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1 A TRAJETÓRIA DA INFÂNCIA NO BRASIL . Del Priore (2015) narra a trajetória da infância no Brasil com muita propriedade, registrada a partir do ano de 1500. Embora a descoberta tenha sido no ano acima referido, os portugueses começaram a arruar 1 o Brasil, somente 30 anos após o descobrimento. A viagem era demasiadamente longa, vinham aglomerados em navios, disputando espaço com a infinidade de suprimentos, bagagens e produtos, A precariedade com que viajavam era assustadora, muitos homens, algumas mulheres e crianças compunham as tripulações a bordo dos navios. A autora explicita a dimensão do sofrimento a que as crianças lusitanas eram submetidas ao embarcarem em uma nau2 portuguesa. A depreciação da infância era o combustível da Coroa portuguesa para recrutar tantas crianças e introduzi-las nas tripulações, devido ao pauperismo3 que acometia grande parte das famílias em Portugal naquela época e um profundo desmerecimento da infância no período, não havia pudores por parte dos pais em negociar seus filhos, em troca de ajuda financeira que receberiam fielmente todos os meses. Afirma Del Priore (2015) que hierarquicamente as crianças estavam acima apenas dos animais, pois todos os demais tripulantes lhe eram superiores, submissas a toda e qualquer ordem, por mais inescrupulosa ou devassa que fosse. Os nautas4 eram sentenciados, homens condenados por crimes hediondos5. Devido ao grande pauperismo acima citado, Portugal não dispunha de muitos homens para navegar, por esta condição a Coroa Portuguesa libertou todos os presos por transgredir6 a lei, para que se lançassem como marinheiros. A escassez de alimentos era gritante e responsável por grande parte do sofrimento das crianças a bordo, elas tinham a mesma jornada de trabalho que os demais tripulantes, não havia distinção de serviços, porém a sua alimentação diária se abreviava a três porções minúsculas de alimentos, a água para o consumo era imprópria, mal armazenada e era distribuída em reles 1 Arruar: Dividir ou distribuir em ruas. (BECHARA, 2011. p. 297) 2 Nau: Antigo navio à vela. (BECHARA, 2011. p. 853) 3 Pauperismo: Pobreza extrema; miséria. (BECHARA, 2011. p. 906) 4 Nauta: Aquele que navega, marinheiro. (BECHARA, 2011. p. 853) 5 Hediondo: Que causa horror; medonho, pavoroso. (BECHARA, 2011. p. 692) 6 Transgredir: Desobedecer a; desrespeitar leis, regras, etc; infringir. (BECHARA, 2011. p. 1103) quantidades. A autora ressalta abaixo, os métodos adotados pelos grumetes7 para incrementar a alimentação tão resumida: Como se não bastasse o fato da ração ser extremamente restrita, a sua qualidade era sempre péssima; “o biscoito era bolorento e fétido, todo roído por baratas”. A carne salgada encontrava-se, constantemente, em estado de decomposição. A água potável, igualmente podre, exalava um incrível mal cheiro por ser armazenada em tonéis de madeira, onde, em poucos dias proliferavam inúmeros micro-organismos, responsáveis por constantes diarreias. Ainda assim, sua distribuição estava restrita a apenas três rações diárias. (DEL PRIORE, 2015, p. 26) Del Priore (2015) ressalta que o sonho de crescer dentro da tripulação, ganhar uma patente fazia parte do imaginário de várias crianças, mas a trajetória rumo ao sonho contava com a exaustão do trabalho, com os constantes assédios e com toda a sorte de violências que se possa imaginar, inclusive sexual, não havendo punição para tal barbárie8. Concordamos com a autora, pois a desvalorização da infância era gritante naquela época, as crianças tinham o seu valor equiparado ao dos animais, não havia vínculos de pertencimento em relação dos pais para com seus filhos, as crianças eram utilizadas como moedas de troca por quem a representasse legalmente. O desprezo por parte dos portugueses pela infância perdurou e acompanhou a trajetória da infância também aqui no Brasil, a pesquisa empreendida nos possibilitou perceber, que todo esse desmerecimento pela infância resultou em grandes lutas e consequentemente em grandes vitórias, no que remete aos direitos para a infância e adolescência como observaremos ao término deste capítulo. A autora ressalta, que as viagens marítimas eram demasiadamente arriscadas, especialmente para as crianças pela inexperiência nas embarcações, muitas caíram no mar, outras eram acometidas por acidentes, pois