comando, conquistados na fixação do território e nos acontecimentos revolucionários do século XIV. A única facção inassimilável ao absorvente comando nobiliárquico estamental, com o núcleo no cristão-novo e nos manipuladores do dinheiro e do crédito, sofre, durante mais de dois séculos, duro, enérgico e persistente combate, por meio da Inquisição. Não a nobreza territorial, de consistência feudal, como pareceu a um escritor, dirige a caça ao judeu — mais a caça ao mercador do que ao judeu —, mas a nobreza dos cargos, da corte, temerosa e ameaçada da perda de suas posições. O autor, ele próprio filho da nobreza funcionária, insiste na utilidade dos órgãos colegiados, zombando do consultor que traduz a vontade do rei, segundo o vicioso princípio de que onde o príncipe é poeta todos fazem trovas. O limite oposto ao governo monocrático se arrima nos privilégios — privilégios da fidalguia, tradicional e legalmente mantidos, dos letrados e do clero. Esta particularidade confere aos órgãos coletivos, às magistraturas não ministeriais, um caráter misto, flutuante, entre as funções de prévio conselho à execução e a execução mediante o compromisso dos membros do colégio, seja por meio do pacto ou imposição negociada. A colegialidade consultiva invade, em certos casos, a própria esfera da execução, com maior ou menor autoridade, de acordo com a densidade dos privilégios dos conselheiros. O grau de dependência dos órgãos colegiados ao rei está condicionado, repita-se, aos privilégios de seus componentes. Para os conselhos políticos e judiciários, maior será a força da autoridade real, que se sobrepõe às resistências dos colégios. Os tribunais, conselhos e casas subordinam-se, frouxa ou rigidamente, ao comando dos ministros régios. Os interesses comerciais e fiscais inspiram a organização dos estabelecimentos formados ao lado da atividade diretamente desenvolvida pelo Estado, sistema próximo das modernas autarquias. Dom Fernando, às vésperas da Revolução de Avis, criou os vedores da fazenda, ministros encarregados das finanças, no lugar dos ouvidores da portaria. Mais tarde, ao lado do subministro, o Secretário d'el Rei, o cargo de maior relevo do reino, cria dom Sebastião o Secretário dos Despachos e Coisas da Índia ou Secretário da Índia. Dessas autoridades, de categoria ministerial, dependem as Casas: Casa da Guiné (1480), Casa da Guiné e Mina e Casa da Mina e Trautos da Guiné e Casa da índia, ganhando esta, no curso de poucos anos, o principal lugar. As atribuições administrativas da Casa da Índia — não a instituição que só veio a ser extinta em 1823, incorporada à Alfândega de Lisboa —, por uma série de vicissitudes, transformações e reformas, se fixam no Conselho Ultramarino (1643) chocado em dois precursores filipinos, ao tempo da união das coroas: o Conselho da Fazenda (1591) e o Conselho da Índia (1604).17 Esse órgão exercerá o principal papel na coordenação e centralização da política portuguesa no Brasil, absorvendo, com expedientes conciliatórios, o trato dos negócios da fazenda, entregues anteriormente ao Conselho da Fazenda. Não cuida, entretanto, de todos os assuntos da colônia, confiados, em matéria de justiça, ao aparelhamento judiciário local, com os recursos às Relações instaladas no Brasil e nos tribunais superiores do Reino. Grande será também o papel da Mesa de Consciência e Ordem, cuja presença nos negócios ultramarinos se explica na concessão que a Ordem de Cristo, unida depois à Coroa, recebe dos dízimos para cuidar do culto divino e das igrejas. O Regimento de 1608 atribui-lhe "as cousas espirituais que os prelados das ilhas e das partes da Índia e da Guiné" submetessem ao rei, com respeito ao culto e à conversão do gentio. (Já então três eram os ministros: 1 — dos negócios interiores do reino; 2 — dos estrangeiros e guerra; e 3 — da marinha e ultramar. Só no fim do século cria-se o Ministério da Fazenda, que preside o Conselho da Fazenda e o Real Erário.) O órgão não se conformava com a doutrina, tão cara ao estadista da Arte de furtar, da separação
entre o conselho e a execução: queria, usurpando as atribuições do Conselho da Fazenda, decidir e ordenar todos os assuntos de ultramar. Nele doutrinou, para grande proveito do Brasil, Alexandre de Gusmão. Nesse feixe de conselhos — sob o comando do conselho do rei —, a direção régia e ministerial vê sua autoridade dilacerar-se, com o esfriamento do tempo de ação. Cria-se um governo, ao contrário, sem lei e sem obediência, à margem do controle, inculcando ao setor público a discrição, a violência, o desrespeito ao direito. O Regimento de Tomé de Sousa (1548), estatuto básico da condução política colonial, moderniza-se em 1677 (Regimento de 23 de janeiro)19, guardadas as linhas básicas do primeiro até a transmigração da corte e a instalação do Reino Unido (1815). O vice-rei acumula o governo da capitania-sede (Bahia e, desde 1763, Rio de Janeiro) com os encargos de supervisão geral, no comando coordenador e centralizador da colônia (do Estado do Brasil, algum tempo separado do Estado do Maranhão). A autoridade do governador-geral não penetra, todavia, em todo o território, reservados certos espaços, sobretudo o do ouro e dos diamantes, à direta nomeação e controle régios. O terceiro elo da administração colonial, depois do vice-rei e do capitão-general e governador, se forma em torno do município (v. cap. V, 2). Será a vila a base da pirâmide de poder, na ordem vertical que parte do rei — vila administrada pela Câmara, ou Senado da Câmara. A presença do chefe da monarquia