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1 TRAJETÓRIA DA INFÂNCIA NO BRASIL - Copia

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1 A TRAJETÓRIA DA INFÂNCIA NO BRASIL 
. Del Priore (2015) narra a trajetória da infância no Brasil com muita 
propriedade, registrada a partir do ano de 1500. Embora a descoberta tenha sido no 
ano acima referido, os portugueses começaram a arruar 1 o Brasil, somente 30 anos 
após o descobrimento. A viagem era demasiadamente longa, vinham aglomerados 
em navios, disputando espaço com a infinidade de suprimentos, bagagens e produtos, 
A precariedade com que viajavam era assustadora, muitos homens, algumas 
mulheres e crianças compunham as tripulações a bordo dos navios. 
A autora explicita a dimensão do sofrimento a que as crianças lusitanas eram 
submetidas ao embarcarem em uma nau2 portuguesa. A depreciação da infância era 
o combustível da Coroa portuguesa para recrutar tantas crianças e introduzi-las nas 
tripulações, devido ao pauperismo3 que acometia grande parte das famílias em 
Portugal naquela época e um profundo desmerecimento da infância no período, não 
havia pudores por parte dos pais em negociar seus filhos, em troca de ajuda financeira 
que receberiam fielmente todos os meses. 
Afirma Del Priore (2015) que hierarquicamente as crianças estavam acima 
apenas dos animais, pois todos os demais tripulantes lhe eram superiores, submissas 
a toda e qualquer ordem, por mais inescrupulosa ou devassa que fosse. Os nautas4 
eram sentenciados, homens condenados por crimes hediondos5. Devido ao grande 
pauperismo acima citado, Portugal não dispunha de muitos homens para navegar, por 
esta condição a Coroa Portuguesa libertou todos os presos por transgredir6 a lei, para 
que se lançassem como marinheiros. A escassez de alimentos era gritante e 
responsável por grande parte do sofrimento das crianças a bordo, elas tinham a 
mesma jornada de trabalho que os demais tripulantes, não havia distinção de serviços, 
porém a sua alimentação diária se abreviava a três porções minúsculas de alimentos, 
a água para o consumo era imprópria, mal armazenada e era distribuída em reles 
 
1 Arruar: Dividir ou distribuir em ruas. (BECHARA, 2011. p. 297) 
2 Nau: Antigo navio à vela. (BECHARA, 2011. p. 853) 
3 Pauperismo: Pobreza extrema; miséria. (BECHARA, 2011. p. 906) 
4 Nauta: Aquele que navega, marinheiro. (BECHARA, 2011. p. 853) 
5 Hediondo: Que causa horror; medonho, pavoroso. (BECHARA, 2011. p. 692) 
6 Transgredir: Desobedecer a; desrespeitar leis, regras, etc; infringir. (BECHARA, 2011. p. 
1103) 
 
 
quantidades. A autora ressalta abaixo, os métodos adotados pelos grumetes7 para 
incrementar a alimentação tão resumida: 
Como se não bastasse o fato da ração ser extremamente restrita, a sua 
qualidade era sempre péssima; “o biscoito era bolorento e fétido, todo roído 
por baratas”. A carne salgada encontrava-se, constantemente, em estado de 
decomposição. A água potável, igualmente podre, exalava um incrível mal 
cheiro por ser armazenada em tonéis de madeira, onde, em poucos dias 
proliferavam inúmeros micro-organismos, responsáveis por constantes 
diarreias. Ainda assim, sua distribuição estava restrita a apenas três rações 
diárias. (DEL PRIORE, 2015, p. 26) 
Del Priore (2015) ressalta que o sonho de crescer dentro da tripulação, ganhar 
uma patente fazia parte do imaginário de várias crianças, mas a trajetória rumo ao 
sonho contava com a exaustão do trabalho, com os constantes assédios e com toda 
a sorte de violências que se possa imaginar, inclusive sexual, não havendo punição 
para tal barbárie8. Concordamos com a autora, pois a desvalorização da infância era 
gritante naquela época, as crianças tinham o seu valor equiparado ao dos animais, 
não havia vínculos de pertencimento em relação dos pais para com seus filhos, as 
crianças eram utilizadas como moedas de troca por quem a representasse 
legalmente. O desprezo por parte dos portugueses pela infância perdurou e 
acompanhou a trajetória da infância também aqui no Brasil, a pesquisa empreendida 
nos possibilitou perceber, que todo esse desmerecimento pela infância resultou em 
grandes lutas e consequentemente em grandes vitórias, no que remete aos direitos 
para a infância e adolescência como observaremos ao término deste capítulo. 
A autora ressalta, que as viagens marítimas eram demasiadamente arriscadas, 
especialmente para as crianças pela inexperiência nas embarcações, muitas caíram 
no mar, outras eram acometidas por acidentes, pois eram obrigadas a desempenhar 
funções arriscadas dentro das naus. As mortes eram encaradas como “atos de 
extrema coragem” forma utilizada para manipular os pequeninos e evitar mal-estar 
entre os navegantes. Os naufrágios9 não poupavam vítimas, disparadamente as 
infantis possuíam maior índice e quando ocorriam eram um evento aterrorizante. Em 
um naufrágio duvidosamente sobreviveriam, mas caso acontecesse, morreriam pouco 
 
