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UNIVERSIDADE CATÓLICA DOM BOSCO FLÁVIO EMÍLIO AGUIAR LEMOS TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO CAMPO GRANDE/MS 2017 FLÁVIO EMÍLIO AGUIAR LEMOS HISTÓRIA O IMPÉRIO NEO-ASSÍRIO E O ISRAEL-NORTE: DEPORTAÇÃO TOTAL OU DE APENAS UMA PARTE? Trabalho de pesquisa exigido como parte dos requisitos para conclusão da disciplina de Trabalho de Conclusão de Curso, apresentado à Universidade Católica Dom Bosco, curso de História, sob a orientação da Profa. Rosimeire Martins Régis dos Santos. CAMPO GRANDE/MS 2017 SUMÁRIO INTRODUÇÃO.................................................................................................................. 4 CAPÍTULO I – O reino da Assíria: Uma introdução..................................................... 7 CAPÍTULO II – O reino de Israel-Norte: Uma introdução.......................................... 12 CAPÍTULO III – A prática de deportação assíria.......................................................... 18 CAPÍTULO IV – O poder de uma ideologia................................................................... 25 CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................ 31 4 INTRODUÇÃO A presente pesquisa encontra-se dentro do grande tema da História antiga, especificamente no contexto do antigo oriente médio, o que se acostumou chamar de história do antigo oriente médio, ou antigo oriente próximo. As motivações que foram consideradas para a escolha deste tema e assunto tem como proposta desenvolver uma melhor compreensão sobre a prática de deportação empregada pelo império assírio quando da invasão ao reino do norte israelita, que ocorreu em 733 e 722 a.C. A pesquisa pretende, na sua finalidade, dar base para uma análise futura da continuidade cultural no reino de Israel no período posterior à invasão assíria. A visão tradicional propaga que o reino de Israel teria sofrido uma deportação de grande parte da população, por exemplo, em 733 a.C., quando Teglath-Pileser III assolou “Todas as terras israelitas da Galiléia e da Transjordânia [...]” (BRIGHT, 1978, p.367), restando na região apenas alguns poucos descendentes israelitas que somados a alguns estrangeiros ali alocados pelos assírios posteriormente, resultaram em uma região completamente “miscigenada”, sem vínculo com o passado da região. O livro de 2Reis (15:29; 17:6.23) retrata um ponto de vista muito parcial sobre este momento, apresentando os povos que ali viviam como idólatras e pecadores, e por estes motivos, sofredores do “castigo divino”. É sobre a influência desta ideologia dos escritores bíblicos que posteriormente irá se ignorar a importância do estudo desta região no período pós-deportações. Este “fim” do reino do Israel-norte inspirou a visão bíblica sobre as “Dez tribos perdidas de Israel”, da forma como é percebível em um texto oficial do Ministério das Relações exteriores de Israel. “O Reino de Israel foi destruído pelos assírios (722 AEC) e seu povo foi levado ao exílio e ao esquecimento”1. Esta afirmação é curiosa, pois, segundo Richard A. Horsley, em seu livro intitulado Arqueologia, História e sociedade na Galileia, surge uma questão que se torna o problema da presente pesquisa: teria a assíria, nos dois momentos de conquista no reino de Israel, deportado quase toda a população, ou apenas parte dela? (2000, p.28,29). Finkelstein e Silberman (2003) se referindo ao ponto de vista de alguns acadêmicos sobre a ideia de deportação em massa, ou da maioria, diz que essa visão serve à uma tradicional compreensão arqueológica, onde muitos estudiosos, em uma repetição involuntária das interpretações teológicas da Bíblia, retratam uma monótona continuidade populacional (2003, p.274), o que 1 Fatos sobre Israel. Ministério das relações exteriores de Israel. Jerusalém, Israel. 2010. Disponível em:< http://mfa.gov.il/MFA/AboutIsrael/History/Pages/Facts%20about%20Israel-%20History.aspx> Acesso em:04 de Setembro de 2017. http://mfa.gov.il/MFA/AboutIsrael/History/Pages/Facts%20about%20Israel-%20History.aspx 5 supostamente apontaria para uma baixa existência populacional na região após estes períodos (como questiona Horsley - 2000, p.29) e que corroboraria a ideia de que o império Assírio teria deportado a maior parte da população do Israel-norte. Sendo assim, a importância desta pesquisa se apresenta conforme o resultado da mesma. Uma vez se confirmando a hipótese de não-deportação da maioria da população Israelita, quando da conquista do império Assírio em 733-32 e 722-21 a.C., um caminho consideravelmente novo se estruturará. À saber, a possibilidade de novas pesquisas sobre a continuidade cultural nas regiões do Reino do Norte-Israel nos períodos subsequentes, devido a permanência considerável da população. Pesquisas que se juntariam à vários outros trabalhos, entre eles, o do professor Richard A. Horsley, na forma como é apresentado no livro Arqueologia, História e sociedade na Galileia, traduzido para o português brasileiro em 2000. A nível de conhecimento, neste livro o autor apresenta dados demonstrando uma rica cultura israelita na região da Galiléia, durante o 1º século d.C. (2000, p.154,55). A existência desta cultura israelita no norte da Palestina no 1º século d.C., consideravelmente diferente da cultura sulista da Judéia-Jerusalém, provavelmente, poderá encontrar a sua resposta no passado do reino israelita da região, justamente na questão sobre o ato de deportação assírio em Israel. Para os estudos da temática o trabalho se divide da seguinte forma: No primeiro capítulo é feito uma introdução a história da Assíria, suas características, e os principais reis que reinaram no século VIII a.C. e que exercem um papel essencial na análise sobre a questão da deportação do reino de Israel-norte. O segundo capítulo se concentra no estudo do reino de Israel-norte. Suas características e contextualização histórica, principais personagens, por volta do século VIII a.C. quando do encontro e os primeiros contatos com o império assírio. O terceiro capítulo se concentra na análise da prática de deportação praticada pelos assírios. Uma breve introdução e os motivos que impulsionavam os assírios a fazerem uso de tal ferramenta. O quarto capítulo se esforça por compreender uma questão que surge após a análise do processo de deportação assírio em Israel, e os motivos que fazem com que, ainda hoje, a imagem do antigo Israel-norte seja representada de maneira não-franca, deturpada ou mesmo escondida – a ideologia da chamada Obra Histórica Deuteronomista. 6 A metodologia adotada neste trabalho será a pesquisa bibliográfica. Para nível de melhor compreensão em relação à alguns pontos críticos sobre o assunto, a pesquisa terá como referencial teórico a obra do arqueólogo israelense Israel Finkelstein, O reino esquecido – Arqueologia e História de Israel norte e A Bíblia não tinha razão, obra escrita em co- autoria com Neil Asher Silberman sobre o reino de Israel-norte no período do sec. VIII a.C. Entretanto, se adotará o uso de diversos autores que se esforçaram por estudar o mundo do antigo oriente médio e a relação do reino de Israel com outros povos, à saber: Mario Liverani, Para além da Bíblia – História antiga de Israel e Herbert Donner, História de Israel e dos povos vizinhos, vol II. No que concerne ao mundo assírio, o trabalho fará uso da obra de Hélio Jaguaribe, Um estudo crítico da História, e Paul Garelli, O oriente próximo asiático: impérios mesopotâmicos. Quando da falta de livros impressos,o uso de artigos, dissertações e teses que investiram tempo no assunto serão de grande importância. Para uma melhor compreensão das personagens históricas apresentadas neste trabalho, optou-se pelo uso dos nomes pela forma como a Bíblia de Jerusalém os transcreve, e em caso de citações diretas, na forma como o autor do livro transcreve. Quando algum personagem não tiver um nome de acordo como se encontra nesta Bíblia, o nome transcrito será na forma como o autor da obra citada o fez. 7 CAPÍTULO I – Assíria: Uma contextualização Falar do império Assírio necessariamente obriga que se fale sobre a região da Mesopotâmia. O império, assim como outros, surgiu nesta região e, constantemente, durante vários anos, desenvolveu uma relação intercultural, emprestando e pegando emprestado compreensões sobre cultura e religião, por exemplo. A antiga Mesopotâmia ocupava um território que se localizava, de maneira geral, onde hoje se encontra o país do Iraque. O nome “Mesopotâmia” significa “entre rios”, devido a localização desta antiga região entre os rios Tigre e Eufrates. Ao norte era limitada pelas montanhas do Cáucaso, ao sul pelo Golfo Pérsico, a