se faz sentir na nomeação do presidente — se importante o município — na pessoa de um letrado, o juiz de fora (desde 1696 no Brasil). O colégio eleitoral se compõe dos "homens bons e povo, chamado a Conselho" (Ord. As Ordenações Filipinas apontam, na restrição do corpo eleitoral e dos eleitos, o "respeito às condições e costumes de cada hum, para que a terra seja melhor governada" (Livro 1, tít. As confirmações — dos juízes pelo desembargo do Paço — agregam ao peso eletivo a vontade da organização administrativa (Ord. Na aparência, amplas eram as atribuições das câmaras. Em passagem muitas vezes repetida e não menos repelida, João Francisco Lisboa, escrevendo sobre o período anterior à centralização dos meados do século XVII, arrola suas largas funções: "taxavam o preço ao jornal dos índios, e mais trabalhadores livres em geral, aos artefatos dos ofícios mecânicos, à carne, sal, farinha, aguardente, ao pano e fio de algodão, aos medicamentos, e ainda às próprias manufaturas do reino. De "cabeça do povo" descem, passo a passo, a passivo instrumento dos todo-poderosos vice-reis, capitães-generais e capitães-mores. A introdução dos juízes de fora já havia aviltado a autoridade do juiz ordinário, filho da eleição popular. O marquês de Lavradio, no último quartel do século XVIII, declara, sem rebuço e sem nenhuma dissimulação, seu poder sobre a câmara do Rio de Janeiro: "Como as leis de S.M. têm nobilitado os comerciantes, destes escolhi para Vereadores, nomeando-lhes sempre por companheiros um dos melhores da terra, e por este modo consegui pôr as ruas da cidade como V. Ex.a tem visto, fazerem-se mais duas fontes públicas, muitas pontas, consertarem-se os caminhos, juntar c entulharem-se infinitos pântanos, que havia na cidade, origem de infinitas moléstias".26 Uma testemunha do tempo assinala três causas da desordem que domina o Senado da Câmara da Bahia: a falta de autoridade do juiz de fora, embaraçado pela politicalha dos vereadores; a ascendência do Supremo Tribunal da Relação, que furta a câmara de sua jurisdição privativa; e as portarias dos governadores, que se assenhoreiam das regalias do conselho, "pondo-o em estado de não poder deliberar cousa alguma de ponderação, e que possa ter validade, sem que seja munida com uma portaria". A descrição de João Francisco Lisboa, colhida de um efêmero momento da colônia, não traça um fiel retrato do município brasileiro, nos primeiros séculos de sua formação. A autoridade suprema da justiça, contemporânea da fundação do governo-geral, é o ouvidor-geral. Investida de jurisdição administrativa, a justiça se perde nos meandros da vida social e econômica da colônia, apesar da aparente clareza das funções traçadas pelas Ordenações. Ai de quem caísse nas mãos dessa justiça tarda, incompetente, cruel, amparada nas duras leis do tempo. As arrecadações especiais criam órgãos próprios, extravagantes à disciplina geral, num casuísmo que os vincula a Lisboa, apesar da presidência nominal do governador: Junta da Arrecadação do Subsídio Voluntário; as Alfândegas; Tribunal da Provedoria da Fazenda; Juízo da Conservadoria, etc, numa mistura de atividades hoje incompreensível. A organização militar precede à descoberta, estruturas e com a monarquia no curso dos séculos e funde-se com a história da colônia. A terra se consolida nas mãos do português por via da força armada — é a conquista. Mas a terra se torna interiormente portuguesa também mercê da integração no quadro das funções e das honras militares — é o prolongamento da metrópole na colônia. Separam-se pelo espírito e pela fidelidade a causas opostas, no curso dos anos, a partir do último século colonial. Somente dom João IV mandou acudir a despesa das receitas dos vinhos, aguardente, etc. A providência não impede, entretanto, os atrasos de pagamento, nem as revoltas dos soldados famintos. A nova estrutura militar, ao profissionalizar o soldado, libera o rei da última dependência à nobreza, transformando o exército em organização permanente, não mais confundido com as tropas mercenárias dos ricos homens. São as companhias de ordenança, com os oficiais escolhidos por eleição dos soldados, sistema depois substituído pela nomeação dos governadores, mediante homologação real por meio do Conselho Ultramarino. Fundada para se contrapor ao Exército, da grandeza do qual desconfiavam os homens da Regência, tornou-se a mão da centralizadora presença monárquica, tal como na sua moldura colonial, em perfeita continuidade. A integração do colono à ordem metropolitana fez-se por meio da ordem militar. A conquista do interior, a paz dos engenhos, perturbada pelos gentios e pela rebeldia dos escravos, a caça ao trabalhador indígena e a busca do ouro realizam-se por via do prolongamento da ordem estamental, incorporada dos rudes paulistas e homens da terra. A patente embranquece e nobilita: ela está no lugar da carta de bacharel, no Império. Inácio José de Alvarenga Peixoto, formado e graduado em leis pela Universidade de Coimbra, requestou e obteve a patente de Coronel Comandante do Regimento de Cavalaria Auxiliar do Continente do Rio Verde, Comarca do Rio das Mortes. O coronel-bacharel, realidade do mundo colonial, perde a identidade, no Império, com a separação do bacharel do militar, mesmo o paramilitar da Guarda Nacional. Milícias e ordenanças, o segundo e o terceiro graus da reserva, equiparam-se em autoridade, todas dependentes das ordens do governador, com desrespeito à magistratura e ao clero, representantes, à época, da estrutura civil. Contra a justiça