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DA ÉTICA CRISTÃ À ÉTICA DE CRISTO 
Prof. Valmir Nascimento Milomem Santos 
 
 
 
INTRODUÇÃO 
Sem adentrar aos meandros conceituais, especialmente etimológicos, como 
geralmente costuma se fazer, entende-se por ética [geral] o conjunto de princípios 
e valores que guiam o ser humano a agir corretamente. Ética, segundo Roy May, 
tem a ver “com o discernimento do mal e do bem, do correto e do incorreto, do que 
é responsável e apropriado para o comportamento humano em suas relações sociais 
e pessoais”1. O escopo principal da ética, pois, é responder à complexa e crucial 
indagação: o que é fazer a coisa certa? 
 Historicamente, três orientações seculares básicas têm sido tomadas no 
campo da metaética2 para responder a essa intrincada questão: ética teleológica; 
ética deontológica e ética das virtudes. 
A ética teleológica (do grego télos, que quer dizer fim, propósito) 
preocupa-se com a finalidade da ação humana, pela qual “o valor moral é 
determinado pelos resultados ou consequências alcançadas”. Um dos exemplos 
dessa perspectiva moral é o utilitarismo, cujos pressupostos foram assentados pelo 
inglês Jeremy Bentham (1748-1832). A ideia central de sua teoria funda-se na 
premissa segundo a qual o mais elevado objetivo da moral é maximizar a felicidade 
assegurando a hegemonia do prazer sobre a dor. Para Benthan, “por utilidade se 
entende aquela propriedade, em qualquer objeto, mediante a qual ele tende a 
produzir benefício, vantagem, prazer, bem ou felicidade (tudo isto no caso presente 
é a mesma coisa) ou (o que novamente é a mesma coisa) a prevenir que ocorra um 
dano, dor, mal ou infelicidade à parte cujo interesse é considerado”3. 
A ética deontológica é a ética do dever. Nessa perspectiva moral o agir 
ético vincula-se ao cumprimento de uma obrigação previamente assumida. Em 
 
1 MAY, Roy H. Discernimento moral: uma introdução à ética cristã. São Leopoldo: Sinodal, 2008, p. 18. 
2 “Metaética é o ramo da filosofia moral que investiga a natureza das teorias éticas e o significado de 
julgamentos morais e termos da filosofia moral”. SPIEGEL, James. Hipocrisia: problemas morais e 
outros vícios. Rio de Janeiro: Textus, 2001, p. 120. 
3 BENTHAM, Jeremy, apud NALINI, José Renato. Ética geral e profissional. 8a. ed. São Paulo: Editora 
Revista dos Tribunais, 2011, p. 141. 
Immanuel Kant (1724-1804) temos a melhor representação dessa tipologia. Para 
Kant, diferentemente do pensamento da ética teleológica, o valor moral de uma 
ação não consiste em suas consequências, e sim na intenção com a qual a ação é 
realizada; o que importa é o motivo. “O que importa é fazer a coisa certa porque é 
a coisa certa, e não por algum outro motivo exterior a ela”.4 
“A boa vontade não é boa pelo que efetue ou realize, não é 
boa por sua adequação para alcançar algum fim que nos 
tenhamos propostos; é boa só pelo querer, quer dizer, é boa 
em si mesma, é, sem comparação, muitíssimo mais valiosa do 
que tudo aquilo por meio dela pudéssemos realizar em 
proveito ou graça de alguma inclinação e, sequer, da soma de 
todas as inclinações”5. 
 Desse modo, no pensamento kantiano, o fundamento da lei moral não está 
na experiência, apoiando-se, ao contrário, em princípios racionais apriorísticos. “A 
lei, cuja exteriorização deve representar o móvel da conduta eticamente boa, é o 
imperativo categórico, o critério supremo da moralidade: Age sempre de tal modo 
que a máxima de tua ação possa ser elevada, por sua vontade, à categoria de lei de 
universal observância”6. 
 A ética das virtudes decorre do pensamento de Aristóteles, para quem as 
ações são avaliadas de acordo com a possibilidade de serem apropriadas ou 
adequadas a um caráter virtuoso. Em Aristóteles, a “virtude é uma disposição de 
caráter e consiste na possibilidade de o indivíduo se tornar bom através do hábito, 
isto é, à medida que constantemente pratica ações boas”7. Para o filósofo de 
Estagira, a excelência das virtudes morais consiste na moderação habitual, ou seja, 
no meio termo-áureo. 
“A virtude, então, para citar suas palavras, é um ‘estado de 
caráter preocupado com a escolha, residindo no meio-termo 
– o meio relativo para nós -, o que é determinado por um 
princípio racional e por aquele princípio pelo qual o homem 
de sabedoria prática o determinaria’. A virtude está sempre 
no meio de dois extremos – um vício por deficiência e um 
 