eram obrigadas a desempenhar funções arriscadas dentro das naus. As mortes eram encaradas como “atos de extrema coragem” forma utilizada para manipular os pequeninos e evitar mal-estar entre os navegantes. Os naufrágios9 não poupavam vítimas, disparadamente as infantis possuíam maior índice e quando ocorriam eram um evento aterrorizante. Em um naufrágio duvidosamente sobreviveriam, mas caso acontecesse, morreriam pouco 7 Grumete: Marinheiro de graduação mínima. (BECHARA, 2011. p. 686) 8 Barbárie: Ato de crueldade; atrocidade; barbarismo. (BECHARA, 2011. p. 326) 9 Naufrágio: Afundamento de uma embarcação. (BECHARA, 2011. p. 853) depois de pisar em terra firme, devido à falta de água e alimentos. Esta triste realidade é relatada pela autora no trecho a seguir: Embora algumas crianças lutassem bravamente por suas vidas no momento do naufrágio, poucas conseguiam se salvar quando tornadas naufragas. Na maior parte das vezes, adulto ou criança, todos que escapavam da morte no mar, pensando ter tido sorte por sobreviver, estava apenas no início de um longo martírio. As dores do naufrágio eram apenas o princípio de um sofrimento muito mais intenso marcado pela fome, pelo medo e por inúmeras dificuldades. Em condições como estas, as poucas crianças que sobreviviam, já intensamente castigadas pelo cansaço físico e o trauma psicológico, dificilmente conseguiam ter sorte diferente em terra. (DEL PRIORE, 2015, p. 44) De acordo com Del Priore (2015), a desvalorização e as atrocidades desferidas contra as crianças nas naus portuguesas estão impressas na história. Sendo estas úteis apenas para o labor10 e satisfação dos mais variados caprichos de seu algoz11, sem direito a recusa e a quem recorrer. Findamos este fatídico ciclo da história, que vitimou inúmeras crianças, classificada pela autora de tragédia marítima. Concordamos plenamente com a autora, em sua exposição dos acontecimentos sobre o fenômeno mencionado, podemos ressaltar todo o sofrimento atribuído a essas crianças, não dispondo do mínimo para sobreviverem, reduzidas a meros instrumentos de trabalho e despossuídas de direitos e proteção. Nas páginas a seguir percorreremos uma época histórica, perpassando pelos jesuítas que trazem consigo ao Brasil o desejo de impor sua religiosidade aos indígenas. Del Priore (2015) enfatiza que por volta de 1549 Manuel da Nóbrega liderava alguns religiosos que iniciaram em solo brasileiro um projeto de conversão ao cristianismo12, enfatizando os povos indígenas. Havia intensa resistência por parte dos adultos, por não apreciarem a ideia de desistir de sua essência, principalmente ao que remete a religiosidade, lutavam incansavelmente para reafirmar a cada dia a fé que professavam. Porém, as crianças passaram a ser o elo frágil para acesso aos adultos e utilizavam como meios a alfabetização e a religião. Os pais prezavam a ideia de ter seus filhos alfabetizados pelos jesuítas, mas o ensino ultrapassava os saberes escolares. Os curumins13 eram dotados de docilidade e absorviam toda a ideologia imposta pelos jesuítas. Os sacerdotes perceberam que a via de acesso mais rápida 10 Labor: Trabalho, esp. Quando é difícil, cansativo. (BECHARA, 2011. p. 767) 11 Algoz: Executor de pena de morte;carrasco. (BECHARA, 2011. p. 249) 12 Religião que se baseia na doutrina e na vida de Jesus Cristo. (BECHARA, 2011. p. 467) 13 Curumim: Menino, garoto. (BECHARA, 2011. p. 473) para chegar aos índios adultos, seria através dos seus filhos, que assumiram involuntariamente o posto de fiscais de seus pais, que caso infringissem as regras estabelecidas pela Igreja Católica eram sujeitados ao vitupério14 da mencionada. A autora declara não houve exclusividade por parte dos jesuítas no que remete a escolarização e aceitação dos índios ao cristianismo, houve inúmeras tentativas por parte de padres pertencentes a outras Ordens. Mediante a tantas investidas e transformações a infância começou a ser vista por um ângulo novo, como afirma a autora neste trecho: É bem verdade que a infância estava sendo descoberta nesse momento no Velho Mundo, resultado da transformação nas relações entre indivíduo e grupo, o que ensejava o nascimento de novas formas de afetividade e a própria “afirmação do sentimento de infância”, na qual Igreja e Estado tiveram um papel fundamental. Nesse sentido, foi também este movimento “que fez a