erguem-se os "atrevidos soldados", que "riscam do rol dos delinqüentes" e dos autos o nome dos protegidos do chefe militar. A milícia, criada para guarda dos vassalos, torna-se "a mesma que nos priva do sossego" (Cartas chilenas, 9, 367). A nobilitação das milícias dava lugar às zombadas dos fidalgos e dos letrados incorporados à aristocracia. Todos, com exceção do regimento dos pretos, são exercitados por um sargento-mor e um ajudante, saídos da tropa de linha, pagos pelo Senado da Câmara. O espetáculo de suas paradas varia de capitania a capitania: no Rio de Janeiro, os escravos carregam os mosquetes, os tambores e a bandeira dos oficiais, enquanto no Rio Grande do Sul, em guerra constante, apesar da farda rota e o equipamento ruim, o garbo impressiona o viajante.61 As tropas de linha, com o apêndice das milícias, desaguadouro dos conquistadores e aventureiros dos séculos XVI e XVII, formam a segura base e o penhor da obediência aos capitães-generais. O olho guloso do comerciante fixa-se em outro ponto:
na patente superior, que eleva, dignifica e enobrece, reservada ao comerciante, ao mulato cobiçoso de grandezas e ao áulico do governador. A organização militar constitui a espinha dorsal da colônia, elemento de ordem e disciplina, auxiliar na garantia da cobrança dos tributos e dos privilégios reais. O missionário encontrou duas tarefas diante de si: a conquista espiritual do indígena c o domínio do branco, contendo o deslumbramento do português diante da presa sexual e da presa apta ao trabalho não pago. Comando, portanto, formal, tênue, cheio de desconfianças mútuas, em estrutura que se prolongará no Império e encontrará o desfecho na República com a separação do Estado da Igreja. As bulas reconhecem e aprovam os primeiros passos da conquista da monarquia portuguesa, consagrada com a bula Inter Coetera (1456), a base do padroado, entregues as terras novas à Ordem de Cristo. O trato direto do rei com o papa, em negociações facilitadas pela velha lealdade e fidelidade da monarquia portuguesa, assegurou o controle da Igreja, com a redução do clero a um ramo da administração pública. Na cúpula do sistema, sediado na corte, a Mesa de Consciência e Ordens dirimia os conflitos e provia as matérias concernentes ao governo espiritual. A assistência social da colônia não encontrava outro remédio senão na Igreja, entregue ao seu cuidado o ensino. Nos engenhos e fazendas os párocos, aliados à categoria dos proprietários, davam cunho ideológico às resistências contra o despotismo da pesada, dura e cruel administração colonial. Contrapunham-se aos padres burocratas, subvencionados pelas côngruas saídas dos cofres públicos. Nenhuma ordem, como esta, mais irredutível aos interesses econômicos dos colonos, nenhuma mais rebelde aos ditames da administração. Representou, na dissolução de costumes dos invasores brancos, a moral romana e européia, enrijecida pelo Concilio de Trento, no espírito da Contra-Reforma. Herdeira, pela inassimilação secular do clero, da voz dos profetas, defendeu uma causa, só eles coerentes num mundo subvertido pelo caos: a disciplina da sociedade a padrões religiosos. Obstou-lhe o passo — ao contrário da sociedade espanhola, embora também presa ao padroado — a rígida integração do Estado português, estruturado com base na supremacia do poder civil. Os bandeirantes e os colonos do norte defenderam o poder civil, compreendido o catolicismo dentro do Estado, identificado com a grei portuguesa. Enquanto as outras ordens transigiram com a flutuante e dissolvente moral da terra, na qual os transmigrados seriam um bando desaçaimado de garanhões e de escravizadores e a indiada, matériaprima do bordel dos sertões, os jesuítas, os "donzelões intransigentes"70, se mantiveram incólumes ao apelo da carne e à cobiça escravagista. O domínio do indígena, sua integração à cultura européia, pareceu à autoridade metropolitana obra do missionário, com a catequese como o "prelúdio da submissão da raça inferior. A solução híbrida não lhes parecerá outra coisa que a barbarização do branco e a degradação do vermelho. Os índios se vestiriam e adotariam a monogamia, com o afastamento das crianças do mau exemplo paterno, embora muitos, apenas crescidos, voltem à magia do sertão, com o abandono da fé e dos preceitos cristãos. A baixa extração dos colonos atribuíam os padres a indianização moral do português, instando com o rei para mandar ao Brasil homens de melhor origem. A legislação portuguesa, varrida de interesses contraditórios, tergiversou entre um pólo e outro, ao sabor das influências, ora poderosas dos jesuítas, ora incontrastáveis dos colonos.77 No fundo, os jesuítas se mantinham irredutíveis, apesar das concessões secundárias, numa doutrina, inaceitável para os colonos e para o rei: "a liberdade dos índios, com isenção da autoridade civil e sujeição incondicional aos missionários".78 As aldeias ficariam incólumes aos agentes régios e à corruptora influência do branco. Um gigante iluminou a cena da secular batalha, na voz do padre Antônio Vieira. Perderam-na também no ponto em que procuraram evitar o hibridismo, na indianização do branco, no desenfreado gosto por muitos braços escravos, no amor à submissão, às superstições, na conquista de muitas mulheres, com o puritano modelo de família. A conciliação das duas culturas seria impossível, como impossível a segregada permanência do indígena. O alheamento do comando ao povo comandado — alheamento político e cultural — será definitivo, irrevogável, permanente. Mais forte do que a