7 Grumete: Marinheiro de graduação mínima. (BECHARA, 2011. p. 686) 
8 Barbárie: Ato de crueldade; atrocidade; barbarismo. (BECHARA, 2011. p. 326) 
 
 
9 Naufrágio: Afundamento de uma embarcação. (BECHARA, 2011. p. 853) 
depois de pisar em terra firme, devido à falta de água e alimentos. Esta triste realidade 
é relatada pela autora no trecho a seguir: 
Embora algumas crianças lutassem bravamente por suas vidas no momento 
do naufrágio, poucas conseguiam se salvar quando tornadas naufragas. Na 
maior parte das vezes, adulto ou criança, todos que escapavam da morte no 
mar, pensando ter tido sorte por sobreviver, estava apenas no início de um 
longo martírio. As dores do naufrágio eram apenas o princípio de um 
sofrimento muito mais intenso marcado pela fome, pelo medo e por inúmeras 
dificuldades. Em condições como estas, as poucas crianças que sobreviviam, 
já intensamente castigadas pelo cansaço físico e o trauma psicológico, 
dificilmente conseguiam ter sorte diferente em terra. (DEL PRIORE, 2015, p. 
44) 
De acordo com Del Priore (2015), a desvalorização e as atrocidades desferidas 
contra as crianças nas naus portuguesas estão impressas na história. Sendo estas 
úteis apenas para o labor10 e satisfação dos mais variados caprichos de seu algoz11, 
sem direito a recusa e a quem recorrer. Findamos este fatídico ciclo da história, que 
vitimou inúmeras crianças, classificada pela autora de tragédia marítima. 
Concordamos plenamente com a autora, em sua exposição dos acontecimentos sobre 
o fenômeno mencionado, podemos ressaltar todo o sofrimento atribuído a essas 
crianças, não dispondo do mínimo para sobreviverem, reduzidas a meros 
instrumentos de trabalho e despossuídas de direitos e proteção. Nas páginas a seguir 
percorreremos uma época histórica, perpassando pelos jesuítas que trazem consigo 
ao Brasil o desejo de impor sua religiosidade aos indígenas. 
Del Priore (2015) enfatiza que por volta de 1549 Manuel da Nóbrega liderava 
alguns religiosos que iniciaram em solo brasileiro um projeto de conversão ao 
cristianismo12, enfatizando os povos indígenas. Havia intensa resistência por parte 
dos adultos, por não apreciarem a ideia de desistir de sua essência, principalmente 
ao que remete a religiosidade, lutavam incansavelmente para reafirmar a cada dia a 
fé que professavam. Porém, as crianças passaram a ser o elo frágil para acesso aos 
adultos e utilizavam como meios a alfabetização e a religião. Os pais prezavam a ideia 
de ter seus filhos alfabetizados pelos jesuítas, mas o ensino ultrapassava os saberes 
escolares. Os curumins13 eram dotados de docilidade e absorviam toda a ideologia 
imposta pelos jesuítas. Os sacerdotes perceberam que a via de acesso mais rápida 
 