Companhia escolher crianças indígenas como ‘papel blanco’, a cera virgem em que tanto se desejava escrever; e inscrever-se”. (DEL PRIORE, 2015, p.58). A autora ressalta que contrariando os esforços realizados, os jesuítas confrontaram-se com grande tribulação15 na tentativa de evangelizar os índios. Numa crescente perseverança estabeleceram a influência16 que tanto almejavam, pois passaram a ser confiáveis aos olhos indígenas, em louvor aos progressos educacionais obtidos com seus filhos. A felicidade dos padres transcendia com o desenvolvimento dos curumins, como especifica a autora no trecho abaixo: O regozijo era generalizado quando os meninos passavam a abominar os costumes de seus pais, como aqueles descritos pelo irmão Correa, em julho de 1554, “tão vivos e tão bons e tão atrevidos, que quebram as tinas cheias de vinho para que seus pais não bebam”. Anos mais tarde, em uma carta endereçada ao, o irmão Geral padre Diego Laynes, em setembro de 1559 o irmão Blázquez relatava vários exemplos de como os meninos, além de fazerem progressos na doutrina, repreendiam duramente seus pais, e delatavam aos padres os mais velhos que teimavam em praticar seus “horríveis” costumes, às escondidas, é claro; um dos mocos da escola chegara a denunciar seu próprio pai, que se valia de um feiticeiro sem os padres o saberem. (DEL PRIORE, 2015, p.60). Segundo Del Priore (2015 p. 58) na transição da infância para a adolescência, inúmeros índios deixavam de praticar a doutrina estabelecida e imposta pelos padres, 14 Vitupério: Repreensão verbal exagerada; insulto. (BECHARA, 2011. p. 1141) 15 Tribulação: Sofrimento moral; atribulação, aflição. (BECHARA, 2011. p. 1109) 16 Influência: Ação ou efeito de influir. (BECHARA, 2011. p. 733) regressando ao sentimento implícito17 em seu ser, o que outrora era sufocado pelos costumes civilizatórios dos representantes da Igreja Católica. Houve uma mudança comportamental dos índios, anunciada pelos padres, que se acentuou metodologicamente por vias de sessões de tortura, endereçadas a quem não se submetesse a Coroa, pois era em seu nome que os padres agiam, e caso alguém se opusesse era disciplinado com castigos físicos. A autora salienta que somente no século XVIII houve uma maior clareza e intensificação dos cuidados com a infância, porém inúmeras crianças eram acometidas por doenças comuns a infância e muitas delas vinham a óbito. A mortalidade infantil estava no auge, nesse período histórico, infelizmente a ignorância também fazia vítimas, pois muitos atribuíam essas mortes não as doenças existentes e sim a bruxarias, muitas crianças ao passar mal justificava-se que havia sido alvo de rituais. Muitas famílias enchiam seus filhos pequenos de amuletos18, para que as mandingas19 supostamente lançadas pelas bruxas não matassem suas crianças. Mas não eram exatamente as bruxas as responsáveis pela mortalidade infantil nos primeiros tempos da colonização. Os lusos recém-chegados traziam consigo rígidas noções de resguardo e de agasalho. Tinham horror aos banhos e ao ar livre. (DEL PRIORE, 2015. p.91) Segundo Del Priore (2015), o posicionamento da Igreja Católica referente as doenças típicas da infância, era o da oração, entre outros, com o objetivo de acalmar a população que estava a cada dia mais apavorada com tantas mortes infantis. A autora chama a atenção, para o fato de que somente no século XVIII vínculos afetivos fortes foram finalmente estabelecidos, no que remete a pais e filhos, enfatizando os negros africanos como protagonistas desse acontecimento, como esclarece a autora, no trecho a seguir: O carinho dos pais pelos filhos, enquanto pequenos, chega a não ter limites, e é principalmente o pai quem se ocupa com eles, quando tem um minuto livre. Ama-os até a fraqueza e, até certa idade, atura as suas más criações. Não há nada que mais o moleste do que ver alguém corrigir seu filho. Quando marido e mulher saem de casa seja para visitarem uma família, seja para irem a alguma festa, levam consigo todos os filhos, com suas respectivas amas, e é ainda o pai quem carrega com todo o trabalho, agarrando-se lhe os 17 Implícito: Que não é evidente mas que pode ser deduzido com base em algo que foi dito, feito, etc. (BECHARA, 2011. p. 716) 18 Amuleto: Objeto a que se atribui o poder de trazer boa sorte ou de afastar malefícios. (BECHARA, 2011. p. 263) 19 