emancipação à autoridade civil e o tropismo à direção do pontífice revelou-se a integração na ordem da rede burocrática: o padre cedeu à prisão do padroado e à dependência econômica, funcionário também ele num universo de funcionários. Uma imensa cadeia, formada aos pés do rei e alongada na colônia, penetra em todas as atividades. O plantio de cana, a extração de madeiras, a lavra das minas obedeciam aos interesses fiscais do Estado. A consciência do homem, sua palavra e suas expressões políticas estavam à mercê dos censores, censores informais ligados ao padre e ao funcionário. Ao contrário, a ascensão social se desvia, no topo da pirâmide, num processo desorientador, com o ingresso no estamento. A ambição do rico comerciante, do opulento proprietário não será possuir mais bens, senão o afidalgamento, com o engaste na camada do estado-maior de domínio político. No pólo contrário, gemem os objetos da propriedade (escravos), déclassés, devedores, pobres. A tradicional visão da sociedade da colônia dos dois primeiros séculos reduz as classes a duas, senão a uma, em seus dois pólos extremos: o proprietário rural, com engenhos e fazendas, contraposto à massa dos trabalhadores do campo, escravos e semilivres. O proprietário rural, com a economia assentada na sesmaria latifundiária, ganharia status aristocrático, em simbiose com a nobreza de linhagem. A tese sofre da projeção das sombras feudais, esteticamente entrevistas na colônia, adensada pelo trânsito da ordem econômica na estrutura política, sem respeito à armadura fixada em muitos séculos da monarquia lusa. A aparência jura em favor do esquema, aparência colhida nos cronistas e viajantes do período colonial. Igualmente, já no século XIX, Tollenare e Koster sentiram, no interior da zona açucareira, a supremacia do senhor de engenho, supremacia esbanjadora, envolta em luxúria e muitas vezes cruel. Esta perspectiva, todavia, projeta-se apenas internamente, desdenhosa da administração e dos empórios comerciais, penetrando na realidade rural. O predomínio mercantil da atividade metropolitana como que some na aventura da Índia, sem deixar vestígios. Daí por diante, a paisagem dos canaviais e dos engenhos obscureceu as cordas que movem os escravos e as máquinas. "Há anos em que, pela muita mortandade dos escravos, cavalos, éguas e bois, ou pelo pouco rendimento da cana, não podem os senhores de engenho chegar a dar a satisfação inteira do que prometeram. 95 Os portos acolhiam mercadores e comissários, agentes dos comerciantes da metrópole, na compra antecipada do produto, com o fornecimento de escravos e mercadorias a crédito, num extenso e profundo tecido de adiantamentos. No centro do sistema, o mercantilismo, com a dependência da colônia à metrópole. Muito comerciante estrangeiro animou as primeiras empresas açucareiras, concentrado geograficamente em Lisboa, reduzida, nos negócios de ultramar, ao centro ativo metropolitano.98 O negociante português seria uma constante na vida colonial e no Império, combatido, a partir do século XIX, nas expansões nativistas e como reação da classe proprietária, que só se consolida com a autarquia agrária das fazendas, na realidade expressão da decadência do comércio internacional. No começo do século XVII, a presença do comerciante ocupa o centro do palco, ferido embora pelo desprezo do fidalgo, o que o leva a afidalgar-se para conquistar posição social, atacado, ainda, pela concepção velhamente portuguesa e européia de considerá-lo o parasita por excelência, o ocioso e improdutivo sanguessuga do
trabalho alheio. Brandônio será a voz do mundo colonial: os mercadores "trazem do reino as mercadorias a vender a esta terra, e comutar por açúcares, do que tiram muito proveito; e daqui nasce haver muita gente desta qualidade nela com suas lojas de mercadorias abertas, tendo correspondência com outros mercadores do reino, que lhas mandam; como o intento destes e fazerem-se somente ricos pela mercancia, não tratam do aumento da terra, antes pretendem de a esfolarem tudo quanto podem". A luta dos comerciantes — da qual a guerra dos mascates é um episódio — traduz anseio de integração social e não apenas a partilha de vantagens, evidente desde a primeira caravela que aportou no ultramar atlântico. Da Costa da Mina e de Angola (conquistas portuguesas) recebeu escravos, no valor de Rs. 662:380$000, cabendo ao Rio Grande de São Pedro o maior quinhão do comércio costeiro, com Rs. O comerciante português, além dos fretes, embolsa os lucros das vendas e das compras, com parasitismo quase integral, visto serem as reexportações portuguesas, no período final da colônia, constituídas, na maior parte, da produção brasileira. Nessas circunstâncias, o comerciante sediado no Brasil não será outra coisa senão o representante do sistema metropolitano, no setor dinâmico das reexportações e do transporte de mercadorias. Não passa, na verdade, de comissário do grande negociante português, não raro abastecido de recursos da metrópole ou "com cabedais de personagens a quem seria menos decente o saber-se que comerciam".105 O famoso relatório do marquês de Lavradio, de 1779, tocou no ponto sensível da situação dos mercadores da praça do Rio de Janeiro: "A maior parte das pessoas a que se dá o nome de comerciantes nada são que uns simples comissários [...] No topo da pirâmide, ela se descaracteriza, pendendo para a classe lucrativa, no senhor de engenho. No ritmo geral da economia brasileira, em certos momentos de valorização da agricultura de subsistência, esta se transmuta na de