leste pelas montanhas Zagros e a oeste pelo deserto sírio (JAGUARIBE, 2001, p.93). A região da antiga Mesopotâmia dividia-se naturalmente em duas partes: A primeira era a Mesopotâmia Superior, ou Alta Mesopotâmia, local da origem do Império Assírio. Nesta parte, a região era seca, fria e dependente de chuva para a atividade agrícola. A outra parte é a Mesopotâmia Inferior, ou Baixa Mesopotâmia, de onde surgiu a civilização Suméria, que incluía a Babilônia na sua parte setentrional. O clima nesta parte inferior era muito quente, úmido e pantanoso, com grande possibilidade de inundações. Todavia, nesta parte o solo era extremamente fértil (JAGUARIBE, 2001, p.93). Ao se iniciar um pesquisa sobre a Assíria, a partir do entendimento sobre a Mesopotâmia, tem se como fundamento a compreensão de que, ao se falar de “civilização mesopotâmica”, necessitamos entender que o desenvolvimento, ao longo de três milênios, desta região, se inicia com a civilização Suméria, passando por uma conversão na civilização sumero-acadiana e, posteriormente, se desdobrando em dois centros muito aparentados: Babilônia e Assíria (JAGUARIBE, 2001, p.96). A história do império Assírio pode ser dividida em três partes: O antigo império Assírio, Império Assírio Medio e Novo Império Assírio, chamado também de império Neoassírio. Segundo Jaguaribe, (2001, p.100), a despeito de outros antecedentes, os verdadeiros fundadores do antigo Império Assírio, durante os primeiros séculos do segundo milênio a.C., foram os amoritas. Este antigo império existiu até ser conquistado por Hamurabi, rei do primeiro império Babilônico, por volta de 1780 a.C. O ressurgimento do Império Assírio ocorre no século XIV a.C. sob o comando de Adad-nirari I (1307 -1275 a.C.), quando este conquista e subjuga o antigo império Mitani. Com este feito estava iniciada o Império Assírio Médio. Neste período observa-se grandes reis assírios, que eram verdadeiros líderes militares, como Assuru-balit I (1365-1330 a.C.), 8 Salmanaser I (1274-1245 a.C.), Tukulti-ninurta I (1244-1208 a.C.) e Tiglath-pileser (1115- 1077 a.C.). Estes reis fizeram da Assíria a mais importante máquina militar deste período da Antiguidade. “Esses reis foram os primeiros na história a empregar o terror sistematicamente como uma arma para subjugar e intimidar populações inteiras” (JAGUARIBE, 2001, p.101). Porém, no fim do século XI a.C. os povos arameus invadiram a Assíria, e ao mesmo tempo os Caldeus assumiram o controle da Babilônia. Segundo Jaraguibe (2001, p.101), depois de mais de um século sob domínio estrangeiro, a Assíria retomou seu papel de protagonista histórico durante os reinados de Assurdan II (934-912 a.C.) que foi o criador do novo Império Assírio. Posteriormente, uma sucessão de grandes reis fizeram da Assíria um poderoso império no oriente por mais três séculos. Para citar alguns, Shamanaser III (858-824 a.C.), Tiglath- pileser III (744-727 a.C.) (JAGUARIBE, 2001, p.101) e, particularmente importantes nesta pesquisa, Shamanaser V (727-722 a. C.) e Sargon II (722-705 a.C.) (GARELLI, 1982, p.96). 1.1 O IMPÉRIO POR VOLTA DO SÉCULO VIII A.C. Ao se delimitar a importância desta pesquisa no que concerne ao momento de encontro entre o império Assírio e o Reino de Israel norte, concentrou-se, a partir deste ponto, a analise dos reis assírios que reinaram durante o século VIII a.C. e que possuem um papel importante para a compreensão da nossa hipótese, à saber, os reis que tiveram a responsabilidade de deportar parte da população israelita, ou seja: Teglath-Falasar III, Samanaser V/Sargon II. Desta forma, por motivo de objetividade e tempo estimado, priorizou-se analisar o império a partir do reinado de Teglath-Falasar III que se inicia em 744 a.C., deixando para uma outra oportunidade de pesquisa os reis anteriores que também governaram durante o século VIII a.C. De acordo com Martins (2014, p.17) “À entrada do século VIII a.C., a Assíria consolidou-se enquanto estado expansionista que, declarada e efetivamente, se propunha e empenhava nessa vocação”. Imagem 1: Império Assírio em 730 a.C. 9 Fonte: ALCOOK, S., 2005, p.376 apud Takla, 2008, p.82. Com uma administração bem sucedida, grande parte deste sucesso é devido à algumas lideranças Assírias, entre as quais Teglath-Falasar III possui espaço. Garelli (1982, p.94) afirma que “é impossível evocar o reinado de Tiglath-Pileser III sem mencionar sua obra administrativa”. Segundo este autor, Teglath-Falasar teria procedido a uma nova divisão das províncias, fracionando as unidades demasiado vastas, a fim de diminuir o poderio da alta nobreza. Este rei conseguiu manter as rédeas do seu mundo, canalizando as energias assírias para a conquista, além de ter tido capacidade de gerir o imenso domínio, dosando, com habilidade, firmeza e brandura (GARELLI, 1982, p.94). Segundo Martins (2014, p.18) Teglath-Falasar III com a remodelação do exército logrou torná-lo apto para uma ação permanente. Incorporaram-se divisões de infantaria ligeira oriundas das regiões dominadas, enquanto os corpos de elite como a cavalaria e os carros de combate se mantiveram de extração assíria, com isso promovendo um equilíbrio para impossibilitar o monopólio do exército por parte de uma qualquer facção rival e estabeleceram-se bases de abastecimento por todo o império e arsenais com vista a equipar convenientemente o exército. A finalidade destas reformas era exatamente o fortalecimento do poder central. Porém, toda esta organização minuciosa não era nova de acordo com Garelli (1982, p.95). A novidade introduzida por Teglath-Falasar III foi a extensão do sistema administrativo a todos os territórios ocupados. Deste ponto em diante não havia mais território nacional e território de caça, espoliados pelos exércitos assírios de acordo com o momento, mas sim um Império, que desde então era mantido por guarnições administradas pelos governadores, que recebiam os impostos (GARELLI, 1982, p.95). 10 Teglath-Falasar III agia com sutileza, misturando firmeza e diplomacia, disposto em toda a medida do possível, a respeitar os interesses e franquias locais que estavam sob o domínio Assírio. Um exemplo é a Babilônia. Embora estando sob o domínio assírio desde 745, Teglath-Falasar não destronou o seu soberano legítimo. Porém, devido a revoltas interioranas na Babilônia, e após um longo período de um jogo diplomático por parte dos Assírios tentando convencer diversas facções, lideranças e chefes tribais a desistir da revolta, eis que Amukkanu, líder remanescente da revolta, sozinho e desolado, terminou por sucumbir e a sua capital, Shapia, foi tomada(GARELLI, 1982, p.95). Deste fim de revolta na Babilônia, eis que, em 729, o único soberano da Babilônia era o rei da Assíria. Entretanto, por ser um líder estrategista, Teglath-Falasar sabia que reduzir a Babilônia, uma terra tão venerável, à uma simples condição de província teria sido inabilidade segundo Garelli (1982, p.96). Por este motivo, fez se reconhecer como rei e a sua decisão foi ratificada na lista real babilônica. Quando morreu, em 727 a.C., todas as terras do crescente fértil se achavam unificadas sob o rótulo inédito de uma dupla monarquia assiro-babilônica (GARELLI, 1982, p.96). O império estava pronto para seu filho, Salmanaser V. Mas, toda essa situação não significava que o império não tivesse problemas. O poder do monarca da Assíria era realmente muito grande, contudo, segundo Garelli (1982, p.96) “não era tal que desencorajasse toda a pretensão de independência”. Neste ponto, surge um personagem, de importância nesta pesquisa: Oséias de Samaria. Não se obtém muitas informações sobre o rei Salmanaser V, que, de acordo com Garelli, deixou apenas uma inscrição (1982, p.96). Sobre a conquista da cidade de Samaria, no Israel-Norte, este rei é mencionado tanto na crônica babilônica, quanto na tradição bíblica do livro de 2Reis. “Salmanasar, rei da Assíria, marchou contra Oséias e este submeteu-se a ele pagando-lhe tributo” (2Reis 17:3). “No quarto ano de Ezequias, correspondente ao sétimo ano de Oséias, filho de Ela, rei de Israel, Salmanasar, rei da Assíria, atacou Samaria e a sitiou” (2Reis 18:9. Importância também para direcionar o foco da pesquisa é o rei posterior, Sargon II. Por questão de um ano, Salmanaser V faleceu, e aquele que recebeu as glórias desta conquista foi Sargon II. A mudança no trono de Salmanaser V para Sargon II não foi de maneira tranquila como a transição ocorrida de Teglath-Falasar III para Salmanaser em 727. De acordo com Donner (1997, p.363) “Sargom chegou ao poder como usurpador, por meio de um golpe de Estado apoiado num partido revoltoso na velha capital, Assur, cujos privilégios já Tiglat- Pileser havia reduzido consideravelmente (...)”