4 SANDEL, Michael J. Justiça: o que é fazer a coisa certa?. 4 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 
2011, p. 143. 
5 KANT, Immanuel. Fundamentação metafísica dos costumes. Madrid: Calpe, 1921, p. 22. 
6 NALINI, José Renato, 2011, p. 77. 
7 SGANZERLA, Anor; FALABRETTI, Ericson S.; BOCCA V., Francisco. Ética em movimento. São 
Paulo: Paulus, 2009, p. 32. 
vício por excesso – que os levam a praticar o erro e acabam 
contribuindo para nossa infelicidade”.8 
 Assim, por exemplo, entre o vício da deficiência (covardia) e o vício do 
excesso (imprudência), está a virtude da coragem. Entre a insensibilidade e a 
licenciosidade está a temperança. Entre a avareza e a prodigalidade está a 
generosidade. No meio termo entre a mesquinhez e a vulgaridade encontra-se a 
liberalidade. Todavia, para Aristóteles, a única virtude que não possui meio-termo 
é a justiça. “Ela é a soma de todas as virtudes, e sua ausência é a soma de todos os 
vícios”9. 
Em direção a ética teísta 
 A ética, em uma perspectiva eminentemente cristã, não se resume a essas 
tipologias secularizadas de raciocínio moral. Embasada em um plano 
transcendente, para além do argumento secularizado, a ética cristã é 
essencialmente teísta, decorrendo, por primeiro, do pressuposto subjacente da 
existência de um Deus pessoal e moral que, sendo o próprio fundamento e marco 
ético absoluto, estabelece a separação entre o certo e o errado. 
Ainda que transcendente, a ética teísta merece confiabilidade e respeito nas 
discussões da praça pública, porquanto o seu fundamento ontológico é 
plausivelmente superior ao raciocínio moral secularizado. Isso porque, de onde 
advém a responsabilidade moral da pessoa humana se se admitirmos que o homem 
é o resultado do acaso e de meros eventos aleatórios da natureza? Pode a natureza, 
por si só, estabelecer algum tipo de obrigação moral? 
Se o teísmo estiver equivocado, e Deus não existir, não há alicerce 
adequado para uma ética objetiva, que inclua, por consectário lógico, dignidade, 
direitos humanos intrínsecos, responsabilidade pessoal e obrigação moral10. “Se 
Deus não existir, então tudo é permitido”, escreveu Dostoiévski em seu clássico 
“Os irmãos Karamazov”. Mas, factualmente é possível perceber a existência de 
valores morais objetivos, apontando para um Legislador único, na medida em que 
certos julgamentos e conclusões são inescapáveis. Dizer, por exemplo, “que o 
Holocausto foi objetivamente errado é dizer que foi errado embora os nazistas 
 