exportação — sobretudo interna, de capitania a capitania —, fenômeno ocorrido no Rio Grande do Sul, no começo do século XX, com o desaparecimento do trigo e a importação de produtos agrícolas, numa sociedade revitalizada pela imigração de lavradores açorianos.108 O fenômeno, com as oscilações polares, c constante: vale para o açúcar, o ouro e o café. Do exterior devia vir o que a fazenda não pudesse dar: ferro, chumbo e pólvora, além dos artigos de luxo. No fim do século XVIII, a Bahia importava do Rio Grande do Sul a carne salgada para sua população escrava117 , num intercâmbio distante e difícil. O vínculo do engenho com o comércio e a carga fiscal que sobre ele recai, alienando-o da economia com raízes na terra, não completa o quadro das dependências econômicas. A terra, de concessão para fomento da agricultura, presa ao destino industrial da safra, numa unidade de capitais avultados, converte-se em bem dominial, parte do investimento do engenho (v. cap. IV, 5). No ermo — a pouca distância do litoral — e no sul, bem como nas fases depressivas do açúcar, o fazendeiro prepondera sobre o industrial da cana. O preço do café pagará tudo e induzirá à monocultura, com a mesma carestia denunciada nos Diálogos das grandezas do Brasil, dois séculos antes. A economia mercantil, movida da Europa, traça o contorno das praias e dos sertões americanos. A exportação, infundindo o valor a todas as coisas, determina o posto do senhor de engenho e do proprietário na pirâmide social. O Regimento de Tomé de Sousa (1548) mandou distribuir as terras, dentro do sistema sesmarial das Ordenações, para quem as quisesse "povoar e aproveitar", obrigados os senhores de engenho a moer as canas dos plantadores.122 O plano de colonização previa, com a concessão franca da terra, concessão vinculada a prazo e à condição do aproveitamento, a propriedade ampla dos meios de produção. No fim do primeiro século, Brandônio já mostrava a diferenciação social, dentro da lavoura, sempre fundada no escravo — quer no plantio da cana, quer na cultura de subsistência. O viajante do começo do século XVIII não deixou de assinalar a analogia entre os lavradores que se empregam nas terras do engenho e os donos das terras cultivadas, sem deixar de advertir aos senhores contra o pecado da "má vizinhança" feita aos plantadores que moem em outros engenhos.124 Um século mais tarde, na paisagem do açúcar sem prosperidade, perde o relevo o lavrador independente, e os arrendatários, com seus contratos a tempo largo ao tempo de Antonil, tornam-se precários e instáveis prepostos dos proprietários. Um viajante francês, ao percorrer o litoral pernambucano, viu, além dos escravos, dos quais não queria falar porque "não passam de gado", os lavradores entregues aos donos da terra e dos engenhos sem nada que os proteja, a lei ou a força armada. A paisagem se cobria de senhores de engenho, lavradores ("espécie de rendeiros") e moradores, categoria, a última, fruto do declínio da empresa açucareira. Deles sairá o cliente do crime e o germe de jagunço. A agricultura do tabaco, algodão, anil, mandioca, enfeita a terra, sem deslocar o centro de gravidade econômica do açúcar. A cana se opõe à ascensão econômica, ascensão mais fluida na zona do gado e das culturas de subsistência. Resta, não obstante, uma extensa gama de homens livres, além dos lavradores dependentes e da ociosa plebe rural. O engenho possui algumas ilhas de assalariados, na ordem de vinte e quatro por cento de suas despesas128, com o feitor-mor, o mestre do açúcar, o feitor menor, o purgador, o caixeiro, etc. Com a dificuldade de acesso à terra e à propriedade do engenho, esses grupos ocupacionais fornecem a clientela dos oficiais das cidades, do comércio, todos inconformados, diante do escravo — padrão de subordinação social —, ao trabalho manual. O mundo colonial, não obstante o enrijecimento das camadas superiores, que o escravo — escravo mão-de-obra e escravo objeto de comércio e crédito — consolidará, mantém o potencial da fortuna fácil, da aventura possível, do enriquecimento rápido. Os vencimentos aumentaram, o povo está oprimido e o Estado não colhe benefício algum".134 A velha ordem administrativa portuguesa serve, na colônia, ao aproveitamento do branco pobre, do mulato rico, poupando um problema social, com a plebeização do branco alfabetizado, quase o letrado do tempo. Sobras do mercantilismo, com o recolhimento dos náufragos da visão de Brandônio, que apontava a riqueza no açúcar, na mercancia, no pau-brasil, no algodão, na lavoura de subsistência e no gado, floração rural onde "o principal nervo e substância da terra é a lavoura dos açúcares".135 Na base da pirâmide, o escravo negro, sem nenhuma oportunidade de elevação social. Atrás do quadro da escravidão não se esconde apenas a tirania, a dureza de costumes e o aviltamento do homem. O volume dos valores empregados será, desta sorte, equivalente aos do ouro, o segundo maior valor da colônia, abaixo do açúcar.137 Vinte por cento das importações empregam-se no escravo, num comercio sem paralelo pela sua lucratividade.138 Esta desdenhada circunstância explica muitos enigmas da história brasileira: a dependência à burguesia portuguesa, por sua vez enfeudada à européia, a centralização política decorrente de um homogêneo núcleo de interesses, a submissão do agricultor ao vendedor e financiador de escravos, a pouca mobilidade da empresa colonial, arraigada, ate à morte, aos seus investimentos de escassa lucratividade, agrilhoada às dívidas sempre renovadas e crescentes. Insistamos em que o trato não está apenas nas mãos dos mercadores, mas também dos grandes personagens do Estado e sua hierarquia média. Eis, por exemplo, em 1560, a pedir ao rei de Espanha 300 licenças para o envio de escravos ao Peru, o desembargador do Paço Francisco Dias do Amaral, do conselho régio. Do capitalismo comercial, do capitalismo politicamente orientado erguese o tipo social do "cavaleiro-mercador , o "mercador-cavaleiro", o "fidalgo negociante e o negociante enobrecido", ora em conflito, ora em entendimento