10 Labor: Trabalho, esp. Quando é difícil, cansativo. (BECHARA, 2011. p. 767) 
11 Algoz: Executor de pena de morte;carrasco. (BECHARA, 2011. p. 249) 
12 Religião que se baseia na doutrina e na vida de Jesus Cristo. (BECHARA, 2011. p. 467) 
 
13 Curumim: Menino, garoto. (BECHARA, 2011. p. 473) 
para chegar aos índios adultos, seria através dos seus filhos, que assumiram 
involuntariamente o posto de fiscais de seus pais, que caso infringissem as regras 
estabelecidas pela Igreja Católica eram sujeitados ao vitupério14 da mencionada. 
A autora declara não houve exclusividade por parte dos jesuítas no que remete 
a escolarização e aceitação dos índios ao cristianismo, houve inúmeras tentativas por 
parte de padres pertencentes a outras Ordens. Mediante a tantas investidas e 
transformações a infância começou a ser vista por um ângulo novo, como afirma a 
autora neste trecho: 
É bem verdade que a infância estava sendo descoberta nesse momento no 
Velho Mundo, resultado da transformação nas relações entre indivíduo e 
grupo, o que ensejava o nascimento de novas formas de afetividade e a 
própria “afirmação do sentimento de infância”, na qual Igreja e Estado tiveram 
um papel fundamental. Nesse sentido, foi também este movimento “que fez 
a Companhia escolher crianças indígenas como ‘papel blanco’, a cera virgem 
em que tanto se desejava escrever; e inscrever-se”. (DEL PRIORE, 2015, 
p.58). 
A autora ressalta que contrariando os esforços realizados, os jesuítas 
confrontaram-se com grande tribulação15 na tentativa de evangelizar os índios. Numa 
crescente perseverança estabeleceram a influência16 que tanto almejavam, pois 
passaram a ser confiáveis aos olhos indígenas, em louvor aos progressos 
educacionais obtidos com seus filhos. A felicidade dos padres transcendia com o 
desenvolvimento dos curumins, como especifica a autora no trecho abaixo: 
O regozijo era generalizado quando os meninos passavam a abominar os 
costumes de seus pais, como aqueles descritos pelo irmão Correa, em julho 
de 1554, “tão vivos e tão bons e tão atrevidos, que quebram as tinas cheias 
de vinho para que seus pais não bebam”. Anos mais tarde, em uma carta 
endereçada ao, o irmão Geral padre Diego Laynes, em setembro de 1559 o 
irmão Blázquez relatava vários exemplos de como os meninos, além de 
fazerem progressos na doutrina, repreendiam duramente seus pais, e 
delatavam aos padres os mais velhos que teimavam em praticar seus 
“horríveis” costumes, às escondidas, é claro; um dos mocos da escola 
chegara a denunciar seu próprio pai, que se valia de um feiticeiro sem os 
padres o saberem. (DEL PRIORE, 2015, p.60). 
Segundo Del Priore (2015 p. 58) na transição da infância para a adolescência, 
inúmeros índios deixavam de praticar a doutrina estabelecida e imposta pelos padres, 
 
14 Vitupério: Repreensão verbal exagerada; insulto. (BECHARA, 2011. p. 1141) 
15 Tribulação: Sofrimento moral; atribulação, aflição. (BECHARA, 2011. p. 1109) 
16 Influência: Ação ou efeito de influir. (BECHARA, 2011. p. 733) 
 