8 GRENZ, Stanley. A busca da moral: fundamentos da ética. São Paulo: Editora Vida, 2006, p. 84. 
9 GRENZ, Stanley, 2006, p. 84. 
10 COPAN, Paul. O argumento moral. In: BECKWITH, Francis; CRAIG, Willian Lane; MORELAND, 
J.P. Ensaios Apologéticos: um estudo para uma cosmovisão cristã. São Paulo: Hagnos, 2006, p. 130. 
responsáveis por ele acreditassem que fosse certo, e seria errado mesmo que os 
nazistas tivessem ganho a Segunda Guerra Mundial(...)”11. 
De igual modo, constantemente somos compelidos a recorrer a algum 
referencial moral diante de situações que exigem uma tomada de decisão, 
envolvendo debates entre o certo e o errado. Por isso, C. S. Lewis tinha o certo e o 
errado como a chave para a compreensão do sentido do universo. Em qualquer 
discussão, afirma Lewis, recorremos a um padrão para justificar o nosso 
comportamento ou opinião. 
No momento em que você diz que um conjunto deideias 
morais é superior a outro, está, na verdade, medindo-os 
ambos segundo um padrão e afirmando que um deles é mais 
conforme a esse padrão que o outro. O padrão que os mede, 
no entanto, difere de ambos. Você está, na realidade, 
comparando as duas coisas com uma Moral Verdadeira e 
admitindo que existe algo que se pode chamar de O Certo, 
independentemente do que as pessoas pensam; e está 
admitindo que as ideias de alguns povos se aproximaram mais 
desse Certo que as ideias de outros povos. Ou, em outras 
palavras: se as suas noções morais são mais verdadeiras que 
as dos nazistas, deve existir algo - uma Moral Verdadeira — 
que seja o objeto a que essa verdade se refere12. 
A esse padrão chamou Lewis de Lei Moral, que revela indícios de um Ser 
que está muitíssimo interessado na conduta reta, na lealdade, no altruísmo, na 
coragem, na boa fé, na honestidade e na veracidade. Nesse sentido, “devemos 
concordar com a visão do cristianismo e de outras religiões de que Deus é "bom". 
Mas não vamos apressar o andar da carruagem. A Lei Moral não embasa a ideia 
de que Deus é "bom" no sentido de indulgente, suave ou condescendente. Não há 
nada de indulgente na Lei Moral. Ela é dura como um osso. Exorta-nos a fazer a 
coisa certa e parece não se importar com o quanto essa ação pode ser dolorosa, 
perigosa ou difícil”13. 
Ao contrário de uma cosmovisão ateísta-naturalista, a ética que se extraí da 
visão de mundo teísta, portanto, embasa uma perspectiva coerente do padrão de 
vida em sociedade, capaz de estabelecer princípios cruciais para a formatação 
jurídica do Estado Constitucional. Em seu livro “Estado Constitucional e 
 
11 CRAIG, Willian Lane. Apologética contemporânea: a veracidade da fé cristã. 2. Ed. São Paulo: Vida 
Nova, 2012, p. 168. 
12 LEWIS, C.S. Cristianismo puro e simples. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 14 
13 LEWIS, C.S., 2005, p. 18 
Neutralidade Religiosa: entre o teísmo e o neoateísmo” o jurista português Jónatas 
Machado defende, a propósito, que o Estado Constitucional, que aponta para a 
primazia normativa e a universalidade dos valores de dignidade, liberdade, 
igualdade, racionalidade, verdade, justiça e solidariedade, não pode ser 
desvinculada das pressuposições judaico-cristãs acerca da existência de um Deus 
pessoal, moral, racional, verdadeiro, justo e bom que criou o homem à sua imagem, 
dotando-o de valor intrínseco. De acordo com Machado, se as pressuposições de 
base judaico-cristã forem verdadeiras, é possível deduzir, de forma racional e 
logicamente consistentes, os principais valores e princípios estruturantes do Estado 
Constitucional e a respectiva primazia e universidade. Se forem falsas, torna-se 
impossível proceder a essa dedução. Para Machado, um constitucionalismo 
naturalista e ateísta, por outro lado, ao remeter o ser humano e os seus valores, em 
última análise, para processos físicos e químicos aleatórios, amorais e irracionais, 
não consegue coerentemente oferecer o necessário fundamento moral e racional 
para os valores do Estado Constitucional e para as suas pretensões de primazia e 
universalidade. 
Segundo Jónatas Machado, o Universo, para o naturalismo, assim como a 
vida e o ser humano são o produto de processos cegos, irracionais, aleatórios, 
ineficientes e cruéis, destituídos de qualquer sentido, propósito e valor intrínseco, 
de modo que o cérebro e a mente teriam resultado da seleção natural. O que leva a 
concluir que a produção intelectual humana não passa de produto acidental, cujo 
resultado se mostra irracional e autocontraditório, na medida em que as próprias 
ideias naturalistas seriam o produto das leis da física e da química, não havendo 
uma forma objetiva e independente de atestar a sua veracidade. “As conclusões 
naturalistas conduzem inevitavelmente a um beco sem saída epistemológico, em 
que nada nem ninguém pode garantir a racionalidade, a verdade e o 
conhecimento”14. Se assim o é, revela-se totalmente arbitrário e irracional 
pretender deduzir um hipotético dever de subordinação do Estado Constitucional 
a princípios de racionalidade, verdade, previsibilidade, proporcionalidade e 
eficácia, a partir de uma visão de mundo que postule que tudo tenha sido resultado 
de processos físicos e químicos irracionais, aleatórios, ineficientes e até cruéis. 
Assim, Jónatas Machado conclui que essa concepção coloca em risco a 
liberdade de consciência e as demais liberdades fundamentais, e até mesmo a 
própria objetividade e a universalidade da argumentação racional e do discurso 
jurídico, a revelar a precariedade e a futilidade da tentativa naturalista de 
fundamentar valores universais de dignidade, liberdade, igualdade e justiça na 
razão humana. Um acidente cósmico não pode fundamentar qualquer 
 