com a velha nobreza da terra, velha nobreza pelas origens e nova pela aquisição de latifúndios. No curso de três séculos, mudaram os sistemas de fornecimento do escravo, sob a constância do controle oficial. O resgate, eufemismo da aquisição do negro, a arrecadação dos rendimentos passaram da administração direta, da concessão de licenças para a compra de determinado número de escravos até o arrendamento de áreas. Na dinâmica colonial flutuam as camadas que o autor dos Diálogos das grandezas do Brasil, as Ordenações e o padre Antônio Vieira situaram na sociedade, em estado de repouso. Os três estados, na imagem do pregador que os reúne no sal, com os elementos fogo, ar e água, têm linhas ironicamente pouco vivas, distinguidas pela cor das contribuições fiscais — o que engaja as categorias na ordem do Estado. Os fidalgos vivem das comendas e rendas da Coroa — suas águas saíram do mar e ao mar devem tornar.142 E a terra, o quarto elemento, esquecida pelo pregador, não será o escravo, indigno de menção? A nobreza, já nesta altura, se alimenta dos favores e das vantagens que fluem das mãos do rei, o qual por sua vez colhe tudo do povo. Bem verdade que, no Brasil, contados os escravos, a maioria dos habitantes estão na lavoura e nos engenhos. O destino agrícola do Brasil não é, desta sorte, senão a inversão do ponto de vista que ilumina, fixa e comanda a paisagem. A economia, por uma ou outra forma, obedece à regência material do soberano e seu estamento, em intensidade que ultrapassa os modos modernos de intervenção do Estado ou as interferências limitadas da concepção liberal. Tudo parte das origens: o rei é o senhor das terras, das minas e do comércio, no círculo patrimonialista em que se consolidou e se expandiu o reino. O comércio direto do soberano se faz por meio dos monopólios — pau-brasil, pesca da baleia, tabaco, sal e diamantes. A Coroa delega a exploração do negócio aos contratadores, que o gerem por conta do poder público. O preço será fixado pelo senhor do comércio, bem como o quantitativo da utilização, cumprindo ao contratador pagar o preço e redistribuir o produto na Europa, geralmente em conexão com os mercadores internacionais. Próximo dos monopólios, com outra forma de cooperação dos particulares, instituíram-se as companhias privilegiadas de comércio, a Companhia Geral do Comércio do Brasil (1649), a Companhia do Maranhão (1678), a Companhia Geral do GrãoPará e Maranhão (1755) e a Companhia de Pernambuco e Paraíba. Estas empresas, ao contrário das companhias inglesas e holandesas, que abrigavam os particulares sob o auxílio do soberano, distinguemse pela iniciativa oficial e pelo preponderante papel do Estado. Os três tipos de controle da economia — o monopólio, as companhias e as concessões (típicas e atípicas) — se integram no domínio do comércio da metrópole, o pacto colonial, comercio reservado, xenofobamente, aos portugueses, desde as medidas de dom Sebastião e dos Filipes (1571, 1591, 1605). O quadro fiscal, nesse contexto de fios históricos de tarda solidificação, representa o remanescente do domínio do Estado, o leite que sobra do melhor apojo. Na hora da decadência, gastas as rotas da metrópole, o latifúndio autárquico destila a revolta contra a exploração passada: os movimentos do século XVIII e a rebeldia dos anos 20 do século seguinte serão o grito póstumo. Tudo se engolfou na metrópole, nas suas compras dos países industrializados, nas suas catedrais, no luxo nababesco da corte. O desenvolvimento da metrópole e das colônias não entra no plano de governo: o cliente será o estamento, a alta nobreza e a administração, com aplicações só admissíveis no fomento do comércio de trânsito. As rendas econômicas, ao contrário das rendas tributárias, são o instrumento tradicional da execução da política do listado. O pau-brasil é bem um modelo: arrendado a cristãosnovos, trazia, além do valor do contrato, o encargo de descobrir a terra. O tabaco, que, no começo do século XVIII, contribui com um quinto das rendas do soberano151 , sofre, para garantia do estanco, a vigilância de dispendioso aparelhamento administrativo, para evitar a "cautela ambiciosa" dos contrabandistas. O monopólio do sal, como nenhum outro, revela o caráter irracional dos monopólios, com seus efeitos retraídos ao cálculo sobre a economia da colônia. A salga do boi — denuncia Azevedo Coutinho, o inimigo dos monopólios e do mercantilismo — custa "duas e três vezes mais do que vale o mesmo boi; da mesma sorte o peixe".154 Por amor a quarenta e oito contos, importância que o arrematante paga à Fazenda Real em torno de 1800, importância que se duplica na venda a retalho, o Erário Régio "se priva de muitos 48 contos que, necessariamente, deveriam produzir os direitos destes gêneros nas alfândegas, se a carestia do sal os não fizesse impraticáveis".155 O monopólio, expressão do senhorio do comércio do rei, torna-se, com o tempo, entrave do movimento mercantil: ele paralisa c congela as iniciativas, dificulta as atividades conexas, incompatível