regressando ao sentimento implícito17 em seu ser, o que outrora era sufocado pelos 
costumes civilizatórios dos representantes da Igreja Católica. Houve uma mudança 
comportamental dos índios, anunciada pelos padres, que se acentuou 
metodologicamente por vias de sessões de tortura, endereçadas a quem não se 
submetesse a Coroa, pois era em seu nome que os padres agiam, e caso alguém se 
opusesse era disciplinado com castigos físicos. 
A autora salienta que somente no século XVIII houve uma maior clareza e 
intensificação dos cuidados com a infância, porém inúmeras crianças eram 
acometidas por doenças comuns a infância e muitas delas vinham a óbito. A 
mortalidade infantil estava no auge, nesse período histórico, infelizmente a ignorância 
também fazia vítimas, pois muitos atribuíam essas mortes não as doenças existentes 
e sim a bruxarias, muitas crianças ao passar mal justificava-se que havia sido alvo de 
rituais. Muitas famílias enchiam seus filhos pequenos de amuletos18, para que as 
mandingas19 supostamente lançadas pelas bruxas não matassem suas crianças. 
Mas não eram exatamente as bruxas as responsáveis pela mortalidade 
infantil nos primeiros tempos da colonização. Os lusos recém-chegados 
traziam consigo rígidas noções de resguardo e de agasalho. Tinham horror 
aos banhos e ao ar livre. (DEL PRIORE, 2015. p.91) 
Segundo Del Priore (2015), o posicionamento da Igreja Católica referente as 
doenças típicas da infância, era o da oração, entre outros, com o objetivo de acalmar 
a população que estava a cada dia mais apavorada com tantas mortes infantis. A 
autora chama a atenção, para o fato de que somente no século XVIII vínculos afetivos 
fortes foram finalmente estabelecidos, no que remete a pais e filhos, enfatizando os 
negros africanos como protagonistas desse acontecimento, como esclarece a autora, 
no trecho a seguir: 
O carinho dos pais pelos filhos, enquanto pequenos, chega a não ter limites, 
e é principalmente o pai quem se ocupa com eles, quando tem um minuto 
livre. Ama-os até a fraqueza e, até certa idade, atura as suas más criações. 
Não há nada que mais o moleste do que ver alguém corrigir seu filho. Quando 
marido e mulher saem de casa seja para visitarem uma família, seja para irem 
a alguma festa, levam consigo todos os filhos, com suas respectivas amas, e 
é ainda o pai quem carrega com todo o trabalho, agarrando-se lhe os 
 
17 Implícito: Que não é evidente mas que pode ser deduzido com base em algo que foi dito, 
feito, etc. (BECHARA, 2011. p. 716) 
18 Amuleto: Objeto a que se atribui o poder de trazer boa sorte ou de afastar malefícios. 
(BECHARA, 2011. p. 263) 
19 Mandinga: Feitiço ou mau-olhado. (BECHARA, 2011. p. 805) 
 
pequenos ao pescoço, às mãos, as abas do casaco. (DEL PRIORE, 2015. p. 
95) 
Del Priore (2015) salienta que o lazer desfrutado pelas crianças dessa época 
era através de brincadeiras ao ar livre, banhos de rio, cachoeira etc. O destino de uma 
criança era determinado de acordo com sua cor e classe social, as crianças negras 
eram escravizadas e submetidas a jornadas intermináveis de trabalho, já os filhos dos 
portugueses eram educados para exercer grandes funções e lhes era destinada uma 
educação de qualidade. 
A autora enfatiza que, os negros traficados para o Brasil, na maioria homens 
de 15 a 24 anos, poucos eram crianças e idosos, por não ter a forca de trabalho 
necessária para os duros trabalhos nas minas, o índice de morte era elevadíssimo, os 
escravos possuíam um prazo de validade, não maior que sete anos, muitos nasceram 
em solo brasileiro. A idade adulta se alcançava aos 15 anos de idade, as tradições 
estabeleciam que doze anos era a idade mais propícia para que uma menina casasse 
e tivesse filhos. Escravos eram despossuídos de direitos, não tinham documentos, se 
tornando impossível saber ao certo suas idades, que lhe eram destinadas de acordo 
com suas feições. Os recém-nascidos negros eram entregues à própria sorte, pois o 
leite materno importantíssimo para o seu desenvolvimento era destinado para o 
enriquecimento dos patrões, como veremos no trecho a seguir: 
Para os donos, a maior serventia das crianças nascidas no lugar era o fato 
de tornar possível a existência de uma ama de leite para alimentar seus filhos. 
Mas para isso, não havia necessidade de sobrevivência do filho da escrava. 
Essa mentalidade, certamente não deliberada e clara, mas sutil, tornava a 
vida da criança escrava pouco valorizada. Mas a ama de leite era importante 
e o aleitamento era visto como valioso, tanto pela Igreja como pelos conceitos 
médicos vigentes e assim, as mulheres escravas que davam à luz, eram 
empregadas como fornecedoras de alimento para crianças de outras 
categorias. Chegavam a ser alugadas por bom preço para essa finalidade. 
Isso, evidentementeprejudicava seus próprios filhos que muitas vezes 
sofriam grandemente com a escassez do leite materno. (DEL PRIORE, 2015. 
p. 114). 
Segundo a autora, inúmeras mulheres negras, na condição de libertas, 
subsistiam em lugares insalubres20, porém não abriam mão de ter consigo os seus 
rebentos21. Exerciam atividades extremamente banalizadas e com péssima 
remuneração, mas que de certa forma as possibilitaria alimentar seus filhos, já as 
 