14 MACHADO, Jónatas. Estado Constitucional e neutralidade religiosa: entre o teísmo e o neoateísmo. 
Porto Alegre: 2013, p. 64. 
reivindicação de dignidade e reconhecimento relativamente a outro acidente 
cósmico, por mais inteligente que seja; uma visão naturalista do mundo não 
permite alicerçar qualquer distinção qualitativa entre os seres humanos e os 
animais. A despeito de suas capacidades diferenciadas, todos não passam, no fim 
de contas, do resultado acidental dos mesmos processos físicos e químicos 
aleatórios e irracionais. "Se a visão naturalista e secularizada do mundo 
correspondesse à realidade, não haveria de fato qualquer fundamento moral ou 
racional para afirmar de fato a especial dignidade da pessoa humana. Todo o 
edifício dos direitos fundamentais que dela depende cairia por terra, por efeito 
dominó, como uma simples construção arbitrária, ilusória e imaginária”.15 
O princípio da dignidade da pessoa humana parte do pressuposto de que o 
ser humano está ligado por laços familiares e afetivos, conceito esse que ganha 
guarida na Teologia Cristã. “Para a visão do mundo judaico-cristã, essa dignidade 
especial de ser criado à imagem e semelhança de Deus manifesta-se nas peculiares 
capacidades racionais, morais e emocionais do ser humano, na sua postura física 
ereta, na sua criatividade e na sua capacidade de articulação de pensamento e 
discurso simbólico, distinta de todos os animais, por mais notáveis que sejam suas 
características”16. Por isso, a dignidade humana é um atributo universal, 
transcendente, que requer o reconhecimento de respeito e proteção a todos os 
indivíduos, respaldada por isso na teologia da imagem de Deus, onde o seu valor 
tem como base um significado moral que lhe foi atribuído pelo Criador. Além 
disso, o Estado Constitucional parte do princípio de que o ser humano é dotado de 
uma competência moral e racional que o distingue dos animais e objetos, e a 
liberdade é entendida como um princípio de autonomia moral a exercer dentro dos 
limites da razão e de valores morais fundamentais. Tal pensamento, também possui 
o respaldo na cosmovisão judaico-cristã, para quem a razão humana é o reflexo da 
natureza racional de Deus. 
 
“O reconhecimento da legitimidade e da necessidade do 
combate à corrupção, ao arbítrio, à prepotência, à 
criminalidade, à poluição do ambiente, etc., está aí para 
demonstrar que o Estado Constitucional parte do princípio de 
que nem todos os comportamentos humanos são igualmente 
valiosos e legítimos. Uma das razões para a defesa da 
liberdade de expressão e informação, a nível interno e 
internacional, diz respeito à necessidade de controlar as 
 
15 MACHADO, Jónatas, 2013, p. 76. 
16 MACHADO, Jónatas, 2013, p. 37. 
patologias associadas ao exercício do poder nos vários 
domínios da vida social” (p. 43). 
 