com o ascendente sistema do liberalismo econômico. Pelas companhias de comércio — as dos séculos XVII e XVIII — quer o soberano, associado aos comerciantes, assegurar o predomínio, nas conquistas e colônias, do pacto colonial, com a exploração metropolitana da mercancia. Com elas, na crise da Restauração, assenta uma diretriz que expirará numa farsa, na farsa das Cortes de Lisboa, empenhadas em instituir o liberalismo em Portugal mediante a opressiva recolonização do Brasil. O Brasil, já o centro econômico do império, não pode fugir ao controle de Lisboa, se Portugal quiser continuar de pé, liberto da avassaladora influência inglesa, influência da Revolução Industrial e não de um país sobre outro, nos moldes velhos do mercantilismo. Somente à custa da sistemática exploração do Brasil seria possível a soberania de Portugal nos mares, capa rota de um passado de glórias. A Companhia Geral do Comércio do Brasil (1649) fixa o objetivo de melhor aproveitar o comércio do Brasil com a reunião dos capitais portugueses concentrados em Lisboa e dispersos na Europa. No centro dos planos e das iniciativas, arde o desejo de afastar a concorrência de pilhagem da Holanda e a concorrência penetrante, pacífica e universal da Inglaterra. Mal entrevista, sentida na preocupação do aparelha-mento fabril, estava, sombria e ameaçadora, sempre a Revolução Industrial. A Companhia gozaria, no comércio com o Brasil, do monopólio dos vinhos, azeites, farinhas e bacalhau, mediante preços fixados, proibido aos nativos o fabrico de vinho de mel e aguardente. Competia-lhe, ainda c sobretudo, introduzir escravos, fim quase exclusivo da Companhia do (Maranhão, sob o regime do monopólio. As companhias não tiveram o milagroso efeito de isolar Portugal da política e da economia européias: as lutas da Restauração, carecidas de aliados, arrancavam grossos dividendos do auxílio prestado ou prometido. "Os tratados de comércio" — dirá um estudioso contemporâneo — "fizeram a fortuna do mercantilismo inglês e o desespero da incipiente burguesia portuguesa. O comércio do Brasil, o mais lucrativo do ultramar, foi avassalado, sem dificuldades, pelos ingleses, seus mentores. O comércio para os portos do Brasil fazia-se, senão inteiramente, ao menos pela maior parte com o crédito das nações estrangeiras, sobretudo da Inglaterra. Era deveras grande o débito dos mercadores das minas aos negociantes c comissários do Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco por fazendas compradas a crédito aos estrangeiros, ou remetidas por eles debaixo dos nomes de portugueses para os brasileiros. Havia poucos portugueses ricos que não devessem aos mercados estrangeiros muito mais que o valor dos seus capitais,"158 O ouro do Brasil dá para tudo: encobre a debilidade da economia e paga os déficits do comércio, arma o exército de funcionários e veste os fidalgos, permite o luxo dos palácios e a grandeza dos monumentos. As advertências lúcidas dos estadistas contra a fuga do ouro e o real empobrecimento nacional correm por conta dos pessimistas, as inevitáveis
cassandras de todos os tempos, incapazes de sentir a grandeza nacional, invejosos da prosperidade do país. A hora do ajuste de contas chegou mais cedo do que esperava a embriaguez deslumbrada, coincidindo com o reinado de dom José I (1750-77), momento que marca o começo do declínio das minas e o fim da expansão bandeirante, consolidada, com o Tratado de Madri, a fisionomia territorial do Brasil. O falso rei-sol dom João V (1707-50), opulento sobre um país miserável, não sentira que sua corte e sua coroa se formaram do brilho do ouro e não do ouro, que este era da Inglaterra. 159 A reação teria que vir, arrancando do peito escrofuloso da nação o ouropel enganador, como teria que vir o terremoto. Obra tão quimérica como o plano das companhias de dom João IV: em lugar, porém, do refúgio ilhado procura-se, agora, a modernização implantada do alto. O controle da economia colonial seria o caminho da restauração da soberania comprometida e ameaçada pelas devastações da Revolução Industrial. Essa mudança explica, timidamente no século XVI e sistematicamente a partir do século XVII, o afastamento dos comerciantes estrangeiros da exploração ultramarina. No mundo dos planos, propósitos e intenções, reforça-se o exclusivismo colonial nas mãos da metrópole, e, nos momentos em que esta se sente combalida, com a intervenção do poder público, para o propósito revitalizado petas dominantes doutrinas absolutistas. O controle do trânsito das mercadorias não obedece a propósitos meramente exploratórios: pressupõe, ao contrário, o fomento agrícola do extremo norte, com a direta presença de incentivos, estímulos e empréstimos públicos.161 O miolo do comércio e do fomento será, como se observou longamente, a implantação do escravo negro, que, com os poucos recursos locais do norte, não poderia ser adquirido em fluxo permanente.162 Mais uma vez, em proveito de um plano imperial, a burguesia portuguesa, para se recuperar, recebe a tutela do Estado, que, ao lhe transmitir viço, comunica-lhe a dependência. Depois de extintas as companhias permanecerá íntegro o pensamento que as inspirou: o comércio das colônias será monopólio da metrópole, dos seus comerciantes e comissários, até que o ato de abertura dos portos, em 1808, ponha termo ao estatuto colonial. O comando da economia ultramarina não se dá apenas por meio dos monopólios e dos privilégios das companhias. Seria manifesto erro, entretanto, com desequilíbrio dos ponteiros da história, exaltar, no