20 Insalubre: Que faz mal à saúde. (BECHARA, 2011. p. 737) 
21 Rebento: Filho, descendente. (BECHARA, 2011. p. 987) 
crianças cativas habitavam em senzalas22 com os seus. O índice de crianças negras 
na condição de libertas acometidas pela mortalidade infantil era demasiadamente 
maior que o das outras crianças. A solidão era uma das responsáveis por este 
fenômeno, muitas das crianças que ficavam sozinhas em casa se acidentavam e 
vinham a óbito. Nessa época a varíola23 assolava e foi responsável pela morte de 
milhares de crianças. Muito tempo depois inventaram a vacina, mas muitos 
continuaram a morrer pela não aderência a vacinação. Muito sofrimento foi reservado 
para as crianças negras, impedidas de ser crianças, de viverem uma infância feliz, 
tranquila, sem direito a ser amamentado e amado por sua mãe e conviver com sua 
família e em comunidade. Lhes foi tirado a dignidade, os sonhos e lhes foi entregue 
uma vida resumida a trabalho e submissão. Novos mecanismos são criados no século 
XIX para proteger as crianças denegadas e entregues a condições de extrema 
vulnerabilidade. 
Após analisarmos os acontecimentos narrados pela autora, concordamos e 
compreendemos o quanto as crianças eram colocadas em último plano, a vida 
existente fora dos padrões estipulados pela sociedade não era quista, porém tal 
querência ia além do que é compreensível a nós, crianças sendo consideradas folhas 
em branco como as indígenas pelos padres jesuítas, como objetos com utilidade 
apenas para servidão como as crianças negras ou crianças trocadas por dinheiro 
como as portuguesas. É lamentável ver toda a trajetória da infância no Brasil até esse 
período. Porém mais adiante outros períodos aguardam serem por nós desbravados. 
1.1 O êxodo rural 
De acordo com Decca (2009) o êxodo24 rural ocorreu no século XVIII no Brasil, 
fazendo com que muitas famílias que moravam e retiravam o seu sustento do campo, 
saíssem de suas terras para habitar os grandes centros, em busca de sobrevivência, 
porém os grandes centros não estavam estruturados para receber de uma só vez 
 
22 Senzalas: No Brasil colonial e imperial, lugar onde ficavam alojados os escravos negros. 
(BECHARA, 2011. p. 1042) 
23 Varíola: Doença infecciosa, muito contagiosa, causada por vírus e caracterizada por febre e 
formação de pústulas na pele. (BECHARA, 2011. p. 1126) 
 
24 Êxodo: Retirada em massa da população; emigração. (BECHARA, 2011. p. 620) 
 
tanta gente em busca de emprego e moradia. Com o surgimento das fábricas nesse 
período, a população que tirava o sustento da terra e trabalhava para si, passou a 
buscar emprego nas fábricas. Acostumados a conhecer todo o processo de seu 
trabalho, tiveram que contentar-se a conhecer apenas parte dele. O autor estabelece 
as mudanças advindas da Revolução Industrial que ganhou grandes proporções no 
século XIX, como veremos no trecho a seguir: 
 