. 11 A situação toda é um pouco complicada, e os acontecimentos envoltos em escuridão. Algo sugere que Salmanaser foi eliminado violentamente, longe de sua capital, pouco depois do final do sítio de Samaria (DONNER, 1997, p.363). Em relação à origem do usurpador, Sargon, Donner (1997, p.363) afirma que “não é possível descobrir nada”. Entretanto, Donner sugere que talvez tenha sido um oficial, mas que também já foi tido como um filho de Teglat- Falasar III. O seu nome não é conhecido também, o nome “Sargom”, em acádico: Sharru- kenu, “Rei legítimo”, “certamente era um nome de trono que ele só assumiu quando iniciou seu governo, a fim de encobrir a ilegitimidade de sua sucessão no trono” (1997, p.363). Sobretudo, o nome que adota (Sargom), continha um “programa de política externa” porque desta mesma forma se chamou o famoso fundador do império, Sargom I da Suméria e Acádia, por volta de 2.350 a.C. (DONNER, 1997, p.363). Donner (1997) argumenta que Sargon tinha que agradar os grupos que o ajudaram a chegar ao poder. Por estes motivos se pode encaixar algumas atitudes de Sargon, como por exemplo a restituição dos privilégios aos cidadãos das cidades de Assur e Harã (libertação da corveia, isenção de impostos e taxas alfandegarias) e a liberação dos templos nestas cidades de todas as obrigações fiscais (1997, p.363). Com essas atitudes Sargon conquistou o apoio das classes altas da economia do país e dos sacerdotes. Porém, este apoio não afastou as crises e dificuldades, que foram enfrentadas por Sargon nos primeiros meses de seu governo (DONNER, 1997). Sargon II viveu até 705 a.C. Após muitas conquistas, se estabeleceu como um dos maiores governantes do império Neoassírio. Ora abafando anseios emancipatórios de vassalos maiores ou menores, ora prestando auxílio a vassalos em apuros. Ora intervindo militarmente, ora pacificando a conturbada Babilônia, cujo trono ele próprio ascendeu em 710. Enquanto ele viveu não houveram mais levantes na Síria e nem na Palestina (DONNER, 1997, p.365/67/68) e “embora Sargon II tenha se gloriado várias vezes da conquista de Samaria em suas inscrições, pode ser tido como certo que a cidade caiu ainda sob Salmanaser V” (1997, p.361). A queda desta cidade, entre toda a vida de conquistas de Sargon II, é a parte final desta pesquisa, e, como se apresentou, se dá bem no início de sua vida de governante. É após a queda de Samaria e a deportação dela oriunda que se fecha o problema central. Para tal, se faz necessário, depois de uma compreensão sobre o império assírio de Teglat-Falasar III, Salmanaser V e Sargon II, se conhecer um pouco sobre o que era o antigo reino do Israel- norte. 12 CAPÍTULO II – O Reino de Israel-Norte: Uma introdução CONSIDERAÇÕES INICIAIS Neste estudo sobre o reino de Israel-norte é importante clarear algumas questões que, acredita-se, servirão para nortear o entendimento dos leitores. Assim como se encontra no documento do Ministério das Relações exteriores de Israel2, citado no capítulo anterior desta pesquisa, a visão grandemente estabelecida sobre a “história” de Israel, seria, na falta de uma melhor expressão, muito mais parecida como uma “história de Israel segundo a Bíblia”, por assim dizer. Este fato é perceptível pela forma de se enxergar a “história” da monarquia de Israel à partir do antigo rei Saul. De acordo com esta tradição, grandemente divulgada por segmentos cristãos de tradição conservadora, toda a história da Monarquia de Israel se inicia com o antigo rei Saul, por volta de 1020 a.C. (FATOS...p.3). A partir de então, pode-se separar dois momentos: 1) o período da monarquia unida, e 2) o período da monarquia dividida. A monarquia unida seria o período onde toda a região de Israel, as 12 tribos, teriam sido reunidas pelo rei Davi, que reinou de 1004 a.C. à 965 a.C. Tendo Jerusalém como a capital do reino, este período teria sido de grande desenvolvimento e prosperidade. Sendo Davi de grande autoridade reconhecida “desde as fronteiras do Egito e do Mar Vermelho até as margens do Eufrates” (FONTES...p.3). Após a sua morte, Davi teria sido sucedido pelo seu filho Salomão (965 a 930 a.C.). À princípio, Salomão teria fortalecido o reino e “através de tratados com os reis vizinhos, reforçados por casamentos políticos, Salomão garantiu a paz para seu reino, igualando-o às grandes potências da época” (FONTES...p.3), teria expandido o comércio exterior e promovido a prosperidade nacional. O fim do reinado de Salomão, porém, teria chegado ao fim devido a descontentamentos por parte da população, que, por culpa das grandes construções do rei, teve que pagar muitos impostos. Todos estes desentendimentos, entre outros pontos, resultaram em um crescente antagonismo entre a monarquia e os separatistas tribais. Essa situação levou à uma insurreição aberta, logo após a morte de Salomão, em 930 a.C., que resultou no rompimento das dez tribos do norte e à divisão do país em um reino do norte, Israel, e um reino do sul, Judá e Benjamim (FATOS...p.3). 2 Fatos sobre Israel. Ministério das relações exteriores de Israel. Jerusalém, Israel. 2010. Disponível em:< http://mfa.gov.il/MFA/AboutIsrael/History/Pages/Facts%20about%20Israel-%20History.aspx> Acesso em:04 de Setembro de 2017. http://mfa.gov.il/MFA/AboutIsrael/History/Pages/Facts%20about%20Israel-%20History.aspx 13 É nesse ponto específico sobre “monarquia unida x dividida” que se torna necessário uma compreensão mais apurada. Segundo José Ademar Kaefer, na sua apresentação da edição brasileira da obra “O reino esquecido – Arqueologia e História do Israel norte”, de Finkelstein, Nos últimos anos, a teoria que vem tendo grande revés é a da MonarquiaUnida sob os reinados de Davi e Salomão. A arqueologia tem comprovado que aquilo que se atribuía nas décadas de 1960 a 1980 a Salomão, pertencia, na verdade, aos reis de Israel Norte: Omri, Acab e Jeroboão II. [...] a monarquia desenvolvida em Israel não foi estabelecida por Davi e Salomão, mas pela dinastia omrida de Israel Norte (KAEFER, 2015, p.6). A compreensão previamente apresentada sobre a história de Israel defendida, por ex., pelo documento do Ministério das relações exteriores de Israel, já não é mais aceita nos meios acadêmicos. E por mais que ela seja encontrada nas páginas da Bíblia em alguns trechos, Finkelstein, (2015, p.15), afirma que “A história do Antigo Israel na Bíblia Hebraica foi escrita por autores judaítas em Jerusalém, a capital do Reino do Sul e eixo da dinastia davídica”. Imagem 2: Mapa dos reinos de Israel (cima - norte) e Judá (baixo - sul) Fonte: RIDLING, 2002. Por estes motivos elencados, e seguindo a forma como é apresentado no mapa acima, esta pesquisa ao se referir à Reino de Israel-Norte, ou israelitas, não estará se referindo ao 14 território na sua totalidade (parte verde e roxa juntas), nem a população na sua maioria, englobando a cidade de Jerusalém, da forma como o território se encontra nos tempos modernos. Quando das citações de “reino de Israel-norte”, compreende-se apenas a parte norte do que hoje conhecemos como Israel, a parte verde do mapa, tendo como uma das principais cidades Samaria. Feitas as considerações iniciais, prossegue-se a pesquisa. 2.1 – O REINO DE ISRAEL-NORTE O início da história propriamente dita de Israel se dá ainda no contexto das tribos, por volta do século X a.C. Por ocasião da morte de Salomão, a narrativa bíblica de 1Rs 12:14-16 situa o “cisma” das tribos de Israel em relação à casa de Davi se concretizando numa assembleia em Siquém e se conclui com a recusa do herdeiro de Salomão, Roboão, e a eleição de Jeroboão, então ex-funcionário de Jerusalém, como “superintendente da corveia” (LIVERANI, 2014, p.141). [...] seguindo o conselho dos jovens, falou-lhes [Roboão] assim: “Meu pai tornou o vosso jugo pesado, eu o aumentarei ainda: meu pai vos castigou com açoites, e eu vos castigarei com escorpiões.” Assim, o rei não ouviu o povo; era uma disposição de Javé, para cumprir a palavra que dissera a Jeroboão, filho de Nabat, por intermédio de Aías de Silo. Quando todo o Israel viu que o rei não os ouvia, responderam-lhe: “Que parte temos com Davi? Não temos herança com o filho de Jessé. Às tuas tendas, ó Israel! E agora, cuida da tua casa, Davi! E Israel voltou para suas tendas.” (1REIS 12:14-163) Liverani (2014, p.141) argumenta que “A história é necessária para ligar o suposto “reino unido” davídico-salomônico à realidade da persistente separação dos dois centros de agregação política em torno de Jerusalém e em torno de Siquém”. Para Liverani (2014) o que supostamente deve ter ocorrido é que a tribo de Benjamim confirmou as suas ligações com Jerusalém, que estava às margens do seu território, e com Judá. Em contrapartida, a tribo de Efraim se uniu com a tribo de Manassés. Essa nova realidade política assumiu o nome de Israel, o que significa que Jeroboão definiu-se como o “rei de Israel”. Este nome, “Israel”, à muito era conhecido dentro da cultura do norte, em referência à figura lendária de Jacó4, cujo segundo nome era precisamente Israel (LIVERANI, 2014, p.142). 