Mandinga: Feitiço ou mau-olhado. (BECHARA, 2011. p. 805) pequenos ao pescoço, às mãos, as abas do casaco. (DEL PRIORE, 2015. p. 95) Del Priore (2015) salienta que o lazer desfrutado pelas crianças dessa época era através de brincadeiras ao ar livre, banhos de rio, cachoeira etc. O destino de uma criança era determinado de acordo com sua cor e classe social, as crianças negras eram escravizadas e submetidas a jornadas intermináveis de trabalho, já os filhos dos portugueses eram educados para exercer grandes funções e lhes era destinada uma educação de qualidade. A autora enfatiza que, os negros traficados para o Brasil, na maioria homens de 15 a 24 anos, poucos eram crianças e idosos, por não ter a forca de trabalho necessária para os duros trabalhos nas minas, o índice de morte era elevadíssimo, os escravos possuíam um prazo de validade, não maior que sete anos, muitos nasceram em solo brasileiro. A idade adulta se alcançava aos 15 anos de idade, as tradições estabeleciam que doze anos era a idade mais propícia para que uma menina casasse e tivesse filhos. Escravos eram despossuídos de direitos, não tinham documentos, se tornando impossível saber ao certo suas idades, que lhe eram destinadas de acordo com suas feições. Os recém-nascidos negros eram entregues à própria sorte, pois o leite materno importantíssimo para o seu desenvolvimento era destinado para o enriquecimento dos patrões, como veremos no trecho a seguir: Para os donos, a maior serventia das crianças nascidas no lugar era o fato de tornar possível a existência de uma ama de leite para alimentar seus filhos. Mas para isso, não havia necessidade de sobrevivência do filho da escrava. Essa mentalidade, certamente não deliberada e clara, mas sutil, tornava a vida da criança escrava pouco valorizada. Mas a ama de leite era importante e o aleitamento era visto como valioso, tanto pela Igreja como pelos conceitos médicos vigentes e assim, as mulheres escravas que davam à luz, eram empregadas como fornecedoras de alimento para crianças de outras categorias. Chegavam a ser alugadas por bom preço para essa finalidade. Isso, evidentementeprejudicava seus próprios filhos que muitas vezes sofriam grandemente com a escassez do leite materno. (DEL PRIORE, 2015. p. 114). Segundo a autora, inúmeras mulheres negras, na condição de libertas, subsistiam em lugares insalubres20, porém não abriam mão de ter consigo os seus rebentos21. Exerciam atividades extremamente banalizadas e com péssima remuneração, mas que de certa forma as possibilitaria alimentar seus filhos, já as 20 Insalubre: Que faz mal à saúde. (BECHARA, 2011. p. 737) 21 Rebento: Filho, descendente. (BECHARA, 2011. p. 987) crianças cativas habitavam em senzalas22 com os seus. O índice de crianças negras na condição de libertas acometidas pela mortalidade infantil era demasiadamente maior que o das outras crianças. A solidão era uma das responsáveis por este fenômeno, muitas das crianças que ficavam sozinhas em casa se acidentavam e vinham a óbito. Nessa época a varíola23 assolava e foi responsável pela morte de milhares de crianças. Muito tempo depois inventaram a vacina, mas muitos continuaram a morrer pela não aderência a vacinação. Muito sofrimento foi reservado para as crianças negras, impedidas de ser crianças, de viverem uma infância feliz, tranquila, sem direito a ser amamentado e amado por sua mãe e conviver com sua família e em comunidade. Lhes foi tirado a dignidade, os sonhos e lhes foi entregue uma vida resumida a trabalho e submissão. Novos mecanismos são criados no século XIX para proteger as crianças denegadas e entregues a condições de extrema vulnerabilidade. Após analisarmos os acontecimentos narrados pela autora, concordamos e compreendemos o quanto as crianças eram colocadas em último plano, a vida existente fora dos padrões estipulados pela sociedade não era quista, porém tal querência ia além do que é compreensível a nós, crianças sendo consideradas folhas em branco como as indígenas pelos padres jesuítas, como objetos com utilidade apenas para servidão como as crianças negras ou crianças trocadas por dinheiro como as portuguesas. É lamentável ver toda a trajetória da infância no Brasil até esse período. Porém mais adiante outros períodos aguardam serem por nós desbravados. 