Machado assinala que Estado Constitucional reflete inteiramente princípios 
matriciais do pensamento judaico-cristão, tendo subjacente o reconhecimento de 
que a Imago Dei origináriacoexiste, hoje, com a propensão humana para a 
corrupção e perda do discernimento moral. Igualdade, solidariedade e justiça 
social também estão na base do constitucionalismo moderno. Esses valores 
somente podem ser concebidos a partir da ideia de que todos os homens e mulheres 
são iguais, criados à imagem e semelhança de Deus. O Estado Constitucional é 
também um Estado de verdade, assumindo que a veracidade e a confiança devem 
conformar, tanto quanto possível, todas as dimensões políticas e sociais, motivo 
pelo qual espera-se que a comunicação entre governantes e governados tenha na 
verdade o seu valor fundamental. De acordo com Jónatas Machado: “Uma das 
finalidades da liberdade de expressão consiste justamente, na procurada da verdade 
em todos os domínios, como o político, o moral, o econômico, o científico ou o 
religioso, no respeito por dimensões nucleares dos direitos de personalidade”17. 
Tal perspectiva, segundo ele, adequa-se perfeitamente aos axiomas judaico-
cristãos, visto que a exigência de verdade e racionalidade decorre lógica e 
racionalmente da natureza verdadeira e racional de Deus e das exigências que disso 
resultam para o ser humano. 
Fundamentos para uma ética cristã (ou ética de Cristo?) 
Por óbvio, tão diversificadas quanto as correntes secularizadas da 
moralidade, dentro da ética teísta também é possível falar em várias “éticas 
cristãs”, dada a quantidade de linhas teológicas que decorrem dessa tradição. Com 
efeito, como propõe César Moisés, ao invés de falarmos em “ética cristã”, talvez 
seja mais acertado falar da “ética de Cristo”, afinal “a ‘ética cristã’, atrelada a uma 
determinada expressão do cristianismo, geralmente está a serviço de questões 
particulares e periféricas, defendendo preceitos, regras e doutrinas que, no âmbito 
denominacional, são mais importantes que a própria vida”18. A ética de Cristo, por 
outro lado, vai além da religiosidade e do tradicionalismo denominacional. Ela 
foca no Filho de Deus e nas suas virtudes. Conforme vaticinou R. E. O. White “a 
essência da moralidade bíblica não é um sistema legal, um código escrito, uma 
filosofia moral abstrata, mas um espírito e uma lealdade, uma visão e uma fé 
 
17 MACHADO, Jónatas, 2013, p. 54. 
18 MOISÉS, César. Uma pedagogia para a educação cristã. Rio de Janeiro: CPAD, 2015, p. 83. 
encarnadas na inexaurivelmente rica e variada personalidade de Jesus”. Quando a 
ética religiosa se sobrepõe ao próprio Cristo perde-se a referência da moralidade. 
Isso porque, a vida e os ensinamentos de Jesus são o paradigma ético de 
todo cristão. George Barna nos lembra que Jesus foi capaz de modelar uma 
cosmovisão bíblica porque ele é Deus e, assim, conhece e corporifica a verdade e 
a justiça. No entanto, diz Barna, o fato de Jesus ser humano, enquanto esteve 
fisicamente na terra, sugere que ele também devia trabalhar para manter uma visão 
de tudo o que se deparava. Seu processo não foi acidental nem oculto: sua 
exortação aos discípulos foi: ‘Aprendei de mim’. O que podemos aprender com 
sua forma de tomar decisões?19. 
O apóstolo Paulo expressou isso da seguinte forma: Porque, quem conheceu 
a mente do Senhor, para que possa instruí-lo? Mas nós temos a mente de Cristo 
(1Co 2.16). No original grego, a palavra mente (nous) significa o lugar da 
consciência reflexiva, compreendendo as faculdades de percepção e entendimento, 
e do sentimento, julgamento e determinação.20 Ter a mente de Cristo, portanto, 
implica em pensar como ele e aplicar as verdades bíblicas em tudo o que fazemos. 
Ter a mente de Cristo envolve refletir, compreender, sentir, julgar e decidir de 
acordo com a vontade de Deus. 
Para se ter a ética de Cristo como diretriz sócio-política é necessário 
compreender o caráter ético do Reino de Deus. 
Sobressai nos Evangelhos o ensino de Jesus acerca do Reino, mencionado 
em diversas ocasiões pelos evangelistas como Reino de Deus, e em outras como 
Reino dos céus. Conquanto alguns estudiosos afirmem que tais expressões tenham 
significados distintos, o exame cauteloso das Escrituras e da cultura judaica dos 
tempos de Jesus revela em verdade que estas expressões possuem sentidos 
equivalentes. É importante lembrar que o evangelho de Mateus foi escrito aos 
crentes judaicos, e por isso o seu autor dá preferência ao termo Reino dos céus, ao 
invés de Reino de Deus, por causa do costume que tinham em não pronunciar 
literalmente o nome de Deus. 
Etimologicamente, a palavra Reino (gr. basileia) significa domínio ou 
governo. Em sentido amplo o Reino de Deus pode ser definido como o domínio 
eterno (Sl 45.6) do Criador em todas as épocas (Sl 10.16) e sobre a totalidade da 
criação, intervindo e predominando na história humana através de seus atributos 
supremos. Jesus completou a oração modelo da seguinte forma: “(...)porque teu é 
 