3 Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002. 4 Segundo Finkelstein, 2015, p.171, o “mito” de Jacó faz parte de duas histórias de fundações do Reino do Norte. Somente após a queda do reino do norte, em 722 a.C., israelitas levaram as histórias para Judá. Estas histórias foram incorporadas aos textos bíblicos e redigidas posteriormente. 15 O reino de Jeroboão I (930-910 a.C.), de acordo com Liverani (2014, p.142), não parece se estender além das tribos de Efraim e Manassés, tendo um modesto apêndice em Gilead: ele é originário de Efraim, e a sua capital é Tirsa, o lugar de culto mais importante é Betel (1Rs 12:29) sendo o local de reunião da assembleia popular Siquém. Não se possui muito sobre os sucessores de Jeroboão I, que foram se substituindo mediante golpes, com suporte militar: Nadab, filho de Jeroboão, reinou por dois anos e foi morto por Baasa (1Rs 15:25-31). Baasa por sua vez reinou por 24 anos, tendo porém seu filho, Ela, morto depois de dois anos por Zimri (1Rs 15:33; 16:14). Zimri e Tibni reinaram apenas por alguns dias, logo foram vencidos por Omri (1Rs 16:15-22). É Baasa o responsável por colocar as tribos da Galiléia pela primeira vez na gestão política do reino do norte (LIVERANI, 2014, p.142). Os quatro reis da dinastia de Omri (Omridas) são: Omri, Acab, Ocozias e Jorão, governaram por aproximadamente quarenta anos, entre 884-842 a.C. (FINKELSTEIN, 2015, p.107). Finkelstein, (2015), declara que no tempo dos Omridas, o Reino do Norte destacou as primeiras operações de construção monumental e atingiu seu primeiro período de prosperidade econômica e poder territorial. Liverani (2014), afirma que a dinastia dos Omridas terminou em um banho de sangue, por obra do general Yehu, que agiu por conta e com o apoio do rei de Damasco. Ele matou com as próprias mãos Yoram e também Acazias, que era rei de Judá (reino do Sul). Yehu era um militar, partidário de um movimento integralista e nacionalista que era contra os compromissos da política religiosa e internacional dos Omridas. A dinastia de Yehu (841-814) continuou com seu filho, Yoachaz (814-798; 2Rs 13:1- 9), seu neto Yoas (798-783; 2Rs 13:10-13) e seu bisneto Jeroboão II (783-743; 2Rs 14:23-29). Essa continuação dinástica garantiu ao país estabilidade e crescimento econômico (LIVERANI, 2014, p.148). Liverani (2014) argmenta que “Sob as dinastias de Omri e de Yehu, por quase um século e meio, Israel se inseriu como protagonista no sistema de aliança e de guerras da faixa siro-palestina” (2014, p.149). Este século de prosperidade para o reino de Israel, porém, entrou em crise por volta de 745 a.C., com a entronização de Tiglat-pileser III na Assíria. Com isto, estava se iniciando uma fase de pesadas intervenções assírias (LIVERANI, 2014, p.149). As estratégias locais ficarão fortemente condicionadas pelo impacto assírio. Em Israel, a mudança é marcada de modo repentino pelos breves reinos de Zacarias e de Shallum (743, poucos meses cada um; 2Rs 15:8-15). A situação voltará a ficar sangrenta no que concerne às histórias de usurpações e golpes (LIVERANI, 2014, p.149). 16 2.2 O ISRAEL NORTE POR VOLTA DO SÉCULO VIII A.C. Apresentar a situação do reino de Israel durante o século VIII a.C. não é possível sem fazer referência a chamada Guerra siro-efraimita. É esta guerra que colocará o império assírio pela primeira vez frente ao rei do Norte e findará na primeira deportação em terras Norte- israelitas. Após a morte de Jeroboão II (783-743 a.C.; bisneto de Jeú), a dinastia fundada por Jeú no Reino do Norte chegou rapidamente ao fim. Zacarias, então, ascendeu ao trono, porém, este reinado durou apenas seis meses, pois este foi morto por um usurpador chamado Salum, filho de Jabes (DONNER, 1997, p.349). Salum foi um rei que, da mesma forma como o anterior, desfrutou de um governo muito breve, apenas um mês; logo foi morto por um homem que, durante os distúrbios anteriores se apresentou como um dos personagens mais fortes, Manaém, filho de Gadi, de Tirza (DONNER, 1997, p.349). Donner (1997, p.349), ressalta que “durante o governo de Menaém (747-738), Israel voltou à situação de relativa calma (2Rs 15:8-22)”. Manaém faleceu em 738 a.C. e seu filho, Facéias (738-737 a.C), logo foi morto por um outro usurpador, Facéia (737-732 a.C.), governante sob o qual se cumpriu o primeiro ato dos Assírios (LIVERANI, 2014, p.187). Comoapontado na parte anterior, de acordo com Liverani (2014), com a entronização de Tiglat-pileser III no trono da Assíria, estava iniciado um período de pesadas intervenções assírias (2014, p.149), e estes efeitos o corredor siro- palestinense sentiria rapidamente. Mas para isso é necessário uma compreensão sobre a guerra siro-efraimita. Em 734 a.C., como afirma Donner (1997, p.351), o império assírio empreendeu uma ação militar contra a cidade filisteia de Gaza, o então rei, Hanunu, não esperou que se chegasse a um embate armado, e fugiu para o Egito. A atitude de Tiglath-pileser III nessa zona do corredor foi diferente da prática costumeira de outros casos. Donner (1997, p.353) afirma que após o regresso do dinasta da cidade de Gaza, que tinha fugido para o Egito, Tiglate-Pileser o tratou com clemência, restituindo-lhe seus antigos direitos. Ao final da primavera, ou talvez o verão, de 734, o rei de Damasco, Rezim, e o então rei de Israel, Facéia (735-732 a.C.), ambos vassalos da Assíria desde 7385, acreditavam ser favorável o momento para se unir em uma coalizão antiassíria (DONNER, 1997, p.353). Quando tentaram envolver o rei de Judá (Reino do Sul), Acaz, nesta aliança, ele se opôs. A 5 *Quando Menaém era rei de Israel. 17 partir deste momento, devido a recusa do reino do Sul, Damasco e Israel acreditavam não poder de modo algum abrir mão de Judá como participante da coalizão e por este motivo decretaram guerra contra Judá. Estava iniciada a chamada guerra siro-efraimita (DONNER, 1997, p.352,53). Em grandes apuros, e com medo de não poder suportar por muito tempo um cerco por parte das tropas israelitas e arameias (reino de Aran = Síria/Damasco), o rei Acaz de Judá foi pedir ajuda a Teglat-Falasar III, declarando-se servo. O rei assírio, como argumenta Liverani (2014) ficou muito contente com a ocasião de poder intervir, invadiu a parte setentrional de Israel, conquistando sem dificuldade toda a Galiléia e todo o Gilead. Teglath-Falasar não tomou a então capital do reino do norte, Samaria, mas fez eliminar Facéia. Em seu lugar reinou Oséias, (732-724 a.C.), como vassalo assírio, em um território agora limitado a Efraim e Manassés (LIVERANI, 2014, p.187). Este foi o primeiro momento onde houve deportação de habitantes do reino do norte, o segundo ocorreria logo adiante. Liveranni (2014) afirma que Oséias reinou pagando tributos por alguns anos, até que decidiu suspender o pagamento, contando com promessas de apoio do faraó egípcio, como apresenta o texto de 2Rs 17:4: “Mas o rei da Assíria descobriu que Oséias o traía: é que este havia mandado mensageiros a Sô, rei do Egito, e não tinha pago o tributo ao rei da Assíria, como o fazia todo ano”. Foi então que Salmanaser V interveio contra Israel. Aprisionou Oséias e assediou Samaria, que caiu apenas em 721 a.C. Salmanaser morreu logo depois, de modo que a tomada de Samaria é narrada pelo seu sucessor, Sargon II: Com garantia de Assur, que me faz (sempre) chegar a meu objetivo, combati contra eles...27.290 dos seus habitantes, eu os levei embora, 50 carros e tomei para a minha tropa régia...Samaria, eu a modifiquei e a fiz maior que antes. Gente de terras por mim conquistadas fez que ali residissem, dei posse como governador deles a um dos meus eunucos e lhes impus tributo e taxas como aos assírios. (ISK, p.313-314 apud LIVERANI, 2014, p.189). Com a morte de Salmanaser V, foi Sargon quem aproveitou as consequências políticas da vitória. O Estado de Efraim foi transformado na província assíria de Samerina, a quarta e última província em solo do Reino de Israel. É exatamente aqui que se encontra a origem do uso do nome “Samaria” como designação de uma região (DONNER, 1997, p.361). 