A Revolução Industrial ainda provocou transformações importantes no 
sistema de trabalho e no modo de vida das pessoas que, habituadas a uma 
existência rural, tiveram de se adaptar a uma maneira de viver urbana. As 
cidades antes vilarejos voltados para o comércio, converteram-se em 
verdadeiras “florestas de chaminés” de fábricas poluídas, onde uma grande 
multidão se acotovelava pelas ruas. Os relógios, antes existentes apenas nas 
torres das igrejas, multiplicaram-se e passaram a ditar o ritmo diário dos 
trabalhadores: o tempo passou a ser dinheiro. Assim, pode-se dizer que a 
Revolução Industrial produziu uma profunda modificação na vida das 
pessoas, em sua maneira de trabalhar, de viver, de se relacionar com os 
outros, de se divertir e, enfim, de compreender o mundo. (DECCA, 2009, 
p.28). 
 
Decca (2009) explicita que não restava outra alternativa a população, senão o 
trabalho, sua sobrevivência e de seus dependentes só seria possível através da troca 
de sua força de trabalho pelo salário pago por seu empregador. Embora estivessem 
expostos a rotinas assemelhadas a escravidão, nada era feito em prol dos 
trabalhadores que tinham que se submeter a exaustivas jornadas de trabalho 
impostas pelo capitalismo25. Nesse período o trabalho infantil estava no auge, a mão-
de-obra realizada por crianças era adotada em muitas fábricas, por ser infinitamente 
mais barata e de fácil exploração. As crianças eram alvos fáceis, seres submissos e 
indefesos. Essa exploração era descrita pelos empregadores como benesse26, pois 
muitas das crianças exploradas nas fábricas eram órfãs ou de origem extremamente 
humilde, o que fortalecia o discurso de que, aquela rotina de trabalho era essencial 
para que as crianças se auto sustentassem no caso das órfãs e contribuíssem com o 
orçamento familiar no caso das humildes. Não havia diferenciação entre crianças e 
adultos no que remete ao trabalho executado e tempo de execução. 
Del Priore (2015) relata que as maiores vítimas dos mandos e desmandos dos 
patrões eram as crianças, tal afirmativa deixa claro que hierarquicamente as crianças 
eram as mais prejudicadas, por serem despossuídas de tamanho e força física. 
 
25 Capitalismo: Sistema socioeconômico caracterizado pela propriedade privada dos capitais, 
por um mercado livre e competitivo e pela produção voltada para o lucro. (BECHARA, 2011. p.380) 
26 Benesse: Privilégio, favor. (BECHARA, 2011. p. 334) 
Cobrava-se das crianças uma maturidade inexistente para a faixa-etária, sendo estas 
massificadas por agirem e por assumirem comportamentos oriundos da infância em 
sua prática profissional ocasionando um alto índice de acidentes. Os movimentos 
operários, tiveram início no século XX, trazendo à tona grandes manifestações, com 
vias a estabelecer parâmetros de segurança para o trabalho, estipulando que a 
infância deveria ser preservada até os 16 anos, somente maiores de 14 anos poderiam 
trabalhar e os trabalhos realizados em período noturno deveriam acabar. A infância 
muda significativamente após a Proclamação da República, assim afirma a autora no 
trecho a seguir: 
 
Veio um século no qual muitas crianças e jovens experimentaram crueldades 
inimagináveis. Crueldades geradas no próprio núcleo familiar, nas escolas, 
nas fábricas e escritórios, nos confrontos entre gangues, nos internatos ou 
nas ruas entre traficantes e policiais. A dureza da vida levou os pais a 
abandonarem cada vez mais os filhos e com isso surgiu uma nova ordem de 
prioridades no atendimento social que ultrapassou o nível da filantropia 
privada e seus orfanatos, para elevá-la as dimensões de problema de Estado 
com políticas sociais e legislações específicas. (DEL PRIORE, 2015, p. 347). 
 