19 BARNA, George. Pense como Jesus: como pensar, decidir e agir em sintonia com Deus. São Paulo: Vida 
Nova, 2007, p. 29. 
20 VINE, W. E. Dicionário Vine. Rio de Janeiro: CPAD, 2002, p. 784. 
o Reino, e o poder, e a glória, para sempre. Amém!” (Mt 6.13). Todavia, além 
desse aspecto abrangente, o Messias referiu-se ao Reino de Deus de maneira bem 
mais específica, enfatizando tanto o seu aspecto presente quanto futuro. O teólogo 
britânico John Stott chamava essa dupla realidade do Reino de “Já” (Reino 
presente) e o “Ainda não” (Reino futuro). Logo, para a correta intepretação desse 
termo nos Evangelhos é fundamental que se considere o seu respectivo contexto 
bíblico. 
Diferentemente da expectativa dos judeus daquele tempo que aguardavam 
um Messias que implantaria o seu Reino na terra, por meio de uma renovação 
política, o Nazareno afirmou não ser o seu Reino deste mundo (Jo 18.36). Com 
esta declaração, Jesus não descaracterizou a realidade e a presença do Reino, de 
modo a afastar a sua própria autoridade sobre a esfera terrena, pois as Escrituras 
dão provas de que ele é supremo (Mt 28.18; Fp 2.9-11; Cl 1.15-18; Ap 19.16). 
Jesus refere-se à origem celestial do seu governo, o qual não é fabricado pelo 
homem ou conquistado pelo uso da força física ou pela política deste mundo. É um 
Reino real que emana de Deus e irrompe entre os homens promovendo 
transformação! 
Na sua dimensão presente o Reino de Deus é fundamentalmente espiritual. 
Quando recebemos esse Reino, Deus opera o seu domínio e manifesta por 
antecipação parte das bênçãos espirituais da vida eterna e da glória do porvir no 
tempo em que vivemos, gerando uma vida abundante (Jo 10.10). O apóstolo Paulo 
captou bem a sua essência ao dizer: “Porque o reino de Deus não é comida nem 
bebida, mas justiça, e paz, e alegria no Espírito Santo” (Rm 14.17). De forma 
graciosa, somos beneficiados pela boa, perfeita e agradável vontade (Rm 12.2) e 
pelas virtudes do Espírito (Rm 15.13), que afetam e influenciam todas as esferas 
da vida humana, especialmente emocional, mental, física, social e econômica. 
O Reino deixa marcas perceptíveis na vida de seus súditos, transparecendo 
evidências sublimes da presença divina em seus comportamentos. Um resumo 
destes sinais é encontrado no Sermão da Montanha proferido por Jesus, mais 
especificamente nas bem-aventuranças (Mt 5.1-10). Ali estão contidos os valores 
e princípios morais de Jesus para a realidade presente do Reino de Deus. 
Segundo Geremias do Couto, no Sermão do Monte Jesus “firmou os 
pressupostos que se tornariam a base do ensino desenvolvidos nas epístolas e 
observado pela igreja apostólica”21. Assim, este sermão é a síntese do ensino de 
Cristo para o seu povo, apontando para uma dimensão do compromisso, afinal 
 