18 CAPÍTULO III – A prática de deportação assíria Para compreender a prática de deportação assíria é necessário entender todo o processo e etapas que levavam os reis assírios a fazerem a escolha por tal prática. De acordo com Silva da Silva (2016, p.30), Essa prática de “desvincular os povos conquistados do seu lugar de origem é atestada na Mesopotâmia desde o II milênio a.C. e não era só uma prática dos mesopotâmicos, já que os Hititas e os Egípcios já a executavam”, entretanto, “no período Neoassírio (912-612 a.C.) será detalhada por Tiglatpilesser III (745- 727 a.C.) e seus sucessores, pois é nesse momento que a deportação foi vinculada como uma das práticas imperialistas assírias e foi realizada de forma sistemática (BIENKOWSKI, 2000 apud SILVA DA SILVA, 2016, p.30). Como argumenta Silva da Silva (2016, p.30), “Para manter a unidade do império assírio, os reis assírios, dentro do aparato imperialista, incentivaram e entenderam as deportações eram as melhores alternativas”. Por meio de constantes guerras cujo as “documentações iconográficas e textuais se encarregam de narrar [...] com precisão de detalhes e com informações que nos dão ideia das práticas aplicadas aos povos conquistados, como, por exemplo, a prática de deportação”. No próximo capítulo buscar-se-á apresentar de maneira mais delimitada toda o processo que levava os assírios a fazerem uso deste ato, este capítulo especificamente, concentra-se na simples apresentação de alguns casos de deportação. De acordo com Bustenay Oded (1979, p.19 apud SILVA DA SILVA, 2016, p.32) estima-se que nas inscrições reais assírias existam em torno de 160 casos de deportações registradas. Silva da Silva (2016, p.30) diz que “As fontes pelas quais temos as descrições dessas deportações são as inscrições reais assírias, ou os anais reais, que narravam as conquistas militares; dentre as informações sobre essa prática estão detalhes sobre o número de população deportada e o destino geográfico que essa população recebia”. Donner (1997), apresenta de maneira muito clara como funcionava o processo de dominação assírio. Como observado anteriormente, Teglath-Falasar III foi um grande administrador. Quando acendeu ao trono em 745 a.C. estava reservado a conduzir o império neoassírio ao apogeu do poder. No capítulo I, compreendemos que ele se ocupou do reordenamento do sistema de administração dentro dos territórios que faziam parte do império. Constituiu distritos administrativos menores, que ficavam subordinados à um “administrador” com poderes restritos. O reflexo desta atitude foi a diminuição dos poderes nas mãos de grandes governadores de províncias antigas, que em parte eram 19 consideravelmente grandes. Com isso, Tiglath-Pileser III privava o poder dos grandes governadores, mas não eliminava por completo. Nesta atitude garantiu funcionalidade e eficiência para o seu poder centralizado (DONNER, 1997, p.342,43). Com essa base os assírios não se interessavam mais em “apenas” vincular pequenos estados vizinhos à Assíria na forma de uma relação de vassalagem mais ou menos fraca. Tiglath-Pileser III “[...] desenvolveu um sistema de gradual aniquilamento da autonomia política dos pequenos estados com o objetivo de incorporá-los na estrutura das províncias assírias” (DONNER, 1997, p.342). Com esta mudança de postura, o império assírio de viu cada vez mais fortificado e em condições de prosperar no campo militar-bélico na região do Oriente antigo, de maneira mais controlada administrativamente. Esse sistema gradual que afirma Donner (1997), estava formatado em três estágios: 1º, 2º e 3º estágios. O 1º estágio era a constituição de um relacionamento de vassalagem através da demonstração do poderia militar assírio; constituía na obrigação do pagamento de tributos regulares e em algumas situações com exigências de tropas auxiliares (DONNER, 1997, p.342). Neste ponto, de acordo como as informações de Donner (1997), as atitudes de Tiglath- Pileser III não se distinguiam das atitudes de seus antecessores em termos de política externa. – Israel passou a ser vassalo em1º estágio em 738 a.C., quando Menaém era rei em Israel. O 2ª estágio se estabelecia bastando apenas uma comprovação, ou apenas uma suspeita, de conspiração antiassíria. Uma mera assimilação de sentimento de revolta, de rebeldia. Nessas situações a intervenção militar era imediata, com a eliminação do vassalo infiel e a instalação de uma dinastia pró-assíria (DONNER, 1997, p.343). No 2º estágio, não raro, ocorriam reduções drásticas do território: as parte anexadas do território eram transformadas imediatamente em províncias assírias, ou eram entregues como feudo a vassalos vizinhos e fiéis ao império (DONNER, 1997, p.343). – Israel adentrou ao 2º estágio quando Facéia era o rei de Israel e, junto com Damasco, tentaram unir forças com Judá para formarem uma coalizão antiassíria em 734 a.C. (Guerra siro-efraimita). O 3º estágio era o mais feroz. Ao sinal de retorno ao empreendimento antiassírio, ocorria uma nova e definitiva ocupação militar, eliminação do dinasta-vassalo, liquidação da autonomia política do Estado e estabelecimento de uma província assíria com um administrador assírio e o corpo de funcionários que fosse necessário (DONNER, 1997, p.343). Com as práticas advindas destas três etapas, paralelamente as atitudes do 3º estágio existiam outras medidas que eram tomadas pelo governo: 1 – construção de novas fortificações; 2 – assentamento de colônias militares, e sobretudo 3 – deportação da elite 20 nativa e o assentamento forçado de uma elite estrangeira (DONNER, 1997, p.343). A prática da deportação, como afirma Donner (1997), tinha por objetivo tirar as lideranças da população autóctone do país ocupado, exterminando do local uma possibilidade de ação política. Porém, o autor ressalta que é óbvio que Tiglath-Pileser III não podia fazer um uso rigoroso desse sistema em todos os casos (1997, p.343). Sabe-se que o império assírio deportou numerosas populações, como podemos constar nos anais reais assírios, apresentados por Garelli (1982): Após a vitória sobre Sardur, 72.950 prisioneiros foram encaminhados ao exílio (Ann.,66). Quando das operações de 7386, as deportações atingiram 30.300 pessoas (Ann.,133), mas, devido a uma lacuna no texto, ignora-se onde foram instaladas. Mais ou menos na mesma época, 12.000 prisioneiros de Der no vale do Unqi (Ann., 143-45) e o total das outras deportações dessa altura alcançou mais de 15.000 pessoas (Ann., 143-48)7. Obviamente que a quantidade ilustra muito bem o poder e o tamanho da capacidade militar que os Assírios possuíam, todavia, resta a questão sobre qual teria sido o número total de israelitas que teriam sofrido por esta prática por parte do império. Abaixo, relevo em pedra demonstrando na sua parte superior povos sendo deportados, caminhando em direção ao novo destino. Imagem 3: Relevo em pedra. Palácio Central de Tiglath-pileser III, Calá. Museu Britânico. Fonte: SILVA, 2013, p.10. A cena no painel acima compõe o esquema decorativo do palácio central de Teglath- Falasar III, em Calá, e representa as diversas campanhas militares desenvolvidas por este rei assírio. A imagem acima é um importante exemplar das derrotas que Teglath-Falasar 6 De 743 a 738 o rei da Assíria, Tiglath-Falasar III, desbaratou uma coalizão siro-urártia e se impôs aos dinastas aramaicos (GARELLI, 1982, p.91). 7 GARELLI, Paul. Oriente próximo asiático – Os impérios Mesopotâmicos. São Paulo: Pioneira: Universidade de São Paulo, 1982, p.93. 21 promoveu, particularmente entre 733 e 732 a.C., no contexto da conquista de Israel-norte (SILVA, 2013). 