 
Decca (2009) ressalta os inúmeros acidentes e mortes de crianças nas fábricas, 
pois a elas destinavam-se trabalhos muito perigosos, como a limpeza de 
compartimentos de difícil acesso nas máquinas, se justificava que o corpo franzino27 
de uma criança era muito mais fácil de se encaixar nos pequenos espaços. Havia 
muitos casos de crianças mutiladas28, era comum encontrar crianças com dedos 
faltantes nas mãos.. Os castigos físicos aos quais as crianças eram submetidas é 
clarificado pelo autor no verso a seguir: 
 
Nessas condições, com poucas horas de sono e mal-alimentadas,recebendo 
apenas uma ínfima parte do salário de um adulto, muitas crianças 
adormeciam sobre as máquinas, correndo o risco de ficar seriamente feridas. 
Perder um ou mais dedos nas ferragens era então comum entre os pequenos 
trabalhadores, e seus erros eram sempre punidos severamente. (DECCA, 
2009, p.41). 
 
 
Del Priore (2015) reforça que havia apenas dois caminhos para as crianças 
pertencentes as classes mais baixas, o trabalho nas fábricas para auxílio no 
orçamento familiar ou aderir a práticas criminosas. Exercendo a mesma jornada e 
 
27 Franzino: Diz-se de alguém magro e pequeno. (DECCA, 2009, p.656). 
28 Mutilado: A que falta um membro, ou alguma parte do corpo. (DECCA, 2009, p.849). 
atividades equivalentes as de um adulto, todos sem exceção tinham que trabalhar, 
caso contrário a subsistência da família ficaria comprometida, tendo em vista, que 
residiam em cortiços e as despesas tinham de ser pagas. A vida era difícil, sem água 
canalizada ou tratada, a base de velas e candeeiros, era comum ver dejetos humanos 
e de toda espécie correndo a céu aberto. 
De acordo com Rizzini (2008) o século XIX foi um século perdido para a infância 
no Brasil, devido as falácias que não se aplicavam a realidade, muito se prometeu e 
nada efetivamente se cumpriu. Neste período em que a caridade predominava, 
favorecendo a um número restrito e irrisório29 de pessoas, havia uma carência de 
investimentos na infância. Segundo o Senador Lopes Trovão todos os olhares 
deveriam voltar-se para a infância, como explicita a autora no trecho a seguir: 
“Temos uma pátria a reconstruir, uma nação a firmar; um povo a fazer...e para 
emprehender essa tarefa, que elemento mais ductil e moldável a trabalhar do 
que a infância?!...” “São chegados os tempos”, preconizava o Senador, “de 
prepararmos na infância a cellula de uma mocidade melhor, a gênesis de uma 
humanidade mais perfeita. (RIZZINI, 2008, p. 16) 
 
Rizzini (2008) nos faz refletir sobre as mudanças nas condições de vida das 
crianças, o que de fato difere das mazelas vividas pela infância no século XIX, com as 
da atualidade. Essa indagação nos faz refletir sobre os avanços legais em prol da 
infância nos últimos anos, mas além dos progressos houve também a estagnação em 
situações que necessitam de continuidade, investimentos, para que alcancem os 
resultados necessários, porém a necessidade de compreender a infância através de 
estudos é mais relevante para a autora do que críticas e denúncias. Concordamos 
com a autora quando afirma a necessidade da intensificação de estudos na área da 
infância, pois só é possível intervir em uma situação que de fato se conhece, quando 
se há propriedade no assunto abordado, a intervenção sem conhecimento de causa 
pode trazer resultados não tão efetivos como se espera alcançar. Os autores citados 
nesse subcapítulo são unânimes ao declarar quão tortuosos foram os caminhos de 
milhares de crianças, durante todos esses anos, oprimidas, marginalizadas, sem voz 
e sem vez. Perpassaremos adiante pela questão social, raiz das demais mazelas 
humanas, seu enfrentamento que originou a luta dos movimentos sociais e demais 
 
29 Irrisório: Que é feito com o objetivo de provocar riso. Sem importância. (BECHARA, 2011. 
p.754) 
 
integrantes da sociedade civil, com vias a construção de um novo horizonte onde 
crianças e adolescentes tivessem direitos e deveres resguardados no Brasil.

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