1.1 O êxodo rural De acordo com Decca (2009) o êxodo24 rural ocorreu no século XVIII no Brasil, fazendo com que muitas famílias que moravam e retiravam o seu sustento do campo, saíssem de suas terras para habitar os grandes centros, em busca de sobrevivência, porém os grandes centros não estavam estruturados para receber de uma só vez 22 Senzalas: No Brasil colonial e imperial, lugar onde ficavam alojados os escravos negros. (BECHARA, 2011. p. 1042) 23 Varíola: Doença infecciosa, muito contagiosa, causada por vírus e caracterizada por febre e formação de pústulas na pele. (BECHARA, 2011. p. 1126) 24 Êxodo: Retirada em massa da população; emigração. (BECHARA, 2011. p. 620) tanta gente em busca de emprego e moradia. Com o surgimento das fábricas nesse período, a população que tirava o sustento da terra e trabalhava para si, passou a buscar emprego nas fábricas. Acostumados a conhecer todo o processo de seu trabalho, tiveram que contentar-se a conhecer apenas parte dele. O autor estabelece as mudanças advindas da Revolução Industrial que ganhou grandes proporções no século XIX, como veremos no trecho a seguir: A Revolução Industrial ainda provocou transformações importantes no sistema de trabalho e no modo de vida das pessoas que, habituadas a uma existência rural, tiveram de se adaptar a uma maneira de viver urbana. As cidades antes vilarejos voltados para o comércio, converteram-se em verdadeiras “florestas de chaminés” de fábricas poluídas, onde uma grande multidão se acotovelava pelas ruas. Os relógios, antes existentes apenas nas torres das igrejas, multiplicaram-se e passaram a ditar o ritmo diário dos trabalhadores: o tempo passou a ser dinheiro. Assim, pode-se dizer que a Revolução Industrial produziu uma profunda modificação na vida das pessoas, em sua maneira de trabalhar, de viver, de se relacionar com os outros, de se divertir e, enfim, de compreender o mundo. (DECCA, 2009, p.28). Decca (2009) explicita que não restava outra alternativa a população, senão o trabalho, sua sobrevivência e de seus dependentes só seria possível através da troca de sua força de trabalho pelo salário pago por seu empregador. Embora estivessem expostos a rotinas assemelhadas a escravidão, nada era feito em prol dos trabalhadores que tinham que se submeter a exaustivas jornadas de trabalho impostas pelo capitalismo25. Nesse período o trabalho infantil estava no auge, a mão- de-obra realizada por crianças era adotada em muitas fábricas, por ser infinitamente mais barata e de fácil exploração. As crianças eram alvos fáceis, seres submissos e indefesos. Essa exploração era descrita pelos empregadores como benesse26, pois muitas das crianças exploradas nas fábricas eram órfãs ou de origem extremamente humilde, o que fortalecia o discurso de que, aquela rotina de trabalho era essencial para que as crianças se auto sustentassem no caso das órfãs e contribuíssem com o orçamento familiar no caso das humildes. Não havia diferenciação entre crianças e adultos no que remete ao trabalho executado e tempo de execução. Del Priore (2015) relata que as maiores vítimas dos mandos e desmandos dos patrões eram as crianças, tal afirmativa deixa claro que hierarquicamente as crianças eram as mais prejudicadas, por serem despossuídas de tamanho e força física. 25 Capitalismo: Sistema socioeconômico caracterizado pela propriedade privada dos capitais, por um mercado livre e competitivo e pela produção voltada para o lucro. (BECHARA, 2011. p.380) 26 Benesse: Privilégio, favor. (BECHARA, 2011. p. 334) Cobrava-se das crianças uma maturidade inexistente para a faixa-etária, sendo estas massificadas por agirem e por assumirem comportamentos oriundos da infância em sua prática profissional ocasionando um alto índice de acidentes. Os movimentos operários, tiveram início no século XX, trazendo à tona grandes manifestações, com vias a estabelecer parâmetros de segurança para o trabalho, estipulando que a infância deveria ser preservada até os 16 anos, somente maiores de 14 anos poderiam trabalhar e os trabalhos realizados em período noturno deveriam acabar. A infância muda significativamente após a Proclamação da República, assim afirma a autora no trecho a seguir: Veio um século no qual muitas crianças e jovens experimentaram crueldades inimagináveis. Crueldades geradas no próprio núcleo familiar, nas escolas, nas fábricas e escritórios, nos confrontos entre gangues, nos internatos ou nas