3.1 A ASSÍRIA DEPORTA ISRAEL, MAS QUANTO DE ISRAEL? Como questionado acima, após a compreensão de todo o esquema em três estágios que eram organizados pelo império assírio quando ao fim do terceiro finda a prática cruel de deportação, quanto teria sido a quantidade de israelitas que sofreram vítimas da deportação assíria? Houveram dois momentos, como se observou nos capítulos anteriores, onde o império assírio deportou populações da região do Israel-norte. (1) A primeira sob Tiglath-Falasar III, quando da união do rei Facéia com o rei de Damasco, em prol de uma coalizão antiassíria, onde tentaram inserir Acaz, de Judá, na aliança, no ano de 732 a.C. Neste momento, o rei da Assíria reduziu o território de Israel, anexando a Galiléia e Gileade (DONNER, 1997, p.354). (2) O segundo momento foi em 722 a.C. quando o então vassalo do império assírio no poder do reino de Israel, Oséias de Efraim, acreditou que poderia se livrar do poder do império e acabou sendo capturado pelo filho de Tiglath-Falar III, Salmanaser V (DONNER, 1997, p.361). Na primeira data de 732 a.C., segundo a passagem dos anais de Tiglath-Falasar III (ITP, p.82-83 apud LIVERANI, p.188), apresenta um total de 13.520 deportados (LIVERANI, 2014, p.188). No segundo momento, como visto no capítulo II desta pesquisa, foram deportados 27.290 samaritanos (LIVERANI, 2014, p.189). De acordo com Liverani, (2014), a quantidade de mais de 40 mil deportados de Israel fornecidas pelos anais assírios parecem realistas e fazem referência à um grande percentual da população. Porém, as deportações não se referem apenas à família real e à corte palatina, mas também à população comum agropastoril das vilas e das pequenas cidades (LIVERANI, 2014, p.191). Donner (1997) argumenta que a classe alta teria sido deportada para a Mesopotâmia e a Média, assim como a chegada de uma elite estrangeira. Esta nova elite, seja lá de onde tenham vindo, com o passar do tempo se misturou com a população autóctone (DONNER, 1997, p.361,62). É necessário esclarecer que, por mais que o número de pouco mais de 40 mil deportados possa parecer enorme, uma informação apresentada por Finkelstein (2015) possui a capacidade de configurar uma outra imagem sobre as regiões de Israel e a sua capital, no período posterior as deportações assírias. Finkelstein, no livro O Reino esquecido – 22 Arqueologia e História do Israel Norte, diz que a população de Israel em ambos os lados do rio Jordão, em meados do século VIII a.C., poderia ser estimada em 350 mil (FINKELSTEIN, 2015, p.137). O número possui certa grandeza se o compararmos com a quantidade de deportados de pouco mais de 40 mil pessoas. Com essa diferença, toda a análise se direciona para uma permanência de mais de 200 mil habitantes na região, considerando que podem ter havido algumas possíveis baixas durante as batalhas, o que aponta para uma realidade onde os deportados foram uma minoria ao final de tudo. O mesmo autor aliás, em co-autoria com Silberman (2003), diz que a troca da população, os que foram deportados para a região de Israel e entorno e os que foram levados embora, esteve longe de ser total. Fazendo referência ao número possível da população, citado acima, constitui não mais que 1/5 da população. Conclui-se que Teglaht-Falasar III parece ter expatriado principalmente aldeões rebeldes das colinas da Galiléia e a população dos principais centros, como Megido. Sargon II, por sua vez, teria deportado, em especial, a aristocracia de Samaria, e talvez soldados e artesãos com habilidades necessárias. Dessa forma, como resultado, a maioria dos israelitas sobreviventes foi deixada na terra. A deportação, sendo assim, parece ter sido mínima (FINKELSTEIN; SILBERMAN, 2003, p.302-03). Compreende-se todo o processo que teria ocorrido em Israel, e desta forma, ao analisar falas como a de Andrade (1994, p.16), em uma publicação lançada pela Casa Publicadora das Assembléias de Deus (CPAD), que diz: “Em 723 a.C. a Assíria destrói Israel e deporta as dez tribos que o compunham. Desaparece o Reino do Norte, fundado por Jeroboão, depois de uma atribulada existência de dois séculos”, deve-se tomar certo cuidado com as propostas de algumas publicações, e posteriormente, com as interpretações oriundasdestas. À final, a questão abordada nesta pesquisa pautou-se em buscar bibliografias que pesquisaram e pesquisam a história do antigo reino de Israel-norte como possível fonte de histórias ainda não reveladas. Compreendeu-se, durante o decorrer da pesquisa, que houveram muitas narrativas e situações na história que não são fáceis de serem observadas pelo público acadêmico, muitos menos, deva ser, para o público leigo. 3.2 ARGUMENTOS CONTRÁRIOS A NÃO-DEPORTAÇÃO TOTAL Pelo motivo do tema proposto nesta pesquisa resultar em finalidades que podem levar a grandes questionamentos e novas possibilidades de se compreender a história do antigo reino de Israel-norte, é natural que existam argumentos que venham a discordar da hipótese proposta neste trabalho. Sendo assim, nesta parte, a pesquisa apresenta dois dos três principais 23 argumentos levantados contra a hipótese de não-deportação da maioria da população. Ou seja, os argumentos que defendem que “sim”, “todos” ou pelo menos “a grande maioria” dos israelitas foram deportados até o ano de 722 a.C. O primeiro argumento é: 1 - o argumento sobre a demografia da região no período pós-deportação assíria, e 2 - o argumento dos textos reais assírios. O terceiro argumento seria pautado na autoridade do texto bíblico. Entretanto, particularmente sobre a Bíblia, o artigo se concentrará em um capítulo à parte. 1 - Baixa densidade demográfica. Os argumentos apresentados neste trecho partem daqueles observados na obra de Richard A. Horsley, Arqueologia, História e Sociedade na Galiléia. Este primeiro argumento se baseia nas informações provenientes de escavações arqueológicas na região da baixa galileia, onde se observa uma baixa continuação demográfica e uma lacuna na região que perdurou da conquista assíria até o período persa (séc. VI a.C.) (HORSLEY, 2000, p.29). Essa compreensão advém do campo das pesquisas de superfície que encontram uma Baixa Galileia subitamente repovoada no período persa depois de um período assírio subitamente despovoado. Entretanto, estes próprios estudos sugerem a necessidade de coordenação das pesquisas de superfície arqueológicas e de demais pesquisas históricas (HORSLEY, 2000, p. 173). Além do mais, Finkelstein; Silberman (2004, p.303) aponta que “levantamentos e escavações no vale de Jezrael confirmam a surpreendente continuidade demográfica. E cerca da metade dos sítios rurais perto de Samaria permaneceu ocupada nos séculos subsequentes”. 2 – Validade dos anais assírios. O segundo argumento se baseia na confiança das informações apresentadas pelas inscrições assírias. Ou seja, que a deportação completa dos povos israelitas é confirmada exatamente porque as inscrições reais assírias afirmam que “todos foram deportados”. Chega a ser compreensível a interpretação positiva das informações apresentadas nas inscrições assírias. Como afirma Liverani (2014) Nesse contexto de remodelação demográfica e territorial a serviço dos interesses assírios e sob atento controle de guarnições e funcionários assírios, a prática de “deportação cruzada”, que envolveu algo como 4,5 milhões de pessoas num período de três séculos, desempenhou um papel essencial (LIVERANI, 2014, p.193). Um número de 4,5 milhões de deportados em três séculos passa a ser uma quantidade expressiva que demonstra o poder que o império Assírio adquiriu com essa prática. Junta-se a 24 isso, a leitura das inscrições reais assírias que demonstravam que a conquista de uma região comportava tremendos prejuízos: cidades destruídas, vilas incendiadas, colheitas e gado saqueados, árvores frutíferas e vinhedos cortados, habitantes massacrados e o “resto” deportado (LIVERANI, 2014, p.191) não é de se subestimar que o império realmente teria capacidade de deportar toda a população do reino do Norte caso quisesse. Porém, ainda de acordo com Liverani, (2014, p.191), a insistência e o regozijo das narrativas podem fazer parte de uma “propaganda do terror”, mas não pode haver dúvida de que as operações de guerra, com a presença do exército inimigo e a posterior conquista, traduziam-se em enormes prejuízos para os conquistados. Essa possibilidade de inscrições com poderio propagandístico também é levantada por Bustenay Oded, considerado um dos principais autores que se concentraram na pesquisa sobre a prática de deportação assíria. De acordo com Silva da Silva, fazendo referência a Oded (1979, p.19 apud Silva da Silva, 2016, p.32) O autor (Oded) enfatiza ainda que não podemos deixar de levar em consideração o caráter propagandístico dessas inscrições e um consequente exagero dos escribas nos números citados, como, por exemplo, algumas IR de Senaqueribe anunciam que “Senaqueribe deportou mais de 200.000 habitantes da cidade de Judá”, embora não haja dados que comprovem esse número. Fato é que, como bem demonstrado no ponto 3.1, a quantidade de israelitas deportados soma pouco mais de 40 mil de acordo com os próprios dados assírios. Na comparação com a quantidade de habitantes existentes no norte, na forma proposta por Finkelstein (2015) de pouco mais de 350 mil, não resta escolha à não ser concluir que neste caso de Israel, levando em consideração os dados de Finkelstein, (2015; 2003), que o número de deportados foi mínimo em comparação com a quantidade da população ali existente. 25 Capítulo IV – O poder de uma ideologia Se não houve deportação em massa, por que a compreensão de um fim total de toda a população do Israel antigo ainda perdura? Neste ponto, diferente dos argumentos anteriormente apresentados, é irresponsável desviar para uma outra possibilidade de influência que não seja a Bíblia. É preciso considerar a forte influência da tradição bíblica sobre o assunto que neste trabalho é abordado. Observem o texto do livro de 2 Reis, e analisem a fala: No nono ano de Oséias, o rei da Assíria tomou Samaria e deportou Israel para a Assíria, estabelecendo-o em Hala e às margens do Habor, rio de Gozã, e nas cidades dos medos. Isso aconteceu porque os israelitas pecaram contra Iahweh seu Deus [...]