21 COUTO, Geremias do. A transparência da vida cristã: comentário devocional do Sermão do Monte. Rio 
de Janeiro: CPAD, 2001, p. 23. 
“este padrão ético desejado porDeus para o seu povo, com o qual cada crente 
precisa estar comprometido, é o referencial que norteia, hoje, a vida cristã. Não 
haveria sentido tornar-se súdito de um reino onde não houvesse princípios para 
reger a vida em comum”22. 
Geremias do Couto ainda lembra que a ética do Reino de Deus é absoluta, 
pois decorre do próprio Deus que controla e estabelece as suas leis. “Como ser 
moral, não pode exigir menos do que impõe a sua própria natureza”23. Com efeito, 
a ética do Reino é absoluta, segundo Couto, em primeiro lugar, “para definir de 
modo claro o ideal a ser incessantemente buscado por aqueles que professam a fé 
cristã” (princípio da transparência); em segundo lugar é absoluta para “revelar que 
nenhum esforço humano é capaz em si mesmo de vive-la, a não ser pelos méritos 
da obra redentora de Cristo” (princípio da graça) e; em terceiro lugar, a ética é 
absoluta “para demonstrar, de forma antecipada, como que por espelho, o sublime 
estilo de vida a ser experimentado na dimensão do reino de Deus”24 (princípio do 
paradigma). 
 
BIBLIOGRAFIA 
BARNA, George. Pense como Jesus: como pensar, decidir e agir em sintonia com Deus. 
São Paulo: Vida Nova, 2007. 
COPAN, Paul. O argumento moral. In: BECKWITH, Francis; CRAIG, Willian Lane; 
MORELAND, J.P. Ensaios Apologéticos: um estudo para uma cosmovisão cristã. São 
Paulo: Hagnos, 2006. 
COUTO, Geremias do. A transparência da vida cristã: comentário devocional do Sermão 
do Monte. Rio de Janeiro: CPAD, 2001. 
CRAIG, Willian Lane. Apologética contemporânea: a veracidade da fé cristã. 2. Ed. São 
Paulo: Vida Nova, 2012. 
GRENZ, Stanley. A busca da moral: fundamentos da ética. São Paulo: Editora Vida, 
2006. 
KANT, Immanuel. Fundamentação metafísica dos costumes. Madrid: Calpe, 1921. 
LEWIS, C.S. Cristianismo puro e simples. São Paulo: Martins Fontes, 2005. 
MACHADO, Jónatas. Estado Constitucional e neutralidade religiosa: entre o teísmo e o 
neoateísmo. Porto Alegre: 2013. 
 
22 COUTO, Geremias do, 2001, p. 27. 
23 COUTO, Geremias do, 2001, p. 72. 
24 COUTO, Geremias do, 2001, p. 73. 
MAY, Roy H. Discernimento moral: uma introdução à ética cristã. São Leopoldo: 
Sinodal, 2008. 
MOISÉS, César. Uma pedagogia para a educação cristã. Rio de Janeiro: CPAD, 2015. 
NALINI, José Renato. Ética geral e profissional. 8a. ed. São Paulo: Editora Revista dos 
Tribunais, 2011. 
SANDEL, Michael J. Justiça: o que é fazer a coisa certa?. 4 ed. Rio de Janeiro: 
Civilização Brasileira, 2011. 
SGANZERLA, Anor; FALABRETTI, Ericson S.; BOCCA V., Francisco. Ética em 
movimento. São Paulo: Paulus, 2009. 
SPIEGEL, James. Hipocrisia: problemas morais e outros vícios. Rio de Janeiro: Textus, 
2001. 
VINE, W. E. Dicionário Vine. Rio de Janeiro: CPAD, 2002.

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