ruas entre traficantes e policiais. A dureza da vida levou os pais a abandonarem cada vez mais os filhos e com isso surgiu uma nova ordem de prioridades no atendimento social que ultrapassou o nível da filantropia privada e seus orfanatos, para elevá-la as dimensões de problema de Estado com políticas sociais e legislações específicas. (DEL PRIORE, 2015, p. 347). Decca (2009) ressalta os inúmeros acidentes e mortes de crianças nas fábricas, pois a elas destinavam-se trabalhos muito perigosos, como a limpeza de compartimentos de difícil acesso nas máquinas, se justificava que o corpo franzino27 de uma criança era muito mais fácil de se encaixar nos pequenos espaços. Havia muitos casos de crianças mutiladas28, era comum encontrar crianças com dedos faltantes nas mãos.. Os castigos físicos aos quais as crianças eram submetidas é clarificado pelo autor no verso a seguir: Nessas condições, com poucas horas de sono e mal-alimentadas,recebendo apenas uma ínfima parte do salário de um adulto, muitas crianças adormeciam sobre as máquinas, correndo o risco de ficar seriamente feridas. Perder um ou mais dedos nas ferragens era então comum entre os pequenos trabalhadores, e seus erros eram sempre punidos severamente. (DECCA, 2009, p.41). Del Priore (2015) reforça que havia apenas dois caminhos para as crianças pertencentes as classes mais baixas, o trabalho nas fábricas para auxílio no orçamento familiar ou aderir a práticas criminosas. Exercendo a mesma jornada e 27 Franzino: Diz-se de alguém magro e pequeno. (DECCA, 2009, p.656). 28 Mutilado: A que falta um membro, ou alguma parte do corpo. (DECCA, 2009, p.849). atividades equivalentes as de um adulto, todos sem exceção tinham que trabalhar, caso contrário a subsistência da família ficaria comprometida, tendo em vista, que residiam em cortiços e as despesas tinham de ser pagas. A vida era difícil, sem água canalizada ou tratada, a base de velas e candeeiros, era comum ver dejetos humanos e de toda espécie correndo a céu aberto. De acordo com Rizzini (2008) o século XIX foi um século perdido para a infância no Brasil, devido as falácias que não se aplicavam a realidade, muito se prometeu e nada efetivamente se cumpriu. Neste período em que a caridade predominava, favorecendo a um número restrito e irrisório29 de pessoas, havia uma carência de investimentos na infância. Segundo o Senador Lopes Trovão todos os olhares deveriam voltar-se para a infância, como explicita a autora no trecho a seguir: “Temos uma pátria a reconstruir, uma nação a firmar; um povo a fazer...e para emprehender essa tarefa, que elemento mais ductil e moldável a trabalhar do que a infância?!...” “São chegados os tempos”, preconizava o Senador, “de prepararmos na infância a cellula de uma mocidade melhor, a gênesis de uma humanidade mais perfeita. (RIZZINI, 2008, p. 16) Rizzini (2008) nos faz refletir sobre as mudanças nas condições de vida das crianças, o que de fato difere das mazelas vividas pela infância no século XIX, com as da atualidade. Essa indagação nos faz refletir sobre os avanços legais em prol da infância nos últimos anos, mas além dos progressos houve também a estagnação em situações que necessitam de continuidade, investimentos, para que alcancem os resultados necessários, porém a necessidade de compreender a infância através de estudos é mais relevante para a autora do que críticas e denúncias. Concordamos com a autora quando afirma a necessidade da intensificação de estudos na área da infância, pois só é possível intervir em uma situação que de fato se conhece, quando se há propriedade no assunto abordado, a intervenção sem conhecimento de causa pode trazer resultados não tão efetivos como se espera alcançar. Os autores citados nesse subcapítulo são unânimes ao declarar quão tortuosos foram os caminhos de milhares de crianças, durante todos esses anos, oprimidas, marginalizadas, sem voz e sem vez. Perpassaremos adiante pela questão social, raiz das demais mazelas humanas, seu enfrentamento que originou a luta dos movimentos sociais e demais 29 Irrisório: Que é feito com o objetivo de provocar riso. Sem importância. (BECHARA, 2011. p.754) integrantes da sociedade civil, com vias a construção de um novo horizonte onde crianças e adolescentes tivessem direitos e deveres resguardados no Brasil.
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