. Adoraram outros deuses, e os costumes estabelecidos pelos reis de Israel. [...] Então Iahweh irritou-se sobremaneira contra Israel e arrojou-se para longe de sua face. Restou apenas a tribo de Judá (2 Reis 17:6-8;18)8. Diferente das ideias anteriores sobre argumentos que não são de conhecimento do grande público, afinal, entendimento sobre um império que reinou no antigo oriente médio com o nome de “Assíria” não se enquadra em um assunto daqueles que chamam a atenção e instigam a curiosidade, sem contar que entender de temas que levam em consideração a densidade demográfica no mundo antigo não é muito usual. A Bíblia, ao contrário, por muitos anos, foi, e continua sendo um dos maiores livros do mundo. O seu poder de influência e persuasão, para além do debate de “certo e errado”, é gigantesco e impactante. – Não seria correto ignorar que, devido à todo este poder de influência sobre o assunto específico deste trabalho, o livro sagrado de Cristãos, e em parte de Judeus, possui a sua parcela de responsabilidade sobre o questionamento atual. Poder-se-ia argumentar que os estudos acadêmicos em língua portuguesa não são muito comuns neste tema, e a falta de artigos escritos para o grande público denota que a compreensão corrente, de que Israel foi totalmente deportada, continua sendo a mais aceita. – Aliás, o fato de um documento oficial do Ministério das relações exteriores de Israel transmitir e propagar esta mesma compreensão corrente, e ainda como representante de um Estado moderno, fundamentaria esta afirmação. Afinal, o governo de Israel é uma das administrações que mais investem em educação e ensino, com toda a probabilidade já teriam investigado questões como o tema proposto nesta pesquisa e descoberto algo, se é que existiriaalgo para ser descoberto. A questão que responsabiliza a influência da leitura bíblica sobre o assunto, no que concerne a propagação da visão de que o antigo reino de Israel e a sua população tenham sido 8 Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002. 26 deportado em sua maioria, é muito bem apresentada pelo principal autor utilizado nesta pesquisa, Israel Finkelstein, em suas duas obras, O Reino esquecido – Arqueologia e História do Israel Norte, e A Bíblia não tinha razão, obra escrita em co-autoria de Neil Asher Silberman. Sem objetivar alongar a pesquisa para além de seus limites, existem algumas questões que precisam ser apresentadas para um melhor esclarecimento e para que a compreensão do autor possa ser entendida sobre o “porquê” a leitura bíblica sobre os ocorridos em Israel detém um papel importantíssimo na propagação da imagem de um “fim das 10 tribos de Israel”. Ao retornar ao capítulo II, o leitor observará nas breves considerações iniciais uma pequena apresentação de como se organiza a visão conservadora sobre os reinados do rei Davi e Salomão, na mítica “monarquia unida”. Toda a questão pode se resumir à partir deste ponto. Existe um conjunto de textos bíblicos que comumente são conhecidos no campo acadêmico através da sigla ‘OHDr’, “Obra Histórica Deuteronomista”. Essa obra historiográfica recebe este nome, de acordo com Liverani (2014, p.226), por que segue “No mesmo estilo e com os mesmos conceitos-base do Deuteronômio”. Na verdade, o que ocorre é uma longa obra historiográfica, que justamente recebe o nome de “história deuteronomista” que atravessa os livros de Josué, Juízes, 1 e 2 Samuel e 1 e 2 Reis (LIVERANI, 2014, p.226). Liverani (2014, p.226) argumenta que a obra histórica em questão deve ser atribuída a uma corrente, ou escola, de pensamento (e não à apenas um único autor) que teve início com a reforma de um rei de Judá chamado Josias, e que se prolongou posteriormente por algumas gerações. A história se enquadra quase como um “quebra-cabeças”, mas é necessária para a análise de toda a questão. Finkelstein; Silberman (2003) argumenta que toda a história do reino de Judá pode ser contada à partir da queda da capital do reino do Norte, Samaria, em 722 a.C., pela forma como analisamos nesta pesquisa. Somente após esta queda é que Judá se transformou num Estado completamente desenvolvido, com a necessária quantidade de sacerdotes e escribas treinados para empreender uma tarefa. Mas qual tarefa? De acordo com Finkelstein; Silberman (2003), após a queda de Israel para os Assírios, Judá se viu em uma situação repentina de um mundo não-israelita, e ela agora tinha o que era necessário para a confecção de um texto definitivo e motivador, a confecção inicial da Bíblia (FINKELSTEIN; SILBERMAN, 2003, p.311). Este é os primórdios do contexto da chamada “história deuteronomista”, como argumentou Liverani 27 (2014), mas como visto, um rei específico se tornou personagem importantíssimo sobre esta questão, Josias. Este rei, Josias (640-609 a.C.), foi um governante que subiu ao trono ainda muito jovem, em um período no qual o império assírio havia perdido o controle sobre as províncias mais distantes. Foi no governo de Josias, que segundo o texto bíblico (2Rs 22:8-10), no 18º ano de governo (622), que o sacerdote Hilqiyahu (Helcias) entregou ao secretário do rei um manuscrito que continha a Lei e que tivera sido encontrada no Templo de Jerusalém (LIVERANI, 2014, p.224). O sumo sacerdote Helcias disse ao secretário Safã: “Achei o livro da Lei no Templo de Iahweh.” Helcias deu o livro a Safã, que o leu. [...] Depois o secretário Safã anunciou ao rei: “O sacerdote Helcias deu-me um livro”, e Safã leu-o diante do rei. Ao ouvir as palavras contidas no livro da Lei, o rei rasgou as vestes. Ordenou ao sacerdote Helcias, a Aicam, filho de Safã, a Acobor, filho de Micas, ao secretário Safã e a Asaías, ministro do rei: Ide consultar Iahweh por mim, pelo povo e por todo Judá a respeito das palavras deste livro que acaba de ser encontrado. (2Reis 22:8- 13a9). Não se sabe ao certo qual texto era, nem o seu tamanho, mas apenas que era o “livro da Lei”. Como afirma Liverani (2014) estudiosos consideram que este texto devia ter uma conexão com o livro do Deuteronômio e com o núcleo originário do “estrato” redacional definido como “deuteronomista”. Sobre o conteúdo deste “texto”, Liverani (2014, p.222) diz A questão é complexa e debatida, e é difícil precisar qual o núcleo originário [...] Uma razoável possibilidade é que o texto que Josias pretende ter encontrado no templo corresponda a Deuteronômio 4-28: o chamado “Código deuteronomista” (Dt 12-25) e também seu enquadramento como “pacto da aliança”, mediado por Moisés, entre Yahweh e à Lei por parte do povo em troca de bênçãos ou para evitar maldições. Certo é que a “descoberta” deste Livro da Lei vai influenciar o rei Josias a desenvolver uma série de reformas baseadas nesta ‘Obra’. Finkelstein; Silberman (2003, p.231) denota que A ambição de Josias era se expandir para o norte e apoderar-se dos territórios nas regiões montanhosas que antes tinham pertencido ao reino do norte. Dessa maneira, a Bíblia sustenta essa ambição, explicando que o reino do norte se estabeleceu nos territórios da mítica monarquia unificada, a qual era governada de Jerusalém; que era um Estado israelita irmão; que seu povo era formado por israelitas que deveriam ter realizado o culto em Jerusalém; que os israelitas ainda vivendo naqueles territórios deveriam voltar seus olhos para Jerusalém; e que Josias, o herdeiro da casa de Davi e da promessa eterna de YHWH a Davi, é o único e verdadeiro legatário dos territórios do reino derrotado de Israel (FINKELSTEIN; SILBERMAN, 2003, p.231). Como dito, após a queda de Samaria e do Reino do Norte, Judá passou por uma revolução econômica, tendo a riqueza começado a se acumular, em especial em Jerusalém, onde as políticas diplomáticas e econômicas do reino eram determinadas e as instituições da 9 Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002. 