senhor de engenho e no minerador, a atividade particular. No mesmo ano da promulgação das Ordenações, o primeiro Regimento de Terras Minerais do Brasil (15 de agosto de 1603) manifestava a régia intenção de "largar as ditas minas [do Brasil] aos descobridores delas" — sem que, todavia, se dispense a licença do Provedor das Minas, ato abrangido no conceito de concessão, com próximo parentesco da própria concessão de terras com encargos, de acordo com a velha lei das sesmarias. Desponta sempre, nas Ordenações e nos Regimentos de 1603, 1618 e 1702, a presença do rei, rei senhor das terras e das riquezas, dono da exploração das minas e do comércio, com a feição patrimonial atenuada pelos processos modernos de comércio com o particular. O velho princípio da monarquia está presente: onde há riqueza aí está a autoridade pública, sombra do rei, com antecipação à exploração econômica. A data do rei vende-se pelo maior preço. A cobrança dos quintos subordinou a região das minas a uma vigilância severa, de caráter militar, com o controle dos caminhos e da entrada e saída de pessoas. Não foi possível, todavia, manter os privilégios dos descobridores, solenemente afirmados no Regimento de 1702. Os paulistas, diante das notícias do ouro, que provocaram repentina afluência de aventureiros e traficantes, sentiram-se usurpados pelos "emboabas" — reinóis e baianos, estes descendo em massa do São Francisco. 165 O comércio, como em todo o período, se apropria do ouro por meio dos fornecimentos e do crédito, para a aquisição de materiais e escravos, de alimentos e "bugiarias". A causa dos reinóis e baianos era, afinal, a causa da civilização, que aproxima as riquezas e provoca o intercâmbio. O quinto dos produtos das minas será, na verdade, o alvo da reorganização administrativa e das leis de minas. Cinde-se a obrigação religiosa da obrigação pública, afastado o pecado do imposto, sutil defesa dos povos esmagados pelo fiscalismo metropolitano, modalidade de exploração da colônia pelo reino, cisão que iria influenciar, por séculos, a educação do brasileiro. Tudo concorrerá ao incremento da Revolução Industrial, para maior grandeza e glória da Inglaterra. O cerco da metrópole à colônia se completa no fiscalismo do reino. Fiscalismo, expressão alheia aos tributos e derivada do sistema de dependência: a colônia não vive por si, nem se identifica à metrópole, senão que é estância provisória dos interesses sediados junto à Coroa. A rapacidade tributária, ardentemente denunciada pela generalidade dos historiadores, não passa de modalidade da rapacidade maior, definida no sistema colonial. Déficit local compensado com o negócio global e os direitos de trânsito, dentro do esquema geral do pacto colonial, com os direitos de alfândega, exportação ao Brasil e reexportação à Europa, monopólio e tributos arrecadados na corte. Desta realidade já se apercebiam os Diálogos das grandezas do Brasil, ao acentuar que o Brasil rendia mais que a Índia, com os açúcares que pagam direitos na alfândega de Lisboa, "de que feita a soma vêm a importar à fazenda de Sua Majestade mais de trezentos mil cruzados, sem ele gastar nem despender na sustentação do Estado um só real de sua casa, porquanto o rendimento dos dízimos, que se colhem na própria terra, basta para sua sustentação".167 Cerca de 30% do preço do açúcar cabe aos cofres públicos, por via tributária: a dízima, as propinas (comissões devidas aos funcionários da Coroa), as pensões e a redízima (ao donatário), o cruzado e a vintena, o tostão por tarefa (na Bahia), o dote à rainha da Inglaterra e paz da Holanda (1662). A inferioridade provém do fisco e da impossibilidade, com o acréscimo do valor do escravo, de reduzir os custos. Opera o fiscalismo como elemento estabilizador da economia — dificulta o sistema de trocas e alimenta uma camada que se apropria das rendas, mesmo à custa do subsídio à produção. O centro do interesse econômico se desloca do lucro do empresário para o beneficiário dos tributos, o velho, tenaz e rígido estamento. Antonil denuncia o ouro, que serve "para enriquecer a poucos e para destruir a muitos", como responsável pelo encarecimento do açúcar, ao lado da carestia dos implementos vindos do reino. Nenhuma preocupação havia em aliviar a carga fiscal dos brasileiros e esse espírito perdurou já que, proclamada a Independência e no curso do Primeiro Reinado, ainda se pagava a tributação resultante do terremoto de Lisboa de 1755."172 Entre o Estado e o particular, na exploração dos tributos e dos monopólios, se fixa, densa e ávida, impiedosa e insaciável, uma camada de exploradores, alimentada pela Coroa. O primeiro representante da inquieta geração será dom Fernão de Loronha, arrendatário das riquezas da terra do Brasil, com direito a explorar o monopólio de paubrasil. Dos rendosos contratos sobrará muito para a corrupção — as luvas aos intermediários e governadores, na denúncia do maldizente autor das Cartas chilenas. Os próprios cargos públicos do Brasil, reservados a premiar serviços e colocar a nobreza ociosa, passaram a ser vendidos, a partir do século XVIII. O paraíso dos enganos de Pero Vaz de Caminha, no curso de três séculos, se converte no inferno da cobiça e da exploração. Domínio altaneiro de ultramar, gozo da riqueza sem retribuição, tomada dos frutos do trabalho sem suor — este o mundo da colônia. "A república" — clamava com o olho posto no despotismo metropolitano e das autoridades da Coroa na colônia — "é o espelho dos que governam.

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