28 nação eram controladas (FINKELSTEIN; SILBERMAN, 2003, p.333) e de repente o rei de Judá “descobre” um texto que reafirma e autoriza todas as suas atitudes e que lhe outorga uma autoridade que anteriormente o reino havia ‘esquecido’. O grande problema é que, como afirma Finkelstein; Silberman (2003), antes da cristalização do reino de Judá como Estado plenamente estabelecido, as ideias religiosas eram várias e diversas. Existia sim um culto no Templo de Jerusalém, todavia, esse culto não era único. Existiam incontáveis cultos da fertilidade e dos ancestrais na zona rural e ainda uma mistura espalhada da veneração de Javé junto com outros deuses. A arqueologia evidencia que práticas semelhantes existiam em Israel-norte. Porém, devido a centralização crescente de poder no reino de Judá e o surgimento desta nova atitude focada na lei e na prática religiosa, o poder de influência de Jerusalém começou a ganhar cada vez mais corpo, resultando em uma nova agenda política e territorial: a unificação completa de Israel (Judá-Sul + Israel-Norte) (FINKELSTEIN; SILBERMAN, 2003, p.334). Porém, como argumenta Finkelstein; Silberman (2003), essa escola de pensamento, que floresceu desde o final do século VIII a.C., insistia, agora, que os cultos da zona rural eram pecaminosos, e que apenas Javé deveria ser venerado. Esse movimento ‘somente Javé’ iniciou um duro e amargo conflito com os costumes e rituais judaicos que eram mais antigos e tradicionais. [...] a intenção do ‘movimento somente YHWH (Javé)’ era criar uma ortodoxia inquestionável de veneração e uma única história da nação, centralizada em Jerusalém. E foi muito bem-sucedido na elaboração do que se tornaram as leisdo Deuteronômio e a história deuteronomista (FINKELSTEIN; SILBERMAN, 2003, p.336). Como neste tempo o reino de Israel não passava de lembranças desbotadas, com suas cidades devastadas pelos assírios, Judá, seguindo a onda da prosperidade, passa a desenvolver ambições territoriais e começa a afirmar ser o único herdeiro legítimo dos extensos territórios de Israel. “A ideologia e a teologia do historiador da última monarquia estavam baseadas em vários pilares, entre os quais o mais importante era a ideia de que o culto israelita deveria ser totalmente centralizado no Templo de Jerusalém” (FINKELSTEIN; SILBERMAN, 2003, p.231). Aqui surgiria um grande problema, tanto cultural, quanto religioso. Um dos maiores centros rivais de Jerusalém, era Betel, localizada nas regiões do antigo Israel-norte. “O centro de culto em Betel representava concorrência perigosa para as ambições políticas, territoriais e teológicas de Judá”, agora, já no século VII a.C., sob o reinado de Josias (FINKELSTEIN; SILBERMAN, 2003, p.231). Como a confecção final da Bíblia não ocorrerá antes do Exílio 29 ou Pós-exílio de Judá (587 a.C.), muitos argumentam que grande parte do conteúdo da Bíblia é fruto de um complexo trabalho redacional, em grande parte revisionista. De acordo com Liverani (2014, p.227), o êxito pratico desse ponto de divisão ideológica é que a escrita da “história” de todos os reis de Israel que viveram no período anterior à essas reformas de influencia deuteronomista, sem exceção, serão considerados culpados de apostasia por sua tolerância ou favorecimento em relação aos cultos baalistas (culto à Baal). Porém, sobre os reis passados de Judá, o juízo é alternado, em reis bons e outros ruins. “A avaliação histórica desses juízos estava sob os olhos de todos: o reino de Israel fora efetivamente subvertido pela punição divina, ao passo que o de Judá tinha passado por alternadas vicissitudes” (LIVERANI, 2014, p.227). Finkelstein; Silberman (2003) afirmam que o reino de Israel-norte nasceu nos vales férteis e nas colinas onduladas do norte de Israel e cresceu para existir entre os reinos mais ricos, mais cosmopolitas e mais poderosos da região. Hoje, todavia, está quase totalmente esquecido, exceto pelo papel infame que desempenha nos livros bíblicos dos Reis. O outro reino, Judá, surgiu em um região inóspita e rochosa do sul. Sobreviveu mantendo o isolamento e uma feroz devoção ao seu templo e a sua dinastia real. Esses reinos representam dois lados da antiga experiência de Israel, duas sociedades muito diferentes, com atitudes e identidades nacionais distintas (FINKELSTEIN; SILBERMAN, 2003, p.41). Compreende-se a história de Israel-norte porque observa-se através das lentes do autor judaíta, deuteronomista. Finkelstein (2015, p.191;196) afirma Trabalhos arqueológicos nas terras altas e nos vales do Norte nas últimas três décadas, em escavações e pesquisas, possibilitaram delinear a história completa do Reino do Norte, uma história que está mal contada na Bíblia e ideologicamente distorcida, a fim de servir aos objetivos de Judá num momento em que Israel não existia mais. [...] Foi somente após a queda do Reino do Norte e o movimento de um grande número de israelitas para Judá que provocou a ascensão da ideologia pan-israelita no Sul. A nova visão promoveu a ideia de supremacia e legitimidade única da dinastia davídica e do Templo de Jerusalém [...]. Dito isto, e mais uma vez fazendo uso das palavras de Finkelstein (2015), fica demonstrado como a ideologia política da História Deuteronomista na Bíblia representa uma realidade posterior à queda do Reino do Norte. Ela é, segundo Finkelstein (2015, p.18) “judá- cêntrica”. Estudos bíblicos, arqueológicos e históricos do Antigo Israel tem sido dominados pela tradição histórica judaico-cristã, que foi formatada pela Bíblia Hebraica, ou seja, pelo texto judaíta. “A Bíblia é o que é, e por isso os estudos acadêmicos basicamente lidam com Judá sob a perspectiva judaíta de Israel, que foi formulada aproximadamente um século após o colapso do Reino do Norte” (FINKELSTEIN, 2015, p.18-19). 30 Fica evidente a intenção dos autores bíblicos em caracterizar a região do reino do Norte como totalmente devastada e após as deportações sendo habitadas completamente por estrangeiros não-israelitas. Essa visão, de que as “10 tribos de Israel” estavam para sempre perdidas, sendo assim, não passa de ideologia propagada como tradição. Pessoas continuaram vivendo nas suas casas, transmitindo por gerações seus costumes, histórias, contos e cultura, seus modos de ver e de enxergar o mundo. “A conclusão histórica mais provável, portanto, parece ser a continuidade da população israelita nos tempos posteriores” (HORSLEY, 2000, p.30). 31 Considerações finais Após percorrer este trajeto, finda-se esta pesquisa na demonstração de que, baseando- se na proposta inicial, responde-se, não de maneira completa, mas apenas introdutoriamente, o problema de pesquisa proposto. Teria a Assíria deportado toda, ou pelo menos, a grande parte da população do antigo reino do norte-Israel? – Considera-se que não. A insistente leitura contemporânea de se analisar a história do reino do norte à partir da linha bíblica, demonstrou-se ser de forte influência dos autores judaítas, que desenvolveram uma imagem muito negativa do norte, por motivos ideológicos e teológicos. Devido a Bíblia possuir um campo de influência muito grande, a imagem que dela se oriunda do reino de Israel, sob as diversas dinastias, sobretudo a dinastia dos Omridas, carrega um pesado fardo de parcialidade. Corrompe-se, assim, as possibilidades de descobrir uma história de Israel que seja franca e passível de ser vista sem ideologias antigas. Entretanto, mesmo está forte tendência dos autores bíblicos não podem anular o vasto campo da arqueologia e dos estudos históricos contemporâneos que demonstram que a quantidade de habitantes existentes por volta do século VIII a.C., em comparação com o número de deportados, baseando-se na quantidade apresentada pelos anais reais assírios, aponta para uma permanência considerável de habitantes vivendo nas regiões do Israel-norte, mesmo após os processos de deportações praticados pelos assírios. Este resultado possibilita que novas pesquisas sejam feitas na região da Galileia, particularmente no 1º século d.C., buscando encontrar ali fontes e vestígios deste passado israelita que durante muito tempo não tivera sido considerado. Uma vez grande parte da população tendo permanecido em seus lares, mesmo vivendo sob o jugo de um império estrangeiro, teriam conseguido transmitir a sua crença, costumes e tradições, sendo transmitidas estas culturas através das gerações, até chegar a períodos posteriores. 32 REFERÊNCIAS ANDRADE, Claudionor Corrêa de. Geografia bíblica. Rio de Janeiro: CPAD, 3ª edição, 1994. Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002. BRIGHT, John. História de Israel. São Paulo: Ed. Paulinas, 1978. DONNER, Herbert. História de Israel e dos povos vizinhos. Vol II. São Leopoldo: Sinodal; Petrópolis: Vozes, 1997. DA SILVA, Ruan Kleberson Pereira. Arte no Império: A função real e a ideologia da guerra em relevos parietais de palácios reais neoassírios (934 – 605 a.C.). XXVII Simpósio Nacional de História. ANPUH. Natal – RN. 14 paginas. 2013. FINKELSTEIN, Israel. O Reino esquecido. Arqueologia e História de Israel Norte. São Paulo: Paulus, 2015. FINKELSTEIN, Israel; SILBERMAN, Neil Asher. 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